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João Guimarães Rosa e o Magma - o poeta não cita: canta

João Guimarães Rosa, por Liberati
Consciência Cósmica
Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...
- em 'Magma'.






Magma é o único livro de poemas de João Guimarães Rosa, publicado postumamente pela Editora Nova Fronteira. Ganhador do concurso literário criado pela Academia Brasileira de Letras, quando o autor assinava sob o pseudônimo “Viator”, em 1936. E apesar de ter conquistado o prêmio, o livro ficou inédito por mais de 60 anos, sempre foi considerado uma obra menor pelo autor de Grande Sertão: veredas, que durante sua vida, não demonstrou qualquer interesse em publicá-lo, chegando a dizer em entrevista:

João Guimarães Rosa, por Estúdio Saci
"[...]escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado. [Depois] passaram-se quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes."

Só muitos anos após a morte, em 1997, é que Magma veio a público.


"O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do meu desamor e fez-se criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respeitar."
- João Guimarães Rosa, trecho do discurso, na ABL, quando do prêmio ao Magma, em 1936.



Discurso proferido por Guimarães Rosa em agradecimento ao premio concedido pela Academia Brasileira de Letras, ao livro de poesia Magma.
O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são idéias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto . Não se aliena, como um lunático, das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe—neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática, discreta e subterrânea.
Com um fosso fundo ao redor de sua turris ebúrnea, deixa a outros o trabalho de verificarem de quem recebeu informações ou influências e a quem poderá ou não influenciar.
Capa da 1ª edição Magma
Ilustrado, por Poty
E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não passa de um místico retardado, sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o já-feito, ainda que mais nada tenha por fazer.
A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera: relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento. Pinta a sua tela, cega-se para ela e passa adiante. Se a surdes de Beethoven tivesse lhe trazido a infecundidade, seria um símbolo. Obra escrita—obra já lida---obra repudiada: trabalhar em colmeias opacas e largar o enxame ao seu destino, mera ventura de brisas e de asas.
Tudo isto aqui vem tão somente para exaltar a importância que reconheço ao estimulo que me outorgastes. Grande, inesquecível incentivo. O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do seu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respeitar. Sou-lhe grato, principalmente, pelo privilégio que me obteve de poder --- sem demasiadas ilusões, mas reverente--- levantar a voz neste recinto, como um menino que depõe o seu brinquedo na superfície translúcida de uma água , para a qual a serenidade não é a estagnação, e cujo brilho da face viva nada rouba à projeção poderosa da profundidade.(...)
______
- In: Revista da academia brasileira de letras, anais de 1937, ano 29, vol 53, p.261 a 263.



POEMAS ESCOLHIDOS

Gargalhada
Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Paraíso Filosófico
No jardim dos Hespéridas, sem flores
na discrição dos tufos de folhagem,
passeiam passos lentos
homens de túnica longa,
como os magos da Rosa-Cruz.

Sob os pomos das luzes do Capricórnio aceso,
o relógio do tempo
há muito que parou, os dedos superpostos,
como o dia e a noite,
porque não há mais noite e nem dia...

Ar parado,
lagos vidrados,
e vasos,
muitos vasos,
vasos vazios...

Os anciãos perpassam
intérminos terraços,
com olhos tranquilos, olhos gelados,
de tanto olharem o sol.
E as mãos tateiam calmas,
como se os dedos mergulhassem
a translucidez de uma água,
esculpindo
invisíveis e impossíveis formas novas...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Amanhecer
Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.

Das mil corolas,
saem vespas, abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste, onde vão pousando
nas piritas das acácias amarelas.

Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvens deslizam, despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.

Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Na Mantiqueira
Por entre as ameias da cordilheira
dormida,
a lua se esgueira,
como um lótus branco
na serra de dorso de um crocodilo,
brincando de esconder.

Dá para o alto um arranco,
repentino,
de balão sem lastro.
E sobe, mais clara que as outras luas,
quase um sol frio,
redonda, esvaindo-se, derramando,
esfarelando luz pelos rasgões, do bojo
farpeado nas pontas da montanha.
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Sono das Águas
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Primavera na Serra
Claridade quente da manhã vaidosa.
O sol deve ter posto lente nova,
e areou todas as manchas,
para esperdiçar luz.

