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Tarsila do Amaral - a última entrevista

Tarsila do Amaral, 1972 (foto:...)
"O que será aquela coisa?"

Foi o que ela quis saber, na Europa, ao ler uma carta de Anita Malfatti sobre a semana de Arte Moderna.

Por Leo Gilson Ribeiro

Apoiada numa pilha de travesseiros, as mãos inquietas afagando telas minúsculas que está pintando por encomenda, Tarsila do Amaral, 75 anos, tem um sorriso irônico para falar de seus passatempos hoje que está presa a uma cama, depois de uma queda que afetou sua coluna. Levanta o lençol azul florido que cobria dois volumes grossos sobre os quais apoiava os cotovelos: "Eu gosto de ler dicionários, imagine que hoje aprendi a pronúncia exata de 'exegeta'". Coquete, prefere não ser fotografada acamada ("Por que não reproduzem as fotos de quando eu era jovem?"). Não conhece bem a música de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque: são nomes que ouve no rádio mas muda o dial, "pois sempre achei a música popular tão banal, às vezes gosto é de Debussy, tão poético e colorista!" Servindo canjas brasileiras a Cocteau em Paris e vinhos da adega do Tour s'Argent a Mário de Andrade em São Paulo, a "musa" (ausente) da Semana de 22 achou-se dividida quando houve a "guerra da lagosta" entre a França (país que adora e cuja língua fala com um sotaque de senhorita aristocrática da alta burguesia parisiense) e o Brasil, mas predominou a veia nacionalista: "Afinal, as lagostas são nossas!"
Não se interessa pela arte moderna, para ela os móbiles de Calder não são arte: "O senhor acha que fazer equilibrar aquelas coisas coloridas é arte?!" Negou-se a ver as peças do seu ex-marido, Oswald de Andrade, porque ouviu dizer que "eram muito indecentes". Acusada de ter sido uma mulher de muitos amantes, desmente entre amuada e triste essa reputação "Pois se eu sou até puritana, minha Nossa Senhora!"
Desistiu de ler Guimarães Rosa? "Era um escritor que usava uma linguagem tão esquisita!" Não se incomoda com o barulho das serras elétricas das construções que se filtra até pelas janelas fechadas de seu apartamento no bairro paulista de Higienópolis. "Estão construindo um mundo tão diferente do meu! Até a Europa me dizem que hoje é tão diferente, Paris está tão mudada, para pior, que não vale a pena ir até lá. Paris foi a que eu conheci na mocidade."
Tarsila do Amaral está lúcida embora divague ao responder a uma pergunta. Muitas frases que intercala entre um assunto e outro refere-se a recordações isoladas, que lhe ocorrem no momento. Assistida por dona Anette, sua secretária e enfermeira, que lhe prepara também as telas, a pintora mantém um espírito vivaz, irônico e uma cordialidade fidalga que soa pouco moderna no mundo de hoje. "Grande dame" da sua época, ela é hoje uma excelente dialogadora, cheia de graça e de uma irreverência sutil para om os grandes da Semana ou da Paris eletrizante que conheceu.


Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, 1955 (foto:...)
Leo Gilson Ribeiro - A senhora estava na Europa, durante a Semana. Mesmo assim, é considerada uma de suas figuras principais. Por que?
Tarsila - Embora eu estivesse na Europa, eu acho que participei da Semana de 22 pela carta que a Anita Malfatti me mandou, contando tudo, com todas as minúcias. Agora nem sei onde essa carta foi parar. Eu fiquei admirada do que ela me contou e com a grosseria do Monteiro Lobato quando falou sobre ela, sem compreender nada, muito reacionário, pois imagine que ele se julgava pintor, o Monteiro Lobato, sabe? Eu fiquei muito admirada: o que será esta coisa? A Anita ficou magoada com toda a razão, o Monteiro Lobato falava dos quadros dela como se fossem feitos por um burro com um pincel amarrado no rabo e conforme as moscas atormentavam o burro ele dava aquelas pinceladas assim na tela, não é?

Leo Gilson Ribeiro - Mas a Semana...
Tarsila - Nas vésperas de ir para a Europa eu aluguei meu atelier para um professor alemão, o professor Elpons, o único impressionista que estava no Brasil. Ele foi o único que me deu uma experiência dos quadros impressionistas porque aqui no Brasil não chegava nada, só através do professor Pedro Alexandrino, que esteve vinte anos em Paris e visitava muito aqueles grandes pintores, que ele conhecia todos. Muita gente dizia: é perder tempo ir trabalhar no atelier de Pedro Alexandrino porque é um passadista; mas ele tinha preparo, pensando bem não era perder tempo não.

Leo Gilson Ribeiro - Como a senhora descobriu o seu talento?
Tarsila - Eu comecei a trabalhar (em São Paulo) sob a direção de Pedro Alexandrino e não me fez nada de mal de ver que era uma coisa antiga, acadêmica, tinha aquele método antigo de copiar "à fusain" para exercitar a mão, fiz até a cabeça de um negro, ele queria que eu tivesse a mão muito firme e me dava então aquele papel muito grande para trabalhar, não é? ele ia me explicando tudo, fazer traços sem régua, sem nada. Comecei com o desenho, eu não era uma colorista no princípio, fazia cópias de gesso também, com sombreado, coisas de anatomia que tinha que copiar, conhecer bem. Ele trabalhava no Liceu de Artes e Ofícios e trazia aqueles modelos e era muito bom porque a pessoa aprendia anatomia e sabia as proporções, não é?

Desenho de Tarsila do Amaral
Leo Gilson Ribeiro - São Paulo era muito provinciana nas artes?
Tarsila - Ah, era, o gosto geral era pelas paisagens iguaizinhas à vida, era o reino da natureza morta também, as fulgurações do metal copiadas na tela, tão real! Isso não foi prejudicial para mim, foi uma fase preparatória. Quando cheguei na Europa fui logo para a Académie Julien, academia de nus, num grande salão, eu fui com meus trabalhos: uma cabeço de velho feita a pastel, depois uma holandesa com óleo já e o negro, que foi a carvão. Havia muitos ateliers e a mado era dos nus: punham o modelo só cinco minutos diante do artista para ele fazer rapidamente, eu gostava até porque já tinha prática. Depois fui estudar com um grande professor hors concours, fazia exposições, gostava muito da minha pintura, agora me esqueci do nome dele. Ele chamava a atenção dos alunos para o que eu fazia, sabe? Eram muitos e como eu trabalhava rápido ele gostava e dizia para o atelier grande: "Voyez ce qu'elle fait, comme c'est puissant!" (Olha só o que ela faz, como tem força!) Eu voltei ao Brasil pouco depois da Semana, mas eu não gostava do que a Anita Malfatti fazia, era tudo assim muito deformado. Mas é claro que estava completamente chocada e contra o Monteiro Lobato. Depois, no fim do ano, a Anita foi trabalhar também com Pedro Alexandrino, porque a mãe da Anita era muito passadista e vivia contra a filha e contra as inovações dela na pintura, dizia que aquilo não prestava. A Anita ficava muito desanimada da mãe se zangar por ela não fazer o parecido, a mãe não compreendia nada, era um horror!

Leo Gilson Ribeiro - A senhora achou um ambiente hostil quando voltou?
Tarsila - Eu cheguei nos primeiros dias de junho, vinha de navio, que não tinha a facilidade do avião, o Gago Coutinho é que ia atravessar o Atlântico logo depois. Mas era tão tranquila a travessia por mar!... Eram os navios da Mala Real inglesa, os melhores, e logo passou algum tempo a França fez também o "Lutèce" e o "Marsília". Não, não achei um ambiente hostil quando voltei. Eu recebi muitas pessoas, poetas, no meu atelier da rua Vitória. Era uma casa que pertencia à minha família mesmo.

Leo Gilson Ribeiro - A senhora era uma mulher muito bonita...
Estudos - rosas, Tarsila do Amaral
Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo

Tarsila - Quem? Eu? Bom, naturalmente, naquele tempo eu estava melhor do que estou hoje. Aí tive o encontro com o Oswald de Andrade, que era muito extravagante, falava mal de todo mundo, quando ele achava que uma coisa era engraçada, tinha que dizer mesmo que ofendesse os amigos, sacrificava tudo por um "bon mot". Uma vez o Paulo Prado brigou com ele e nunca mais quis falar com ele, sabe? Eu nem sabia por que, no entanto o Paulo Prado tinha feito um prefácio muito bom para o livro de Oswald, "Pau-Brasil", editado lá em Paris. Quando o Oswald tinha uma coisa para dizer, ele não resistia mesmo e aí falou sobre a dona Veridiana Prado e dizem que ela não era, bem... ariana, que ela tinha uma misturazinha lá e o Oswald falou daquela "gloriosa mulata que é dona Veridiana Prado". Ora, o Paulo Prado era parente muito próximo, de maneira que nunca mais falou com Oswald.

