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Paulinho da Viola - entrevista: o samba não acabou só porque o povo não deixou

Paulinho da Viola - foto: ...

Paulo César Batista de Faria (Rio de Janeiro, 1942) não faz nada com pressa. Um músico que demorou mais de 15 anos em concluir uma letra não vê inconveniente em se estender mais de 15 minutos em cada uma das perguntas desta entrevista. Assim, o encontro, em um dia chuvoso na sua casa da zona oeste do Rio, dura cerca de quatro horas. “Eu falo muito, vou emendando uma coisa na outra e eu não sei sintetizar”, diz sorrindo.
A conversa começa no que foi sua oficina de marcenaria, onde Paulinho restaurava violões, móveis talhados e até tacos de sinuca. A madeira é, junto com a música e a mecânica, uma paixão antiga. Hoje, aquele esconderijo onde os pregos se guardam em caixas de charutos está ocupado por trastes que a família foi deixando por lá. Há cerca de um ano que as ferramentas, algumas com mais de cem anos, não saem dos seus estojos de couro nordestino, mas Paulinho promete limpar tudo aquilo e retomar os trabalhos. Ele precisa, confessa. “Eu poderia ter sido marceneiro, ou talvez um bancário aposentado. Mas não deixaria de tocar violão”, diz.
É difícil arrancar dele uma crítica e fácil demais ouvir elogios a quem o acompanhou em suas andanças. Paulinho da Viola encerrou no último 16 de janeiro de 2016 no Rio uma turnê comemorativa de 50 anos de carreira. Seu plano hoje, além de continuar com alguns shows esporádicos, é lançar um disco novo. Ele não sabe quando, não sabe com quais músicas, mas não se importa. Trabalhará, escreverá, reescreverá, gravará e regravará... Ele não tem pressa. “Algum dia ficará pronto”.

O samba faz seu primeiro centenário. Que referências são indispensáveis nessa comemoração?
Paulinho da Viola - Na letra de Bebadosamba falo de muitas delas, mas eu falo aí dos nomes mais tradicionais, ligados às escolas, é uma escolha bem pessoal. Tem Donga, Ismael Silva, Noel Rosa, o próprio Ary Barroso, que eu não cito na música, Paulo da Portela, que foi fundador da Portela... Puxa! Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, esse era grande... Elton Medeiros, Candeia... Olha, é difícil. Wilson Batista, Geraldo Pereira, Monsueto Menezes, Dona Ivone Lara... E muitos outros que fogem da minha memória agora.
Essa história nossa do samba é fascinante porque se enriqueceu e mudou muito. Os movimentos que vinham surgindo na música brasileira, desde a bossa nova na década dos 50, já propunham uma abordagem diferente daquilo que se fazia tradicionalmente com o samba. As escolas de samba mudaram de ano para ano e elas incorporaram muita coisa nova também. Você pode dizer que o samba tem origem na África, com elementos da cultura portuguesa, com grandes influências aqui no Brasil, mas você vê que o povo foi antropofágico, pegou tudo e o devolveu de outra maneira. Nesses cem anos sempre houve experimentações, desconstruções, jovens talentos trazendo coisas novas... E essa linha rítmica, tão forte, só não desapareceu por um motivo: porque o povo não deixou. Já no começo dos anos 1970, eu ouvia produtores dizer: “Ihh, a gente tem que acabar com essa velharia aí”. Se um produtor diz isso tem um peso, mas as pessoas não deixaram de tocar, artistas gravavam sambas antigos e novos, incorporaram novas tecnologias, usaram um instrumental diferente, construíram versos de outra maneira... Tudo foi mudando, mas se fosse pelo mercado, o samba não seria o que hoje é.

O que acha que a gente comemorará daqui a outros cem anos? Como imagina o futuro do samba?
Paulinho da Viola - Não sei te dizer isso, mas hoje há escolas de samba até fora do país. Quando fui ao Japão em 1986 já tinha uma escola de samba lá e desfilava e tudo. Um dos primeiros enredos da Portela, em 1923, chamava-se O Samba dominando o mundo. Já havia o sonho do compositor popular de que algum dia o samba conquistaria o mundo. Eu não acho que dominou o mundo, mas foi para muitos lugares. Eu acredito que essa coisa do samba no mundo se deve muito às escolas do samba, mesmo com os estereótipos e a visão distorcida que chega lá fora do que o samba é.

No cenário atual, com tanta oferta, se prestaria atenção ao nascimento de um novo Paulinho da Viola?
Paulinho da Viola - Eu não sei. Mas eu viajo, e onde eu vou e faço um show recebo até 15 discos. É muita coisa, é muita gente e fica difícil você saber [o que é bom]. É muito diferente do nosso tempo. O que eu sei é que tem muita coisa legal, mesmo no universo do samba, no universo do choro. Outro dia, um rapaz, de quem eu já havia ouvido falar, me deu um CD seu em São Paulo. Eu nunca ouvi ninguém fazer aquilo com um cavaquinho. Chama-se Messias Britto. Agora, veja se você vai achar um disco dele em alguma loja! Talvez em alguma especializada. Mas as pessoas que fazem esses trabalhos autorais e não têm uma gravadora que vai distribuir, encontram uma enorme dificuldade para dar a conhecer sua música. E os espaços para essas pessoas jovens apresentarem seus trabalhos, ao invés de se multiplicar, diminuem. Por outro lado, muitas vezes tem artistas, que nem são artistas, que gravam uma duas, três músicas e daqui a pouco é um estouro.

