Carlos Drummond de Andrade |
Se
procurar bem, você acaba encontrando
Não a
explicação (duvidosa) da vida,
Mas a
poesia (inexplicável) da vida.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
A outra face
O
cômico, um enigma. Oscarito era sério
e agora
faz chorar seus amigos diletos.
Se vive
acaso numa estrela, está rindo
dessa
combinação de contrastes secretos.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Lembrança do São Francisco
Lembrança
do São Francisco
por mão
de Paulo Pardal,
a
carranca de Isaías
me livra
de todo risco
e vai
remando meus dias
com sua
força fluvial.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
M.T.A.
Imagino
o puro semblante:
Maria
Teresa Amarante.
Em sua
graça natural
lembra
andorinha no beiral.
Lembra
flor, lembra luz, que sei?
O
diamante oculto do rei.
E me
pergunto: que poesia
lhe
darei, que não seja fria
imitação
do melhor verso:
uma
garota no universo?
(E além
do mais, com esta rima:
neta
querida de Herman Lima.)
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Em branco
A
namoradinha de Campanha (feia e triste, a cidade?)
que
poderia ter sido e que não foi
uma das
mulheres do poeta.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Boêmia
No bar
Nacional
no bar
do Palace
na
Brahma
no Lamas
na Americana
no
restaurante Reis
na casa
inconfessável da Rua Riachuelo
o poeta
ensaia uma boêmia contemplativa
da
boêmia dos outros.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
O charadista
Amas palavras cruzadas
e também
os logogrifos,
pois a
poesia, bem sabes,
é emoção
filtrada em signos
de
grifos e de hipogrifos,
e te
divertes buscando
a chave
obscura do verbo,
a chave
esconsa do amor,
a chave
enigma – do ser.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Professor
O
professor disserta
sobre
ponto difícil do programa.
Um aluno
dorme,
cansado
das canseiras desta vida.
O
professor vai sacudi-lo?
Vai
repreendê-lo?
Não.
O
professor baixa a voz
com medo
de acordá-lo.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Antologia
Felizmente
existe o álcool na vida.
Uns
tomam éter, outros, cocaína.
Eu tomo
alegria!
Minha
ternura dentuça é dissimulada.
Tenho
todos os motivos menos um de ser triste.
Estou
farto do lirismo comedido.
Como
deve ser bom gostar de uma feia!
Pura ou
degradada até a última baixeza
eu quero
a estrela da manhã.
... os
corpos se entendem, mas as almas não.
-
Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Visão
Vi em ti
o poeta.
Abraçando-te,
abracei imaterialmente o poeta.
Nunca
nenhum outro me deu
a
sensação de poesia transparente.
Não vi
em ti o homem êfemero
sujeito
aos safanões da vida.
Vi em ti
o verso
- puro,
luminoso, cristalino –
independente
de ti, superior a ti,
acasalando
no ar as suas células rítmicas.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Estrela
Estrela
da manhã,
estrela
da tarde,
estrela
da noite,
estrela
do tempo inteiro,
da vida
inteira,
fixa,
imutável
pairando
sobre o
poeta.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Recado ao poeta
Pablo
Antonio Cuadra, se uma voz
longínqua
chegar a teus ouvidos,
escuta-a
como se
escutasse o soar
de um
sino amigo ou o sussurro breve
de uma
palma que ao vento se oferece.
Ó Pablo,
escuta-a
como se
escutasse o latido
de um
cão fiel em hora de vigília.
São
rumores antigos e modernos,
ao
avesso do tempo e seus desastres.
Repare
que a poesia,
vinda de
ti, volta a seu berço
envolvida
nos timbres desse canto
de
afetos naturais que te contemplam.
Não foi
vão teu esforço em modular
uma esperança
quando a treva insiste.
É falso
o amanhecer
e duro o
ofício
de
colher decepções. Ouve, poeta,
este
acorde pulsando em teu redor,
a
iluminar-se de carinho
por quem
prefere o estranho ao já sabido
e se
recuso à fabricação de ossos
e à
criação de corvos,
puto,
fraterno Pablo Antonio Cuadra.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Transfiguração
Renina
extrai
da matéria muda paisagens cantantes.