Leo Gilson Ribeiro - Ele brigou também com o Mário de Andrade?
Tarsila - Brigou também. Depois ficou com saudade dele, pediu que eu escrevesse uma carta para o Mário, o Oswald era muito temperamental, eu já estava casada com ele e escrevi mas o Mário respondeu que era impossível, que o Oswald o tinha ofendido demais, que ele estava muito ressentido, que não era possível, que comigo era diferente, ele sempre foi muito meu amigo, o Mário. Aí, quando o Oswald viu que ele não voltava mesmo as boas, continuou a falar mal do Mário. Era uma pena esse traço do caráter do Oswald... E com uma obra tão séria, não? as ilustrações dos livros fui eu que fiz todas.

Abaporu, de Tarsila do Amaral - 1928
Leo Gilson Ribeiro - O famoso "Aba-Puru" partiu daí?
Tarsila - Não, eu quis fazer um quadro que assustasse o Oswald, sabe? que fosse uma coisa mesmo fora do comum. Aí é que vamos chegar no "Aba-Puru". Eu mesma não sabia por que que eu queria fazer aquilo... depois é que eu descobri. O "Aba-Puru" era aquela figura monstruosa que o senhor conhece, não é? a cabecinha, o bracinho fino apoiado no cotovelo, aquelas pernas compridas, enormes, e junto tinha um cacto que dava a impressão de um sol como se fosse também uma flor e ao mesmo tempo um sol e então quando viu o quadro o Oswald ficou assustadíssimo e perguntou: "Mas o que é isso? Que coisa extraordinária!" Aí imediatamente telefonou para Raul Bopp, que estava aqui, e disse: "Venha imediatamente aqui que é para você ver uma coisa!" Aí o Bopp foi lá no meu atelier, ali na rua Barão de Piracicaba, um solar muito bonito que meu pai tinha comprado recentemente, o Bopp assustou-se também e o Oswald disse: "Isso é como uma coisa como se fosse um selvagem, uma coisa do mato", e o Bopp foi da mesma opinião. Aí eu quis dar um nome selvagem também ao quadro, porque eu tinha um dicionario de Montoia, um padre jesuíta que dava tudo. Para dizer homem, por exemplo, na língua dos índios era Abá. Eu queria dizer homem antropófago, folheei o dicionário todo e não encontrei, só nas últimas páginas tinha uma porção de nomes e vi Puru e quando eu li dizia "homem que come carne humana", então achei, ah, como vai ficar bem, Aba-Puru. E ficou com esse nome.

Leo Gilson Ribeiro - Então a senhora foi a origem do movimento antropofágico?
Tarsila - O Raul Bopp achou que devíamos fazer um movimento em torno desse quadro, achou esquisitíssimo, ele gostou muito e depois escreveu um livro interessantíssimo sobre o linguajar indígena do Amazonas. Todos começaram a dizer que o Oswald é que tinha feito o "Aba-Puru" e criado o movimento antropofágico. Ele aceitou que dissessem que era de autoria dele, achou interessante.

Estudo - grupo de crianças, de Tarsila do Amaral
Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo
Leo Gilson Ribeiro - Daí ele passou a datar documentos a partir do ano em que os índios tinham comido na Bahia aquele bispo, o bispo Sardinha?
Tarsila - É, e fizeram o movimento da antropofagia e aí todas as quartas-feiras o Chateaubriand (com pronúncia francesa) ofereceu uma página no jornal para o movimento. Então vinha o Geraldo Ferraz, que era conhecido como açougueiro, falar de arte, não é? Era, sim, açougueiro porque antropofagia era comer carne, então ele é que contava e distribuía entre os leitores. Mas aí, como havia muita irreverência com as famílias que assinavam o "Diário de São Paulo", o Chateaubriand viu-se obrigado a pedir que não continuassem porque estava perdendo todos os leitores.

Leo Gilson Ribeiro - O "Aba-Puru" com aquela figura deformada, monstruosa, parece coisa de pesadelo.
Tarsila - Engraçado o senhor falar nisso, eu gosto de inventar formas assim de coisas que e nunca vi na vida, mas não sabia por que que eu tinha feito o "Aba-Puru" daquela forma. Eu me perguntava: "Mas como é que eu fiz isto?" Depois uma amiga minha que era casada com o prefeito me dizia: "Sempre que eu vejo 'Aba-Puru' me lembro de uns pesadelos que eu tenho", e eu então liguei uma coisa a outra, disse que devia ser uma lembrança psíquica ou qualquer coisa assim e me lembrei de quando nós éramos crianças na fazenda. Naquele tempo tinha muita facilidade de empregadas, aquelas pretas trabalhavam para nós na fazenda, depois do jantar elas reuniam a criançada para contar histórias de assombração, iam contando da assombração que estava no forro da casa, eu tinha muito medo, a gente ficava ouvindo, elas diziam: daqui a pouco da abertura vai cair um braço, vai cair uma perna e nunca esperávamos cair a cabeça, abríamos a porta correndo e nem queríamos saber de ver cair a assombração inteira. Quem sabe o "Aba-Puru" é reflexo disso?

Leo Gilson Ribeiro - Assim como o movimento antropofágico tinha relações com as culturas chamadas primitivas, dos índios, da África, etc., o Fernand Léger, com a sua temática de máquinas, fábricas, sociedade moderna, teve influência na sua pintura também?
Tarsila - Eu gostava muito da obra dele, fui muito amiga dele, mas não frequentei o atelier do Léger, eu era amiga da mulher dele também, depois até inventaram que ele tinha desenhado brincos para mim, etc., imagine! Eu me inspirei em São Paulo mesmo, na sociedade fabril e foi uma novidade naquele tempo, no Brasil, o que eu fiz. E fui tão bem aceita, que o governo do Estado comprou a minha obra, sabe, um quadro grande, está em Campos do Jordão, imitando em cima uma fábrica. Na época de minha exposição no Rio tive um amigo pernambucano que me mandou todos os recortes da crítica quando foi exposto lá o "Aba-Puru" inclusive. Havia invenções incríveis, diziam que meu atelier era como o atelier do Renoir, cheio de nus e não sei o que mais e que eu mandava espalhar pelo atelier inteiro divãs cobertos de veludos roxos, cada uma! E me confundiam com Anita Malfatti. Naquela época, o senhor imagina, uma jornalista do Rio chegou a escrever que o Oswald de Andrade nem chegara a se casar comigo! Falava de mim feito de um monumento em São Paulo, vale a pena conhecer Tarsila em São Paulo, virei atração turística, veja só! Quando meu casamento com o Oswald foi até um casamento de luxo, o Washington Luís esteve presente! Falavam de mim, de meus muitos amores!, até de lançadora de modas eu fui chamada. e claro, porque cada vez que eu voltava da Europa eu trazia as novidades, não é mesmo? Eu estava uma vez com um vestido lindíssimo, uma seda meio xadrez, com mangas bufantes e dois laços de fita bem largos, azuis (dona Anette mostra uma edição da "Ilustração Brasileira" e diz que foi em 1924), sabe? Foi o vestido que eu escolhi para o vernissage de obras minhas num conjunto de salas, na rua Barão de Itapetininga, eu estava ali esperando os visitantes. Aí eu vi assim uma porção mesmo de rapazes que vinham na minha direção, como eu estava na porta eu perguntei: "Os senhores querem entrar?" Parecia que era o que eles queriam mesmo, e eu os recebi com muita cordialidade, convidei, mal eu sabia o que eles queriam fazer: todos vieram com giletes no bolso para arrasar com tudo o que eu tinha feito! Mas acho que me estranharam de ver num vestido assim tão bonito e não conseguiram o que pretendias, não.

Louvor à natureza, de Tarsila do Amaral -1923
Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo
Leo Gilson Ribeiro - A senhora na sua infância morou em São Paulo ou no interior?
Tarsila - Quando eu era pequena eu morava numa fazenda, meu pai adorava tudo que era fazenda, comprava muitas terras, era um homem muito tico porque o pai dele também era conhecido na genealogia paulista como José Estanislau do Amaral, o Milionário. Ele começou a vida sem nada, fazendo óleo de mamona, tinha um ou dois escravos que o ajudavam a fazer isso e depois foi vendendo, foi melhorando, comprou fazendas, uma porção, vendia café em Santos também, onde ganhava muito com isso. Eu fui criada no campo, acho que é por isso que sou tão forte ainda com a minha idade. Na luta do braço (mostra o braço), até homem é difícil de me vencer, sabe?