O que lhe sugere que um intérprete como Wesley Safadão tenha um dos cachês mais altos do país (fala-se em cerca de 650.000 reais por um show)?
Paulinho da Viola - Eu li sobre ele. Isso é o que se chama de mercado. Você tem um público enorme que consome esse trabalho e isso reverte no cachê. É difícil julgar isso. Acho perigoso dizer se isso é bom ou ruim, seria uma pretensão. Claro que tem gente que não gosta, mas você tem que cuidar de fazer o melhor que você pode. Eu mesmo tenho trabalhos que não gosto mais de ouvir.

Paulinho da Viola - foto: ...

Como foi trabalhar durante a ditadura?
Paulinho da Viola - Eu só tive uma música censurada e isso que era uma época que eu tinha um envolvimento político maior. Mas meu trabalho não era reivindicativo. Eu achava que já tinha muita gente fazendo isso, e algumas pessoas não faziam bem. Algumas músicas eram mais panfletos do que arte. E panfleto não é arte.
A música que eu tive censurada era sobre um par de sapatos. Eles sapateavam. Chamava-se Meu sapato. Dizia assim: Meu sapato/ de salto de aço/ inoxidável/ que sapateia/ que rompe as teias/ que se formaram/ sobre as calçadas.... E o sapato ficava ai fazendo uma batucada [ele imita o som do tamborin]. Num determinado trecho a música falava de uma figura que tinha brasões e eles viram aí uma provável alusão ao militarismo. Não fazia sentido. Eu acabei tirando aquele trecho e botei um outro titulo: Meu novo sapato, que foi o que acabei gravando.
Tem vários sambas que são mais alusivos. Tem um que fala assim [Paulinho canta]: Acende uma chama/ É o som de um samba / Que chega nas ondas da noite pra mim / Dizendo que a história nos ensina/ E um amor assim ninguém domina... Essa frase, “que um amor assim ninguém domina”, tinha um significado na época que você não quer saber, mas eles não podiam censurar isso. [Paulinho continua cantando] Se há um tempo de amargura/ Pode haver a desventura/ De um samba sem calor/ Mas nada se conserva eternamente/ Depois a gente se vê amor. Essa música tinha um significado, não precisava falar diretamente de nada, estava aí. Inúmeros artistas fizeram isso para driblar a censura.

O que acha do Carnaval de hoje? É muito diferente daqueles em que você participava?
Paulinho da Viola - Essa história é também longa. Na década de 1970 eu ainda saía na Portela e começamos a notar que algumas escolas apresentavam uns sambas mais curtos e mais rápidos, mais vibrantes. As escolas enfrentavam alguns problemas, entre eles de espaço. Não tinha sambódromo, havia pequenas arquibancadas, o povo invadia o desfile, não havia como controlar isso. Mas eu adorava. Principalmente porque a batucada, era outra batucada.
A forma de tocar mudou muito. Cada bateria tinha um som diferente, você poderia diferenciar as escolas pela forma como tocavam os instrumentos. E como não havia essa quantidade de escolas, ficavam um tempo enorme desfilando. Mas a medida que as escolas foram crescendo e sofisticando seus enredos e aprimorando suas fantasias é claro que tudo mudou e o andamento acelerou. Pensava-se que ficava mais vibrante. Você pode acelerar, mas tem que ter um limite. Nesse andamento que as escolas fazem hoje, repare no tamborim tocando: ele não faz mais a síncopa do samba. Antes não era qualquer pessoa que saía tocando um instrumento, saíam os melhores. Isso dava um balanço no samba que não existe mais. O fato das escola se verem obrigadas a passar em um tempo cronometrado, ver as pessoas correndo, se empurrando inclusive para não serem penalizadas, isso não é desfile.
Ao mesmo tempo, os sambas chamados de terreiro ou de quadra são sambas que até hoje são cantados pelas pessoas e gravados pelos artistas, enquanto os sambas de enredo, com algumas exceções, são descartáveis.

O Carnaval deste ano está cheio de marchinhas satíricas sobre a crise econômica e política... Se tivesse que compor uma letra crítica hoje sobre o que seria?
Paulinho da Viola - Acho que a gente vive uma situação muito difícil. Existe uma luta política e muita desinformação da nossa parte. Mas pela primeira vez você tem uma discussão aberta sobre uma questão muito antiga e que não é só daqui que é a corrupção. É algo muito sério, mais que qualquer outra coisa, eu acho. Eu tento acompanhar de alguns jornais, tento discutir com meus filhos, meus amigos, mas eu acho que é uma areia muito grande para o meu caminhão. Eu não sei como vai se desenvolver tudo isso.

Há algo que ultimamente lhe indignou, como um possível aumento de impostos?
Paulinho da Viola - Olha, se essa é a melhor proposta... nessa hora em que as pessoas não têm condições de comprar nada... De repente uma ação da Petrobras vale cinco reais, a maior companhia do país. Qual é o significado disso? Tem muita gente que investiu dinheiro aí, pequenos investidores que foram estimulados a isso. O que você vai dizer para essas pessoas?