As
linhas e os ritmos surgem no silêncio do metal
como a
sereia surge do pélago.
É um
bailar de movimentos regidos pela sabedoria
de arte
severa.
Renina
fere fundo. E meigamente.
Pela
energia do seu lirismo
desnastram-se
as virtualidades do real.
A visão
se duplica. Será talvez inúmera.
A mão
infalível de Renina
aereamente
domina
a Terra,
transfigurada em melodia visual.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Livro
Boitempo,
ou seja, aquele vago boi
imóvel
na planura do passado,
a
ruminar o verde-azul-dourado
silêncio
do que é de quanto foi.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Merci, merci, merci
Merci,
merci, merci.
Estou
empapelado!
Deixo,
feliz, aqui,
o meu
muito-obrigado
a ti.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Enfermeiro
Servir à
alheia dor – gesto profundo
que vai
humanizando o horror do mundo.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Cozinheiro
Dai,
Senhor, o mais fino paladar
a quem
tem por missão alimentar.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Poema Culinário
Na
croquete de galinha,
A cebola
batidinha
Com duas
folhas de louro
Vale
mais do que um tesouro.
Também
dois dentes de alho
Nunca
serão espantalho.
(Ao
contrário.) E três tomates,
Em vez
de causar dislates,
Sem
peles e sem sementes,
São
ajudas pertinentes
Ao lado
do sal, da salsa,
(A
receita nunca é falsa)
Todos
bóiam na manteiga
De
natural doce e meiga.
E para
maior deleite,
Um copo
e meio de leite.
Ah, me
esqueci: três ovos
Bem
graúdos e bem novos
Junto à
farinha de rosca
(Espante-se
logo a mosca)
Mais a
pitada de óleo,
Sem se
manchar o linóleo,
E mais
farinha de trigo...
Ai, meu
Deus! deixa comigo.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Uma rosa
Uma
rosa, em dia de chuva,
é uma rosa:
espalha
em torno uma presença
luminosa.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Amanhecer
Amanhecer:
o mais antigo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer:
ainda o mais novo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer
e vida humana
se
entrelaçam na mesma luz.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Carlos Drummond de Andrade - foto: Nelson Di Rago |
Entre os dias da semana
Entre os
dias da semana,
olhada à
minha maneira,
de todos
o mais bacana
sem
dúvida é quarta-feira.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Nascer
Nascer
outra e
outra vez
indefinidamente
como a
planta sempre nascendo
da
primeira semente;
pensar o
dia bom
até
criar a claridade
e nela
descobrir
a
primeira sílaba
da
primeira canção.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Procuro uma alegria
Procuro
uma alegria
na mala
vazia
do final
do ano
e eis
que tenho na mão
- flor
do cotidiano –
o vôo de
um pássaro
e de uma
canção.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Versos de fim de ano
I
Você
sabia que a lua
ainda
não foi visitada?
Que há
sempre uma lua nova
dentro
de outra, e encantada?
É lá que
vivem as graças
que
nesta quadra do ano
a gente
sonha e deseja
a todo o
gênero humano.
Mas a
lua, preguiçosa,
nem
sempre atende à pedida?
A gente
pede assim mesmo
até
melhorar a vida.
II
É tempo
de pesquisar no tempo
uma
estrela nova, um sorriso;
de dizer
à nuvem: sê escultura;
e à
escultura: sê nuvem.
Tempo de
desejar, tempo de pensar
madura e
docemente o bom tempo de acontecer
(e mesmo
não acontecendo fica desejado),
pássaro-mensageiro,
traço
entre
vida e esperança
como
satélite no espaço.
III
Na volta
da esperança,
um
princípio de vida:
ser
outra vez criança
por
toda, toda a vida.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
A companheira
A
companheira
da vida
inteira,
que a
meu lado
une o
passado
ao novo
dia
em
harmonia,
a sempre
forte
e meu
suporte
quanto
vacilo,
porte
tranquilo,
voz de
carinho
no meu
caminho,
leal,
paciente
constantemente,
simples,
discreta
força do
poeta,
quero-a
no instante
final –
constante
com sua
mão
acarinhando
em gesto
brando
meu
coração.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
A gente sempre se amando
A gente
sempre se amando
nem vê o
tempo passar.