Leo Gilson Ribeiro - E na sua pintura também está essa força da terra, do campo? 
Tarsila - Exatamente. Sabe? Eu era pequena na fazenda a via minha mãe com muitos santinhos da igreja, já gostava da pintura, tanto que eu fazia as primeiras cópias mal feitas dos santos. São Francisco Xavier eu fiz quando eu tinha uns quatro anos. Adorava desenhar e viver rodeada de galinhas, de pintos e fazia um desenhozinho, de tudo que era animal que eu via. Aí me fizeram presente de uma gatinha branca, eu adorava gatos, chamava-se "Falena", e ela arranjou muitos maridos e eu fiquei com quarenta gatos que me rodeavam miando, lá na fazenda de Capivari. Mas eu passava tempos também na fazendo de São Bernardo, que papai já tinha comprado naquela época, era uma casa muito grande e bonita e até foi vendo as letras da entrada da fazendo que eu fui aprendendo a ler. Sabe, eram letras quase do tamanho deste armário aqui. Minha mãe me ensinava "Olhe, isto aqui é um B, chama-se B esta letra, aqui é um A" e eu me lembrava logo da forma das letras. Eu nem senti que estava sendo alfabetizada antes de entrar para a escola. E fazia também bonecas de mato: um mato que crescia com uns caules quadradinhos e dava flor, eu pegava e fazia com aqueles matos uma espécie de escultura, eu fazia braços e pernas e brincava com aquilo. Eu cresci nessa fazenda e como meu pai soube que ali perto tinha se estabelecido uma família belga, eram nobres Van Harenberg Valmont, tinham uma filha de dezoito anos e, como eu tinha outros irmãos pequenos, papai mandou perguntar se a moça podia vir nos ensinar francês e ela veio mas não nos ensinou nada, mamãe é que ensinou português para ela. O francês eu aprendi porque papai queria os filhos muitos educados, então fomos para a Europa e nunca nenhum francês soube que eu não era francesa: me diziam sempre que eu falava completamente sem "accent étranger", sabe?

Dançarinas com paisagem ao fundo II, de Tarsila do Amaral
Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo
Leo Gilson Ribeiro - Em Paris a senhora estava em contato com Picasso, com Apollinaire, com Breton?
Tarsila - Ah, estive, o Cocteau também era nosso grande amigo, eu fazia muitos almoços brasileiros no meu atelier em Paris, que o Paulo Prado descobriu que foi o atelier de Cézanne, na rua Moreau, num bairro até não muito recomendável, mas era tão difícil ter um atelier em Paris! Havia muitos artistas americanos, muitos estrangeiros e era difícil achar. O meu era no quinto andar, tinha que subir tudo a pé, não tinha banheiro, era meio primitivo, banho mesmo era só no "bain publique". Quem ia sempre era o Vila-Lobos e o Cocteau também frequentava, diziam até que ele era muito bom musicista, Vila-Lobos então improvisava num piano de cauda que tinha lá no meu atelier, tocava uma coisa e o Cocteau dizia, fazendo careta de tédio: "Non, ça n'est pas quelque chose de neuf!" (Não, isso não é nada de novo!) Aí o Vila-Lobos tocava outra coisa e o Cocteau balançava a cabeça: "Não isso não é inédito", até que se sentou embaixo do piado alegando que era "pour mieux entendre" (para ouvir melhor), mas nunca aprovando a música do Vila-Lobos, o folclore brasileiro para ele era "déjà entendu" (já ouvido). O senhor pode imaginar as brigas que se armavam, com o Vila-Lobos muito espalhafatoso, muito exuberante... Era um clima, aliás, de constantes discussões, porque eram de partidos literários, políticos, estéticos diferentes e dava aquelas confusões eternas...

Leo Gilson Ribeiro - A senhora teve uma vida muito rica; quando foi que a senhora se sentiu mais feliz?
Tarsila - Foi quando justamente meu pai comprou o solar que havia lá na rua Barão de Piracicaba, porque minha mãe gostava de casa bem grande, era uma mansão mesmo e lá é que eu dava festas, fazia jantares e tinha dois rapazinhos de quinze para dezesseis anos e que eram garçons, eu trouxe uma adega excelente, que ninguém conhecia igual em São Paulo, escolhida peça por peça por um "sommelier" francês com o nome de um artista conhecido, não me lembro agora, Maurice Chevalier? Não, ele se chamava Charles Boyer, acho que era o nome de um artista do cinema, não era?

Leo Gilson Ribeiro - De onde a senhora tira tanta força para viver? Uma queda a deixou presa na cama a maior parte do dia. Recentemente, perdeu a única filha. Logo depois, morreu sua única neta, afogada. Você é religiosa?
Tarsila - Ih, sou, sim. Sou muito devota do Menino Jesus de Praga, porque alcancei muitas graças com as orações a ele. É uma novena milagrosa, eu sei tudo de cor: "Oh Jesus que dissestes: Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e a porta se abrirá", quando eu li isso eu fiquei arrepiada, sabe? de imaginar assim aquela porta se abrindo, se abrindo... Isso me inspirou um quadro de Jesus Menino com um negrinho, que simboliza os humildes, também com japoneses e índios, eu dei de presente para um padre que dirige um orfanato para crianças. Eu copiada oleografias sacras...

Leo Gilson Ribeiro - O Portinari começou também copiando santos.
Tarsila - Ah, tive uma desilusão com Portinari quando conheci um exegeta do cubismo em Paris e frequentei mais de seis meses esse grande professor e acho que o Portinari não sabia fazer pintura cubista. Por exemplo: ele ia fazer o Tiradentes. Fez com pincel e nanquim, desenhado, e depois colocou pedaços de papel e colou em cima do desenho, isso nunca foi cubismo!


Retrato de uma antiga ama de leite e a A Negra, de 1923
Leo Gilson Ribeiro - Além do sentimento religioso, há um tom de lembrança em sua pintura...
Tarsila - Um dos meus quadros que fez muito sucesso quando eu o expus lá na Europa se chama "A Negra". Porque eu tenho reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas, quando eu era menina de cinco ou seis anos, sabe? escravas que moravam lá na nossa fazenda, e ela tinha os lábios caídos e os seios enormes, porque, me contaram depois, naquele tempo as negras amarravam pedra nos seios para ficarem compridos e elas jogarem para trás e amamentarem a criança presa nas costas. Num quadro que pintei para o IV Centenário de São Paulo eu fiz uma procissão com uma negra em último plano e uma igreja barroca, era uma lembrança daquela negra da minha infância, eu acho. Eu invento tudo na minha pintura. E o que eu vi ou senti, como um belo por-de-sol ou essa negra, eu estilizo.

Leo Gilson Ribeiro - A sua pintura, tão poética, é então uma evocação enternecedora de uma infância feliz?
Tarsila - Acho que o senhor não está longe de ter acertado.

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:: Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 23 de fevereiro de 1972 - Edição 181


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Henfil - entrevista: o baixinho sou eu

Henfil, humorista e cartunista (foto: Itaci/VEJA)
"O baixinho sou eu"

O pai dos dois Fradinhos crê no sucesso de uma linguagem universal: a do sadismo

Por Osvaldo Amorim

Guerreiro solitário, antes só do que mal acompanhado, ele desceu as montanhas, atravessou o Paraíba, chegou ao Rio, riu e venceu. Mas já havia sido tricampeão da charge num concurso em Minas Gerais, onde - há 28 anos - nasceu e foi educado no que chama "a religião do terror". Essa formação "mistura de puritanismo, tradicionalismo, patriarcalismo e matriarcalismo, aliada a uma terrível fobia por qualquer espécie de pecados, originais, veniais e mortais, me inoculou magníficas neuroses, responsáveis por toda a minha graça", diz Henrique de Souza Filho, o Henfil de "Urubu e Bacalhau" (no "Jornal dos Sports"), das charges políticas (no "Jornal do Brasil"), e sobretudo de "Os Fradinhos" (em "O Pasquim").
Primeira revista do Fradim, lançada em 1971
Entre alto e baixo, quase magro ("São 60 quilos proporcionalmente distribuídos em 1,70m"), jeito de adolescente ("Que bom"), alegre, mas caladão e caseiro *casado, tem um filho de um ano e meio), vê-lo e conhecê-lo faz lembrar muito pouco o feroz Baixinho - um dos fradinhos. Na verdade, Henfil se parece mais com o outro, o Cumprido ("Ê com u mesmo"), ingênuo, puro, indefeso diante das malvadezas do companheiro. "De fato, eu sou o Baixinho", diz Henfil. "Mas justifico o seu mau caráter em cada uma de suas ações."
Agora ele vai lançar os dois num "Almanaque dos Fradinhos", esta semana. O álbum, "primeiro de
uma longa - espero - série", inclui 135 historietas, desde a primeira, publicada, em 1964, na revista "Alterosa", de Belo Horizonte. "Eu acho que o livro vai pegar porque o Baixinho tem uma linguagem universal, é o sadismo." E, por isso, a próxima meta de Henfil é lançar a dupla no exterior. O autor, contudo, não tem nenhuma intenção de acompanhá-los em suas viagens. "Meu negócio é o Brasil." Ou o Rio de Janeiro: "Não há lugar mais moleque em todo país. É o único do mundo com quase 6 milhões de Baixinhos".