Você se decepcionou com estes últimos governos?
Paulinho da Viola - Sim, estou um pouco decepcionado. Mas de uma maneira geral, é difícil ficar entusiasmado nesses tempos. Mas eu não gosto de falar disso, não.

Paulinho da Viola - foto: Rodolfo Soares
No documentário sobre a sua vida, de Zuenir Ventura, a saudade é um tema recorrente. Às vezes parece que você foge dela, às vezes parece que a minimiza. O que é a saudade para Paulinho?
Paulinho da Viola - O Zuenir me perguntou sobre essa coisa da memória. A memória é muito importante para mim, tem um peso muito grande. Aí ele me perguntou sobre a saudade e eu disse: “Eu não sinto saudade”. Isso ficou no filme e eu estava andando uma vez na cidade e uma senhora me parou e me disse: “Como é que você pode dizer uma coisa dessas? Eu acabei de perder uma pessoa, você não sabe o que isso significa para mim”. E ela disse isso com lágrimas nos olhos. A única resposta que eu tive foi abraçá-la [os olhos de Paulinho se avermelham] e comecei a chorar com ela. Quando falo isso fico emocionado. Mas o que eu queria dizer é que talvez eu não sinta essa saudade, como se quisesse voltar no tempo, porque para mim é como se tudo estivesse presente. Quando eu falo do Paulo da Portela é como se ele estivesse aqui, quando eu falo do Pixinguinha, que é a coisa que eu mais gosto de ouvir na minha vida, ele está aqui. Zé Kéti, que é adoração, é como se estivesse aqui. Quando eu falo da minha avó, que adoro, minha mãe, meu pai, eu não sinto a falta deles, porque é como se eles estivessem aqui. Eu acho que sofro menos, talvez é um mecanismo de defesa que eu criei, eu não sei. Meu passado é muito presente, mas isso não quer dizer que eu seguro ele.

Fonte: ** MARTÍN, Maria. Paulinho da Viola: “O samba não acabou só porque o povo não deixou”El País, 8 de fevereiro de 2016. Disponível no link. (acessado em 28.11.2016).


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Jorge Amado - discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL)

Jorge Amado - foto: ...
Sr. Presidente, Senhores Acadêmicos:

Chego à vossa ilustre companhia com a tranqüila satisfação de ter sido intransigente adversário dessa instituição, naquela fase da vida, um que devemos ser, necessária e obrigatoriamente, contra o assentado e o definitivo, quando a nossa ânsia de construir encontra sua melhor aplicação na tentativa de liquidar, sem dó nem piedade, o que as gerações anteriores conceberam e construíram.

Ai daquele jovem, ai daquele moço aprendiz de escritor, que no início do seu caminho, não venha quixotesco e sincero, arremeter contra as paredes e a glória desta Casa. Não seria ele digno de sua maravilhosa condição se, em lugar de bandeiras de guerra e violentas armas de combate aparecesse ante a Academia dobrando em curvaturas e sorrisos, em aplausos e elogios, e alma vestida com o fardão acadêmico. Ah, não seria um jovem, não estaria cumprindo com as inapeláveis obrigações de seu tempo interior, com as exigências da sua mocidade. Faltar-lhe-ia o sumo da agressividade, do não-conformismo, da necessidade de romper com o passado para caminhar na rota do futuro. Seria insosso como essas frutas colhidas ainda verdes e à força amadurecidas para o mercado.

Triste espetáculo, a meu ver, o de certos moços na flor de uma idade onde a rebeldia é a marca e a essência fundamentais, e que, abandonando seus deveres para com o entusiasmo e a imprudência cobrirem-se com o manto da aceitação passiva. Fecham-se num conservadorismo medroso e afivelam os rostos numa emprestada e falsa madureza. Pobre daquele jovem que assim agir: jamais chegará realmente a amadurecer, não guardará o fruto de sua obra o sumarento sabor da juventude, suas ânsias, suas revoltas, sua necessidade de destruir para firmar-se, não é traindo essa urgência e fome de viver, esse ardente e violento impulso, que o escritor levanta, na experiência viva, sua medida de homem, aprendendo aos poucos, numa longa marcha, a estimar e a compreender, amadurecendo em riqueza espiritual.

Quanto a mim, felizmente, muita pedra atirei contra vossas vidraças, muito objetivo grosso gastei contra vossa indiferença, muitas vezes gritei contra vossa compostura, muito combate travei contra vossas forças. Minha geração surgida na onda de um movimento armado e popular tinha sua palavra a dizer, feita de realidade áspera e de densa esperança. Chegávamos com o coração pesado de penas e dores ante a visão de nosso povo despojado de suas riquezas, pasto de apetites estrangeiros, humilhado em suas grandezas. Devíamos assim romper com todos os muros e impelir o eco da nossa palavra, nosso duro protesto. Tomamos de nossas armas ainda imperfeitas e partimos contra tudo quanto nos parecia representação daquele passado, inclusive a Academia Brasileira. Só o tempo e a vida podem ensinar ser a Academia em sua continuidade conjugação de passado, presente e futuro. Se um jovem, ao iniciar-se na vida e na literatura, disser compreender e aceitar tal verdade será quase certamente um oportunista, um carreirista, um pobre diabo.

