COMPARTILHE NAS SUAS REDES

Velimir Khlébnikov - poeta futurista russo

Velimir Khlébnikov
Velimir Khlébnikov (Viktor Vladimirovitch Khlébnikov), nascido a 9 de Novembro de 1885, foi um poeta, prosador, pensador, matemático, ornitólogo, pintor russo e uma figura proeminente na arte vanguardista. O Nostradamus russo não reconhecido é um fenômeno único na cultura russa, em muitos aspectos à frente do seu tempo. Ele é um dos mais originais representantes do futurismo russo, o qual, porém, superou as fronteiras dessa corrente, tornando-se uma brilhante e incomparável figura no meio literário da «Era de Prata». As suas experiências nas áreas da língua, do ritmo, da formação de palavras; as suas pesquisas de novos caminhos na lírica, no gênero épico, na prosa e na dramaturgia; a sua visão da vida, história, natureza e sociedade não se enquadram na moldura de nenhuma das correntes literárias do início do séc. XX. Complexos em forma e conteúdo, os versos de Khlébnikov são tema de discussão para os críticos literários até aos nossos dias. Aos olhos de muitos, ele é, ainda hoje, um "poeta para poetas".
Viktor Khlébnikov, que mais tarde substituiu o seu nome latino pelo eslavo Velimir (que significa "grande mundo"), o qual se tornou seu pseudónimo literário, nasceu no seio da família de um ornitólogo, um dos fundadores do horto florestal de Astrakhan. A família Khlébnikov mudava frequentemente de residência e, em 1898, mudou-se para Kazan, onde o poeta se formou no liceu. Lá evidenciaram-se as suas primeiras paixões: matemática, ornitologia, língua e literatura russas. Em 1903, Khlébnikov ingressou na Universidade de Kazan, na Faculdade de Física e Matemática, onde estudou matemática e, mais tarde, se interessou por zoologia. Durante a primeira revolução russa de 1905, Khlébnikov participou em actividades antigovernamentais e foi parar à prisão, período após o qual perde todo o interesse pela política.
Sobre os primeiros trabalhos poéticos de Khlébnikov praticamente nada é conhecido. As primeiras obras datadas são ainda do período em que estudava no liceu (1903-1904) e representam uma imitação do folclore russo. Em 1908, Khlébnikov muda-se para São Petersburgo e ingressa na universidade, na área de ciências naturas, mas depois muda para a Faculdade de História e Filosofia (de onde foi expulso, em 1911, por falta de pagamento), onde começa a dedicar-se à poesia, literatura e pesquisas matemático-filosóficas. Entra no círculo de poetas de São Petersburgo e visita um dos mais conhecidos salões literários daqueles anos: «Bachnia» («Torre») (foi sob este nome que entrou para a historia da «Era de Prata» o apartamento do poeta, dramaturgo e crítico literário Viatcheslav Ivánov), onde se reuniam escritores, filósofos, pintores, músicos e artistas. Durante um breve período, aproximou-se dos simbolistas e acmeístas. Em 1908, o semanário «Vesna» («Primavera») publica a primeira obra de poesia em prosa de Khlébnikov A Tentação de um Pecador (Искушение грешника), sobre a decepção com as possibilidades de conhecimento, um enredo ligado ao drama filosófico de Fleubert La Tentation de Saint Antoine.
Conheceu o grupo de jovens pintores e poetas (os irmãos Burliuk, Aleksei Kruchónykh, Elena Guro, Vassíli Kamiénski, aos quais, mais tarde, se juntaram Vladímir Maiakovski e Benedikt Livshits, Olga Rozanova e Kazimir Malevitch) que resultou na formação do grupo «Guileia» («Гилея»), em 1910-1914, e que, posteriormente, se transformou no movimento dos cubo-futuristas (o cubo-futurismo é considerado o resultado da interacção entre poetas-futuristas e pintores-cubistas). Khlébnikov sugeriu-lhes o nome "arautos do futuro" ou "budetlianes", formado a partir da palavra "budet" ("será" - 3ª forma do singular do futuro do verbo "ser"), na qual combina os conceitos de "futuro" ("будущее") e "terrestre" ("землянин"). A primeira apresentação conjunta dos cubo-futuristas na imprensa foi o almanaque poético Viveiro dos Juízes (Садок судей), de 1910, impresso na parte de trás de um papel de parede. Em Fevereiro de 1913, é publicado (também em papel de parede, mas num formato maior) Viveiro de Juízes II (Садок судей II).
Vielimir Khlébnikov, por V. Mayakovskogo (1916)
Khlébnikov foi inspirador e um dos autores (juntamente com os poetas David Burliuk, Vladímir Maiakovski e Aleksei Kruchónykh) do escandaloso manifesto do futurismo russo, colocado no prefácio da colectânea poética dos cubo-futuristas Uma bofetada no gosto do público (Пощёчина общественному вкусу), que declarou a renúncia à arte do passado e conclamou lançar "Púchkin, Dostoiévski, Tolstoi, etc., para fora do Navio do tempo actual…". No entanto, Khlébnikov, que considerava o movimento dos "budetlianes" um profundo fenómeno nacional, escreveu que "não era preciso inocularmo-nos do exterior, pois nós lançámo-nos para o futuro em 1905"; que "o budetliane é "futurista", mas em russo", que se manifestava contra o academismo sem vida na literatura e a arte dos seus contemporâneos, e que procurava novas formas de auto-expressão; que "o budetliane é Púchkin (...) na capa do novo século", o qual teria rido "sobre o Púchkin do século XIX". Ele viu um enorme potencial na cultura dos séculos passados, na obra popular, na cultura urbana contemporânea. A propósito, quando à Rússia, em Janeiro de 1914, chegou Tommaso Marinetti, fundador e teórico do futurismo, que negou toda a experiência artística anterior e a cultura tradicional com os seus valores morais e artísticos, Khlébnikov e Maiakovski, entre outros futuristas russos, reagiram de forma agressiva à visita do notável italiano, chamando a sua multidão entusiasmada de fãs de "carneirada". O próprio Marinetti pagou na mesma moeda e, quando regressou a casa, chamou os colegas russos de "pseudo-futuristas".
O interesse pelo futuro aproximou Khlébnikov dos futuristas, assim como a ideia de como se tornaria a humanidade e as tentativas de aproximar a chegada do futuro com a ajuda da arte. Os futuristas viam nele um génio e chamavam-lhe "o Presidente do Globo Terrestre"; Vladímir Maiakovski chamava-lhe "o Colombo dos novos continentes poéticos"; Viktor Chklovski dizia "...ele é o Lomonossov da literatura russa de hoje"; Ossip Mandelstam escreveu que "Khlébnikov (...) um cidadão de toda a história, de todo o sistema de língua e poesia"; Yuri Olecha obstinadamente repetia a necessidade de aprender a escrever prosa com a obra poética de Khlébnikov. Viatcheslav Ivánov, um dos prestigiados poetas e teóricos da cultura russa daquele tempo, tinha Khlébnikov em grande consideração como poeta e pensador. No entanto, houve avaliações contrastantes da obra de Velimir Khlébnikov: os seus poemas provocaram a raiva de Ivan Búnin e o riso irascível de Vladislav Khodassevitch, que chamava o poeta de "visionário", cujas alucinações tomava como capacidade de prever o futuro.
O ano de 1909 tornou-se um ponto de referência significativo para o poeta, foi quando Khlébnikov se interessou por pan-eslavismo, panteísmo pagão e pelos mitos de diferentes povos. A consciência da unidade do desenvolvimento da história e cultura da humanidade reflecte-se na sua poesia e prosa, usando enredos mitológicos de diferentes povos (Deus das Donzelas / Девий бог, A Morte da Atlântida / Гибель Атлантиды, A Perun / Перуну, A Herdade à Noite, Genghis Khan!... / Усадьба ночью, чингисхань!...). Nos seus primeiros trabalhos, Khlébnikov afirmava uma unidade panteísta e a igualdade de todos os seres vivos na terra (poema O Lugar Onde se Mantêm os Animais / Зверинец). Uma das ideias constantes na sua obra é a aspiração utópica de transformar o mundo com base nas relações harmoniosas entre natureza, pessoas e animais que, na sua opinião, existiam na era pré-histórica.
Sempre imerso em raciocínios fantásticos, Khlébnikov tentou criar a partir da síntese da ciência e da arte uma "super-língua" mundial, que seria usada por pessoas do futuro. Ao examinar as raízes das palavras, nos seus sons iniciais, o poeta tentava compreender o sentido arcaico das mesmas, para, assim, penetrar na memória da humanidade (artigo "Svoyasi", de 1919). Ao estudar os ninhos de palavras da mesma família, ele revelou a possibilidade e necessidade de criar novas palavras, e assim o fez. As palavras inventadas por si encontram-se nos seus versos juntamente com arcaísmos e o espírito inovador na criação de novas palavras harmoniza com o apego pela sintaxe antiga.
Khlébnikov tentou encontrar diferentes caminhos para a concretização dos seus pensamentos de modo a que as pessoas não só as compreendessem, mas também as sentissem. Para isso, o poeta fez experiências com o ritmo e os sons das palavras, tentando com a sua ajuda transmitir o estado de ânimo que coloca em cada poema concreto. Muitos poetas aprenderam com ele. A capacidade de Khlébnikov de criar uma imagem artística como um mistério e a habilidade de preencher os elementos sonoros de um verso em associações semânticas ecoaram na poesia de Vladímir Maiakovski, Nikolai Asseev, Borís Pasternak, Marina Tsvetaeva, Ossip Mandelstam, Nikolai Zabolotski e muitos outros.
O poeta salientava sempre as possibilidades ilimitadas da língua russa. Interessavam-lhe as experiências na criação de palíndromos – versos que podem ser lidos tanto da direita para a esquerda como da esquerda para a direita: "Кони, топот, инок // но не речь, а черен он".
Ao contrário da noção de complexidade indevida das imagens poéticas de Khlébnikov, na sua herança poética há muitos versos claros e acessíveis até para crianças, como por exemplo: Lá, onde viviam os Bombycilla garrulus... (Там, где жили свиристели…), de 1908, Gafanhoto (Кузнечик), de 1909, ou as seguintes estrofes do poema Mulher de Pedra (Каменная баба), de 1919: É-me preciso muito? // Uma fogaça de pão // E uma gota de leite. // E este céu, // E estas nuvens! (Мне много ль надо? // Коврига хлеба // И капля молока. // Да это небо, // Да эти облака!) – ainda ninguém escreveu de modo tão admirável e simples.
Vielimir Khlébnikov, por P.Miturich
Tendo vivido na viragem do século, Khlébnikov sentiu o tempo aguçadamente e fez dele o principal tema da sua poesia. Considerando que tudo o que acontece no mundo não é por acaso, que tudo tem uma relação causa-efeito e uma repetibilidade regular, Khlébnikov tenta compreender os mistérios universais do tempo com a ajuda de análise científica, combinando nas suas buscas a linguística, matemática, história e poesia, e encontrar as leis matemáticas do tempo, as quais ajudariam a prever acontecimentos históricos, influenciá-los e, mais importante, a evitar as guerras("Chega de escrever com corpos, vamos escrever com palavras"). Velimir Khlébnikov considerou e insistiu que o seu sistema de estudo e desenvolvimento do tempo não se baseava na intuição ou conhecimentos misteriosos, mas no conhecimento das leis da natureza e em cálculos precisos, aos quais ele se entregou fanaticamente durante toda a sua vida (Professor e aluno / Учитель и ученик, de 1912, O Tempo – a medida do mundo / Время – мера мира, de 1916, Quadros do destino / Доски судьбы, de 1922).
Pelas páginas das suas obras futuristas está espalhado um conjunto de previsões, cuja grande maioria se mostrou profética. Eis algumas delas:
  1. A proclamação da independência do Egipto – em 1908, Khlébnikov predisse que em 1922 iria ser criado um "grande estado em África";
  2. A Primeira Guerra Mundial – no seu apelo aos estudantes eslavos, em 1908, ele escreveu: "Em 1915, as pessoas vão entrar em guerra e serão testemunhas da queda do estado".
  3. O colapso das Torres Gémeas – no poema Ladomir (Ладомир), de 1920, o poeta escreveu: E os castelos do comércio mundial, // Onde as cadeias da pobreza brilham, // Com um rosto de regozijo e enlevo // Transformas-te um dia em cinzas (И замки мирового торга, // Где бедности сияют цепи, // С лицом злорадства и восторга // Ты обратишь однажды в пепел). Como se costuma dizer, no comments.
  4. A internet e a televisão – no ensaio-utópico Rádio do Futuro (Радио будущего), de 1921, o poeta descreve a internet, apenas lhe dá outro nome, embora o segundo nome da internet, world wide web, tenha sido adivinhado correctamente, bem como a televisão, chamada "rádio para os olhos".
Além disso, Khlebnikov avisou, em 1921, a data da sua morte: recordando Púchkin, o poeta disse que "as pessoas do meu ofício morrem frequentemente aos 37 anos". Ele morreu a 28 de Junho de 1922. Foi ele quem escreveu os mais sublimes versos sobre a morte: Quando morrem os cavalos – respiram, // Quando morrem as ervas – secam, // Quando morrem os sóis – eles apagam-se, // Quando morrem as pessoas – cantam canções (Когда умирают кони — дышат, // Когда умирают травы — сохнут, // Когда умирают солнца — они гаснут, // Когда умирают люди — поют песни).
O poeta também determinou a data exacta da revolução: na última página da colectânea poéticaUma bofetada no gosto do público estava impressa uma tabela compilada por si, Olhar para o ano de 1917 (Взор на 1917 год), na qual expunha as datas da queda dos grandes estados do passado. No mesmo ano, no seu folheto Professor e Aluno, onde apresentou os cálculos das "leis do tempo", ele previu "(…) em 1917 a queda do estado", tendo em vista o fim do Império Russo.
Khlébnikov apoiou a revolução e os bolcheviques não por razões ideológicas, ele achava que um novo sistema estatal levaria ao surgimento de uma nova humanidade com a qual o poeta sonhava. Os acontecimentos revolucionários foram entendidos como uma vingança popular, devido a séculos de opressão, e como um caminho para a humanidade manifestar a sua livre vontade (Outubro no Neva / Октябрь на Неве, Presente / Настоящее, A Noite antes dos Sovietes / Ночь перед Советами). Depois da revolução de Outubro de 1917, trabalhou nos órgãos de propaganda e de educação em Astrakhan, Piatigorsk e Baku, e participou na campanha do Exército Vermelho no norte do Irão. No entanto, os novos poderes da Rússia trataram a obra do poeta com indiferença, considerando-o um representante da arte decadente burguesa.
Em Dezembro de 1921, o poeta regressou a Moscovo. A atmosfera da Nova Política Económica(NEP), à qual ele foi parar, com a sua essência mercantil, parecia profundamente alheia à natureza de Khlébnikov. Este não era, de todo, o mundo do futuro com o qual ele havia sonhado. O futurista Khlébnikov, que dividiu a humanidade em "inventores" e "adquiridores" (declaração O trompete dos marcianos / Труба марсиан, de 1916), considerava que o estado do futuro, que se criaria "em nome da realização em vida de altos princípios 'contra o dinheiro'", exclui a civilização do mercantilismo mundial – "A liberdade vem nua”.
Velimir Khlébnikov viveu os seus últimos anos na miséria, gravemente doente e passando fome. O poeta morreu na aldeia de Santalovo, na província de Novgorod, para onde fora descansar e recuperar força. Khlébnikov foi sepultado no cemitério da aldeia. No seu caixão encontra-se a inscrição "Presidente do Globo Terrestre". Em 1960, os restos mortais de Khlébnikov foram transladados para o cemitério de Novodevitchi, em Moscovo, junto aos restos de sua mãe e irmã.
Velimir Khlébnikov (Велимир Хлебников)
Khlébnikov sempre viveu mal. Era solitário, fechado e pouco prático, vivia na pobreza e não tinha abrigo. Maiakovski admirava sua indiferença para com a riqueza e proveitos materiais, que assumia um carácter de "devoção e martírio pela ideia poética". Os bens de Klébnikov cabiam dentro de um saco, no qual eram colocados os manuscritos acumulados. Além de papéis, o saco continha alguns pedaços de pão e caixas de tabaco partidas. À noite, o saco servia frequentemente de almofada. Khlébnikov escreveu muito, adorava quando o publicavam, mas não fazia nada de especial por isso. Quando lhe davam as suas obras para ele corrigir, o poeta começava a escrever tudo de novo: era aborrecido para ele corrigir o que escrevera, ele conseguia apenas criar coisas novas. Os seus versos eram habitualmente preparados e entregues para publicação pelos amigos. A maior parte das suas obras não foi publicada em vida.
Apenas após a morte de Klébnikov começou o aproveitamento das suas descobertas poéticas, baseadas no pensamento figurativo e associativo. Em 1923, em Moscovo, foi editado um livro de versos do poeta. Em 1925, Kruchónykh editou o Caderno de Notas de Velimir Khlébnikov (Записную книжку Велимира Хлебникова); em 1928-1933, há uma tentativa de publicar toda a sua obra – Colectânea de Obras de Velimir Khlébnikov (Собрание произведений Велимира Хлебникова); em 1936, é publicado o livro Versos Escolhidos (Избранные стихотворения); depois, em 1940, na pequena série da «Biblioteca do Poeta», foi editada a colectânea Velimir Khlébnikov. Poesias (Велимир Хлебников. Стихотворения); e, em 1960,Velimir Khlébnikov. Versos e poemas (Велимир Хлебников. Стихи и поэмы). Desde 1984, a obra de Khlébnikov começou a ser republicada quase todos os anos. Em 1993, foi inaugurado o museu do poeta na cidade de Astrakhan.
- por Vladimir I. Pliassov
:: Fonte: Universidade de Coimbra © 2014