O amor
vai-nos ensinando
que é
sempre tempo de amar.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
A minha cuca louca
A minha
cuca louca
é plena
de juízo:
Desejo
em tua boca
o mais
belo sorriso.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Encomendas e pedidos à amada prestimosa
Pedi que
comprasses queijo
e que
comprasses banana.
Pedi
mais Lorazepan.
Tudo
compraste. Com um beijo
e uma
carícia bacana,
muito
obrigado.
Amanhã,
vou te
pedir mais coisinhas,
mas
diversas... Adivinhas?
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Esse longo caminho
Esse
longo caminho percorrido
lado a
lado, nos bons e maus momentos,
faz de
nós dois um ser unificado
pelos
mais fundos, ternos sentimentos.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Na cama
Na
cama
o café a
dois é mais doce e mais forte
para quem ama
e quanto
mais o bebe mais encontra o norte
no Amor sem fim
e sem princípio.
Assim
disse o sábio Alípio.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Papinho lírico no dia dos namorados
Dá
licença?
Quer ser
seu namorado a vida inteira
pois
tenho uma reserva imensa
de
ternurinhas e meninice arteira.
Quero
brincar como nos primeiros dias
de
namoreco sem declaração.
Curtir
as pequeninas alegrias
como
quem não quer nada de novo não
(mas
quer,
pois o
homem não é mais simples que a mulher).
Pegar, é
claro, nos teus dedos
só para
ver como reagem
e,
achando graça nos teus falsos medos,
murmurar:
Coragem!
Fingir
que me esqueci do combinado
no
parque, para ver se sentes falta
de mim
e surgir
da moita de capim,
com a
minha calva luzidia e alta,
dizendo:
Que desgraçado!
Mas você
por aqui, meu alfenim?
Ou me
esconder atrás da porta,
miando
que nem gato,
e
continuar miando, já reconhecido,
a fazer
o estranhíssimo relato
de que
uma fada torta
me
transformou num bicho assim todo encolhido.
Que te
dar bombons, e logo após
- o
lalá! ora veja! –
pedir
que me passes a cereja
de boca
a boca: é mais gostosa
se a
trincarmos a sós
enquanto
os dedos vão tecendo
uma
carícia lenta e silenciosa,
e tão
eletrizantes que vó vendo.
Y otras cositas más que nem te conto.
ó minha
sempre namorada,
mas
decerto adivinhas este conto,
o mesmo
de antes e a cada hora diferente
assim
como é a gente
que se
ama de antigo amor presente
e não se
cansa e nem se vai cansar
de um
certo suaviardente, antigo e encantador
namoramor.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Receita para não engordar sem necessidade de ingerir arroz
integral e chá de jasmim
Pratique
amor integral
uma vez
por dia
desde a
aurora matinal
até a
hora em que o mocho espia.
Não
perca um minuto só
neste
regime sensacional.
Pois a
vida é um sonho e, se tudo é pó,
que seja
pó de amor integral.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Poesia Errante, 1988.
Drummond, por Renato Stegun |
Além da Terra, além do Céu
Além da
Terra, além do Céu,
no
trampolim do sem-fim das estrelas,
no
rastro dos astros,
na
magnólia das nebulosas.
Além, muito
além do sistema solar,
até onde
alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos
conjugar
o verbo
fundamental essencial,
o verbo
transcendente, acima das gramáticas
e do
medo e da moeda e da política,
o verbo
sempreamar,
o verbo
pluriamar,
razão de
ser e de viver.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Amor
O ser
busca o outro ser, e ao conhece-lo
acha a
razão de ser, já dividido.
São dois
em um: amor, sublime selo
que à
vida imprime cor, graça e sentido.
“Amor” –
eu disse – e floriu uma rosa
embalsamando
a tarde melodiosa
no canto
mais oculto do jardim,
mas seu
perfume não chegou a mim.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Fazer 70 anos
(A José Carlos Lisboa)
Fazer 70
anos não é simples.
A vida
exige, para conseguirmos,
perdas e
perdas do íntimo do ser,
como, em
volta do ser, mil outras perdas.
