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Carlos Machado - o poeta

Carlos Machado - foto: Editora Abril/divulgação

Carlos Machado, nasceu em 1951, em Muritiba (BA). Jornalista, reside em São Paulo desde 1980. Cursou engenharia mecânica na UFBA e, em São Paulo, fez jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Edita na internet o boletim quinzenal poesia.net. Tem poemas publicados em revistas e jornais literários. Como jornalista especializado em informática, é também autor de livros técnicos publicados pela Editora Campus (RJ).


Carlos Machado - capas dos livros de poesia
OBRA DE CARLOS MACHADO
Obra poética
:: Pássaro de vidro. [capa Rodrigo Maroja]. São Paulo: Hedra, 2006.
:: Mané Ventura, Gonçalo e eu - uma história de Cordel. São Paulo: Editora do autor, 2012.
:: Tesoura cega[fotografia da capa Mario Rui Feliciani]. São Paulo: Dobra Editorial, 2015.

Infanto-juvenil
:: Cada bicho com seu capricho. (poemas para crianças).. [ilustrações Geraldo Valério]. São Paulo: MOV Palavras, 2015.

Antologias [participação]
BERND, Zilá (org.). Antologia de poesia afro-brasileira — 150 anos de consciência negra no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011.
DAMAZIO, Reynaldo; PROENÇA, Ruy; MELO, Tarso de (orgs.). Outras ruminações – 75 poetas e a poesia de Donizete Galvão. São Paulo: Dobra, 2014.
PORTOCARRERO, Celina (org.). Amar, verbo atemporal — 100 poemas de amor. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. 
RAMOS, Inês (org.). Os dias do amor — Um poema para cada dia do ano. Portugal: Ministério dos Livros, 2009.

Artigos e ensaios
MACHADO, Carlos. Passos de ternura. Um até breve ao poeta Donizete Galvão. in: Kultme, 5.2.2014. Disponível no link. (acessado em 25.12.2015).
______ . O dia em que Fernando Brant me mandou e-mail. in: Kultme, 16.7.2015. Disponível no link. (acessado em 25.12.2015).
______ . Sob a pele das palavras. in: Germina, revista de literatura & arte, agosto|2006. Disponível no link. (acessado em 26.12.2015).
______ . Escândalo: Rimas de luxo na canção popular. in: Kultme, 09.11.2015. Disponível no link. (acessado em 26.12.2015).

Entrevista
KULTMEO que não tem tradução – entrevista com o poeta Carlos Machado. [entrevista]. in Kultme, 1.12.2014. Disponível no link. (acessado em 25.12.2015).


“A poesia de Carlos Machado se insere no conjunto de propostas da grande linha da poesia universal: o discurso do homem no mundo e sua condição existencial.”
- Ronaldo Costa Fernandes, no ensaio "Tesoura cega: a poesia afiada de Carlos Machado". in: MACHADO, Carlos. 'Tesoura cega - poemas'. São Paulo:  Dobra Editorial, 2015, p. 101.


Carlos Machado - fonte: Kultme
POEMAS ESCOLHIDOS DO POETA CARLOS MACHADO

A caça insubmissa
Nada possuis do outro
nem corpo nem asa
nem mesmo o sopro
morno da palavra

teu é apenas o perfume
de carne e cedro
que aspiras na pele
da caça insubmissa

nada é teu: dorme
e inventa no sonho
outra forma de laço
caça sem caçador
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 90.


Água e sal
digo que foi o vento:
inundou meus olhos
de sal

(esse vento do mar
você sabe...)

mas é mentira:
não são lágrimas
de sal
é a pungência do azul
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 67.


Anatomias
anatomia de coisas

desnudar
o pássaro de vidro
e ver em seu lado
oculto
o outro lado
de seu vulto

dissecar
vozes
sombras descalças
e perquirir
a substância
escassa que principia
na polpa
branca do dia

flagrar a ânsia
do relógio
e a cadência
dessa máquina
humana

fotografar
a permanência
da chama

anatomia do gesto

dobrar a esquina
de mim mesmo
olhar pra trás
e ainda
enxergar
o resto de
meu gesto
tonto
- Carlos Machado, em "Pássaro de vidro". São Paulo: Hedra, 2006.