Osvaldo Amorim - Henfil, modéstia à parte, você se considera o maior humorista do Brasil?
Henfil - Não. Eu não sou o maior humorista do Brasil. E não falo por modéstia, não. O maior humorista brasileiro, o humorista mais completo do país, no meu entender, é o Millôr Fernandes, que está aí mesmo na revista. Ele é um cara que tá de antena ligada para tudo quanto é assunto. É um cosmopolita da informação. Ele bebe água em anúncio classificado, em televisão, em enciclopédia, em revistinha imbecil, em jornal. E, se estou aprendendo, não posso ser maior do que ele, que também leva sobre mim a vantagem do maior tempo de serviço. E tem o Ziraldo, o Jaguar, p Fortuna. Quer dizer, um pessoal pelo qual eu tenho o maior respeito, inclusive está na minha frente há muitos anos. Eu sou uma novidade. E novidade normalmente faz barulho.

Osvaldo Amorim - O criador do contestador Baixinho, segundo consta, tem um dos maiores salários do país. Afinal, que contestação é essa?
Henfil - Realmente, eu ganhava muito bem. Era um cara que tinha uma soma de salários muito boa. Mas isso me deu uma série de problemas. Um deles: excesso de segurança. Eu acho que para criar é preciso estar inseguro, estar a perigo o tempo todo. A insegurança, o "a perigo", é que faz com que o cara crie. A maioria dos meus personagens, eu os criei numa época em que estava a perigo, tentando abrir caminho profissionalmente. Depois, não criei nada novo. Quando vi que o negócio era esse, resolvi cortar o mal pela raiz. Deixei 90% dos lugares onde trabalhava. Cortei definitivamente os trabalhos em publicidade, que são justamente aqueles que rendem mais, passei a trabalhar só em três veículos que me interessam: "Jornal do Brasil", onde faço uma charge política para um público mais sofisticado, "O Pasquim", onde eu faço grossura para um público relativamente indefinido (não sei se é elite, porque todo mundo lê - inclusive tem uma penetração violenta no interior), e o "Jornal dos Sports", onde eu faço charge para o povão. Estou ganhando 90% menos por tática: para criar melhor. Não há maior perigo para um cara que cria do que a estabilidade.

Osvaldo Amorim - Henfil, o fradinho baixinho é a exteriorização de suas neuroses?
Henfil - Como habitante desde planeta industrial, obviamente eu sou neurótico. E o Baixinho é apenas a exteriorização dos meus impulsos. Descarrego nele as minhas reações impulsivas, inclusive aquelas de que muitas vezes eu discordo depois.

Osvaldo Amorim - Você já levou o Baixinho ao psicanalista?
Henfil - Levei ao reflexologista, o negócio do condicionamento. O pessoal lá da clínica brincava comigo: "Você vai perder a graça, pois seu humor é fruto de suas neuroses". Se isto for verdade, pensei, vou passar fome depois de curado. Mas aconteceu o inverso. Ao me libertar de uma série de tensões, de problemas, fiquei mais descontraído. O Baixinho ficou ainda mais baixinho e eu fiquei mais espontâneo.

Osvaldo Amorim - Se o Baixinho é você, quem é o Cumprido?
Henfil - O Baixinho sou eu. Hoje. O Cumprido também sou eu - numa versão antiga. Vamos dizer que eu andei e o Cumprido ficou para trás. É isso. O Cumprido é como eu era: um cara carola, infantil, ingênuo, aquele mineirão com aquela formação religiosa antiga, mórbida. A religião do terror, na qual tudo é pecado (o raio que está caindo é castigo de Deus). Do pecado mortal, venial e original. O Cumprido ficou nessa fase. Afora eu me identifico com o Baixinho, que é exatamente como eu sou hoje: toda uma negação desse meu passado. E de uma maneira muito agressiva, porque esse meu passado me incomoda bastante. Não acho nada gostoso ser um cara que já foi da cruzada eucarística, que quase foi congregado mariano. Minha mãe me formava para eu ser padre. Fui salvo pelos dominicanos, que me deram uma nova formação, uma nova visão da Igreja, de justiça, de liberdade, de alegria. A outra era uma visão tétrica. O Baixinho procura, através da agressão, do ridículo, me checar e ao meio em que eu vivo. Já vi: não era só eu o carola: meio mundo é carola, fariseu, hipócrita. Então eu passei a anarquizar, a agredir essa gente, como o Baixinho agride.

Osvaldo Amorim - O Baixinho é considerado o mau caráter da dupla dos fradinhos, o Henfil é mau caráter?
Henfil - Não. Eu não sou mau caráter. De jeito nenhum. Eu seria mau caráter se as ações do Baixinho, pelas quais sou responsável, fossem gratuitas. Mas não são. Ele está sempre provocado: pela frescura com a criança, o relacionamento que se tem com a criança, por exemplo. O pessoal acha o Baixinho um tremendo mau caráter porque ele está sempre agredindo as crianças, não é isso? O problema é que existe um negócio que me provoca: a paparicação das crianças até os dois, três anos. Elas são os reizinhos, as princesinhas da casa. Daí em diante o negócio começa a mudar: o cacete começa comer em cima, elas são mandadas para a  guerra do Vietnam. Quer dizer: eu sou a favor do adulto. Não quero essa discriminação de idades. Por isso agrido a carolice com as crianças, que é negócio de fariseu: paparica agora para ser bucha de ganhão depois. O Baixinho agride esse relacionamento falso, hipócrita. Procura escandalizar: chega e dá uma "cocada" numa criança. Aí todo mundo acha aquilo um sadismo tremendo. Mas se por acaso eu fizer o Baixinho mandar um rapaz para a guerra, ninguém acha graça. Meu negócio é esse, mostrar, com a ajuda do sadismo, um troço que, na base da poesia, não entra na cabeça de ninguém. Minha política é simples: poesia não, sadismo sim.

Osvaldo Amorim - Como foi que os Fradinhos nasceram?
Henfil - Nasceram graças à insistência de um cara lá de Minas, que praticamente me obrigou a criar os personagens para a revista "Alterosa", que ele dirigia. Quer dizer: ele queria que eu criasse um personagem. como na época, 1964, em convivia muito com os frades dominicanos, acabei vestindo os personagens com hábito deles. Curioso é que o Roberto Drumond, o jornalista, foi o único sujeito a acreditar em mim, numa época em que nem eu acreditava. Eu era um péssimo desenhista. Meus desenhos poderiam servir, no máximo, para um catálogo de esquizofrênicos, ou uma coleção de desenhos de débil mental. Eu pedia demissão todo o mês mas o Roberto não aceitava e ainda metia minha família no meio para me obrigar a continuar. Também não durou muito, pois quatro número e quatro meses depois a revista fechou.

Osvaldo Amorim - Você matou os Fradinhos e depois ressuscitou. Por que tentou acabar com eles e por que desistiu? As criaturas foram mais fortes do que o criador?
Henfil - Foi o seguinte: eu trabalho há três anos no "Jornal dos Sports", fazendo uma charge diária de quase uma página. Quer dizer: em três anos temos aí umas mil e tantas charges. Pois bem, até hoje ninguém escreveu ou falou que eu estava chato, que precisava modificar, renovar: o povo tem uma raiz cultural muito firme, muito bacana. Ele vai se identificando com o negócio e passa a ser mesmo até contra mudanças radicais. Não gosta de estar mudando todo dia. Sabe que até as galinhas põem menos ovos quando trocadas de galinheiro. Essas mudanças sucessivas acabam desestruturando, arrasando o cara. O povão é assim: nestes três anos de "Jornal dos Sports" nunca me pediu para eu mudar minhas galinhas de galinheiro. No "Pasquim" é diferente. Seus leitores não pertencem ao povão, mas da classe média alta para a burguesia: estudantes, profissionais liberais, enfim um pessoal com um nível cultural um pouquinho mais elevado e com uma formação cultural principalmente estrangeira. Um pessoa de moda, que muda de filósofo, de Marcuse, como quem muda de camisa. Que muda de músico, de cantor, como quem muda de cueca. Esse pessoal fica mudando, só mudando, porque não tem raiz nenhuma - devido à formação estrangeira vive de costas para o Brasil. O sonho desse pessoal todo é pegar uma bolsa de estudo para a Europa, é ir passear ou trabalhar nos Estados Unidos. Resultado, dezesseis números, isto é, quatro meses, depois de "Os Fradinhos" estrearem no "Pasquim", começaram a chegar as cartas de reclamação.