Como igualmente triste é o espetáculo do homem maduro a afivelar a máscara da eterna juventude, a exibir-se em praça pública em atitudes perfeitas aos vinte anos e ridículas aos quarenta. Ai dele porque não soube amadurecer interiormente, e não saberá envelhecer sua pose de jovem e melancólica, desoladora caricatura – como aquelas frutas que não seguem seu ciclo e de verdes passam a  pecas e nada existe de mais inútil que um fruto peco. Triste é o espetáculo do acadêmico de vinte anos, triste é o espetáculo do antiacadêmico de quarenta anos.

A Academia dos Rebeldes

Procuro num milagre de imaginação, reviver no dia de hoje o  adolescente magro, membro da Academia dos Rebeldes, na Bahia, nos anos de 1928 a 1930. Pequeno aprendiz de escritor em cerrada fita com outros de sua idade e condição, levantava-me em imprecações contra a Academia Brasileira e toda a literatura de então, disposto a arrasar quanto existia, convencido de que a literatura começava com a minha incipiente geração, nada devendo-se fizera antes do nosso aparecimento, nenhuma beleza fora criada,  nenhum resultado obtido. Que diria o jovem de dezesseis anos, assombrado ante a vida e o mundo, solto ao mistério da Bahia, ao ver o quase cinqüentão de hoje, envergando fardão, espadim e colar acadêmico. Dentro de mim, senhores, neste coração que resiste a envelhecer, ouço o riso moleque do rebelde um busca de caminho. Rio-me com ele, não há entre nós oposição, não existem divergências fundamentais entre o menino de ontem e o homem de hoje, apenas um tempo intensamente vivido. São muitos homens em diversas idades a encontrarem-se nessa tribuna somados num homem maduro, mas ainda de experiência e vida vivida que de idade.

Posso assim rir um riso bom com aquele velho companheiro o adolescente que eu fui nas ruas e ladeiras da Bahia plenamente jovem e plenamente rebelde. Rebelde e não ainda revolucionário resulta do conhecimento e da consciência.

Aproveito este momento para falar-vos do perigo a pesar sobre esta Academia e vossa glória pelos idos de 1929. Perigo grave e sério não sei se esta instituição chegou a se dar conta de como esteve de morte ameaçada. Porque naquele ano num primeiro andar do Largo do Terreiro de Jesus, na cidade de Salvador, alguns jovens se reuniram e fundavam a Academia dos Rebeldes. Alguns desses moços são hoje nomes conhecidos e admirados: o poeta Sosígenes Costa, o contista Dias da Costa, mestre Edison Carneiro. Outros não puderam completar sua cara vocação de escritor, levados uns pela morte, como o romancista João Cordeiro, outros pela vida, como o poeta Alves Ribeiro ou o romancista Clóvis Amorim.

Acolhera rebelde Academia num gesto talvez impensado, uma sala destinada a sessões espíritas, atmosfera mística e misteriosa, com um retrato de Alan Kardec e um obsessionante desenho de almas transmigradas a impressionar nossas desabrochadas imaginações. Nosso programa era simples, efetivo e imenso: arrasar definitiva e completamente o já existente e construir o monumento de nossa literatura. Meta primeira alcançar a Academia Brasileira, substituí-la por nossa Academia de Rebeldes. Saímos de nossa primeira reunião eufóricos e convencidos: seria assunto de pouco tempo o fim da Academia inimigo e a pujança de literatura que transpirava por todos os poros.

A Proteção dos Espíritos

Ainda hoje tenho minhas dúvidas e aqui as confesso: se não houvéssemos sido expulsos da sala do Centro espírita, como teriam evoluído os acontecimentos? Nossa decisão era definitiva e inapelável, vossa sentença de morte fora ditada e confirmada. Fostes salvos pelos espíritos. Nos distantes círculos do universo onde vagavam, tomaram partido naquela batalha já de si desigual uns poucos estudantes sem eira nem beira contra os quarenta imortais.

Segundo nos informou importante médium dirigente máximo do Centro, quando ali regressamos para nossa segunda reunião onde assentaríamos os últimos detalhes de vossa destruição, aquele era um templo largamente conhecido e procurado pela qualidade dos espíritos que ali baixavam e conviviam. Só espíritos purificados, de alta mentalidade e eminentes virtudes, vinham àquela sala aconselhar os crentes e suavizar-lhes as dores. Dizia-nos, tudo isso, no alto da escada colonial onde nos apertávamos na pressa e segurava na mão a chave da sala, a defendê-la. Contou-nos, para nos mostrar a que preço obtivera tanta perfeição espiritual, terem-se imposto, ele e a esposa, há três anos, votos de rigorosa castidade. Ora, continuou com sua voz mansa, haviam acontecido, na primeira sessão após nossa fundação, imprevistos alarmantes sucessos: nenhum espírito de luz voltara à sala maculada por nossa rebelde presença, por nossa juvenil literatura e - quem sabe? pelas imprecações contra vossa glória nem sempre vazadas em termos elegantes e castiços. Em lugar dos habituais luminosos espíritos de bondade, haviam descido dos círculos infernais os condenados espíritos das trevas, a ranger os dentes e berrar palavrões e escandalizar os crentes com seus desatinos. Ficamos orgulhosos com esses resultados, sinal evidente de nossa força a refletir-se além dos limites do nosso mundo de mortais - mas não obtivemos a chave da sala. A chave trancada na mão, irredutível médium pedia-nos desculpas e expulsava-nos.