Fazer 70
anos é fazer
catálogo
de esquecimentos e ruínas.
Viajar
entre o já-foi e o não-será.
É,
sobretudo, fazer 70 anos,
alegria
pojada de tristeza.
Ó José
Carlos, irmão-em-Escorpião!
Nós o
conseguimos...
E
sorrimos
de uma
vitória comprada por que preço?
Quem
jamais o saberá?
À sombra
dos 70 anos, dois mineiros
em
silêncio se abraçam, conferindo
a
estranha felicidade da velhice.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
O correio de amigos é doçura
(A Joaquim-Francisco Coelho, para informá-lo de um carinhoso
silêncio)
O
correio de amigos é doçura
que eu
cultivo de forma negativa.
As
cartas vão chegando, e uma festiva
sensação
de amizade mais se apura.
Mas eis
que, ao responder, a tentativa
de
exprimir esse gosto se afigura
empenho
vão, pois que toda a finura
do
sentimento escapa à letra viva.
Joaquim-Francisco,
ideal correspondente
que ao
belo Van de Velde acrescentaste
a
mensagem postal mais excelente,
perdoa a
quem confessa (pois não mente):
o que a
pena emudece por desgaste,
no
coração floresce plenamente.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Eu quisera ver o mundo
Eu
quisera ver o mundo
como o
vê Sérgio Bernardo:
ver, no
mundo, os muitos signos
que
vigiam sob as coisas.
Sentir,
sob a forma, as formas,
os
segredos da matéria,
mais a
textura dos sonhos
de que
se forma o real.
Ver a
vida em plenitude
e em seu
mistério mais alto;
decifrar
a linha, a sombra,
a
mensagem não ouvida
mas que
palpite na Terra.
Eu
quisera ter os olhos
que
assim penetram o arcano
e o
tornam (poder da imagem)
um
conhecimento humano.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Miniversos
(16.VIII.1968)
Última
atração na areia
do Leme:
a tiro,
mata-se a baleia.
.
Separatismo
espanhol:
lado do
escuro,
lado do
sol.
.
Quem
papa a pílula
poupa
parto, papinhas,
porém
perde parúsia.
.
Cautela:
em agosto
não vire
o rosto
ao rei
da vela.
.
No
festival da canção
fica
abafadinho
o ai da
inflação.
.
A
reforma universitária
prevê o
curso
da
reforma universitária.
.
O censor
olhou-se
no
espelho e censurou-o:
Que
horror!
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
A semana foi assim
(18.X.1969)
A
semana? Passou que nem corisco,
somente
aqui e ali deixando um risco
além do
velho céu, hoje quadrado,
pelas
naves do cosmo ultrapassado.
Que
pretendem os homens: descobrir
um novo
mundo, onde se possa rir?
brincar
de amor? jogar de ser feliz?
tirar
diploma de deus-aprendiz?
(Daqui a
pouco o trânsito no espaço
estará
de fundir cuca e espinhaço.)
Minha
tia mineira não se espanta.
Há
sempre uma cantiga na garganta
para
saudar o sonho, embora a ruga
da
experiência prefira a tartaruga
em seu
calmo ficar aqui por perto,
tartarugando
no roteiro certo...
É isso a
espécie: um revoar aos trancos,
aos
gemidos, aos cálculos e arrancos,
entre
miséria e ciência, na poesia
da
eternidade posta num só dia.
Ninguém
entende bem o tal contexto
de que
tanto se fala; e Paulo Sexto,
dos
bispos a escutar o iroso brado,
chora,
talvez, ou se mantém calado?
Eu
contesto o contexto, diz a voz
em
torno, em cima, até dentro de nós,
e a
humanidade, enquanto assim contesta,
do
próprio contestar faz uma festa.
Ainda
bem que que aí salta o Jô Soares,
a provar
que cirandam pelos ares
mil
amores sobrando para o Gordo,
que por
isso não sente mais a dor do
regime,
derramando pleno açúcar
no café,
no pospasto, até no púcar(o)
da
laranjada... Ai vida, que doçura
quando
magros e gordos, de mistura,
se
sentirem amados por igual
em todo
o território nacional,
e as
nações forem todas um só povo,
na
veludosa paz do homem novo!