OBRA DE VIELIMIR KHLÉBNIKOV
Vielimir Khlébnikov - auto-retrato 1909
Poesia
:: Poemas de Khlébnikov. [introdução, tradução e notas de Marco Lucchesi; prefácio de Antonio Carlos Villaça; 'orelhas' de Fernando Py]. Edição bilíngue. Niterói: Cromos, 1993.
:: Eu e a Russia: poemas de Khliébnikov. [organização e tradução Marco Lucchesi; ilustrações Rita Solieri]. São Paulo: Editora Bem-Te-Vi, 2004;  2014.


Conto
:: Ka - Velimir Khlebnikov. [tradução Aurora Fornoni Bernardini]. Coleção Signos, 5. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.

Antologias (participação)
:: Poesia russa moderna. [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; São Paulo: Brasiliense, 1985; Edição ampliada. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001; 2012.
:: Folhetim: poemas traduzidos. [apresentação de Matinas Suzuki Jr.; vários tradutores]. São Paulo: Editora da Folha, 1987.
:: Poemas russos. [Organização Mariana Pithon e Nathalia Campos, vários tradutores]. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011.
.


Vielimir Khlébnikov
poemas de vielimir khlébnikov (edição bilíngue)
Tempos-juncos       
          Na margem do lago, 
Onde as pedras são tempo, 
Onde o tempo é de pedra.        
          No lago da margem, 
Tempos, juncos, 
Na margem do lago,        
          Santos, juntos.

1908 ou 1909

.

Времыши-камыши

      На озера береге,
Где каменья временем,
Где время каменьем.
      На берега озере
Времыши, камыши,
На озера береге
     Священно шумящие.

[1908-1909]

- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§


Encantação pelo riso

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!

1910

.

Заклятие смехом

                              Op. 2.

О, рассмейтесь, смехачи!

О, засмейтесь, смехачи!
Что смеются смехами, что смеянствуют смеяльно,
О, засмейтесь усмеяльно!
О, рассмешищ надсмеяльных — смех усмейных смехачей!
О, иссмейся рассмеяльно, смех надсмейных смеячей!
Смейево, смейево!
Усмей, осмей, смешики, смешики!
         Смеюнчики, смеюнчики.
О, рассмейтесь, смехачи!
О, засмейтесь, смехачи!

[1910]

- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

O grilo
Aleteando com a ourografia
Das veias finíssimas
O grilo
Enche o grill do ventre-silo
Com muitas gramas e talos de ribeira.
– Pin, pin, pin! – taramela o zinziber*.
Oh, cisnencanto!
Oh, ilumínios!

1908 ou 1909

.

Кузнечик
Крылышкуя золотописьмом
Тончайших жил,
Кузнечик в кузов пуза уложил
Прибрежных много трав и вер.
"Пинь, пинь, пинь!" - тарарахнул зинзивер.
О, лебедиво!
О, озари!

[1908-1909]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos e Boris Schnaiderman}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
Do russo zinziver. Segundo nota do autor, passarinho que habita margens de rio.

§


Elefantes batiam-se a golpes de marfim: 

pareciam talhados na pedra branca. 
Cervos entrecruzavam seus galhos: 
pareciam travados por antigas núpcias 
em mútua paixão e mútua infidelidade. 
Rios desaguavam no mar: 
o braço de um afogava o colo do outro.

1911

.

Слоны бились бивнями так,

Что казались белым камнем 
Под рукой художника. 
Олени заплетались рогами так, 
Что казалось, их соединял старинный брак 
С взаимными увлечениями и взаимной неверностью. 
Реки вливались в море так, 
Что казалось: рука одного душит шею другого.

[1911]

- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

Bobeóbi cantar de lábios,
Lheeómi cantar de olhos,
Cieeo cantar de cílios,
Stioeei cantar do rosto
Gri-gsi-gseo o grilhão cantante.
Assim no bastidor dessas correspondências
Transespaço vivia o Semblante.

1912
.

Бобэоби пелись губы,
Вээоми пелись взоры,
Пиээо пелись брови,
Лиэээй - пелся облик,
Гзи-гзи-гзэо пелась цепь.
Так на холсте каких-то соответствий
Вне протяжения жило Лицо.