Passou a Academia a funcionar no Café Bahia, no Bar das Meninas, em lugares suspeitos, nas madrugadas boêmias, na Feira de  Água de Meninos e assim foi se dissolvendo com a idade e a literatura. É evidente que não podíamos lutar com êxito ao mesmo tempo contra vossa imortalidade e contra e a imensa legião dos espíritos.

A Geração de 1930

Quanto a mim sou um rebento da família de Alencar. Nasci para a literatura e o romance com uma geração de coração aberto e generoso. Os escritores surgidos no ano trinta quando os fundamentos do Brasil vinham de ser abalados por um movimento revolucionário de raízes populares. Refletiram-se no romance de trinta e duas vertentes a que venho aludir. Mas houve uma constante, nos machadianos: a preocupação pelo Brasil, seu destino, seu futuro. Permitiu-se aqui dizer uma palavra sobre esse tempo e os companheiros que o compuseram, quando a publicação de Casa-grande e Senzala foi um impacto ainda não renovado e nosso ensaio, quando surgiram os ensaístas e críticos de nossa realidade. Luiz Viana Filho, Afonso Arinos, Arthur Ramos, Sérgio Buarque de Holanda, Edson Carneiro, Caio Prado Júnior. E os novos poetas como Drummond, A. F. Schmidt, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes. Da angústia e da miséria nasceu o romance de trinta. O romance do açúcar, da decadência dos meninos de engenho e do aparecimento na cena da vida nacional dos moleques Ricardo, saga escrita pelo grande mestre da narração brasileira e inesquecível figura humana que foi José Lins do Rego. O romance do árido sertão e dos sofridos sertanejos desse extraordinário Graciliano Ramos, em cuja obra, num milagre de harmonia, conciliaram-se as duas vertentes.  Alencar e Machado. O romance do desespero da seca do homem castigado pela natureza e pelo latifúndio, o romance de José Américo de Almeida, que abriu a picada inicial por onde marchamos, pois sem seu notável A Bagaceira não teria existido o romance de trinta; o romance de Rachel de Queiroz, parenta de Alencar pelo sangue, pela paisagem e pelo sentimento sertanejo que preside sua obra. O romance da pequena burguesia brasileira, doloroso e inquieto, na obra cada vez mais considerável e importante de Érico Veríssimo. O mundo trágico e denso de Octavio de Faria, que realiza uma das obras mais sérias da ficção de língua portuguesa. O romance carioca e universalista de José Geraldo Vieira. A dilacerante novelística de Lúcio Cardoso, o espantoso menino dos tempos de "Maleita", o romance de hoje o mesmo de Crônica da Casa Assassinada.

Dinah Silveira de Queiroz com suas moças enfermas e seus paulistas heróicos. O romance mineiro de Ciro dos Anjos da família de Machado. Os contos de Marques Rebelo, de João Alphonsus, de Magalhães Júnior, de Orígenes Lessa. Romance que permitiria o acesso de novas gerações de romancistas, os que vieram em quarenta. Dalcídio Jurandir com os rios e o povo da Amazônia, Josué Montello e sua cidade de São Luís, a lenta vida provinciana, Adonias Filho das terras do cacau. Mario Donato do aforismo de São Paulo, Lúcia Benedetti, Guilherme Figueiredo, para chegar a Guimarães Rosa, ao seu mundo extraordinário e à sua discutida experiência e aos mais jovens surgidos a partir de 1945.

Minha geração, esses romancistas do ano trinta, chegava a vida e para a criação novelística com o peito oprimido sob a angústia do Brasil e do homem brasileiro, em busca de caminhos para solução dos nossos problemas. Variados foram os caminhos surgidos, mas o ponto de partida era o mesmo: o amor ao Brasil e a seu povo,  a necessidade de solidarizar-se com o homem e o seu drama fosse o drama inferior de sua solidão.

Quanto a mim busquei o caminho nada cômodo de compromisso com os que nada têm e lutam por um lugar ao sol, com os que não participam dos bens do mundo, e quis ser, na medida de minhas forças, voz de suas ânsias, dores e esperanças. Refletindo despertar de sua consciência, desejei levar seu clamor a todos os  ouvidos, amassar em seu barro o humanismo de meus livros, criar sobre eles e para eles.

Jorge Amado - foto: Zélia Gattai
O Escritor - um ser político

Muitas vezes fui acusado de interessado e parcial, de escritor comprometido e limitado por esses
compromissos, de escritor político e participante. Jamais tal acusação me doeu ou pesou, jamais me senti por ela ofendido. Qual o escritor não político? De mim não sei de nenhum. A própria condição de escritor é uma condição política, tão politicamente poderosa que ultrapassa a própria atuação imediata de escritor e por vezes a ela se opõe como sucede inclusive no caso de Alencar, cuja obra sob tantos aspectos revolucionária não coincide com determinadas posições do senador do Império. Políticos somos todos nós escritores, a começar por aqueles que exigem seu horror a política, seu nojo à participação. Ao agir assim, que estão fazendo senão assumir uma posição política, sem dúvida a mais desalentadora e triste, a de fuga da vida? Aos demais, cumpre notar um curioso detalhe; só é considerado engagé e comprometido merecer de censura e culpado de manchar a pureza da literatura, quem se compromete com o povo e se engaja nas batalhas da libertação de povos e países nas lutas pela modificação da sociedade atual os que se comprometem e se engajam do outro lado, não sei por que espécie de mistério, jamais são acusados, sua literatura não sofre restrições, continua da maior pureza e jamais contra ela se levanta a acusação de participante e político. São méritos da crítica literária que um modesto romancista baiano não pode perceber.