Osvaldo Amorim - O que pretendiam as cartas?
Henfil - Elas diziam: "É preciso mudar, é preciso renovar, esse negócio está chato, o Henfil está sem imaginação". Fiquei mordido com o negócio. Meu primeiro golpe foi retirar o Baixinho, que era o personagem de que eles mais gostavam. Foi minha primeira vingança. Quando o Baixinho saiu, comecei a receber montes de cartas indignadas. De protesto em protesto, eu que já tinha o negócio mais ou menos engatilhado, fiz o Baixinho voltar. A volta foi anunciada na primeira página. O pessoal ficou na maior alegria ao reencontrar o Baixinho nos primeiros quadrinhos. A alegria durou pouco: no penúltimo quadrinho, um caminhão atropelou e matou os dois fradinhos. Foi minha segunda vingança. Aí é que foi aquela indignação total: era nome feio em todas as cartas. Houve até um cara, de Vitória, que prometeu vir ao Rio para me dar uma bolacha. O fato é que eu atingi o que queria: mostrei pra todo mundo que por trás dos Fradinhos havia um criador que tudo sabia e tudo queria a respeito deles.


Osvaldo Amorim - Por que o Baixinho é muito mais popular que o Cumprido?
Henfil - É fácil: a gente vive num clima mundial de sadismo. Em cada esquina o sujeito está levando cacete (não confundir com cassetete) na cabeça. Então nada mais óbvio que o pessoal se identifique com o personagem sádico ou por projeção ou por sublimação. Mas é bom que se diga que a maioria dos leitores é formada por Cumpridos, por tremendos Cumpridos. O escândalo que o Baixinho produz neles é que me leva a ter essa ideia. Com um detalhe: o maior desejo deles é serem iguais ao Baixinho.

Osvaldo Amorim - Os Fradinhos são o Henfil, você já disse. Mas fisicamente eles se inspiraram em alguém?
Henfil - Sim. Em dois frades dominicanos, de quem eu gostava muito. Um era gordinho, baixinho, moleque - o frei Rato; o outro, cumprido, magrelo e muito místico - o frei Patrício.

Osvaldo Amorim - Você é mineiro e foi criado no melhor estilo TFM (Tradicional Família Mineira): muita religião, tabus e preconceitos. Qual a influência disso no seu humor?
Henfil - Eu sou um reflexo da minha criação. Inclusive agradeço muito a minha mãe, a minha família, à TFM pelo que eu posso produzir hoje. O negócio lá em casa era terrível: era comemorar dia de santo por dia de santo. Quer dizer, todo dia, era aquela chamada religião do terror: eu tinha um medo danado do fogo do inferno. Em dia de tempestade a gente queimava palha benta, entrava debaixo da mesa com medo do castigo de Deus em cima da cidade. Depois da confissão voltava para casa rezando uma estranha objurgatória - "Deus pra cá, capeta pra lá" - acompanhada de um movimento com a mão direita. Quando eu dizia "Deus pra cá", levava a mão ao peito. Quando dizia "Capeta pra lá", a retirava, num gesto de expulsão. Mas, durante a caminhada, acabava havendo um desencontro entre as palavras e os gestos. E quando eu percebia, entrava em pânico e voltava correndo para confessar de novo, pois pra mim era como se eu tivesse dito que estava com o capeta. A repressão que eu sofria por causa disso obviamente desabrochou o masoquismo: foi criado o masoquista Henfil. E, como todo mundo sabe, masoquismo e sadismo são a mesma coisa. Logicamente isso influenciou todo o meu trabalho. Não nego isso em nenhum momento e até faço propaganda do tipo de enredo que os Fradinhos vivem. Tá no Cumprido neste esquema antigo e tá no Baixinho o meu protesto, a minha agressão a esse tipo de vida que eu levava. Eu agradeço a esse tipo de educação que eu tive e que já superei. O negócio é que eu assimilei e consegui dar um tratamento comercial às minhas neuroses. Hoje vendo as minhas neuroses nas páginas do "Pasquim". Mas, olhando bem, a posição crítica em que me coloco me dá certo crédito de sadio. Sou crítico, logo sou sadio, portanto não sou tão neurótico assim.

Osvaldo Amorim - O humorista deve fazer o humor pelo humor ou esse humor deve ter um fim? (Nesse caso, que fim?)
Henfil - Acho bacana responder essa pergunta. Justamente porque não sou um cara gratuito. Acho que o meu trabalho tem um fim. A época do humor pelo humor já passou. Hoje o humor é jornalístico, tem de ser engajado, de ser quente. A fase da comunicação pura e simples acabou. O humor agora é de identificação. Procuro dar o meu recado através do humor. Humor pelo humor é sofisticação, é frescura. E nesta eu não tou: meu negócio é pé na cara. E levo o humorismo a sério. Faço a maior preparação para detonar as minhas bombas de humor. Reservo horário, ambiente, me concentro, expulso criança de perto, dou tiro em vizinho com o rádio ligado alto - o diabo. Quer dizer: para detonar. Mas mantenho sempre a preocupação de que todos me entendam. Evito erudição, intelectualismo. Não sou artista plástico: meu negócio é me fazer entender da maneira mais fácil, rápida e direta possível.

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:: Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 28 de abril de 1971 - Edição 138.


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Murilo Mendes - entrevista

Murilo Mendes - foto: (,,,)
"Não quero ser popular"

Um aristocrata da cultura, o poeta mineiro é um democrata social, à espera da segunda vinda do Cristo à terra.

Por Leo Gilson Ribeiro

Murilo Mendes é um entrevistado cercado de parentes por todos os lados. Cordialíssimos, um fala sobre sua especialidade, ecologia. Outro, de sua permanência em Nova York; outro ainda, de seu trabalho numa importante enciclopédia em elaboração. Entre uma pausa e outra, Murilo Mendes fala, a princípio relutante. Durante o almoço, mais à vontade, conta histórias saborosas. Como a de seu irmão, o desembargador Onofre Mendes, que diante do espelho, fazendo a barba, telefonava de Pitangy, interior de Minas, ao chefe da estação, pedindo: "Seu Joaquim, amarre o trem que ainda não terminei a barba!" Ou, musicólogo fanático por Beethoven (um de seus filhos foi batizado Beethoven), pedia a seus clientes antes de instaurar um processo contra invasores de fazendas: "Primeiro vamos ouvir este Adágio da Nona Sinfonia". Depois da sesta, a entrevista prossegue. Murilo Mendes, aos setenta anos, teme os jornalistas: um deles deturpa suas palavras, misturando-as "de cambulhada com as de Cristo, vejam só!" Outro degradara o seu italiano, fazendo-o cometer "em apenas quatro linhas oito erros de italiano". Nele, como em seu livro "Poliedro", há várias facetas: um Murilo Mendes que faz uma careta de repugnância quando se menciona o nome de um romancista sem valor; um poeta consciente de sua importância como laureado com o Prêmio Etna-Taormina, o mais importante da Itália, que lhe foi concedido no ano passado. o professor, há quinze anos leciona literatura brasileira na Universidade de Roma, que, irônico, desafia uma aluna maoísta: "A senhora cria um novo tipo de contestação: a do aluno que não quer estudar e considera a aula um resquício capitalista"; o menino que soltava os pássaros da gaiola em casa de seus parentes em Minas e aos treze anos escreveu uma petição ao prefeito para soltar os presos em Juiz de Fora. Rindo das teorias literárias que dão a Europa como moribunda culturalmente ("Com um poeta como Sanquineti ou um pesquisador como Lévy-Strauss, moribunda?!) ou da morte da arte preconizada por alguns críticos ("A arte mudou: da parede passou para cima da mesa como objetos maravilhosos"), ele é uma ligação entre o passado e o futuro, o Novo e o Velho Mundo.

Gilson Ribeiro - Murilo Mendes, desde o início toda a sua atividade literária tem estado ligada à palavra liberdade. Ela para você é sinônimo de autenticidade cristão. No plano social...
Murilo Mendes - Eu sou um homem que espia a maré. Espio os movimentos culturais, evidentemente de vanguarda, porque os movimentos retrógrados não me interessam. Portanto, procuro extrair deles uma síntese, eu sou um homem de essência, é preciso não esquecer que tenho uma formação francesa, estudei Descartes...