Dez esquadrilhas de periquitos verdes
receberam ordem de partida,
deixando para as araras cor de fogo,
o pequizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e seca, se faz verde,
vermelha e castanha, entre os mochoqueiros,
braúnas, jatobás e imbaúbas do morro,
na paisagem que um pintor daltônico
pincelou no dorso de um camaleão.

E o lombo da serra é tão bonito e claro,
que até uma coruja,
tonta e míope na luz,
com grandes óculos redondos,
fica trepada no cupim, o dia inteiro,
imóvel e encolhida, admirando as cores,
fatigada, talvez, de tanta erudição…
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Luar
João Guimarães Rosa [estudo], por Paffaro
De brejo em brejo,
os sapos avisam:
--A lua surgiu!...

No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
Rola,desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo 
da via-láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


O caboclo d’água
No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar.
e lá embaixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço,
da quarta volta do rio,
largo, tranqüilo, tão chato e brilhante,
deitado ao meio bote
como uma boipeva branca.

Na água parada,
entre as moitas das sarãs e canaranas,
o puraquê tem pensamentos
de dois mil volts.
À sombra dos mangues,
que despetelam placas vermelhas,
dois botos zarpam, resfolegando,
com quatro jorros,
a todo vapor.
E os jacarés compridos, de olhos esbugalhados,
soltam latidos, e vão fugindo,
estabanados, às rabanadas, espadanando,
porque do fundo
do grande remanso, onde ninguém acha o fundo,
vem um rugido, vem um gemido,
tão pouco e feio, que as ariranhas
pegam no choro, como meninos.

O canoeiro
que vem no remo, desprevenido,
ouve o gemido e fica a tremer.
É o caboclo d’água,
todo peludo, todo oleoso,
que vem subindo lá das profundas,
e a mão enorme, preta e palmada,
de garras longas,
pega o rebordo da canoinha
quase a virar.
E o canoeiro, de facão pronto.
fica parado, rezando baixo,
sempre a tremer.
Crescendo d’água, lá vem a máscara,
negra e medonha,
de um gorila de olhar humano,
o caboclo d’água
ameaçador.

E o canoeiro já não tem medo,
porque o Caboclo o olhou de frente,
todo molhado,
com olhos tristonhos, rosto choroso,
quase falando,
quase perguntando
pela ingrata Iara,
que, já faz tempo, se foi embora,
que há tantos anos o abandonou...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Integração
Deitado no chão, fofo de tantas chuvas,
acompanho as pontas dos cipós que oscilam,
o respirar das folhas,
o saltitar de cócegas nas patas dos gafanhotos,
e o crescer rampante da trepadeira brava,
avançando em meus braços.

Oh! a canção viva
do liso verde-azul dos sanhaços nos galhos,
e o pio dos gaturamos maduros,
fino e gostoso como um caldo de fruta!...

O céu,
limpo, azul e côncavo, na altura,
é um recanto de corpo,
pronto a se contrair, ao primeiro contato,
num único espasmo de volúpia sóbria...
Inútil erguer-me: mais alta é a gameleira...
Mas meus dedos afundam no chão amolecido,
como raízes nuas...
Desce-me ao fundo do peito e terra inteira,
no cheiro molhado da poeira,
e os meus olhos sobem, tateando os verdes...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.



Revolta
Todos foram saindo, de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se fiquei mesmo só.

Não trouxe mensagem
e nem deram senha...

Disseram-se que não iria perder nada,
porque não há mais céu.
E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora...

Mas não quero ir para mais longe,
desterrado, 
porque a minha pátria é a minha memória.
Não, não quero ser desterrado,
que a minha pátria é a memória...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.



Regresso
Não aguento depor
nem um tijolo a mais
na minha torre,
e já esqueci as línguas
dos outros homens.
Quem me dera 
não perder a minha própria língua!...

É bem noite.
Posso sair da minha casa
e sentar-me naquela pedra,
que à noite não tem dono,
debaixo das grandes árvores,
que à noite não têm sombra.

Oh!... que bom, uma palavra basta
para refazer o meu idioma:
- "sofrimento... sofrimento..."
e não a esquecerei!...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.




A Iara
Bem abaixo das colinas de ondas verdes,
onde o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos mares e dos rios,
irreais e lentas, como espectros de vidro,
para os palácios de madrépora de Anfitrite,
em vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques e sargaços, espumosos,
e rígidos jardins geométricos de coral...