[1912]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

O CAVALO DE PRJEVÁLSKI *
Perseguido - Por alguém? Que sei? Não cuido.
Pela pergunta: uma vida, ... e beijos, quantos?
Pela romena, dileta do Danúbio,
E a polonesa, que os anos circuncantam.
- Fujo pata brenhas, penedias, gretas,
Vivo entre os pássaros, álacre alarido.
Feixe-de-neve é o revérbero de aletas
De asas que brilharam para os inimigos.
Eis que se avistam as rodas dos fadários,
Zunido horrível para a grei sonolenta.
Mas eu voava como roca estelária
Por ígneas, não nossas, ignotas sendas.
E quando eu tombava próximo da aurora
Os homens no espanto mudavam a face,
Estes suplicavam que eu me fosse embora,
Outros me rogando: que eu iluminasse.
Para o sal, para as estepes, onde os touros
Pastam balouçando chifres cor de treva,
E para o norte, para além, onde os troncos
Cantam como arcos de cordas retesas,
Coroado de coriscos o demônio
Voava, gênio branco, retorcendo a barba.
Ele ouve os uivos de hirsutas carantonhas
E o repicar das frigideiras de alarma.
"Sou corvo branco - dizia - e solitário,
Porém tudo, o lastro negro dos dilemas,
A alvinitente coroa de meus raios,
Tudo eu relego por um fantasma apenas:
Voar, voar, para os páramos de prata,
Ser mensageiro do bem, núncio da graça."

Junto ao poço se estilhaça
A água, para que os couros
Do arreio, na poça escassa,
Reflitam-se com seus ouros.
Correndo, cobra solerte,
O olho-d'água e o arroio
Gostariam, pouco a pouco,
De fugir e dissolver-se.
Que assim, tomadas a custo,
As botas de olhos escuros
Dela, ficassem mais verdes.
Arrolos, langor, desmaios,
A vergonha com seu tisne,
Janela, isbá, dos três lados
Ululam rebanhos pingues.
Na vara, baldes e flor,
No rio azul uma balsa.
"Toma este lenço de cor,
Minha algibeira está farta."

"Quem é ele? Que deseja?
Dedos rudes, mãos de fera!
É de mim que ele moteja
Rente à choupana paterna?
Que respondo, que contesto,
Ao moço dos olhos negros?
Cirandam dúvidas lestas!
E ao pai, direi meu segredo?"
'`É minha sina! Me abraso!"
Por que buscamos, com lábios,
O pó, varrido das tumbas,
Apagar nas chamas rubras?

Eis que para os píncaros extremos
Ergo vôo como o abutre, sinistro:
Com mirada senil considero o bulício terreno
Que, naquele instante, eu diviso.

1912
.

КОНЬ ПРЖЕВАЛЬСКОГО
Гонимый кем - почем я знаю?
Вопросом поцелуев в жизни сколько?
Румынкой, дочерью Дуная,
Иль песнью лет про прелесть польки,
Бегу в леса, ущелья, пропасти
И там живу сквозь птичий гам
Как снежный сноп сияют лопасти
Крыла сверкавшего врагам.

Судеб виднеются колеса
С ужасным сонным людям свистом.
И я как камень неба несся
Путем не нашим и огнистым
Люди изумленно изменяли лица
Когда я падал у зари.
Одни просили удалиться
А те молили: озари
Над юга степью, где волы
Качают черные рога,
Туда, на север, где стволы
Поют как с струнами дуга,
С венком из молний белый черт
Летел, крутя власы бородки:
Он слышит вой власатых морд
И слышит бой в сквородки.
Он говорил: "Я белый ворон, я одинок,
Но все и черную сомнений ношу
И белой молнии венок
Я за один лишь призрак брошу,
Взлететь в страну из серебра,
Стать звонким вестником добра".
У колодца расколоться
Так хотела бы вода,
Чтоб в болотце с позолотцей
Отразились повода.

Мчась как узкая змея
Так хотела бы струя,
Так хотела бы водица,
Убегать и расходиться,

Чтоб ценой работы добыты,
Зеленее стали чоботы,
Черноглазые, ея.
Шопот, ропот, неги стон,
Краска темная стыда
Окна, избы, с трех сторон,
Воют сытые стада.
В коромысле есть цветочек,
А на речке синей челн.
"На возьми другой платочек,
 Кошелек мой туго полн".
"Кто он, кто он, что он хочет,
Руки дики и грубы!
Надо мною ли хохочет
Близко тятькиной избы".
"Или? или я отвечу
Чернооку молодцу,
О сомнений быстрых вече,
Что пожалуюсь отцу?
Ах юдоль моя гореть!"

Но зачем устами ищем,
Пыль гонимую кладбищем,
Знойным пламенем стереть?
И в этот миг к пределам горшим
Летел я сумрачный как коршун.
Воззреньем старческим глядя на вид земных шумих.
Тогда в тот миг увидел их.

[1912]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
Este título, que se consagrou, parece que não foi dado pelo poeta, mas pelo seu amigo David Burliuk. Segundo informação da Enciclopédia Britânica, o cavalo de Prjeválski é a única espécie conhecida de cavalo selvagem; foi descoberto por M. M. Prjeválski, explorador russo da Ásia Central.

§

Quando morrem, os cavalos – respiram,
Quando morrem, as ervas – secam,
Quando morrem, os sóis – se apagam,
Quando morrem, os homens – cantam.

1913
.

Когда умирают кони — дышат,
Когда умирают травы — сохнут,
Когда умирают солнца — они гаснут,
Когда умирают люди — поют песни.

[1913]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

Eis-me levado em dorso elefantino,
Palanquim no elefante virgem-fúmeo.
Todas-me-amando, novo Vixnu,
Tramam, miragem nívea, o palanquim.

Músculos de elefante, balançai,
Armadilhas de caça, magníficas,
Para que sobre a terra a que descai
Agora tombe em tromba de carícias.

Brancas miragens, vós, com manchas negras,
Mais brancas do que a flor da cerejeira.
Vossas formas fremindo estão retesas
E flexíveis como plantas da treva.

Eu, no elefante branco, Bodhisattva,
Vou como antes, tenro, pensativo.
A virgem que me vê responde grata
Com flamas que são feitas de sorrisos.

Sabei que ser o peso elefantino
Jamais, em parte alguma, foi vergonha.
Trançai-vos em cerrado palanquim
Ó vós, enfeitiçadas pelo sonho.

Difícil imitar a pata larga.
Difícil ser o dente no seu curvo.
Cantos, coroas, santo som da flauta:
Conosco, sobre nós, o Olhiazul.

1913 (?) *
.

Меня проносят <на> <слоно>вых
Носилках — слон девицедымный.
Меня все любят — Вишну новый,
Сплетя носилок призрак зимний.

Вы, мышцы слона, не затем ли
Повиснули в сказочных ловах,
Чтобы ласково лилась на земли,
Та падала, ласковый хобот.

Вы, белые призраки с черным,
Белее, белее вишенья,
Трепещ<е>те станом упорным,
Гибки, как ночные растения.

А я, Бодисатва на белом слоне,
Как раньше, задумчив и гибок.
Увидев то, дева ответ<ила> мне
Огнем благодарных улыбок.

Узнайте, что быть <тяжелым> слоном
Нигде, никогда не бесчестно.
И вы, зачарован<ы> сном,
Сплетайтесь носилками тесно.
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
* Texto encontrado entre os rascunhos do poeta e estabelecido por N. Khárdjiev. Escrito provavelmente em 1913, sob a inspiração de uma miniatura indiana antiga, foi publicado somente em 1940, num livro de inéditos do poeta. O cineasta S. M. Eisenstein, que não poderia ter conhecido esses versos, impressionado com a mesma miniatura, reproduziu-a, com um comentário, em seu ensaio Montagem 1937, editado postumamente em 1964.

§

Hoje de novo sigo a senda
Para a vida, o varejo, a venda,
E guio as hostes da poesia
Contra a maré da mercadoria.

1914
.

Сегодня снова я пойду
Туда, на жизнь, на торг, на рынок,
И войско песен поведу
С прибоем рынка в поединок!

[1914]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

Herdades noturnas, gengiscantem!
Crepitai, bétulas azuis!
Albas da noite, zaraturvem
Ao céu cerúleo mozarteante!
Goyam trevas como nuvens!
Roops* é um cirro soturno!
Voa uma tromba de  risos,
Enfrento firme o verdugo,
Gargalham garras de gritos,
E em torno o silêncio escuro.
A mim convoco os valentes,
Saem dos rios os afogados,
O miosótis, estridente,
Declama a velames pardos,
Gira o eixo cotidiano,
Move-se a massa vespertina,
Nas águas da noite vogando
(Sonho) uma carpa-menina.
Mamáj** – pinhos ao vento!
Nuvens nômades de Báti!***
Como cains do silêncio
Palavras santas se abatem.
Passo tardo, cercado de tropas,
Asdrúbal azul vai ao baile das rochas.

1916
.

Усадьба ночью, чингисхань!
Шумите, синие березы.
Заря ночная, заратустрь!
А небо синее, моцарть!
И, сумрак облака, будь Гойя!
Ты ночью, облако, роопсь!
Но смерч улыбок пролетел лишь,
Когтями криков хохоча,
Тогда я видел палача
И озирал ночную, смел, тишь.
И вас я вызвал, смелоликих,
Вернул утопленниц из рек.
"Их незабудка громче крика",-
Ночному парусу изрек.
Еще плеснула сутки ось,
Идет вечерняя громада.
Мне снилась девушка-лосось
В волнах ночного водопада.
Пусть сосны бурей омамаены
И тучи движутся Батыя,
Идут слова, молчаний Каины, -
И эти падают святые.
И тяжкой походкой на каменный бал
С дружиною шел голубой Газдрубал.

[1916]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
O pintor e gravador belga Félicien Roops.
** O cã tártaro Mamáj (ou Mamai), cujo exército foi derrotado pelos russos no campo de Kulikovo. Essa batalha marcou o início da libertação da Rússia do jugo tártaro.
*** Cã mongólico, fundador da Horda de Ouro; invadiu a Rússia em 1236.

§

Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas – redes; nós – os peixes;
Visões da treva – os deuses.

1916 (?)

Годы, люди и народы
Убегают навсегда,
Как текучая вода.
В гибком зеркале природы
Звезды - невод, рыбы - мы,
Боги - призраки у тьмы.

[1916]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

Neste dia de ursos cerúleos
a correr sobre cílios tranqüilos
transvejo para além da água azul
o acordar na taça das pupilas.

Na colher de prata de olhos latos
vejo a procelária em mar sonoro
e ao largo vai a Rússia dos pássaros
transvoando entrecílios ignotos.

Marventoso em celamor soçobra
a vela de alguém na azul esfera,
e eis que o desespero tudo engolfa
trovão e porvir de primavera.

1918
.

В этот день голубых медведей,
Пробежавших по тихим ресницам,
Я провижу за синей водой
В чаше глаз приказанье проснуться.

На серебряной ложке протянутых глаз
Мне протянуто море и на нем буревестник;
И к шумящему морю, вижу, птичая Русь
Меж ресниц пролетит неизвестных.

Но моряной любес опрокинут
Чей-то парус в воде кругло-синей,
Но зато в безнадежное канут
Первый гром и путь дальше весенний.

[1918]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

Uma vez mais, uma vez mais
Sou para você
Uma estrela.
Ai do marujo que tomar
O ângulo errado de marear
Por uma estrela:
Ele se despedaçará nas rochas,
Nos bancos sob o mar.
Ai de você, por tomar
O ângulo errado de amar
Comigo: você
Vai se despedaçar nas rochas
E as rochas hão de rir
Por fim
Como você riu
De mim.

1919-1921
.