Deliras,
minha lira? por enquanto
não devo
reclamar prodígio tanto.
Olha o
Dia do Mestre: o professor
(que do
dinheiro ainda não viu a cor
em
Minas) recebendo na bandeja
confetes
de ternura e de ora-veja...
Em São
Paulo calou-se o sax-barítono
de
Booker Pittman: procuro um terno átono
para
exprimir a falta, a grande pena
do som
perdido, em meio à dor de Eliana.
E o
sax-soprano, o clarinete? Música
de jazz,
que jaz, silente, em flauta mágica.
Mas
voltemos à rima, com Bandeira
pintor,
Antônio, e sua vida inteira
convertida
em pintura da mais fina,
que
veremos no MAM: pintura é sina
e prêmio
de viver após a vida
tão
longe e tão depressa fenecida.
E viva,
viva o Vasco: o sofrimento
há de
fugir, se o ataque lavra um tento.
Time,
torcida, em coro neste instante,
vamos
gritar: Casaca! ao Almirante.
E
deixemos de briga, minha gente.
O pé
tome a palavra: bola pra frente.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
No balcão
O
cafezinho está mais caro?
Sabe
melhor o cafezinho?
De
diâmetro aumentou a xícara?
A
colherzinha não é mais de prata
(se
algum dia foi), e um sorriso
de
boas-vindas nos acolhe
sob os
bigodes do gerente?
É mais
café o cafezinho,
mais
quente, inspira mais piadas
a seus
costumeiros clientes?
Tem um
pó mais fino, o adoçante
não mata
mais que o ciclamato,
e há no
açúcar um princípio
de
tornar o dia contente
quando o
céu da boca relembra
o
cafezinho em pé tomado?
O
cafezinho contém mesmo
café do
bom, que a velha casa
de nosso
avô servia a todos,
e
repetiam todos, uai?
Não.
Simplesmente, meus amigos,
o
cafezinho está mais caro.
- Carlos Drummond de
Andrade, do poema “Lira Pedestre”, In: Amar se aprende amando - 24º Edição,
2001.
"O
culpado sou eu, você,
que não
sabemos uma palavra
das
palavras que cruzam no ar?
Que não
cursamos o curso
dos engenheiros,
não fundamos a firma
dos empreiteiros,
não integramos a equipe
dos inspetores,
e assistimos o desabamento
de um monumento
como uma xícara
caindo das mãos
e cujos cacos
esmagam vidas, fuscas e ônibus
na – ironia –
avenida do nome ilustre
de Frotin?"
- Carlos Drummond de
Andrade, do poema “A queda”, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Previsão
Qualquer dia
decide o fisco:
Passistas
bateristas
destaques
mestres-salas
porta-estandartes
trabalhadores autônomos
da folia
devem pagar imposto de alegria.
- Carlos Drummond de
Andrade, do poema “Carnaval chegando”, In: Amar se aprende amando - 24º Edição,
2001.
Esparsos de 1976
Mais uma
Novo serviço: tacar fogo
mediante módico estipêndio.
Se já pagamos taxa d’água,
vamos pagar taxa de incêndio.
.
Propaganda Eleitoral
Na TV, só teu retrato,
com teu número e teu nome.
Serás mesmo candidato
ou simples sombra que some?
.
Candidato
Se sai o tabelamento
de artigos alimentícios,
requeiro neste momento
gozar de seus benefícios
não para baixar o preço
das coisas essenciais,
mas para entrar sem tropeço
no batalhão dos fiscais.
.
Repetição
Aumenta o salário mínimo?
O custo de vida, máximo,
torna o mínimo mais mínimo
criando o mínimo máximo.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Brinquedo para homens
Embora eu seja adulto,
não me seduzem os brinquedos eletrônicos
que a moda, irônica, me oferece.
E excogito:
Que brinquedo inventar para o adulto,
privativo dele, sangue e riso dele,
brinquedo desenganado mas eficiente?
Tenho de inventar o meu brinquedo,
mola saltando no meu íntimo,
alegria gerada por mim mesmo,
e fácil, fluida, pluma,
pétala.