Por entre os delfins, sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas, soltas, como grandes algas,
carregando os jovens afogados:
Ondinas das praias, flexosas,
Nixes da água furtacor do Elba,
Havefrus do Sund e Russalkas do Don ...
Loreley traz no esmalte doce dos olhos 
duas gotas do Reno...
E danaides Laboriosas se desviam dos cardumes 
De Nereidas,
que imergem, ondulando as caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de lamé...

Ilustrações de Poty [Napoleon Potyguara Lazzarotto], para 
a obra de João Guimarães Rosa
Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da terra vermelha,
carne de peixe da água gorda do rio...

Iara de olhos verdes de muiraquitã,
cintura pra cima de cunhantã
cintura pra baixo de tucunaré...
que veio, dormindo, Purus abaixo,
filha do filho do rei dos peixes
como uma índia branca cuchinauá...

Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
Tão orgulhosa,
Que não quer ser desprezada pelas outras...

E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas

em nhheengatu:
-- Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quitó...”

Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com gaze das águas,
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
-- “Enfeitiça-me ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar vencer...”

Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas,
posso beijá-la,
nua,
dormida, 
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Reportagem
Ilustrações de Poty [Napoleon Potyguara Lazzarotto], para 
a obra de João Guimarães Rosa
O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Ritmos Selvagens
O pica-pau, vermelho e verde,
paralelo ao tronco
branco de papel de uma mirtácea,
como um poeta, que desde a madrugada
vem fazendo o retoque de seus versos,
martela o bico, na casca da árvore,
o poema dos índios caipós:

--“Índios escuros, das terras fechadas,
que ninguém pisou,
dos chapadões a meio caminho dos grandes rios,
broncos e brutos, sem arcos nem flechas,
rompem cabeças de missionários a cacetadas,
fazem tremer, fazem correr as outras tribos,
voam no campo atrás dos cascos dos veados,
matam veados só com pauladas,
caiâmu-poguê-dje –ipô!...”

Depois de pendurar num ramo de cajueiro
a casa de cômodos
em cartolina cônica e amarela,
os estúrdios marimbondos-de-chapéu
saem dos alvéolos e fermentam no ar, 
num remoinho de ferrões e de asas,
zumbindo o hino dos índios das matas:

--“Bem escondido entre as ramadas da beira d’água,
como curta e grossa jibóia quieta,
toda enroscada nas penas lindas de uma arara
que devorou,
o nhambiquara, de rosto escuro, zingomas pintados 
a jenipapo,
fica dez horas, todo encolhido, de bote armado,
os olhos vivos, o arco pronto, muita paciêcia,
e trinta flechas envenenadas ...”

O paturi, no alto,
deixa escapar do bico a piaba,
que desce no ar como uma gota
de mercúrio vivo,
e grasna para a lontra, que avança n’água,
em linha reta, como um torpedo,
noticias novas que trouxe do Xingu:

--“O bacari, belo e tranqüilo,
com o arco vermelho da guarantã,
parece mudo, parece bobo, olhando a água,
e joga a flechada no rio crespo, fisgando o lombo
de um surubi...
E fica triste, e fica bravo, só porque a ponta da flecha 
                                                             [longa
pegou dois dedos mais pra baixo, no dorso liso do
                                             [peixe de ouro,
que ele nem viu...”

Triste tucano, de bico armado,
descompensado, maior que o corpo,
chega voando e toma de assalto
um dos fortins da terra vermelha
que as térmicas vão escalonando pela campina,
e, bem na grimpa do cocoruto,
desprende a queixa dos índios do sul:

--“Os índios moles, sujos e tristes,
que não têm redes, que falam manso e dormem no
                                                           [chão,
e pulam batendo com as mãos nas pernas
                                                    [ensaguentadas

das ferroadas das muriçocas,
e cantam semanas, tirando a carne dos esqueletos, o
                                                 [bacororo,
grandes batoques nos beiços grossos, sempre tremendo,
pobres bororos,
sentem a onça a três quilômetros, na mata espessa,
bem antes da fera os farejar...”