Еще раз, еще раз,
Я для вас
Звезда.
Горе моряку, взявшему
Неверный угол своей ладьи
И звезды:
Он разобьется о камни,
О подводные мели.
Горе и вам, взявшим
Неверный угол сердца ко мне:
Вы разобьетесь о камни,
И камни будут надсмехаться
Над вами,
Как вы надсмехались
Надо мной.

[1919-1921]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

Vento ― canção.
De quem? De quê?
Tensão
Da espada por ser esfera.
Gente acalenta o dia do fim
Como flor de estufa.
Nas cordas dos gigantes ― creiam ―
Agora rufa o Oriente.
Talvez um orgulho novo
Nos dê o mago das montanhas
E, guia do povo,
Vestirei a razão
Como geleira branca.

1920
.

Ветер — пение.
Кого и о чем?
Нетерпение
Мяча быть мячом.
Люди лелеют день смерти,
Точно любимый цветок.
В струны великих, поверьте,
Ныне играет Восток.
Быть может, нам новую гордость
Волшебник сияющих гор даст,
И, многих людей проводник,
Я разум одену, как белый ледник.

1920
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos e Boris Schnaiderman}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

O ÚNICO LIVRO
Vi que os negros Vedas,
o Evangelho e o Alcorão,
mais os livros dos mongóis
em suas tábuas de seda
- como as mulheres calmucas todas as manhãs -
ergueram juntos uma pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores que o mar
tremem como asas de borboletas safira,
e há um marcador de seda
no ponto onde o leitor parou os olhos.
Os grandes rios com sua torrente azul:
- o Volga, onde á noite celebram Rázin;
- o Nilo amarelo, onde imprecam ao Sol;
- o Yang-tze-kiang, onde há um denso lodo humano;
- e tu, Mississípi, onde os ianques
trajam calças de céu estrelado,
enrolando as pernas nas estrelas;
- e o Ganges, onde a gente escura são árvores de ciência;
- e o Danúbio, onde em branco homens brancos
de camisa branca pairam sobre a água;
- e o Zambeze, onde a gente é mais negra que uma bota;
- e o fogoso Obi, onde espancam o deus
e o voltam de olhos para a parede
quando comem iguarias gordurosas;
- e o Tâmisa, no seu tédio cinza.
O gênero humano é o leitor do livro.
Na capa, o timbre do artífice -
meu nome, em caracteres azuis.
Porém tu lês levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo, nada levas a sério.
Logo estarás lendo com fluência
- lições de uma lei divina -
estas cadeias de montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta a baleia
quando a águia dobrando a página no canto
desce sobre as ondas, mamas do mar,
e repousa no leito do falcão marinho.

1920
.

ЕДИНАЯ КНИГА
Я видел, что черные Веды,
Коран и Евангелие
И в шелковых досках
Книги монголов
Сами из праха степей,
Из кизяка благовонного,
Как это делают
Калмычки каждое утро,
Сложили костер
И сами легли на него,
Белые вдовы,
В облаке дыма закрыты,
Чтобы ускорить приход
Книги единой.
Эту единую книгу
Скоро вы, скоро прочтете.
Белым блещут моря
В мертвых ребрах китов.
Священное пение, дикий, но правильный голос.
А синие реки - закладки,
Где читает читатель,
Где остановка читающих глаз.
Это реки великие -
Волга, где Разину ночью поют,
И зажигают на лодках огни,
Желтый Нил, где молятся солнцу,
Янтцекиянг, где жижа густая людей,
И Сена, где продаются темноглазые жены,
И Дунай, где ночами блестят
Белые люди на волнах, на лодках
В белых рубахах,
Темза, где серая скука и здания - боги для толп,
Хмурая Обь, где бога секут по вечерам
И пляшут перед медведем с железным кольцом на белой шее,
Раньше чем сьесть целым племенем,
И Миссисипи, где люди одели штанами звездное небо
И носят лоскут его на палках.
Род человечества - книги читатель,
И на обложке надпись творца,
Имя мое, письмена голубые.
Да, ты небрежно читаешь,
Больше внимания!
Слишком рассеян и смотришь лентяем.
Точно урок Закона Божьего,
Эти снежные горные цепи и большие моря.
Эту единую книгу
Скоро ты, скоро прочтешь.
В этих страницах прыгает кит,
И орел, огибая страницу угла,
Садится на волны морские,
Чтоб отдохнуть на постели орлана

1920
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

LOUVAÇÃO DO ELE
Quando o vasto peso dos barcos
Vazava sobre o peito,
Dizíamos: é o laço
Na cerviz dos barqueiros.
Quando a fúria das pedras rápidas 
Lançava-se, folhas, no vale,
Dizíamos: é o levante
Das lápides, avalancha, 
Quando o baque das ondas espadanava a morsa,
Dizíamos: são látegos.
Quando o caçador, esquis noturnos,
Deixava uma pista sobre o gelo,
Dizíamos: são listras.
Quando a onda lambio o remo
Levando o fardo do homem,
Dizíamos: é o leme.
Quando o alce detinha os cascos
Largos na vaza do pântano,
Dizíamos: é a lama.
Galhos amplos, rena e gamo?
Dizíamos: líquenes, lianas.
Atrás do navio rascante
Vi a hélice – curva lâmina –
Pulsando as águas em ritmo: 
E o raio, caindo n`água, esquecia o abismo.
Quando a placa na cota de malha
Parava as fechas e a lança,
Dizíamos: é a liça.
Quando a folha das flores, lisa,
Leva num lance a luz que libra,
Dizíamos: folha longilínea.
Quando as folhas se multiplicam,
Dizemos: selva, labirinto.
Quando a andorinha, asa longa,
Brilha qual poça lazúli
E toda líquida a ave se alaga
Lábil na folha que a equilibra,
Dizemos: é livre,
E o olho impostor lucila.
Quando no leito me largo,
Verde lençol, leiva ou lomba,
Sou lenho ao léu, levitando,
E o langor meu corpo toma. 
Langue, lasso, lenho ao léu 
– Lento lazer – Quem sou eu?
Quando os dedos nas mãos sem luvas
Fundiam-se à brisa breve,
Dizíamos: o alísio não lufa.
Quando a água virava ardósia,
Chão de espelho, todo gelo,
Dizíamos: é a lousa.
O gelo é uma água de louça.
Quem quando corre não leva
O corpo deitado, mas em pé,
É gente: láurea?  labéu?
Na água a colher, não a língua. 
Vindiço entre as feras, único,
Reta coluna feito olmo,
Não como a dos bichos todos.
Bípede ereto, bicho-homem,
Teu nome a húmus se liga.
Onde os dedos se espalmam em lago,
Dizemos: gesto largo.
Quando somos leves, levitamos.
Quando – flama, ama – somos leves, louvamos.
Humanos, amamos. Libanos, libramos.
ELE – são Lolas, Lélias.
Se elevam pontos, lufando,
ELE – raio na balança,
Mastro de barco, lastro.
Listra de chuva e laguna.
ElE – pênsil ponto que se lança
Detido por um lhamo
Plaino.
No amor flama um nome
E o lema: “ama os homens”.
Homem, lembra: teu nome, teu lema.
Mãe. Lagrimas de chuva.
Criança. Água de lagoa.
Energia motriz que míngua
De encontro à superfície 
Lisa.
Eis o sistema que impele
Caladas.
As forças do ELE.

1920
.

СЛОВО О ЭЛЬ
Когда судов широкий вес
Был пролит на груди,
Мы говорили: видишь, лямка
На шее бурлака.
Когда камней бесился бег,
Листом в долину упадая,
Мы говорили — то лавина.
Когда плеск волн, удар в моржа,
Мы говорили — это ласты.
Когда зимой снега хранили
Шаги ночные зверолова,
Мы говорили — это лыжи.
Когда волна лелеет челн
И носит ношу человека,
Мы говорили — это лодка.
Когда широкое копыто
В болотной топи держит лося,
Мы говорили — это лапа.
И про широкие рога
Мы говорили — лось и лань.
Через осипший пароход
Я увидал кривую лопасть:
Она толкала тяжесть вод,
И луч воды забыл, где пропасть.
Когда доска на груди воина
Ловила копья и стрелу,
Мы говорили — это латы.
Когда цветов широкий лист
Облавой ловит лет луча,
Мы говорим — протяжный лист.
Когда умножены листы,
Мы говорили — это лес.
Когда у ласточек протяжное перо
Блеснет, как лужа ливня синего,
И птица льется лужей ноши,
И лег на лист летуньи вес,
Мы говорим — она летает,
Блистая глазом самозванки.
Когда лежу я на лежанке,
На ложе лога на лугу,
Я сам из тела сделал лодку,
И лень на тело упадает.
Ленивец, лодырь или лодка, кто я?
И здесь и там пролита лень.
Когда в ладонь сливались пальцы,
Когда не движет легот листья,
Мы говорили — слабый ветер.
Когда вода — широкий камень,
Широкий пол из снега,
Мы говорили — это лед.
Лед — белый лист воды.
Кто не лежит во время бега
Звериным телом, но стоит,
Ему названье дали — люд.
Мы воду черпаем из ложки.
Он одинок, он выскочка зверей,
Его хребет стоит, как тополь,
А не лежит хребтом зверей.
Прямостоячее двуногое,
Тебя назвали через люд.
Где лужей пролилися пальцы,
Мы говорили — то ладонь.
Когда мы легки, мы летим.
Когда с людьми мы, люди, легки, — 
Любим. Любимые — людимы.
Эль — это легкие Лели,
Точек возвышенный ливень,
Эль — это луч весовой,
Воткнутый в площадь ладьи.
Нить ливня и лужа.
Эль — путь точки с высоты,
Остановленный широкой
Плоскостью.
В любви сокрыт приказ
Любить людей,
И люди — те, кого любить должны мы.
Матери ливнем любимец — 
Лужа-дитя.
Если шириною площади остановлена точка — это Эль.
Сила движения, уменьшенная
Площадью приложения, — это Эль.
Таков силовой прибор,
Скрытый за Эль.

Начало 1920
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

Vielimir Khlébnikov, por Nikolai Kulbin (1913)
DE O PRESENTE
VOZES E CANTOS DA RUA

Tzares, tzares tremiam,
Tzares, tzares tremem!
Para o ô
Para o oco da foice 
Patrões, 
Para o ô,
Para o oco
Patrões,
Para o ô,
Para o oco
Tzares, 
O tzar,
O tzar,
O povo,
O pó,
O povo,
Ferreiro;
Malha,
Malhador.
A rou,
A roupa
Rapa
Dos patrões,
Para o ô, para o ô, os tzares
Rapa
E põe
O povo.
Malha,
Malhador,
Os tza
Os tzares
Para o oco,
E que se dani
Fiquem
Na Sibé,
Na Sibéria lá nos mon,
Nos montí, 
Tículos brancos de neve.
Patrões, patrões põe
Põe, põe,
Povo,
Põe,
Põe,
Povo,
Põe o tzar branco,
Põe o tzar branco!
O tzar branco!
O tzar branco!
– O tzar!
E nós? – E nós olhamos, e nós, nós olhamos!
Tzares, tzares tremem!
Eles tremem, tremem!

                  O grão-duque
O quê? É agora?
(Olha para o relógio)

Sim, está na hora!

Novembro 1921
.