Quanto ao meu comprometimento e à minha parcialidade, meu único compromisso, dos meus começos até hoje, e espero, certamente até a última linha que venha a escrever tem sido com o povo, com o Brasil e com o futuro. Minha parcialidade tem sido pela liberdade contra o despotismo e a prepotência; pelo explorado contra o explorador; pelo oprimido contra o opressor; pelo fraco contra o forte; pela alegria contra a dor; pela esperança contra o desespero, e orgulho-me dessa parcialidade. Jamais fui nem serei imparcial nessa luta do homem, na luta do futuro e o passado entre o amanhã e o ontem.

Nunca desejei senão ser um escritor de meu tempo e de meu País. Não pretendi e não tentei nunca fugir ao drama que nos coube viver, de um mundo agonizante e um novo mundo nascente. Não pretendi nem tentei jamais ser universal senão sendo brasileiro e cada vez mais brasileiro. Poderia mesmo dizer, cada vez mais baiano, cada vez mais um escritor baiano. E se meus livros foram felizes pelo mundo afora, se encontram acolhimento e estima dos escritores e leitores estrangeiros, devo essa estima a esse público à condição brasileira daquilo que escrevi, à fidelidade mantida para com meu povo, com quem aprendi tudo quanto sei e de quem desejei ser intérprete.

Não consegui jamais, sequer nos meus tempos de intensa militância política, ser um homem sectário. Por isso mesmo soube sempre estimar e admirar a obra daqueles escritores cuja maneira de encarar a vida e a literatura diverge da minha. Creio caber a cada escritor o direito de realizar sua obra como melhor lhe pareça fazendo-a participante ou não, voltada para o mundo interior, a serviço de uma causa ou na busca da beleza, sem acreditar, no entanto, que existe um só escritor ou uma única obra despida de certa porcentagem de participação. Inclusive o mais puro poema de amor. Não é por acaso das flores que as abelhas retiram o mel, poderoso alimento?

O Escritor participante

Exatamente por admitir o direito de cada um criar como melhor lhe aprouver, e por ter capacidade de admirar obra diversa da minha, é que não posso aceitar a condenação violenta que pesa sobre os escritores participantes ou interessados. Tão válida, nobre e considerável é a sua literatura como outra qualquer. Tão importante e capaz de imortalidade, tão cheia de grandeza e de humanismo. Tem o escritor o direito - e por vezes o dever - de tomar posição quando bem queira e entenda. Não é a literatura frágil cristal inconsistente ou pundonorosa donzela aflita que não possa misturar-se aos interesses imediatos do homem, aos seus conflitos, a seu tempo, às suas lutas e anseios. Dessa mistura com a vida, com os problemas imediatos, não sai a literatura diminuída e manchada. Mistura-se o cristal com o aço, desabrocha a tímida donzela em mulher fecunda e bela, ganha a literatura uma dimensão maior. O que a história literária nos ensina é que desse misturar-se nascem as obras imortais, as que atravessam os tempos e permanecem lidas.

Não receei fazer de minha literatura arma de batalha do homem brasileiro, jamais fugi a interessar-me. Não temi sequer a chamada literatura de compromisso, aquele de objetivo puramente imediatista. Certa ocasião um homem estava na cadeia pelo único crime de suas idéias, pesava sobre ele longa pena, haviam lhe assassinado a esposa. Escrevi um livro para ajudar a luta por sua libertação e a luta contra a ditadura brasileira, e honro-me de tê-lo escrito. Com isso não quero afirmar dever o escritor construir sua obra na base do compromisso e do imediatismo. Não é o Acuso de Zola que lhe dá a imortalidade, é o Germinal. Mas ele cumpriu seu dever de escritor quando deixou por algum tempo o seu trabalho de romancista para defender a liberdade de um inocente a lutar contra a onda racista. Cumpriu seu dever de escritor Álvaro Lins com Missão em Portugal, em nada diminuiu sua obra com este livro, acrescentou-lhe algo.

Da mesma maneira quero dizer-vos, como me parece indispensável, essencial à literatura, a liberdade de criação.

Liberdade real e concreta. Não acredito em escola única nem em tendência única e tenho para mim que só o diálogo e o debate entre as diversas tendências possibilitam a elevação e o crescimento da literatura anêmica e banal, sem vitalidade, castrada em sua força criadora. O erro comumente cometido por certos defensores da literatura interessada é confundir a essência da própria condição do escritor. O escritor, pelo dom que possui de comover e influir sobre os homens, por sua particular sensibilidade mais aguda que a normal, deve ser aquele que primeiro vê os problemas e os expõe e para eles exige solução. Querer transformá-lo em simples propagandista das soluções encontradas para cada problema pelos estadistas e políticos é degradá-lo em sua dignidade, é reduzir a literatura a simples discurso moral.