E o jacaré crespo, de lombo verde, de papo amarelo,
ensina à arara,
toda azul, de patas pretas, de pálpebras pretas,
que ensina o gavião, que passa no vôo, fino e pedrês,
que ensina a um bando, que vai de mudança, de
                                                 [maracanãs,
o canto das índias dos carajás:

--“Carajás das praias do Araguaia,
meio vestidas, meio peladas, mal domesticadas,
mulheres roxas, de nariz chato, de pés enormes,
trincando piolho nos dentes brancos,
índias pesadas, quase na hora de dar à luz,
vêm nas pirogas, em troncos bambos, finos, compridos,
com cachos de meninos, curumins vivos, equilibrados,
dependurados,

e as canoinhas passam, à flor das águas, como coriscos,
à frente dos ventos, batendo piranhas, vencendo asas e 
                                                      [pensamentos
Araguaia abaixo, do Caiposinho até conceição...”

O dia inteiro, as águas ouviram,
e as matas entederam,
as vozes que o vento vai levando
para oeste, para longe, para alem de Culuene,
onde o sol se apaga, como a fogueira da última taba,
onde os cocares dos buritis pendem imobilizados,
e o rio marulha a canção dos guerreiros
que vão desaparecer...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.



Toada da Chuva
Chove e faz frio.
Posso vir ao passado,
porque a chuva cai, em estribilho
de dedos brancos num teclado manso,
Ilustrações de Poty [Napoleon Potyguara Lazzarotto], para 
a obra de João Guimarães Rosa
disciplinada, como uma velha trova,
e o meu passado é frio...

(Chuva fina,
chuva fria,
desfiando sem cessar...
Ontem foi dia de festa,
e a chuvinha veio, lesta, 
todas as flores  regar.
Hoje é manhã de Finados,
os túmulos já estão lavados,
e a chuva não quer parar...)

Vara o ar um feixe
de flechas oblíquas,
ferindo nas poças mil mariposas,
que ruflam, doidinhas, as asinhas de água.
Nas lagoas do asfalto, círculos convergentes,
entretangentes, a abrir e a fechar.
E da beira de um telhado,
cai, comprido e constante, um jorro claro,
que espirra na calçada,
onde uma aranha de vidro esperneia,
pendurada
de um fio de sol molhado.

(Chuva bela, 
chuva leve,
que te debulhas no ar...
Se és tão triste nas goteiras,
por que tuas mãos, zombeteiras,
vêm nas vidraças tocar?!...
- "Mas, junto a cada goteira,
se há sempre um poeta a escutar?!...")

As mãos de água,
frias mãos de fada,
correm dedos longos,
alisando as árvores, tateando as casas.
Cada folha verga, sob grandes gotas,
cada casa esfria, sob as telhas úmidas.

(Chuva santa,
chuva clara,
como a toalha de um altar...
Por que tanta cousa impura,
tanto pecado e amargura,
daqui não podes lavar?!...
- "Quanto mais desço, a enxurrada,
mais suja não vês rolar?!...")
Nas portas, nas janelas,
sob os toldos,
gente parada, como insetos presos.
Quando passar a chuva,
toda a cidade destapada e clara,
Pensarão, talvez, que não mais os isolam
Muitas outras campânulas de cristal...
(Chuva boa, 
chuva meiga,
que assim me vens consolar...
Se no céu estão chorando,
por que preciso chorar?!...)
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Encorajamento
Meu desejo corre em ti com velas enfunadas... 
Podes dar-lhe um porto, sem nenhum receio: 
ele não traz âncora...
- João Guimarães Rosa, em "Magma".




Elegia
Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez...

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim...
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.



No Araguaia – I
Nestas praias sem cercas e sem dono
do velho Araguaia,
achei um amigo, escuro,
de cara pintada a jenipapo e urucum:
o carajá Araticum – uassu

Seus músculos são cobras grossas
que incham sobre o couro moreno;
suas narinas têm sete faros;
e nos seus ouvidos há cordas sutis, onde ressoa o pio
curto e triste,
que, mais de um quilometro distante,
solta o patativo borrageiro.

Quando o rio ensolado enruga, em qualquer ponto,
a lâmina lisa de níquel molhado,
ele traduz , na esteira da mareta,
com o binóculo faiscante dos olhos,
o tamanho e a raça do peixe navega escondido.
E a flechada vai arpoar, certeira , debaixo d’água,
o pacamã ou o pirarucu. 

A mata não lhe dá mais surpresas
(tem vinte presas onça preta no colar),
nem o rio lhe conta mais novidades
(ele é capaz de flutuar , até dormindo,
correnteza abaixo, como um pau de pita).