НАСТОЯЩЕЕ
ГОЛОСА И ПЕСНИ УЛИЦЫ

Цари, цари дрожали,
Цари, цари дрожат!
На о
На о́бух
Господ,
На о,
На о́бух
Господ,
На о,
На о́бух
Царей,
Царя,
Царя́,
Народ,
Наро,
Наро́д,
Кузнец,
Моло́,
Молотобоец.
Наро́,
Народ,
Бере́т,
Бере́
Берет
Господ,
На о, на о царей
Берет,
Кладет
Народ,
Моло́,
Моло́тобоец
Царе́
Царей
На обух,
Пусть ус
Споко́ятся
В Сиби́,
В Сибирских су,
Сугро,
Сугробах белых.
Господ, господ кладет,
Кладет, кладет
Народ,
Кладет,
Кладет
Народ,
Кладет белого царя,
Кладет белого царя! Белого царя!
Белого царя!
— Царя!
А мы! — А мы глядим, а мы, а мы глядим!
Цари, цари дрожат!
Они, они дрожат!
Великий князь

Что? Уже начинается?
(Смотрит на часы.)

Да, уже пора!

Ноябрь 1921
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos e Boris Schnaiderman}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

§

CONFISSÃO
(ESTILO RUDE)

Não, isto não é brincadeira!
Flores não têm olho vivo.
É destino. É destino.
Ve-Ve*, Maiakóvski! – Eu e você,
Nós, como se dizer em sovietês,
Balbuciamos num único bagulho?
Em re-so-fe-so-ru**,
No tatibitate do tatibicionário?
Fale francamente:
Kham!***
Sejamos orgulhosos ambos
Da severa sorte do som.
Restaremos os dois, de pé,
Junto à árvore do silêncio,
Ensopados de assobios.
Aos turcos da dúvida
Enxotaremos
Como Jan Sobieski****
Os enxotou de Viena.
Reis de ferro,
As coroas de ferro
De Cam
Pesadamente poremos na cabeça.
E – abram-se os sabres!
Das baínhas de antanho – luzam,
Reluzam!
Jazei, dias de paz!
Psst!
Jazei, velhas jeremiadas, Mierejkóvski.
Ele gemia, pai da nossa gentileza.
Os sons são 
Os instigadores da vida.
Responderemos orgulhosamente 
Com cantos loucos
À face do céu.
Sim, o vindouro
Não é um Cão, mas nós ambos. 
Construiremos rudes vigas
Sobre o enxame dos humanos
.
Início de 1922
.

ПРИЗНАНИЕ
КОРЯВЫЙ СЛОГ

Нет, это не шутка!
Не остроглазья цветы.
Это рок. Это рок.
Вэ-Вэ, Маяковский! — Я и ты,
Нас как сказать по-советски,
Вымолвить вместе в одном барахле?
По Рософесорэ,
На скороговорок скорословаре?
Скажи откровенно:
Хам!
Будем гордиться вдвоем
Строгою звука судьбой.
Будем двое стоять у дерева молчания,
Вымокнем в свисте.
Турок сомненья
Отгоним Собеским
Яном от Вены.
Железные цари,
Железные венцы
Хама
Тяжко наденем на голову,
И — шашки наголо!
Из ножен прошедшего — блесните, блесните!
Дни мира, усните,
Цыц!
Старые провопли, Мережковским усните,
Рыдал он папашей нежности нашей.
Звуки — зачинщики жизни.
Мы гордо ответим
Песней сумасшедшей
В лоб небесам.
Да, но пришедший
И не Хам, а Сам.
Грубые бревна построим
Над человеческим роем.

Начало 1922
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Augusto de Campos}, em "Poesia Russa Moderna' [Traduções Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman]. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
Ve-Ve. Iniciais do nome de Maiakóvski (Vladímir Viadímirovitch e dos prenomes dos dois poetas (Vielimir Vladímir).
** Re-so-fe-so-ru. Abreviação de República Socialista Federativa Soviética.
*** Kham. A palavra, que contém as iniciais de Khlébnikov e Maiakóvski, significa eu russo “grosseiro”, “canalha”, “pessoa rude”. É também nome próprio: o nome bíblico do filho de Noé (em português, Cam ou Cão), amaldiçoado pelo patriarca por ter contemplado sua nudez e escarnecido dela. Khlébnikov faz alusão ao livro “Griadúschi Kham” (O Kham Vindouro), publicado em 1906 por Dmítri Mierejkóvski (1865-1941), literato russo ligado aos círculos místico-filosóficos da época. Rompendo com o regime comunista, Mierejkóvski se exilou, em 1917, em Paris, onde veio a morrer. No livro citado, ele profetizava a vitória do populacho, da canalha, na qual incluía os “futuristas”. Em “Kham” ele vislumbrava a alegria de um novo “Anticristo”, um “escravo reinante”, um falso rei que dominava o mundo. As “profecias” apocalípticas de Mierejkóvski eram objeto de sarcasmo dos cubofuturistas como Maiakóvski e Krutchônikh e, como se vê, do próprio Khlébnikov, que, por sua vez profético, assume a “coroa de ferro” de Kham e a condivide com seu companheiro de lutas, Maiakóvski, em nome de todos os poetas, “presidentes do globo terrestre”.
**** Jan Sobieski. Soberano polaco que derrotou os turcos às portas de Viena (1683).

§

RECUSA
Agrada-me bem mais 
Olhar estrelas 
Do que assinar sentenças 
De morte. 
Agrada-me bem mais 
Ouvir a voz das flores 
Que, murmurando é ele, 
Meneiam as corolas 
Quando eu cruzo o jardim 
Do que ver os escuros 
Fuzis da guarda 
Matarem quantos querem 
Matar-me – 
Por isso eu não serei 
– jamais – um governante.

Janeiro-abril de 1922
.

ОТКАЗ
Мне гораздо приятнее
Смотреть на звезды,
Чем подписывать смертный приговор.
Мне гораздо приятнее 
Слушать голоса цветов,
Шепчущих "это он!",
Когда я прохожу по саду,
Чем видеть ружья,
Убивающих тех, кто хочет
Меня убить.
Вот почему я никогда,
Никогда
Не буду правителем!

[Январь-апрель 1922]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Boris Schnaiderman}, em "Poemas russos". [Organização Mariana Pithon e Nathalia Campos, vários tradutores]. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011.

§

Basta-me...
Basta-me um mínimo: 
lasca de pão, 
gota de leite 
e, céu acima, 
nuvens alvíssimas.

1912, 1922
.

Мне мало надо!
Краюшку хлеба
И капля молока.
Да это небо,
Да эти облака!

[1912 -1922]
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников).. {tradução Boris Schnaiderman e Nelson Ascher}, em "Poemas russos". [Organização Mariana Pithon e Nathalia Campos, vários tradutores]. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011.

§

EU E A RÚSSIA
A Rússia libertou milhares e milhares
Um gesto nobre! Um gesto inesquecível!
Mas eu tirei a camisa
e cada arranha-céu espelhado de meus cabelos,
cada ranhura
da cidade do corpo
expôs seus tapetes e tecidos de púrpura.
As cidadezinhas e os cidadãos
do Estado Mim
juntavam-se às janelas dos cabelos.
as olgas e os ígores,
não por imposição
mas para saudar o Sol, através da pele.
Caiu a prisão da camisa!
Nada mais fiz do que tirá-la.
Estava nu junto ao mar.
Dei Sol aos povos de Mim!
Assim eu libertava
milhares e milhares.
.

Я И РОССИЯ
Россия тысячам тысяч свободу дала.
Милое дело! Долго будут помнить про это.
А я снял рубаху,
И каждый зеркальный небоскреб моего волоса,
Каждая скважина
Города тела
Вывесила ковры и кумачовые ткани.
Гражданки и граждане
Меня — государства
Тысячеоконных кудрей толпились у окон.
Ольги и Игори,
Не по заказу
Радуясь солнцу, смотрели сквозь кожу.
Пала темница рубашки!
А я просто снял рубашку — 
Дал солнце народам Меня!
Голый стоял около моря.
Так я дарил народам свободу,
Толпам загара.

(1921)
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников), em "Poemas de Khlébnikov – Vielemir Khlébnikov". [introdução, tradução e notas de Marco Lucchesi; prefácio de Antonio Carlos Villaça; 'orelhas' de Fernando Py]. Edição bilíngue. Niterói: Cromos, 1993.

§

VERSOS A BLOK
Meninas, aquelas que passam
calçando botas de olhos negros,
nas flores de meu coração.
Meninas que pousam as lanças
no lago de suas pupilas
Meninas que lavam as pernas
no lago de minhas palavras.

(1921)
.

Девушки, те, что шагают
Сапогами черных глаз
По цветам моего сердца.
Девушки, опустившие копья
На озера своих ресниц.
Девушки, моющие ноги
В озере моих слов.

(1921)
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников), em "Poemas de Khlébnikov – Vielemir Khlébnikov".[introdução, tradução e notas de Marco Lucchesi; prefácio de Antonio Carlos Villaça; 'orelhas' de Fernando Py]. Edição bilíngue. Niterói: Cromos, 1993.

§

Os homens, quando amam,
Dão longos olhares
E longos suspiros.
As feras, quando amam,
Turvam os olhos,
Dando mordidas de espuma.
Os Sóis, quando amam,
Vestem a noite com tecidos de terra,
E dançam majestoso para a amada.
Os deuses, quando amam,
prendem o frêmito do cosmos,
como Púchkin – a chama de amor pela criada de Valkónski.

(1911)
.

Люди, когда они любят,
Делающие длинные взгляды
И испускающие длинные вздохи.
Звери, когда они любят,
Наливающие в глаза муть
И делающие удила из пены.
Солнца, когда они любят,
Закрывающие ночи тканью из земель
И шествующие с пляской к своему другу.
Боги, когда они любят,
Замыкающие в меру трепет вселенной,
Как Пушкин — жар любви горничной Волконского.

(1911)
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников), em "Poemas de Khlébnikov – Vielemir Khlébnikov". [introdução, tradução e notas de Marco Lucchesi; prefácio de Antonio Carlos Villaça; 'orelhas' de Fernando Py]. Edição bilíngue. Niterói: Cromos, 1993.

§

NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!, 
vestidos de animais, em suas peles, 
as mãos sobre carvalhos destroçados. 
Mostrais a união entre o serpear 
da espinha dorsal do universo e o bailado da balança. 
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes 
numa breve gargalhada. 
Meus olhos se arregalam intensamente. 
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.

(1912)
.

ЧИСЛА
Я всматриваюсь в вас, о, числа,
И вы мне видитесь одетыми в звери, в их шкурах,
Рукой опирающимися на вырванные дубы.
Вы даруете единство между змееобразным движением
Хребта вселенной и пляской коромысла,
Вы позволяете понимать века, как быстрого хохота зубы.
Мои сейчас вещеобразно разверзлися зеницы
Узнать, что будет Я, когда делимое его — единица.

(1912)
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников), em "Poemas de Khlébnikov – Vielemir Khlébnikov". [introdução, tradução e notas de Marco Lucchesi; prefácio de Antonio Carlos Villaça; 'orelhas' de Fernando Py]. Edição bilíngue. Niterói: Cromos, 1993.