Arrastaram-me Alencar e Machado a essas divagações e deixaram-me pouco tempo para falar dos demais que nesta cadeira me precederam. Lafayette, o bravo defensor da glória de Machado de Assis, contra a desabusada polêmica de Sylvio Romero, Alfredo Pujol, o primeiro no tempo a tentar, com talento e amor, o estudo do conjunto da obra machadiana. E, finalmente, Otávio Mangabeira, o eminente baiano a quem tenho a honra de suceder nesta Casa.

Os três Mangabeiras

Eram três moços, Francisco, João e Otávio, e o nome Mangabeira fora adotado pela família nas lutas da Independência para que mais ainda se afirmasse sua condição brasileira. Francisco Mangabeira morreu aos vinte e cinco anos de idade após uma existência aventurosa e heróica. "Notável poeta, de escrever sobre ele Andrade Muricy considerando-o "o poeta do Norte de mais elevado e vigoroso astro, depois de Castro Alves" e o de vida mais agitada e heróica entre todos os simbolistas brasileiros". "Como é que morre um poeta aos vinte e cinco anos? somos levados a repetir a pergunta, revoltados contra o destino que nos roubou o vate simbolista em plena juventude, quando começava a amadurecer sua poesia.

De certa maneira, seu destino heróico renovou-se numa das fases da vida de João Mangabeira. Quando os rudes sergipanos e sertanejos entraram pela selva adentro no sul da Bahia, para derrubar a mata e plantar cacau, quando a grande saga se vestiu de sangue e cada árvore escondia um homem na tocaia, quando as cruzes sem nome se levantaram na orla das picadas, quando a vida humana não valia mais de dez mil réis, um homem advogado, adolescente ainda, pois terminara o seu curso de direito aos dezenove anos, elevou sua voz nas tribunas de Ilhéus e de Itabuna. Era João Mangabeira iniciando sua gloriosa carreira. Contei num livro essas lutas, esse matar e morrer, esse desesperado heroísmo de homens varando a selva, disputando-a palmo a palmo, vencendo os animais, os outros homens e o mistério da floresta. Minha infância coincidiu com o fim das lutas, guardei nos ouvidos os estampidos dos últimos tiroteios, e nos olhos a visão dos homens em armas, das cavalgadas à noite para as emboscadas fatais, a visão da floresta penetrada e incendiada. Cresci ouvindo as narrações da epopéia que tentaria recriar, depois cresci no espanto e na admiração pelos feitos daquela minha gente sem lei e sem medo. Aprendi os nomes dos chefes destemidos, os coronéis do cacau, os jagunços famosos, os bacharéis cuja voz nos júris e cujo saber nos tribunais dava a primeira forma de civilização à conquista bárbara. O nome de João Mangabeira era dos mais freqüentes na boca dos narradores, pois jamais viram antes os grapiúnas, nem veriam depois, bacharel de maior talento, orador mais fulgurante, mais apaixonado criador de civilização e de cultura.

Eu era ainda muito menino nos tempos em que ele parava em frente à casa de meu pai, seu amigo, e me tomava ao colo. Mas o seu rastro ficou para sempre nas terras do cacau, e dele ouvi diariamente falar como de um homem de Ilhéus, um daqueles que construíram a riqueza e o progresso.

A vida iria ligar-me depois a João Mangabeira pelos laços da admiração e da amizade. Envaideço-me de ter um pouco concorrido para que ele escrevesse seu livro monumental sobre Rui Barbosa, ao perguntar numa nota de pé de página no ABC de Castro Alves, onde estava João Mangabeira que não escrevia o grande livro que a memória de Rui Barbosa estava a exigir.

Homem do progresso das idéias avançadas, soube caminhar à frente do seu tempo. Vida de exemplar dignidade, inteligência e saber a serviço da verdade, da justiça, do socialismo, é João Mangabeira figura ímpar em nossos tempos. Poderia lembrá-lo aqui em vários momentos dessa sua vida admirável, que é um patrimônio de todos nós que escrevemos no Brasil. Poderia lembrar a grande festa com que nosso Estado, Bahia, comemorou há dois anos, seus oitenta anos de idade com aquele fervor e aquela ternura em que os baianos se irmanam para louvor de seus filhos bem-amados. Poderia recordá-lo na tribuna da Câmara em solenidades da vida pátria. Ou na barra dos tribunais populares defendendo a democracia e o direito, ou na tribuna popular dos comícios, educando as massas. Permiti-me recordar apenas certa noite distante do ano de 1936, se não me engano no mês de abril. O terror dominava o mundo, o nazismo esmagava a liberdade, eram os direitos dos homens espezinhados. Começava no Brasil o processo de liquidação da democracia, que nos levaria aos anos desgraçados do Estado Novo. Estava eu preso na sala de detidos da Polícia Central, com muitos outros. João Mangabeira era uma das poucas vozes que o medo não havia calado no Parlamento de então. Elevava-se em acusação aos donos do poder, na defesa dos presos políticos. Naquela noite de que vos falo, fomos despertados pelo barulho anunciador de novas levas de presos. E vimos passar para a sala ao lado o deputado João Mangabeira, preso pelo crime de cumprir com dignidade seu mandato. Recordo como se fora hoje, sua serenidade, seu calmo sorriso, sua postura de homem. Parou um instante para falar comigo, tranqüilo, como se não estivesse rodeado de policiais, ameaçado não só em sua liberdade, mas em sua vida, pois naquele ano torturava-se e assassinava-se nas prisões brasileiras.