Gilson Ribeiro - Mas é um grande admirador também dos anticartesianos como Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé...
Murilo Mendes - Bem, sou obrigado a sair da modéstia e dizer que o que já se tem dito de mim: eu sou complexo, tenho muito de racionalista e de irracionalista...

Gilson Ribeiro - Não distingue fronteiras entre a realidade e a irrealidade...
Murilo Mendes - Não sei, me recuso, acho-as fluidas. Devo muitíssimo a Baudelaire. Ultimamente deram a Mallarmé o título de Dante da era industrial, mas acho que Baudelaire é o primeiro poeta moderno. Nossos maiores problemas atuais estão contidos ao menos em gérmin na sua obra, não só em "Les Fleurs du Mal", como nos poemas em prosa, nos seus admiráveis artigos sobre artes plásticas e nas suas traduções. Portanto, a liberdade limita-se com a censura. Se não admito nem um hífen entre poesia e liberdade, como no meu livro intitulado, sem transição nenhuma, "Poemas liberdade", por outro lado aceito sinceramente a censura criteriosa. O que antigamente era proibido a menores de 18 ou 21 anos, hoje, na era da televisão, baixou para, digamos, dez anos. Mas sou contra esta inflação de revistas pornográficas. Trata-se de uma destruição do charme feminino, uma destruição que é um dos maiores inimigos da poesia, porque o ser humano é sacro, não por pertencer a determinada religião, pelo fato de ir à missa, nada disso, mas pela simples razão de a Bíblia ter dito que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.


Murilo Mendes e o poeta Erza Pound, em Roma, 1951
Gilson Ribeiro - Então foi uma sacralidade implícita que foi violada?
Murilo Mendes - Violada, sim, mas vou dizer uma coisa que talvez possa parecer absurda: é possível que nós estejamos entrando numa época profundamente religiosa, que não se conhece. Repito: não é uma aderência a uma determinada religião, é uma ânsia de superar os limites humanos. Essa busca pode exprimir-se até pela ciência, pelas conquistas espaciais, tudo isso eu acho que participa do sagrado. Quando ao fato de Gargárin, na primeira vez que foi ao espaço, ter declarado que não viu Deus, uma menina de dez anos em Madri, há algum tempo, ao saber disso, respondeu: "Não acho isso nada de extraordinário porque, no Catecismo, eu tinha cinco anos quando me ensinaram que Deus é um Ser onisciente, todo-poderoso e invisível".

Gilson Ribeiro - Há quinze anos você vive fora do Brasil: como o vê lá, mesmo com distorções intencionais de certos políticos?
Murilo Mendes - O meu amigo e poeta português Jorge de Sena disse que o Brasil é um país surrealista, e eu, chegado a esta idade, posso subscrever esse aforismo. O Brasil de fato é surrealista. Hoje o Brasil está num período de grande progresso material, mas para mim o progresso que conta é cultural e espiritual.

Gilson Ribeiro - E seus alunos na Universidade de Roma, como reagem à literatura brasileira?
Murilo Mendes - Os meus alunos, nestes quinze anos, aceitam a literatura brasileira, creio que amam, por ser a literatura de um país moderno, com ideias modernas, escritores e poetas modernos. Por exemplo, traço um gráfico muito longo, ligando o nosso Modernismo de 1922 com o grande Modernismo europeu incluindo a literatura - que não pode ser considerada uma atividade isolada do cinema, das artes plásticas, da arquitetura, etc. E procuro aborrecer o menos possível os alunos com excessos de datas, dando-lhes uma noção do conteúdo dos principais autores. Posso dizer sem modéstia que meu trabalho tem sido apreciado, tanto assim que no fim do ano acadêmico, no ano passado, grande grupo de estudantes e estudantas avançou para mim e gritou: "Lei è il professore dell'avvenire!" (O senhor é o professor do futuro!)

Gilson Ribeiro - E que autores interessam particularmente ao aluno italiano?
Murilo Mendes - O autor mais admirado pelos meus estudantes é  Machado de Assis. É um verdadeiro sucesso. Gostam imensamente dele e muitos me dizem: meus pais, meus tios, minha irmã estão lendo com grande encanto "Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro", naturalmente em italiano. Interessam-se por Machado de Assis por dois motivos: primeiro, o Machado não acredita nas instituições, é cético e, segundo, tem humor, que é um elemento sempre moderno, e tem uma grande preocupação com o tema do tempo, que, como se sabe, é um dos temas dominantes da literatura da nossa época, principalmente através de Kafka, Proust, Joyce, Pirandello. Além de Machado, prezam José de Alencar, Drummond e Cabral.

Gilson Ribeiro - E para você, pessoalmente, o que a Itália lhe deu de melhor?
Murilo Mendes - Estou perfeitamente identificado com o ambiente italiano, mesmo porque o temperamento italiano tem muitos traços de parecença com o nosso. Tenho acompanhado nestes quinze anos o movimento cultural italiano e exercido atividade de crítico de arte, apresentando exposições de artistas italianos ou brasileiros. Publiquei um livro sobre Alberto Magnelli, que é um dos pintores mais importantes da nossa época, precursor do Abstracionismo. Poderia citar muitos nome além de Ungaretti, tão ligado ao Brasil: Montale, que trouxe uma palavra nova, Gadda, com seus jogos linguísticos. Mas, para ser sincero, a minha grande conquista cultural na Itália foi a leitura detalhada e meditada da "Divina Comédia", como sofro muito de insônia, à noite acendo a luz e leio Dante. Sabe, como disse a Fellini - que foi me buscar num carro enorme e me disse que os estrangeiros muitas vezes vêem melhor um país do que os seus filhos -, Dante era a televisão da época medieval. Como disse a Fellini, Dante explica até o "Mammismo" italiano, esse culto entranhamente italiano da "Mamma", a Mãe, a Madonna, esse quarto integrante que os italianos acrescentaram à Santíssima Trindade. No "Paradiso", falando dos Eleitos, Dante refere-se aos que tinham ido para o Céu para satisfazer a mãe, o pai, a família. Além disso me impressiona muito o fato de os italianos lavarem a roupa suja em público, com auto-confissões e auto-acusações francas, como os primeiros cristãos.


Murilo Mendes, Flávio de Carvalho 1951
Gilson Ribeiro - E o Prêmio Etna-Taormina o comoveu muito?
Murilo Mendes - No dia da cerimônia da entrega do prêmio fiz um curto "speech" em que digo que fui poeta toda a vida, não fui outra coisa senão poeta e se outra coisa tenho além desta me foi dada por acréscimo. A poesia para mim vence a morte porque o texto ocupa o nosso espaço intelectual, o texto é uma afirmação de vida, o texto é não só uma projeção da nossa personalidade: é também um ponto de ligação com a comunidade. O texto para um poeta é qualquer coisa de definitivo. Com isso eu não quero dizer que venço a morte escrevendo um texto que me fará imortal, não penso absolutamente na posteridade. Desde 1930, quando Mário de Andrade publicou o meu "Bumba meu poeta", eu vaio o meu busto na posteridade remota. Não me interessa absolutamente a consagração popular. Interessa-me a opção dos espíritos de elite - não no sentido social, mas intelectual, espíritos qualificados, que pode incluir até, como aconteceu recentemente, a nossa baby-sitter. Ela entusiasmou-se com "Poesia Libertà" e me disse: "Professore, eu me permiti assinalar os versos de que mais gosto". Quando fui ver, coincidiam com os meus versos preferidos. A mãe dela, uma empregada doméstica, me telefonou dizendo que a filha, Isabella, estava entusiasmada, contando o caso a todos. Isso eu considero um diploma.

Gilson Ribeiro - Em sua poesia e mesmo enquanto você ainda não morava na Europa, a Espanha exercia um grande fascínio sobre a sua sensibilidade. É o seu país de eleição, o país com o qual você tem mais afinidade?
Murilo Mendes - Muitas vezes tenho me perguntado com qual país me sinto mais afim. Há alguns candidatos. Em grande parte sou de cultura francesa, mas paralelamente, a Espanha é um país muito apropriado para um poeta. Ortega y Gasset escreveu que na Espanha a anormalidade é norma. Ángel Ganivet escreveu que a lei da Espanha é o absurdo, sem o absurdo não se pode compreender a Espanha e seus contrastes magníficos. O toureiro, por exemplo, antes de tourear reza ajoelhado e com fé intensa. Talvez se deva a que em grande parte os árabes estiveram plantados oito séculos lá, com uma influência profunda. A Espanha me atrai porque eu gosto de tudo, menos da monotonia. Já disse uma vez a João Cabral de Mello Neto: a Itália é um país traduzido, a Espanha é um país por traduzir...