Retrato de Khlebnikov, por Yuri Annenkov

FORTUNA CRÍTICA
BERNARDINI, Aurora Fornoni. O Sonho de Ka. in: Trans/Form/Ação vol. 2,  Marília  1975. Disponível no link. (acessado em 28.8.2016).
BERNARDINI, Aurora Fornoni. Poéticas do futurismo: russo e italiano. (Tese de Doutorado em Literatura Brasileira). Universidade de São Paulo, USP, 1973.
BERNARDINI, Aurora Fornoni. Materiais para o futurismo russo e italiano. (Dissertação Mestrado em Letras). Universidade de São Paulo, USP, 1970.
DICK, André. Khlébnikov: inventor de palavras. in: IHU/Unisinos. Disponível no link. (acessado em 17.8.2016).
FRANCISCO JÚNIOR, Mário Ramos. Zanguézi, de Vielimir Khlébnikov: a utopia da obra de arte como síntese perfeita do universo. (Tese Doutorado em Letras). Universidade de São Paulo, USP, 2008.
GAGLIANONE, Isabela. A linguagem labiríntica de Khlébnikov. in: O Benedito, 1 de dezembro de 2014. Disponível no link. (acessado em 28.8.2016).
RAMOS, Isaac Newton Almeida. O sol de Vielimir Khlébnikov. Revista Ecos (Cáceres), v. 11, p. 49-59, 2011.


Desenho de Vielimir Khlebnikov

Boris Grigoriev e Khliébnikov (1916)

“[…] Ka é a sombra da alma, seu sósia, enviado para junto daquelas pessoas, com que sonha o senhor roncador. Para ele não há barreiras no tempo; Ka vai de sonho em sonho, atravessa o tempo e alcança os bronzes (os bronzes dos tempos).
Aconchega-se comodamente nos séculos, como numa cadeira de balanço. Não é acaso verdade que também a consciência reúne os tempos juntos, como a poltrona e as cadeiras na sala de visitas?”
- Vielimir Khlébnikov (Велимир Хлебников), em "Ka - Velimir Khlebnikov". [tradução Aurora Fornoni Bernardini]. Coleção Signos, 5. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.


Vielimir Khlébnikov
Mais poemas de Velimir Khlébnikov 
:: Zunái - Revista de poesia & debates


© Obra em domínio público

© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske em colaboração com José Alexandre da Silva

=== === ===
Trabalhos sobre o autor:
Caso, você tenha algum trabalho não citado e queira que ele seja incluído - exemplo: livro, tese, dissertação, ensaio, artigo - envie os dados para o nosso "e-mail de contato", para que possamos incluir as referências do seu trabalho nesta pagina. 

Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Vielimir Khlébnikov - poeta futurista russo. Templo Cultural Delfos, agosto/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
____

** Página atualizada em 28.8.2016.




Licença de uso: O conteúdo deste site, vedado ao seu uso comercial, poderá ser reproduzido desde que citada a fonte, excetuando os casos especificados em contrário. 
Direitos Reservados © 2016 Templo Cultural Delfos

Rachel de Queiroz - discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL)

Rachel de Queiroz - foto: ...
Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1977, ocupando a cadeira de número 5.


Sr. Presidente da Academia Brasileira de Letras,
Sr. Ministro da Educação e Cultura,
Representando o Sr. Presidente da República,
Sr. Ministro da Justiça,
Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro,
Sr. Governador do meu Estado do Ceará,
Demais autoridades presentes,
Meus senhores e minhas senhoras:

No oitão branco, batido de luar, da velha casa de fazenda, devagarinho vai-se abrindo uma janela, a que dá para o pequeno jardim fechado, onde há cravos, bogaris e uma laranjeira. A menina-moça, mais menina do que moça, debruça-se ao peitoril e procura a lua com os olhos. Logo a descobre, tão clara, daria para ler uma carta!

A menina assesta na lua, diretamente no disco da lua, os seus olhos que já são míopes. Suspira, mas é um suspiro diferente, satisfeito, consolado; a menina ainda não está na idade dos suspiros propriamente ditos, está na idade das imaginações e dos sonhos. E, de olhos fitos na lua, silenciosamente, mal movendo os lábios, vai murmurando para si uma reza, uma encantação – um poema? Um poema que é reza e encantação. Vai murmurando como se rezasse para a lua, e na verdade está rezando para a lua:

... Astro dos loucos, sol da demência
Vara, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!

Já reconhecestes na encantação rezada pela moça o poema inesquecível. E na adolescente que se tenta fazer bruxa daquele culto lunar, permiti que vos apresente a velha senhora de hoje tentando desvendar os seu laços antigos com o poema e com o altíssimo poeta.

...E assim fitando-a noites inteiras
Seu disco argênteo n'alma imprimi...
..........................................................

Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto que enlouqueci!

E a menina fitava a lua, fitava, esperando o transe, o rapto, o santo. Encandeava-se de lua, fechava os olhos, sentia sob as pálpebras o disco branco

...seu disco argênteo n'alma imprimi...
Argênteo... noctâmbulos... euros... caçoilas... flux... - e a própria palavra-chave do poema - plenilúnio - a menina as procurara diligentemente no dicionário, aquelas dificuldades parnasianas, traduzira-as, tirara-as do rol incompreensível de “abracadabra”, “abre-te Sésamo”... Incorpora-as todas à sua posse da língua, sentia-se rica e rara.

A noite branca era fria e a menina se envolvia toda no lençol, por sobre a camisola fina. E as cobertas arrastadas atrás de si davam-lhe o desejo de saltar a janela, descer pelo pátio claro onde, no areão vermelho, luziam chispas nas malacachetas.

... há pó de estrelas pelas estradas...
e ir seguindo o rumo do perfume dos aguapés na várzea

...eu sigo às tontas, cego de luz...
......................................................

...Por toda parte louco, arrastando,
O largo manto do meu luar...

Ficava assim até que cantasse o galo da meia-noite - os galos cantam cedo em noites de lua cheia - e então cerrava lentamente a janela e voltava à sua rede branca de varandas de renda, onde dormia e sonhava, os olhos brancos de lua, redizendo o poema até dormir com ele.

Foi essa a minha primeira e mais grave intoxicação poética. Tive outras depois, mais amenas, já vacinada pela leitura e pela experiência que aumentava.

O poema eu o descobrira por mim mesma, num volume já gasto por outra geração de moças - minhas tias. Naquela nossa casa onde se lia tanto, mas onde meu pai só gostava de Camões, Castro Alves e Guerra Junqueiro, e minha mãe sofria uma incompreensível falta de ouvido para os poetas - (o seu ídolo era Machado, mas na prosa!) - Raimundo ficou sendo o meu poeta particular, o meu misterioso, louco poeta particular.

Concentrei-me no plenilúnio. Acho que, como eu, há pessoas de um só poema, de um só poeta. Poetas, para elas, são como namorados, pode-se ter muitos, sucessivos, mas nunca muitos, simultâneos. Anos e anos fiquei fiel a Raimundo, até que descobri Manuel Bandeira e foi aquele alumbramento...

Depois - mas não estou aqui para vos contar os meus amores poéticos e sim a ligação íntima com que, milênios antes de sonhar com esta Casa e esta Cadeira, a menina-moça que eu era já se sentia presa ao seu Fundador.

Fundador e Patrono. Um escolhido pelo outro, o Patrono pelo Fundador. Alguns buscam o significado
dessa escolha na analogia do ofício, digamos oficial, de ambos, juízes um e outro. (Circunstância que também a eles ligaria a quinta ocupante da Cadeira nº 5, tão chegada a juízes, filha, neta, irmã de juiz que é; e os ligaria igualmente ao quarto ocupante, o juiz maior de todos, já que alcançou o Supremo)... mas isso são divagações.

Juízes os dois, seria por isso que Raimundo escolheu como patrono o romancista Bernardo Guimarães? Bem, talvez não fosse a toga propriamente o elemento de união, mas a maneira de exercê-la, os contrastes entre a personalidade dos dois juízes, suscitando a atração do pólo positivo pelo negativo. O Juiz Correia veria no Juiz Guimarães aquilo tudo que ele não era, mas gostaria de ser. O juiz escravo da lei, quase neuroticamente escrupuloso, quem sabe sonhava em ser como o outro, o seu antípoda, boêmio irreverente que desafiava autoridades, recebia partes tocando violão, dava despachos em versos picarescos; meritíssimo dr. juiz municipal de Catalão Goiás, que - o caso é célebre - ao assumir o cargo, apiedado da mísera situação dos onze presos que esperavam julgamento na péssima enxovia local, convocou imediatamente um júri e, em rito sumário e irregular, os fez “absolver por unanimidade e libertar incontinenti”.

O tímido colega apreciaria com inveja o confrade irreverente, desdenhoso de escândalos; e trai essa simpatia ao escolher, como padrinho da sua Cadeira, dentro da constelação de grandes nomes nacionais, precisamente aquele que seria o seu antípoda, símbolo de todas as suas insubmissões sufocadas.

Naquele tempo de Bernardo Guimarães, era o Brasil uma espécie de província perdida, cuja capital se situava em Paris.

Sem propriamente renegar a pátria, o brasileiro dado às letras sentia-se como uma espécie de cidadão da Europa; se o corpo, o coração, prendiam-se aqui, o espírito pairava ao pé da velha civilização, cuja seiva hauria, em cujas tradições se alimentava.

Os que liam inglês eram byronianos; os francófilos - a maioria - juravam por Lamartine, Chateaubriand e Victor Hugo, deles tirando inspiração e modelo.

Rachel de Queiroz - foto: ...
Bernardo Guimarães é verdade que tentou agir em área própria, usando cenários brasileiros, personagens brasileiros, discutindo problemas brasileiros. Mas não teve como fugir à onda romântica que, dentro dos debates sociais, proclamava obrigatoriamente a inocência dos humildes, defendia os fracos, anatematizava os vilões.

E, assim mesmo, combatendo embora a vergonha do cativeiro, ele não ousou enfrentar os tabus da época; fazia restrições racistas, como, aliás, as faziam todos os outros adversários da escravidão - piedosos, paternalistas, levados por sentimentos caritativos - mas nada igualitários. Por exemplo, no seu mais famoso romance A Escrava Isaura, escrito como libelo veemente contra a escravidão (e indiscutivelmente bastante superior ao célebre e lacrimogêneo Cabana do pai Tomás, de Mrs. Beecher Stowe), Bernardo Guimarães não ousa apresentar na heroína uma moça negra, como seria razoável. Razoável, talvez, mas inadmissível para o público de senhores e sinhás a que se dirigia. Isaura é branca, pelo menos na aparência, a sua pinta de sangue negro completamente disfarçada em sinais de beleza.

Só um Castro Alves se atreveria a celebrar o que modernamente chamamos a negritude; esse falava no negro de igual para igual, proclamava os padrões de beleza negros:

Lá nas areias infindas
Das palmeiras no país
Nasceram crianças lindas
Viveram moças gentis...

Para a sociedade brasileira de então, filhos de negros não seriam jamais “crianças” - eram crias e moleques... E o que dizer das “moças gentis”?

Mas Castro Alves foi um gênio, e gênios não se bitolam por padrões correntes, por mais imperativos. E o corrente eram os preconceitos que nem mesmo o nosso Bernardo Guimarães, embora pessoalmente rebelde e provadamente compassivo, pôde, como romancista, desafiar.