As coisas
As coisas não têm culpa.
São apenas testemunhas
de nossas comédias.

As coisas não abraçam causas.
É inútil acusá-las
de qualquer inclinação,
lealdade ou felonia.

Substantivos neutros,
são apenas coisas:
este botão descosturado de tua blusa
este chinelo ao pé da cama
um folha de papel em branco 
- e nenhum drama.

As coisas não guardam segredos
nem remorsos.
Assistem caladas
e resistem
vestidas de cal e silêncio.

As coisas não têm quereres
nem poderes.

Mas, desassombradas, 
exibem sempre
o semblante estoico da pedra.

Nisso as coisas são todas iguais

— todas indiferentes. 
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 13-14.



Baobá
Vontade de fazer
uma coisa grande
de futuro imenso:
plantar um pé
de jacarandá
um baobá
e deixá-lo aí
para beijar 
a cumeeira
dos séculos,
zombar de tudo
que é breve
e que, como nós,
se consome 
no atrito das
horas, na
vertigem
incontrolável
das coisas miúdas.
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 79.


Caminhada
Consente o caminhar
com passo
de não chegar
a lugar algum:
anda porque andas,
pelo simples
prazer de ter o 
vento na pele
e o olha na flor
vadia da beira
do caminho.
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 81.


Certo
as coisas não dão certo
nunca deram certo
não foram feitas para dar certo

nós é que temos a ambição
do alinhamento e da simetria

e até inventamos deuses perfeitos
construídos à imagem
e semelhança do que sonhamos

as coisas não dão certo
nós é que cerzimos o pano
obturamos o dente
remendamos a fronteira no mapa

e inauguramos
na estátua de chumbo
um simulacro de ave

queremos crer
que as coisas dão certo
as coisas agora estão dando certo
e — se deus quiser —

sempre darão
- Carlos Machado, em "Pássaro de vidro". São Paulo: Hedra, 2006.


Entre ave e réptil
interessa-me
entre ave e réptil
a condição 
ambígua

confesso meu
fascínio por
essa corda estendida
entre uma e outra
palavra
e sua falsa noção
de equilíbrio

trago na raiz
do gesto o alvoroço
do circo

nervo reteso
lanço-me no ar
risco a 
superfície do inútil — e vôo!

por vezes 
uma palavra mais ágil 
me subtrai
do precipício

mas quase sempre 
me esborracho 
no chão 
em meu vôo solo
sem tambor nem
auxílio

reconfirmado
sísifo 
— amador de seu ofício —
alço-me outra vez
ao risco dos trapézios
- Carlos Machado, poema publicado na revista Cacto nº 3, dezembro|2003.


Ferreiro
malhar o ferro frio
até que do bruto
metal desponte
o fio da navalha

malhar até que o aço
rubro de cansaço
se renda ao sopro
de um calafrio

e que da matéria
distante e alheia
salte faiscante

uma centelha
- Carlos Machado, publicado na revista eletrônica italiana "Fili d'aquilone" n. 7, iuglio/settembre 2007.


Luas 
todo pretérito
é sempre
mais que perfeito

nenhum soluço
cabe inteiro
dentro do peito

emanações do 
passado 
despertam luas

lindas e nuas
que só se despem
do outro lado
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 69.


Mapa
De certo, apenas a incerteza.
O copo branco sobre a mesa
e esta aspiração de domingos.
De certo, a morte e seus respingos.

O menino azul quer um mapa,
carta de agir, segura e exata.
Quer seguir rijo, reto e justo
para justíssimo lugar.

O que, então, responder? Desiste,
esse lugar não há e – triste –
não há mapa, nem portulano,
nem porto lhano onde ancorar?

Como dizer? Menino, os mapas
não são roteiros de achamento,
mas tênues direções de vento
para quem só busca o buscar.
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 9.