Sem o pedir às máquinas e aos deuses,
que cada um invente o seu brinquedo.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Tempo de Ipê
Não quero saber de IPM, quero saber de IP.
O M que se acrescentar não será militar,
será de Maravilha.
Estou abençoando a terra pela alegria do ipê.
Mesmo roxo, o ipê me transporta ao círculo da alegria,
onde encontro, dadivoso, o ipê-amarelo.
Este me dá as boas-vindas e apresenta:
- Aqui é o ipê-rosa.
Mais adiante, seu irmão, o ipê-branco.
Entre os ipês de agosto que deveriam ser de outubro
mas tiveram pena de nós e se anteciparam
para que o Rio não sofresse de desamor, tumulto, inflação,
mortes.
Sou um homem dissolvido na natureza.
Estou florescendo em todos os ipês.
Estou bêbado de cores de ipê, estou alcançando
a mais alta copa do mais alto ipê do Corcovado.
Não me façam voltar ao chão,
não me chamem, não me telefonem, não me deem dinheiro,
quero viver em bráctea, racemo, panícula, umbela.
Este é o tempo de ipê. Tempo de glória.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Salário
Ó que lance extraordinário:
aumentou o meu salário
e o custo de vida, vário,
muito acima do ordinário,
por milagre monetário
deu um salto planetário.
Não entendo o noticiário.
Sou um simples operário,
escravo de ponto e horário,
sou caxias voluntário
de rendimento precário,
nível de vida sumário,
para não dizer primário,
e cerzido vestuário.
Não sou nada perdulário,
muito menos salafrário,
é limpo meu prontuário,
jamais avancei no Erário,
não festejo aniversário
e em meu sufoco diário
de emudecido canário,
navegante solitário,
sob o peso tributário,
me falta vocabulário
para um triste comentário.
Mas que lance extraordinário:
com aumento de salário,
aumentou o meu calvário!
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Amar se aprende amando - 24º Edição, 2001.
Amor, sinal estranho
Amo demais, sem saber que estou amando,
as moças a caminho da reza.
No entardecer,
elas também não se sabem amadas
pelo menino de olhos baixos mas atentos.
Olho uma, olho outra, sinto
o sinal silencioso de alguma coisa
que não sei definir – mais tarde saberei.
Não por Hermínia apenas, ou Marieta
ou Dulce ou Nazaré ou Cármen.
Todas me ferem – doce,
passam sem reparar. O lusco-fusco
já decompõe os vultos, eu mesmo
sou uma sombra na janela do sobrado.
Que fazer deste sentimento
que nem posso chamar de sentimento?
Estou me preparando para sofrer
assim como os rapazes estudam para médico ou advogado.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
Ferreiro
Filho do ferro e da fagulha
fulgurando na forja formidável
o seu fole afrouxou e sua força
em face do fiscal e da folhinha
de papel.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
O relógio
Nenhum igual àquele.
A hora no bolso do colete é furtiva,
a hora na parede da sala é calma,
a hora na incidência da luz é silenciosa.
Mas a hora no relógio da Matriz é grave
como a consciência.
E repete. Repete.
Impossível dormir, se não a escuto.
Ficar acordado, sem sua batida.
Existir, se ela emudece.
Cada hora é fixada no ar, na alma,
continua soando na surdez.
Onde não há mais ninguém, ela chega e avisa
varando o pedregal da noite.
Som para ser ouvido no longilonge
do tempo da vida.
Imenso
no pulso
este relógio vai comigo.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
Portão
O portão fica bocejando, aberto
para os alunos retardatários.
Não há pressa em viver
nem nas ladeiras duras de subir,
quanto mais para estudar a insípida cartilha.
Mas se o pai do menino é da oposição
à ilustríssima autoridade municipal,
prima da eminentíssima autoridade provincial,
prima, por sua vez da sacratíssima
autoridade nacional,
ah isso não: o vagabundo
ficará mofando lá fora
e leva no boletim uma galáxia de zeros.
A gente aprende muito no portão
fechado.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
Serenata
Flauta e violão na trova da rua
que é uma treva rolando da montanha
fazem das suas.