De Osvaldo Cruz, sucessor de Raimundo Correia, diz-se que ele entrou nesta Casa em obediência ao critério de convocação de expoentes, já que na sua admirável vocação de cientista (ele próprio se dizia “um modesto homem de laboratório”), não teve tempo para dedicar-se à obra literária.

Em verdade, ele entrou aqui como expoente - mas dentro de uma categoria muito rara - na especialíssima categoria de herói.

Há os heróis que matam - aqueles que eu certa vez, num assomo de petulância juvenil, ousei chamar “os grandes carniceiros da História” - Alexandre, César, Napoleão - e há os heróis cuja luta não visa a morte, mas a vida dos homens; cujas batalhas são de salvar, não de matar. São os heróis mais altos, cuja pura auréola os deve colocar no círculo superior dos bem-aventurados, no Paraíso.

Osvaldo Cruz foi um desses heróis angélicos; sua vida curta e generosa foi um só combate contra o inimigo invisível, o infinitamente pequeno, imolador de homens. Seu terreno de campanha o Brasil, sua arena especial a cidade do Rio de Janeiro, bela sempre, então como agora, mas perigosa para quem nela vivia, mortífera para quem nela chegava, com a febre amarela devorando uma cota impressionante de vidas desde os primeiros bafejos do verão.

O que foi essa luta, outros, antes de mim, nesta mesma tribuna, já a narraram superiormente; basta reler as palavras de Afrânio Peixoto, ao receber Osvaldo na Academia.

E a briga do herói não era só contra a peste, mas contra os interesses contrariados, a inveja, a ignorância; meu Deus, há interesses contrariados até quando se trata da recuperação de uma cidade, de um país!

Mas, purificado o Rio, a cidade de novo aberta, liberada da sua permanente quarentena, Osvaldo Cruz se transportou à Amazônia, numa cruzada contra a malária que dizimava os operários construtores daquela estrada de ferro de terrível memória, a Madeira-Mamoré. De passagem, ele expulsou a febre amarela da cidade de Belém do Pará, porto de grande movimento das frotas internacionais.

O que ainda teria feito por nós esse homem, se a morte não o derrubasse ainda em quase mocidade, aos 45 anos de idade - dá um pouco de vertigem pensar.

Em todo o caso, Osvaldo conseguiu comprimir em sua curta vida os desempenhos de muitas vidas, como se tivesse pressa, como se adivinhasse que a contagem regressiva das suas horas já começara, quatorze anos atrás, no momento em que ele assumiu, sob o título despretensioso de Diretor-Geral da Saúde Pública, a tremenda tarefa que o cobriu de glória.

Mestre Aloysio de Castro, sucessor de Osvaldo Cruz, era um exemplar, já em segunda geração, de um muito importante grupo de médicos, dos quais o “anjo” foi, sem dúvida, o seu ilustre pai, o Dr. Francisco de Castro.

Extremavam-se esses doutores no cultivo das belas-letras, no manuseio dos clássicos, no trato requintado do idioma, num gosto parnasiano do termo raro, da construção preciosa. Nos seus compêndios de medicina, a par do ensinamento meramente profissional, está sempre visível a preocupação do autor em produzir igualmente trabalho de fino lavor literário, graças à qual transcendiam da sua condição original de manuais médicos e se colocavam entre as obras de literatura propriamente dita.

Tinham eles o seu epígono não em outro médico mas em Rui Barbosa - o padrão das formas clássicas revividas. Haviam, aliás, herdado esse pendor dos grandes mestres da medicina francesa do século passado, cujos requentes de prosa escrita eram notórios - os Trousseuau, os Jaccoud, os Dieulafoy.

Guardo, do professor Aloysio de Castro, uma lembrança bem de acordo com a aura meio romântica que o cercava. Levou-me à sua casa a minha querida e saudosa Lota de Macedo Soares, a acompanhá-la em postulado de já nem sei que cruzada artística em que então se empenhava.

Apanhado de improviso - creio que Lota era suficientemente íntima da casa para lá chegar assim - o mestre nos recebeu, no seu salão, sentado ao piano, vestido num robe de cetim cor de vinho. E, interrompendo docemente as veemências de Lota, quis saber quem eu era, sorriu satisfeito ao se inteirar do meu ofício, e começou a tocar um pouco, para me pôr à vontade, creio. Foi tudo extremamente gentil e, para mim, inesquecível: o piano de cauda, sobre o qual havia retratos em moldura de prata, o salão em penumbra e o amável cavalheiro dedilhando delicadamente o prelúdio de Chopin.

Se houve, neste país, um homem de letras a quem não se pudesse taxar de alienado, como é de gosto dizer-se agora, ou de encerrar-se em torre de marfim, como no tempo em que ele fez a sua opção na vida, será esse homem aquele cuja saudade ainda choramos, de cuja Cadeira me acerco, apesar do direito que me dais, meio receosa de ocupá-la.

Cândido Motta Filho. Numa vida que, em termos humanos, pode considerar-se longa – quase oitenta anos - esse paulista inquieto fez de tudo e tudo fez bem, quer no plano intelectual, quer no político, quer no social. E se em todas essas atividades saiu-se com singular felicidade, é que recebera de nascimento dotes acumulados, sobressaindo entre eles aquela clara inteligência a par de um largo e muito humano coração.

Acompanhando-o na sua rica biografia, vemo-lo, mal saído da Faculdade de Direito, na posse do seu canudo de bacharel, tratar logo de ir diversificando os seus interesses; e ei-lo advogado, jornalista, político, professor.

E curioso é que, durante a vida inteira, se manteve fiel a esse leque de vocações. Fiel, exímio e vitorioso: o advogado e jurista chegando a Ministro do Supremo Tribunal Federal; o jornalista que começara escrevendo uma coluna judiciária e simultaneamente dirigindo a página de literatura da mesma folha, prosseguindo jornalista e literato até os dias finais, morrendo como membro da Academia Brasileira de Letras.

Político: o moço que se fizera eleger juiz de paz do bairro paulistano de Santa Cecília, atingiu a presidência do seu partido, o Partido Republicano. Note-se que, nesse ramo da política, a sua fé de ofício bastaria para encher com lustro mais de uma biografia.

Moço, foi auxiliar da cúpula do governo quando os seus detinham o poder, foi deputado estadual constituinte. Entre uma atividade e outra sentou praça nas hostes dos que fizeram a revolução constitucionalista de 1932, opondo-se de armas na mão à primeira fase da ditadura de Vargas.

Com o governo Dutra chegou a Ministro do Trabalho. E no governo Café Filho ocupou outra pasta, esta bem consentânea com os seus interesses e atividades mais autênticos – a pasta da Educação e Cultura.

Professor, iniciou-se na carreira de mestre no Patronato Agrícola do Estado; e, de escola em escola, alcançou a cátedra de Direito Constitucional, na gloriosa Faculdade de Direito de São Paulo.

Um outro apaixonado interesse de Cândido Motta Filho foi o problema, ou antes, o drama do menor abandonado. Aquele humano e grande coração em que falei acima muito cedo se voltou para esse tema angustiante, manifestando-se quer em estudos muito acurados, quer em ação direta. Na prática, envolveu-se de modo nada platônico, tendo chegado a Diretor do Serviço de Proteção de Menores do seu Estado.

Na teoria, além de vários escritos dispersos, publicados na imprensa, foi o autor de um livro importante, A defesa da infância contra o crime.

Mas não foi como jurista, nem como sociólogo, nem como homem de Estado, nem como jornalista de longo tirocínio - não foi por nenhum desses títulos exponenciais que Cândido Motta Filho entrou nesta Casa. Títulos que sobejamente lhe garantiriam o ingresso aqui – como a vários outros ilustres companheiros.

Cândido Motta Filho ocupou esta Cadeira n& ordm; 5, na Casa de Machado de Assis, graças à sua essencial condição de homem de letras, atividade que, a par das outras, exerceu com fidelidade, constância e talento. Caracterizava-se como escritor, além da lucidez e da originalidade do enfoque nos temas abordados, pela exposição clara e bem informada, aliada à preocupação estética da forma.

E, circunstância singular, esse escritor que se interessava indisfarçavelmente pelo dizer lapidar, pela boa linhagem vernácula da sua escrita, formou entretanto no bando iconoclasta da Semana de Arte Moderna, “representante da insubordinada geração de 1922” no dizer de Cassiano Ricardo, sendo mesmo um dos seus elementos mais atuantes, dentro do núcleo central do grupo, com voz na imprensa diária.

Muito já se tem dito sobre a Semana de Arte Moderna. Aqui desejamos apenas assinalar um aspecto curioso do movimento, que funcionou com muito mais ruído e conseqüências a posteriori; no momento da sua promoção, quase se reduziu às rodas inquietas da intelligenzia da capital paulista.

É o próprio Cândido Motta quem nos confessa a sua defasagem com a trilha revolucionária do movimento modernista, quando diz que “não sabia o que significava, em 1922, o modernismo, porque o movimento de renovação era feito com a cumplicidade de muitos que nunca saíram das regras acadêmicas”.

Mas, modernista ou não, sua obra de escritor não se interrompeu nunc; e, se a não podemos chamar de copiosa, é surpreendentemente variada, confirmando a condição básica de polígrafo que define o seu autor.

Ele fez biografias e comentários biográficos: a história da vida daquela fascinante personagem do Brasil da belle époque, que foi Eduardo Prado, teve em Cândido Motta Filho o seu biógrafo definitivo.

Os estudos sociais, a interpretação de temas políticos receberam também a sua abordagem atenta, quer fosse a obra de Alberto Torres, quer a tentativa de explicação de Rui Barbosa, quer a singular mistura representada por O caminho das três agonias, estudo interpretativo de três entidades tão diversas entre si: o duro e fascinante homem de Estado que foi Feijó; o suposto maldito e na realidade o menino pateticamente genial, Álvares de Azevedo; e os mistérios do temperamento e vida da indecifrada esfinge do Cosme Velho - aquele que é o deus desta Casa - Machado.

Na crítica literária, que cultivou desde os verdes anos, através de uma ininterrupta atividade jornalística, e onde operou mais na postura de apreciador diletamente que na do árbitro e pontífice, temos o belo volume de anotações inteligentes, de descobertas muito pessoais e avaliação equilibrada, que são as Notas de um constante leitor.

Mas se eu tivesse que marcar uma preferência pessoal na obra de Cândido Motta Filho, indiscutivelmente me inclinaria pelos seus dois livros de memórias. O primeiro, Contagem regressiva cujo título é um achado tão feliz que por si só já valeria um volume; o segundo, de publicação póstuma. Dias lidos e vividos. “Dias lidos”, em vez de “idos” apenas, não valendo como simples trocadilho, mas depoimento confessional de uma realidade.

Esses dois meio desordenados depoimentos, escritos sem preocupação cronológica nem ligação formal de episódios, neles está o retrato do homem, sua essência particular, seus sentimentos íntimos em simbiose com as lembranças.

A própria seleção das memórias, o espírito que preside à sua escolha, o que o memorialista conta e omite, o que recorda e o que esquece - deliberada ou involuntariamente - dão com largura para se fazer uma ideia da persona, da criatura, que nos é tão viva e às vezes adoravelmente ressuscitada pelas recordações.