Gilson Ribeiro - E a França?
Murilo Mendes - Há duas Franças paralelas: a cartesiana e a anticartesiana. Desde Victor Hugo - para não falar dos surrealistas - e inúmeros outros, a França tem seu "côté" (lado) irracional, com a poesia de Maurice Sèves, a filosofia de Bergson, etc. Isso para mim é ótimo porque eu viso a conciliação dos contrários, le réel n'est pas réll (o real não é real). Nunca tomei parte em grupos: rejeito alguns e admiro outros.

Gilson Ribeiro - É uma posição aristocrática, a de escolher o melhor fora de contradições que são no fundo só aparentes?
Murilo Mendes - Se você quer me dar esse título, eu serei um aristocrata do ponto de vista espiritual. Sou contra a separação de classes. Se, por exemplo, um dia se realizar a sociedade sem classes, acho que será mais um motivo de avanço do cristianismo. Porque esse é um ideal profundamente cristão, que ainda não se realizou porque o cristianismo é ainda muito jovem, eis uma coisa que ninguém diz! Essa coisa de falar de "velhice" do cristianismo - eu caio para trás!! O cristianismo é "giovanissimo"! Meu Deus, o que são dezenove séculos? Se os sábios modernos dizem que o homem está há milhões de anos na terra e se as inscrições nas cavernas têm só 40.000 anos, o que são dezenove séculos?! O cristianismo está engatinhando. A crise por que ele passa agora só lhe trará benefícios. É uma revisão universal que está passando não só no cristianismo como em todos outros campos. É uma coisa grandiosa!

Gilson Ribeiro - O seu conceito de catolicismo é o dos católicos holandeses atuais?
Murilo Mendes - Sem dúvida. Para mim, as figuras mais interessantes da Igreja atual são o cardeal Alfrink, da Holanda, e o cardeal Suenens, da Bélgica. Eles perceberam que a Igreja tem que mudar muita coisa, conservando sua grande tradição e sua doutrina, fortíssima, que, ao contrário do que parece, permite justamente uma grande elasticidade de atitudes e posições.


Murilo Mendes - foto: (,,,)
Gilson Ribeiro - Visando inclusive uma maior participação da Igreja na justiça social?
Murilo Mendes - Isso entra também. Acho que, apesar de ser um assunto complexo, a Igreja deve imiscuir-se nele também. Creio que é até um dos pontos principais da sua missão. Pode-se dizer que Cristo não se imiscuiu em problemas temporais, quando não quis dar sua opinião sobre uma herança, quando os Apóstolos o interrogam no Evangelho. Mas, quando Ele dá a famosa resposta, "Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", isso quer dizer, sendo Ele a Sabedoria Suprema, que mesmo no mundo temporal tem que se dar algo, nós vivemos situado no tempo e no espaço.

Gilson Ribeiro - E como conciliar a doutrina de pobreza da Igreja com uma justiça social maior?
Murilo Mendes - Eu dou uma opinião de ordem pessoal. Hoje, chegado a esta idade, eu acho o catolicismo e o cristianismo em geral quase impraticáveis, difíceis de serem praticados, porque o Cristo nos pede o máximo. O que Ele nos pede? "Sede perfeitos como o Pai celeste é perfeito." É terrível!

Gilson Ribeiro - "Amai-vos uns aos outros..."
Murilo Mendes - "Amai-vos uns aos outros", o Cristo é terrível! Agora, eu penso que, conhecendo o homem, Ele pede o máximo para que o homem dê o mínimo.

Gilson Ribeiro - E como você vê o fenômeno dos hippies, que têm com você em comum a recusa da sociedade robotizante e uma adesão aos valores cristãos do amor ao próximo e de um intenso misticismo?
Murilo Mendes - O hippy eu envolvo num conceito geral que tenho desta nova classe reivindicatória, desses que vão para o Nepal, que têm uma maneira especial de se vestir, além do aspecto da droga e outros. São aspectos de um novo Romantismo, do que o Surrealismo, já nos anos 20 e 30, nos tinha dado uma antecipação. Todo o fenômeno da droga, por exemplo, segundo Baudelaire, que aliás tem uma frase admirável, é "a depravação do anseio do infinito", fórmula lapidar, segundo eu penso.

Gilson Ribeiro - Então os hippies não significam uma fuga, uma omissão, mas uma nova opção?
Murilo Mendes - Eu creio que sim, é uma forma de protesto contra o estilo de vida errado da civilização técnico-industrial. Mas devo lhe dizer que comigo se passou um fenômeno curioso. Desde há muitos anos que eu me sinto indisposto em relação ao sistema de vida desta civilização. Há quarenta anos já eu exprimia isso, não de forma polêmica, demagógica, mas poética. É uma espécie de rejeição de formas de viver erradas: o culto do dinheiro, a pressa, a incompatibilidade entra uma vida cultural e a velocidade dos tempos modernos, a mecanização do homem e todas essas coisas que sabemos. Num primeiro tempo eu julgava que era contra esse sistema porque estava envelhecendo. Depois, quando vi os jovens nos anos 60 se revoltarem contra essa forma, recebi como que um injeção de vitalidade, eu me senti jovem também: nos jovens condeno sinceramente é o terrorismo, é o quebra-quebra dos "arrabbiati" (raivosos) maoístas e neofascistas. Como no episódio recente de maoístas jovens que incendiaram barracas de vendedoras de flores em Campo dei Fiori (Praça de Roma no bairro de Trastevere), carregando enormes cartazes que diziam "A flor é um luxo capitalista!" No dia seguinte "L'Unità" abriu uma subscrição para reconstruir as barracas e condenou em violento editorial aquela ação que me lembrou a grande mancha da Igreja: a Inquisição, o fanatismo posto em prática.

Murilo Mendes ouvindo musica,
do pintor hungaro Arpad Szenes
Gilson Ribeiro - No entanto, você desde 1956, achava que a Revolução chinesa era, com a desintegração do átomo, um dos dois fenômenos mais importantes do século?
Murilo Mendes - Antes de 1956, até! Acho que a Revolução Cultural já passou, a China hoje, por mais marxista e maoísta que seja, não pode deixar de ser chinesa e renegar os milhares de anos da cultura esplêndida que tem. Há uma grande crise, uma grande perplexidade - a arte morreu? a Europa está cansada culturalmente? -, mas na arte, na religião, em tudo estamos com a tendência de começar do marco zero. É uma coisa grandiosa! É o que a maioria das pessoas não vê, ou por não ter temperamento, ou por não ter cultura ou capacidade para abarcar a vastidão dessa mudança. Como sou - como vislumbrou lucidamente Otto Maria Carpeaux escrevendo sobre mim há anos - um espírito dialético, e busco a lógica oculta entre sensualidade e cristianismo, racionalismo e irracionalismo. Só que, quando me convidaram para assistir, às 3 da manhã, à descida do homem na Lua, me recusei: a essa hora só estou acordado, por insônia, para ler Dante ou ouvir Mozart, ou para assistir à segunda vinda do Cristo sobre a terra.
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:: Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 6 de setembro de 1972 - Edição 209.


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Carybé - entrevistado por Clarice Lispector

Carybé - (foto: Acervo ©Instituto Carybé)
“O feitiço da Bahia começa pela cozinha. Você só se alimenta de comidas sagradas.”

E eu que tinha como um dos objetivos da viagem à Bahia dialogar com Carybé, terminei conseguindo-o no Rio...? Ele esteve dois meses na Europa e passava por aqui, rumo a Salvador. E eu o tive à minha frente com seu ar dos mais humanos que já senti: é uma pessoa de fato.

Clarice Lispector – Seu nome é mesmo Carybé?
Carybé – Fui registrado como Hector Bernabó. Carybé é meu nome de artista.

Clarice Lispector – Você é argentino de nascimento, mas brasileiríssimo e, ainda por cima, baianíssimo de coração. Como é que você explica seu amor, aliás correspondido plenamente, pelo Brasil?
Carybé – É simples: saí da Argentina ainda criança de colo; depois fui para a Itália (meu pai era italiano) e aos oito anos vim para o Rio. E ainda por cima minha mãe era gaúcha. Quanto à Bahia, foi um namoro comprido. Conhecemo-nos em 1938. Fiquei com a ideia fixa de morar na Bahia e voltei lá por duas vezes, sem poder concretizar meu desejo. Até que uma carta vergonhosamente elogiativa de Rubem abriu-me as portas da Bahia na pessoa de Anísio Teixeira, no governo de Otávio Mangabeira. E me deram a tarefa de desenhar durante um ano as coisas da Bahia. Esse ano se estendeu pelos 19 em que estou lá.