Ofício
Constróis com empenho
teu artefato de sílabas

Enuncias a noite
alcanças o feminino 
das coisas sem gênero
vagueias no campo branco
do que não se diz.

Relojoeiro, numismata
colecionador de conchas do mar
gastas o olho
e a alma 
nesse ofício minúsculo.

Tua ração é o tempo
o tempo e seu estandarte
de sustos
paisagem sem freios
à janela do trem.

Mas sabes: 
depois de tantos incêndios
luas novas e paixões
o que se aprende é bem pouco.

Bastaria dizer:
os espinheiros florescem
na varanda.
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 94-95.


Paixões
Uma paixão minúscula. 

Colecionar conchas do mar
visitar o delta do Parnaíba
ou, glória do carbono,
montar um esguio exército
de lápis coloridos. 

Paixão invisível
a olho nu
indetectável pelos radares
do trânsito
ou pelos cães farejadores da polícia. 

Paixão de lupa
desvio de rota
mania encarapitada
na garupa da alma.

Exercício vadio
só para quem sabe
que mais vale
um gosto

que duas ou três moedas sem brilho.
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 82.


Ponto final
O mundo acaba? Talvez sim.
Porém não como supõem
poetas e profetas. Quem 
treme de medo diante dos 
círculos infernais de Dante;
quem teme as trombetas
do Apocalipse; quem geme
de pânico ao pensar nas geenas
e nos seres estrambóticos
de Hieronymus Bosch. Não, 
a ciência é mais sutil e cruel.
Nenhum temor ou tremor
pressupõe o que pode vir
das sinistras conjecturas
dos cosmólogos. Nem água
nem fogo nem horror dantesco.
Colapso universal e absurdo.
O Big Bang ao avesso.
Todas as dimensões contraídas
num ponto único. Ponto
monstruosamente final.
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 57.


Xeque-mate
Quando menos se espera, já são horas.
A dama de espadas perde o gume
e o pássaro pousado vai embora. 

Quando menos se espera, o que se anuncia
não é a sorte grande, a estrela Aldebarã
ou a sagração da primavera.
São tempos de abutre
e o coração, músculo bélico, fraqueja. 

De repente, já é sábado,
há uns assuntos desagradáveis para resolver
e, sobre a pele confusa da alma,
uma densa crosta de óxido e desalento.

Quando menos se espera, o rei está em xeque,
e é dezembro.
Há uma complicação de trânsito
na avenida
uma artéria que não dá passagem.
Quando menos se espera, já é tarde.
- Carlos Machado, em "Tesoura cega". São Paulo: Dobra Editorial, 2015, p. 20.


FORTUNA CRÍTICA
MACHADO, Luiz Alberto. O Pássaro de Vidro de Carlos Machado. In. Sobresites. Disponível no link. (acessado em 25.12.2015).
OLIVEIRA, Vera Lúcia de..Vidro vida que reflete: a poesia de Carlos Machado. in:revista eletrônica italiana "Fili d'aquilone, nº. 7, iuglio/settembre 2007. Disponível no link. (acessado em 26.12.2015).



Carlos Machado - fonte: Kultme
REDE DO AUTOR CARLOS MACHADO
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REFERÊNCIAS E OUTRAS FONTES
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Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Carlos Machado - o poeta. Templo Cultural Delfos, dezembro/2015. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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Centenário do poeta Manoel de Barros

Manoel de Barros, foto: Jonne Roriz /Estadão Conteúdo

Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá (MT) em 19 de dezembro de 1916. Visite aqui no site: vida e obra do poeta das miudezas.



ALGUNS POEMAS

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.
- Manoel de Barros, em "Memórias Inventadas para crianças". São Paulo: Planeta do Brasil, 2006.