Hoje eu lhe perguntei:
--“Como foi feito o mundo,
ó meu patrício Araticum Uassu?...”
Ele riu, deu um mergulho no rio,
e emergiu, com a cabeleira em gotas,
sem precisar de falar...
— “Bem, mas o que é mesmo a vida, meu irmão moreno?...”

Araticum-uassu riu com mais gosto ainda,
e saiu a remar, com esforço simulado,
tangendo a piroga corredeira acima...
--“Muito bem, amigo, quero saber, agora,
o que pensas do amor...”

Desta vez ele não riu --- franziu o rosto,
Ilustrações de Poty [Napoleon Potyguara Lazzarotto], para
a obra de João Guimarães Rosa
e jogando fora o remo de taquara,
deitou-se na canoa, indiferente,
com olhos fechados, braços cruzados,
e deixando-se levar pela corrente, à-toa,
sumiu na curva,atrás do saranzal... 
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.



Pavor
Em torno a mim
círculos concêntricos se fecham,
como as órbitas lentas de um corvo...
Tudo é torvo e pesado,
falta de ar e de amor...
Para mim já se apagou a última cor.
E a minha alama se enfurna
em poços velhos de hulheiras,
de onde foi tirado e queimado o carvão todo.
Como um cego
que dormisse na treva, amedrontado,
para sonhar que mais uma vez cegou...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.
____
** POEMAS EXTRAÍDOS: ROSA, João Guimarães Rosa. Magma. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, Jul./1997.


FORTUNA CRÍTICA DE MAGMA, DE GUIMARÃES ROSA
AGUIAR, Melânia Silva de. Magma, a margem primeira (e esquerda) da escrita. In: DUARTE, Lélia Parreira et al. (org.). Veredas de Rosa. Belo Horizonte, Editora PUC Minas, 2000.
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João Guimarães Rosa, por Fraga desenhos.
[caderno de Cultura/Jornal Zero Hora]
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João Guimarães Rosa,
 por (...)
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SALGUEIRO, Wilberth Claython Ferreira. Rosa em policromia: cores, eros e íris (um arco de sexualidade entre Magma e Grande sertão: veredas). Scripta (PUCMG), Belo Horizonte, v. 9, n.17, p. 356-366, 2005.
SOARES, Claudia Campos. Magma, a literatura brasileira e as narrativas de Guimarães Rosa. Babel (Santos), Santos, Florianópolis Campinas, v. Ano IV, n. N. 6, p. 141-146, 2004.
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STERZI, Eduardo. Magma. Brasil (Porto Alegre), Porto Alegre, v. 20, p. 170-176, 1998.
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STESSUK, Sílvio José. Introdução ao Rosário Magmático de Guimarães Rosa. (Dissertação Mestrado em Letras). Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Brasil, 2002.


Para os almanaques
No meu relógio, de uma para outra hora,
quando o ponteiro menor sai a levar lembranças,
passa-lhe a frente o grande, transportando intrigas...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.


Guimarães Rosa (à dir.) na viagem pelo Sertão, em 1952. 
fotografado por Eugenio Silva para a revista “O Cruzeiro”
 [Acervo Fundo Guimarães Rosa no Arquivo IEB/USP]


"O vento experimenta o que irá fazer com sua liberdade..."
- João Guimarães Rosa, do poema "Turbulência", em 'Magma'.


Distância sentimental
Mesmo ao sonhar contigo,
só consigo que me ames noutro sonho
dentro do meu sonho primitivo...
- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.




REFERÊNCIAS E OUTRAS FONTES DE PESQUISA
ROSA, João Guimarães Rosa. Magma. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, Jul./1997.



"A língua, para mim, é instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável,
sempre perfectível, etc. Mas sempre a serviço do homem e de Deus, do homem, de Deus, da Transcendência."
- João Guimarães Rosa, em carta a Meyer-Clason.



João Guimarães Rosa, por Baptistão
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Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). João Guimarães Rosa e o Magma - o poeta não cita: canta. Templo Cultural Delfos, fevereiro/2011. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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Página atualizada em 10.5.2014.



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Um comentário:

  1. Que saudade! De J G Rosa guardo um lindo grandioso beijo na testa. Naquela tarde eu saí da livraria São José (Rio) pisando nuvens. Elidia siselidia@gmail.com

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