Clarice Lispector – Agora, Carybé, você vai por favor me explicar o fascínio da Bahia a que também sucumbi, tanto que só penso em voltar e passar pelo menos um mês trabalhando por lá.
Carybé – Minha linha era sempre uma aventura sul-americana. Fui para o Peru, para a Bolívia, para o Chaco argentino, onde morei com os índios. Mas a Bahia ganhou o campeonato porque é uma cidade viva. Em geral as cidades que têm história, arquitetura – enfim, que viveram desde o começo da América – são cidades-museus. Mas a Bahia tem arte e arquitetura modernas, um povo alegre, simpático, sobretudo bom, ao mesmo tempo que fortalezas, catedrais e o mar que é maravilhoso.

Clarice Lispector – Poucas vezes vi mar mais bonito e mais audacioso que o da Bahia.
Carybé – Salvador é uma cidade que parece encomendada para artistas plásticos, para escritores, cineastas. Enfim, tudo lá é uma espécie de incubadeira para essa gente.


Figuras na praia, © Carybé 1955
Clarice Lispector – É o que eu senti, Carybé: como se uma sereia me chamasse com o seu feitiço.
Carybé – Agora, Clarice, você disse a palavra certa: feitiço. O feitiço é vivo, começa pela cozinha.
Você se alimenta de comidas sagradas. Por exemplo, acarajé é comida de Iansã, que é um orixá-fêmea dos ventos e das chuvas. O caruru é o amalá de Xangô. E quase todos os pratos típicos baianos são a comida dos orixás (santos do candomblé). Depois tem arvoredos que são a morada de encantados (orixás também). E a música de Caymmi, Caetano Veloso, Gil, Tom Zé e muitos outros. Tem sol, tem pescadores, tem o diabo... que não é bem diabo, é Exu, o diabo do candomblé que é de uma travessura diferente da dos outros diabos e, sendo bem tratado, torna-se um amigo inestimável.

Clarice Lispector – No começo de sua carreira como pintor, é verdade que você desenhava muito os botos?
Carybé – Eu trabalhei muito em jornal para poder ter dinheiro e ilustrava livros. Até que pouco a pouco pude me sustentar exclusivamente com a pintura. Isso se deu na Bahia, o lugar onde eu menos imaginava que pudesse viver só de arte.

Clarice Lispector – Mas... e os botos?
Carybé – Os botos, quando mais contato tive com eles, foi ilustrando um livro de Newton Freitas sobre lendas amazônicas. E também numa viagem longa que fiz pelo Amazonas, onde os bichinhos pulavam acompanhando as alvarengas (canoas imensas) e os navios-gaiola. Nunca vi um transformado em pessoa...

Duende da montanha, © Carybé, 1942
Clarice Lispector – Você hoje é chamado pelos ingleses de “o pintor dos cavalos”. E eles compraram nada menos que 40 telas suas... Como eu tenho alucinação por cavalos de todas as espécies, queria saber se você também tem.
Carybé – Tenho, sim, Clarice, é o animal de que eu talvez mais goste. Viajei muito em companhia deles. Agora a coisa de “pintor de cavalos” foi devido ao presente que a Bahia ofereceu à rainha da Inglaterra. Sendo ela também apreciadora de cavalos, o embaixador Russell sugeriu que lhe fosse dado um quadro meu onde figuravam montarias. Agora fiz uma exposição em Londres; em novembro farei outra na Tryon Gallery, com tema indicado, cavalos. Concorrerei com pintores de umas oito nações: ingleses, mexicanos e australianos, entre outros.

Clarice Lispector – Você trabalhou durante sua recente viagem pela Europa? Tomou notas?
Carybé – Fiz umas crônicas ilustradas para o Jornal do Brasil e para A Tarde, da Bahia. Mas o principal trabalho foi ver. Os olhos são a ferramenta da gente. (Os olhos de Carybé são de um castanho-dourado, bem atentos às coisas que o rodeiam: não há perigo de lhe escaparem visões.) E agora estou doido para chegar à Bahia para ver o que acontece.

Clarice Lispector – Chegando lá, qual é a primeira coisa que você pretende fazer?
Carybé – Tomar contato com minhas latas, meus pincéis, e ver o que vai fermentar ou já fermentou das coisas que vi.

Clarice Lispector – Sobretudo o que é que você viu pela Europa?
Carybé – Por exemplo, vi Londres, que foi uma surpresa para mim. É uma espécie de reinado da juventude, da liberdade de viver e de criar. E, depois, a porta de São Pedro, de Giacomo Manzu, as catedrais romanas e góticas, e sobretudo o povo da Espanha, da França, da Itália, da Inglaterra. Essa é a coisa de que eu mais gosto: povo, gente. Em Sevilha, por exemplo, houve um paralelo entre a tragédia e a alegria: a tragédia da Semana Santa e a alegria desbordada na Feira dessa cidade – o mesmo povo com sentimentos opostos. Na Feira é uma alegria de doidos, as moças a cavalo, vinho, castanholas, bailes. Na Semana Santa, o soturno, uma atmosfera de Idade Média, com penitentes e véus negros cobrindo cabeças de mulheres, o canto mais sentido do mundo, que são as saetas que o povo canta para Jesus e Maria.

Clarice Lispector – O rosto humano lhe interessa para desenhar?
Carybé – Me interessa demais até, mas não sou retratista. O que mais eu apreendo são gestos do corpo todo, movimentos, maneira de sentar, de andar, de carregar coisas, enfim, a vida humana e a dos bichos. Eu adoro bichos.

Clarice Lispector – Você tem muitos amigos na Bahia – isto é, amigos que você frequenta?
Carybé – Eu graças a Deus não tenho inimigos. Sou muito amigueiro e tenho amigos um pouco pelo mundo todo.

Clarice Lispector – Posso dagora em diante ser considerada por você também sua amiga?
Carybé – Você é minha amiga há muitíssimos anos através de Inês Besouchet, do Marino-Macunaíma, do Jorge Amado, da Zélia, do Rubem e outros amigos comuns. E sobretudo por ter lido o que você já escreveu.

Clarice Lispector – O que me diz você na Bahia dos músicos, pintores, escritores?
Carybé – Está tudo no ar. Não no ar da tevê, como se diz agora, mas no ar mesmo, no sol, e no povo. Na Bahia não há grupos em choque: cada um trabalha como acha que deve ser. Eu penso que é isso que dá essa atmosfera de criação que se respira lá e que nos inspira. É uma coisa misteriosa, Clarice, porque os plásticos, os músicos, os escritores, os poetas brotam com facilidade e com amizade mútua.

Clarice Lispector – Há quantos anos você pinta, Carybé?
Carybé – Tenho 58 anos, pinto desde os 15. Faça a conta.

Clarice Lispector – Por que você escolheu o pseudônimo de Carybé?
Carybé – Tenho um irmão que também é pintor e dava confusão os dois com o mesmo nome. Aí procurei um pseudônimo. Veja você, eu era escoteiro do Clube do Flamengo e pertencia a uma patrulha na qual todos tinham nomes de peixes. E eu era o peixe carybé. Achei o nome sonoro e curto, e adotei-o. E não diga nada a ninguém, mas o carybé é uma piranha ...

Clarice Lispector – Estou aqui morrendo de inveja de você que vai amanhã, tão expressivamente apressado, pra Bahia...
Carybé – Se você quer ir à Bahia para escrever é preciso duas coisas: muita vontade de sua parte, e nós lá pedirmos a Exu que abra os caminhos para a sua ida...

Carybé, 1970 (foto: Klaus Meyer)

Clarice Lispector – Depois que terminei e publiquei romance mais recente, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, estou inteiramente vazia de inspiração. Mas nisso de inspiração também conto com Exu, que já é meu amigo do peito e vai me ajudar em tudo, entendeu? Exu é poderoso.
Carybé – Pintor nascido na Argentina. Nome artístico de Hector Julio Paride Bernabó. Radicou-se, inicialmente, no Rio de Janeiro depois de ter vivido na Itália até os oito anos de idade. Fixou-se definitivamente na Bahia a partir de 1950, naturalizando-se sete anos depois. Suas obras traduzem a baianidade expressa nas cenas cotidianas e no folclore popular. Destacou-se pela criação de murais, hoje expostos em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Montreal, Buenos Aires e Nova York. Fez ilustrações de obras literárias, como O sumiço da santa, de Jorge Amado.
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Fonte: 
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.


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Página atualizada em 5.9.2019.



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