Não há garrucha que impeça:
A música viola o domicílio
e põe rosas no leito da donzela.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
Os velhos
Todos nasceram velhos – desconfio.
Em casas mais velhas que a velhice,
em ruas que existiram sempre – sempre!
assim como estão hoje
e não deixarão nunca de estar:
soturnas e paradas e indeléveis
mesmo no desmoronar do Juízo Final.
Os mais velhos têm 100, 200 anos
e lá se perde a conta.
Os mais novos dos novos,
não menos de 50 – enorm’idade.
Nenhum olha pra mim.
A velhice o proíbe. Quem autorizou
existirem meninos neste largo municipal?
Quem infringiu a lei da eternidade
que não permite recomeçar a vida?
Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade
de ser também um velho desde sempre.
Assim conversarão
comigo sobre coisas
seladas em cofre e subentendidos
a conversa infindável
de monossílabos, resmungos,
tosse conclusiva.
Nem me veem passar. Não me dão confiança.
Confiança! Confiança!
Dádiva impensável
nos semblantes fechados,
nos felpudos redingotes,
nos chapéus autoritários,
nas barbas de milênios.
Sigo, seco e só, atravessando
a floresta de velhos.
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
Aula de português
A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
Drummond, por Glen Batoca |
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
Primeiro dia
Resumo do Brasil no pátio de areia fina.
Sotaques e risos estranhos.
Continente de almas a descobrir
palmo a palmo, rosto a rosto,
número a número,
ferida a ferida.
Mal nos conhecemos, a palavra-mistério
na pergunta-sussurro
é pedrada na testa:
- Você gosta de foder?
- Carlos Drummond de
Andrade, In: Boitempo II, 1986.
“Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas,
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.”
- Carlos Drummond de
Andrade, do poema “Boitempo”, In: Boitempo II, 1986.
Eterno
E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.
Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.
(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)
— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho.
Eternalidade eternite eternaltivamente
eternuávamos
eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.
Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma
[força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
[passageiras as obras.
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
[mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
[afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.
Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
[essência
ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
[pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma
[esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.
- Carlos Drummond de Andrade, em "Fazendeiro do Ar". Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
Carlos Drummond de Andrade
|
“Viver é saudade prévia.”
- Carlos Drummond de Andrade, do poema “Memória Prévia”, In: Boitempo II, 1986.
DRUMMOND AQUI NO SITE
:: Carlos Drummond de Andrade - um poeta de alma e ofício (Biografia, obra, vídeo-poesia, filmografia e outras referências)
:: Carlos Drummond de Andrade - fortuna crítica (estudos acadêmicos: teses, dissertações, ensaios, artigos e livros)
:: Carlos Drummond de Andrade - o avesso das coisas (aforismos)
:: Carlos Drummond de Andrade - o avesso das coisas (aforismos)
© Direitos reservados ao autor/e ou ao seus herdeiros
© Pesquisa, seleção e organização: Gabriela Fenske Feldkircher
____
Muito bom seu trabalho. Ainda mais tratando-se de Carlos Drummond que possui um trabalho imenso e magnífico.Estava atras de uma poesia que marcou minha vida desde e a primeira vez que a li: Amor, sinal estranho.
ResponderExcluirBom dia, José Nazareno! obrigada. abraços, Elfi
ExcluirSegue a poesia:
Amor, sinal estranho
Amo demais, sem saber que estou amando,
As moças a caminho da reza.
Entardecer.
Elas também não se sabem amadas
pelo menino de olhos baixos mas atentos.
Olho uma, olho outra, sinto
O sinal silencioso de alguma coisa
Que não sei definir - mais tarde saberei.
Não por Hermínia apenas, ou Marieta
Ou Dulce ou Nazaré ou Carmen.
Todas me ferem - doce,
Passam sem reparar. O lusco-fusco
Já decompöe os vultos, eu mesmo
Sou uma sombra na janela do sobrado.
Que fazer deste sentimento
Que nem posso chamar de sentimento?
Estou me preparando para sofrer
Assim como os rapazes estudam para médico ou advogado.
- Carlos Drummond de Andrade, em "Boitempo", 1968.
Excelente gostei muito.
ResponderExcluir