Entrada
Distâncias somavam a gente para menos. Nossa
morada estava tão perto do abandono que dava até
para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens
profundas com os sapos, com as águas e com as
árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza
avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia
está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol
põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me
empobrece. E o rio encosta as margens na minha
voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade
de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem.
Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então
comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me
dei bem. Perdoem-me os leitores desta entrada mas vou
copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para
este livro. Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles. Dou quatro exemplos:
1) É nos loucos que grassam luarais;
2) Eu queria crescer pra passarinho;
3) Sapo é um pedaço de chão que pula;
4) Poesia é a infância da língua. Sei que os
meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas
se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
- Manoel de Barros, em "Poesia completa - Manoel de Barros". São Paulo: Leya, 2010, p. 7.


Peraltagem
O canto distante da sariema encompridava a tarde.
E porque a tarde ficasse mais comprida a gente sumia dentro dela.
E quando o grito da mãe nos alcançava a gente já estava do outro lado do rio,
O pai nos chamou pelo berrante.
Na volta fomos encostando pelas paredes da casa pé ante pé.
Com receio de um carão do pai.
Logo a tosse do vô acordou o silêncio da casa.
Mas não apanhamos nem.
E nem levamos carão nem.
A mãe só que falou que eu iria viver leso fazendo só essas coisas.
O pai completou: ele precisava de ver outras coisas além de ficar ouvindo só o canto dos pássaros.
E a mãe disse mais: esse menino vai passar a vida enfiando água no espeto!
Foi quase.
- Manoel de Barros, em "Memórias inventadas - As Infâncias de Manoel de Barros. [iluminuras de Martha Barros]. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.



Retrato
Quando menino encompridava rios.
Andava devagar e escuro – meio formatado em
Silêncio.
Queria ser a voz em que uma pedra fale.
Paisagens vadiavam no seu olho.
Seus cantos eram cheios de nascentes.
Pregava-se nas coisas quanto aromas.
- Manoel de Barros, em "Conserto a céu aberto para solos de ave". Rio de janeiro: editora Record, 2008.


Uma palavra está nascendo
Na boca de uma criança:
Mais atrasada do que um murmúrio.
Não tem histórias nem letras
Está entre o coaxo e o arrulo.
- Manoel de Barros, em "Conserto a céu aberto para solos de ave". Rio de janeiro: editora Record, 2008.


Ruína
Um monge descabelado me disse no caminho: "Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.
- Manoel de Barros, em "Ensaios fotográficos". Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.


O fotógrafo
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a ‘Nuvem de calça’.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakowski – seu criador.
Fotografei a ‘Nuvem de calça’ e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.
- Manoel de Barros, em "Ensaios fotográficos". Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.


O fotógrafo, de Manoel de Barros - na voz de Antonio Abujamra

Sobre sucatas ISTO PORQUE A GENTE FOI CRIADA em lugar onde não tinha Brinquedo fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. Outra era ouvir nas conchas as origens do mundo. Estranhei muito quando, mais tarde, precisei morar na cidade. Na cidade, um dia, contei para minha mãe que vira na Praça um homem montado no cavalo de pedra a mostrar uma faca comprida para o alto. Minha mãe corrigiu que não era faca, era uma espada. E Que o homem era um herói da nossa história. Claro que eu não Tinha educação de cidade para saber que herói era um homem Sentado num cavalo de pedra. Eles eram pessoas antigas da história que algum dia defenderam a nossa Pátria. Para mim, aqueles homens seriam como trastes, como qualquer pedaço de camisa nos ventos. Eu me lembrava dos espantalhos vestidos com as minhas camisas. O mundo era um pedaço complicado para o menino que viera da roça. Não vi nenhuma coisa mais bonita na cidade do que um passarinho. Vi que tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel. Só o que não vira sucata é ave, árvore, rã, pedra. Até nave espacial vira sucata. Agora eu penso uma garça branca de brejo ser mais linda que Uma nave espacial. Peço desculpa por cometer essa verdade. - Manoel de Barros, em "Memórias Inventadas para crianças". São Paulo: Planeta do Brasil, 2006.




8. Deseja ser
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.
- Manoel de Barros, em "Livro Sobre Nada (1966-1998)". Rio de Janeiro: Editora Record, 3ª ed., 1996.


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Centenário do poeta Manoel de Barros - foto: Jonne Roriz, Estadão Conteúdo


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