Livros feitos sem método preestabelecido, indo e vindo do menino ao homem, do velho ao rapaz, e que nos revelam, de forma positiva e esclarecedora, o que seriam os ideais humanos, as concepções filosóficas e sociais de Cândido Motta Filho - a par de suas preferências artísticas, literárias, estéticas. E tem-se ali igualmente uma galeria preciosa de contemporâneos seus, retratos feitos às vezes num traço único - grandes figuras do Brasil, flagrantes de personalidades mundiais com quem o narrador teve contacto.

Na verdade, pode-se dizer que Cândido Motta Filho não se conta muito, conta mais os outros; e é através dos outros que com freqüência se revela. Até mesmo nas lembranças de infância, a gente enxerga o mundo do seu tempo através dos olhos do menino; e é essa visão do mundo, nos voltando em ricochete, que traduz e explica o garotinho tímido, canhoto e de frágil saúde, perseguido pela solicitude inquieta dos seus, sempre receosos de que o garoto “não vingasse”.

Vingaria sim, vingaria magnificamente, conforme o testemunho de sua bela vida, que afinal logrou alcançar quase oito décadas. Vingaria; vingou.

Fui conhecer melhor Cândido Motta Filho depois que ele, aposentado do Supremo, deixou Brasília e veio se fixar no Rio. Nosso ponto de encontro era a sala do escritório de nosso irmão José Olympio, editor de nós ambos. Motta, sempre discreto, falava e sorria - aliás mais sorria que falava, quando a roda era grande. Nos grupos de dois e três é que se expandia, brincava, contava casos e defendia pontos de vista.

Certa vez, eu saía apressada de um dos almoços na Editora para a sessão do Conselho Federal de Cultura, que começa às duas horas, e o Ministro Motta filho ofereceu levar-me no seu carro. Dávamos a volta pelo Parque do Flamengo, quando veio à nossa conversa o assunto netos, meus e dele, todos maravilhosos, claro. E de repente ele se pôs a explicar, meio complicado, a vocação profissional do seu neto Nélson, o Nelsinho.

- Adora música, principalmente a popular, desde pequeno, é queda irresistível...

Rachel de Queiroz - foto: ...
Tive a impressão de que, de certa maneira, o avô justificava o rapaz ante os possíveis preconceitos elitistas da senhora literata. E protestei com veemência:

- Mas eu sou fã do Nelsinho! Fã de firma reconhecida! Tenho os discos com as músicas, não perco a coluna dele no jornal, e sempre que posso o vejo na TV! É um doutor em música popular. E, além disso, Ministro, ele é lindo!

O Ministro visivelmente inchou o peito naquele orgulho inocente que só os avós conhecem; os seus olhos luziram, seu sorriso clareou mais, e ele acabou concordando, beatífico:

- Sim, é lindo!

E a concordância em torno daquele neto e daquele adjetivo selou uma cumplicidade afetuosa entre nós. Daí por diante, mal me via, ele abria o sorriso, adiantava-se para me apertar a mão e, assim que apanhávamos um local para conversar sossegados, íamos discutir, conspiratoriamente, não de inquietações políticas ou novidades das letras - mas, doce e consoladamente, de netos.

4/11/1977

____
* Fonte: ABL

RACHEL DE QUEIROZ NESTE SITE:

© Direitos reservados ao autor/e ou ao seus herdeiros
____
Página atualizada em 27.8.2016.


Licença de uso: O conteúdo deste site, vedado ao seu uso comercial, poderá ser reproduzido desde que citada a fonte, excetuando os casos especificados em contrário. 
Direitos Reservados © 2016 Templo Cultural Delfos

João Bernardo de Miranda - uma simbiose de palavras entre ficção realidade

João Bernardo de Miranda - foto: Clemente Santos|ANGOP
João Bernardo de Miranda nasceu a 18 de Julho de 1953 em Caxito-Dande, província do Bengo. Licenciado em Direito é jornalista, embaixador de carreira, escritor e político.
Desempenhou já as funções de Deputado do MPLA e Ministro das Relações Exteriores da República de Angola, de 1999 a 2008. João Bernardo de Miranda é membro fundador da União dos Jornalistas Angolanos (UJA). É ainda membro da União dos Escritores Angolanos (UEA). Jurista, e actual governador da província do Bengo, exerceu a função de enviado especial da União Africana na Guiné Bissau, e teve como missão, a nível desta organização, instaurar a reconciliação para as eleições presidenciais e reforma da defesa e segurança. Enquanto jurista e jornalista, João Miranda exerceu ainda os cargos de vice-ministro da Comunicação Social, e vice-ministro das Relações Exteriores. É membro da Ordem dos Advogados de Angola. 
Publicou Nambuangongo (1998), um romance sobre a guerra povoação do norte de Angola, na província do Bengo, ocupada pelos nacionalistas angolanos no início da guerra anti-colonial, em 1961. Nambuangongo só veio a ser retomada pelo exército português em Agosto, ainda deste ano, porém, a guerra durou mais treze anos. Os escritores portugueses: Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco e José Cardoso Pires, foram soldados em Nambuangongo. João Miranda publicou também, “Pathelo-a-Kuma”, o menino de inteligente (2003), levada à cena em Portugal, Porto, pelo encenador João Luiz.

"O país começava assim a chover em abundância. Além de molhar a terra e florescer os campos, também iniciava a lavagem dos corações dos ódios acumulados…"
- João Miranda, no livro "Hebo". Luanda: Texto Editores, 2012.

João Bernardo de Miranda - foto: Clemente Santos|ANGOP
OBRAS DE JOÃO BERNARDO DE MIRANDA
Narrativas (romance histórico)
:: Nambuangongo. [prefácio Domingos Van-Dúnem]. Colecção Autores de língua portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 1998; 2ª ed., Luanda: Texto Editores, 2012.
:: HeboLuanda: Texto Editores, 2012.

Conto (infanto-juvenil)
:: Pathelo-a-Kuma - o menino inteligenteLisboa: Dom Quixote, 2003; 2ª ed., Colecção Tenda das Letras. Luanda: Edição do Ministério da Cultura e do Instituto Nacional das Indústrias Culturais (INIC), 2013.


"João Miranda deixa expressa uma situação ainda ignorada que gera conflitos e divisionismos. Encaremos realisticamente as potencialidades de João Miranda, que tem todas as qualidades para movimentar ideias e abrir diálogo saudável e construtivo.
Os seus personagens são criaturas de corpo e alma. Estão connosco e reclamam o enquadramento social que todos nós ansiamos para a glorificação da nossa Terra-Mãe. O estender das mãos para a fraternidade universal."
- Domingos Van-Dúnem, em "Prefácio" do livro "Nambuangongo", de João Miranda. Luanda: Texto Editores, 2012.


"Na verdade, a impiedosa vara metálica da guerra civil de Angola tinha batido forte no tecido social de todas as famílias. Daí que, no quadro da história geral da mesma guerra, cada família angolana tem a sua, em particular, para contar…"
- João Miranda, no livro "Hebo". Luanda: Texto Editores, 2012.

João Bernardo de Miranda - foto: Clemente Santos|ANGOP
FORTUNA CRÍTICA DE JOÃO BERNARDO DE MIRANDA
ANGOLA.Autores. João Bernardo de Miranda. in: Angola: Obras, Autores e Escritores, 20 de julho de 2016. Disponível no link. (acessado em 25.8.2016).
FORTUNATO, Jomo. "Hebo" novo romance de João Miranda. in: Jornal Cultura/Angola, 9 de agosto de 2012. Disponível no link. (acessado em 25.8.2016).
MIRANDA, João. Operações de paz em Angola: cooperação. in: Angola| Portugal: negócios.- nº 26 (Jul./Set. 1995), p. 32, 34-35.
NAMBUANGONGO - Miranda, João Bernardo - Publicações Dom Quixote-1998. in: O Quitexe de Literatura, 17.6.2007. Disponível no link. (acessado em 25.8.2016).
PORTAL ANGOP. João Miranda nomeado enviado especial do presidente da Comissão de UA para a Guiné Bissau. in: Portal Angop, 6 de abril de 2009. Disponível no link. (acessado em 25.8.2016).


"– Como sabes Massanga, a guerra contra os brancos já começou. Em Kibaxe, lá nos Ndembos, em Nambuangongo, no Kitexi e em muitos sítios aí em cima, mataram todos os brancos. Outros fugiram para Luanda. O Mbuta Muntu, o grande chefe que está a dirigir tudo isso, mandou também matar todos os filhos dos brancos com pretas. Por isso é que o teu tio Pianga devia matar-te. A ordem de Mbuta Muntu diz que os filhos dos brancos com pretas devem ser mortos pelos seus tios. (…)"
- João Miranda, no livro "Nambuangongo". [prefácio Domingos Van-Dúnem]. Colecção Autores de língua portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 1998.


***
“ O nosso querido chefe supremo Tata Holden determina para que doravante jamais se molestem os mestiços nem os assimilados. Os mestiços são nossos sobrinhos, são nossos filhos. Os assimilados são nossos irmãos. O nosso querido chefe supremo nunca ordenou que se matassem os nossos sobrinhos. Nunca mandou prender ou matar os nossos irmãos assimilados. Tudo o que aconteceu foi obra dos delegados, traidores da pátria.”
- João Miranda, no livro "Nambuangongo". [prefácio Domingos Van-Dúnem]. Colecção Autores de língua portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 1998.


***
“ Enquanto isso, o comboio da revolução foi rasgando a densa nuvem preta que ensombrou o país. Prosseguiu a sua marcha que se julgava inexorável. Anos depois do trajecto o comboio parou por avaria num apeadeiro, e todos os ocupantes saídos incólumes de temporal de Maio desertaram-no. Apanharam um outro que vinha em sentido contrário, do Planeta Nova Era:
- Estão a dizer que cabemos neste comboio?!
- Sim, meu filho, neste, aqui, cabemos todos…
- Mas todos quem?
- Todos nós, os filhos desta terra que se chama Angola.
- Também os lacaios do imperialismo ou fantoches, os fraccionistas, etc…viajarão connosco?
- Meu filho, eu já não me lembrava desses epítetos. Olhe para os meus cabelos brancos. Eu já vivi tanta coisa desde que começamos. Por tudo quanto já passamos o melhor é amnistiarmo-nos mutuamente. Esquecer…”
- João Miranda, no livro "Nambuangongo". [prefácio Domingos Van-Dúnem]. Colecção Autores de língua portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 1998.




João Bernardo de Miranda
NA NOSSA REDE 
:: África-Brasil - Raízes Culturais 


ESCRITORES AFRICANOS NESTE SITE
:: Acesse AQUI!

© Direitos reservados ao autor

© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske

=== === ===
Trabalhos sobre o autor:
Caso, você tenha algum trabalho não citado e queira que ele seja incluído - exemplo: livro, tese, dissertação, ensaio, artigo - envie os dados para o nosso "e-mail de contato", para que possamos incluir as referências do seu trabalho nesta pagina. 

Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). João Bernardo de Miranda - uma simbiose de palavras entre ficção realidade. Templo Cultural Delfos, agosto/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
____
** Página atualizada em 25.8.2016.




Licença de uso: O conteúdo deste site, vedado ao seu uso comercial, poderá ser reproduzido desde que citada a fonte, excetuando os casos especificados em contrário. 
Direitos Reservados © 2016 Templo Cultural Delfos

COMPARTILHE NAS SUAS REDES