Quero saudá-lo daqui, quando venho ocupar a cadeira em que se sentou seu irmão, esta cadeira que devia ser, por todos os títulos, hoje ocupada por João Mangabeira. Quero dizer quanto me honra em ser de seu tempo, de seu Estado e daquelas terras do cacau que ele ajudou a construir e civilizar.

Elogio de Otávio Mangabeira
Jorge Amado - foto: Acacio Franco

Falar sobre Otávio Mangabeira seria fácil para mim, seu admirador e seu amigo, não me tomasse o
peito a emoção da ternura e da saudade. Bem o conheci; honrou o político ilustre, com sua amizade, ao escritor jovem da sua terra pelos idos de 30, quando a revolução veio tirá-lo do Ministério do Exterior para o exílio. Exílio que se repetiria, como as ameaças de prisão e o ostracismo. Porque a vida de Otávio Mangabeira foi uma única batalha, ininterrupta, pela liberdade, pelos direitos do homem, pela democracia brasileira, pela moralidade dos governantes. Poucos homens tão íntegros e coerentes possui nossa vida, e poucos baianos tão conseqüentes em sua condição de baianos quanto este mestre da oratória e da habilidade parlamentar, esse administrador de raras qualidades, esse homem de imensa doçura pessoal.

Se a política nos roubou o escritor que ele poderia ter sido, nos proporcionou o espetáculo magnífico de um dos maiores tribunos da história parlamentar brasileira. A elegância da forma, a pureza da linguagem, a clareza do pensamento, e, sobretudo, a constante fidelidade aos ideais democráticos, à liberdade, fizeram dele, como bem observou Afrânio Coutinho, "a personificação da arte da palavra". Fui seu colega na Câmara dos Deputados e era sempre com renovada alegria que o via subir à tribuna, com certa solenidade na figura e certa gravidade nos gestos precisos, alegria a crescer em puro deleite intelectual ao ouvi-lo, em afirmações das quais por vezes eu discordava, mas ditas de tal maneira que era impossível deixar de admirá-las. Foi o último dos grandes oradores de certa fase de nossa vida política. Hoje a oratória dos comícios e mesmo da tribuna parlamentar perdeu certa unção quase sagrada, certa grandeza de forma e de aspecto, certa magnificência, para ganhar maior vivacidade, colocar-se a par com o nosso tempo. Dessa grande oratória, vinda do Padre Vieira no púlpito da Sé da Bahia a clamar contra os invasores holandeses, foi Otávio Mangabeira mestre inconfundível.

Penso nele e o vejo sentado no grande salão do hotel, no Campo Grande, em Salvador, a desfilar histórias e fatos com alegria, com humor. Algumas dessas histórias definem o caráter e a sensibilidade desse homem que se manteve, durante toda a vida, fiel à sua integridade e à democracia. Conta-se, por exemplo, em Salvador, de sua preocupação, quando governador do Estado, ao saber de manifestação oposicionista, passeata de estudantes ou greve operária; evitar que a polícia se envolvesse e fosse brutalizar manifestantes ou grevistas. "Sobretudo não chame a policia", dizia ele a seus auxiliares, pois era a negação da violência, era a própria delicadeza feita homem e governante.

Ele próprio narrou-me a seguinte história: após deixar o governo, os sindicatos fizeram-lhe calorosa manifestação de apreço. E o orador operário disse, ao fazer-lhe o elogio: "Senhor Otávio Mangabeira, o senhor soube governar a Bahia com muita delicadeza". Mangabeira guardava na memória e no coração essa frase como a melhor homenagem às suas qualidades de governante. Ria, ria, ao contar a história satisfeito de não haver magoado a ninguém, quem quer que fosse, de não haver atirado os cães da política contra o povo, de ter podido, na hora de governar, exibir a unidade de seu pensamento e de sua ação.

Quando da última eleição legislativa, quis candidatar-se à Câmara de Vereadores de Salvador, onde começara sua carreira política, para dedicar seus últimos anos à cidade que tanto amava. Mas o povo baiano, numa prova de alta cultura, uniu-se por cima dos partidos para fazê-lo senador.

Evocação da Bahia

Se eu tivesse de buscar uma única imagem para definir Otávio Mangabeira, eu vos digo que ele é a Bahia. A Bahia em suas melhores e mais generosas qualidades, aquela finura de civilização que era dele e é do último homem do povo baiano. A Bahia da grande oratória e da extrema habilidade política, a Bahia da delicadeza, da gentileza, da ternura humana, a Bahia afável e afetuosa, a cordial, a acolhedora, a da doce brisa do mar, a dos luares sem igual. Otávio Mangabeira era a Bahia: o amor aos obres ideais, a irredutível luta pela liberdade, a consciência democrática.

Quando penso nele, penso na Bahia, na ampla humanidade de sua gente, na alegria do seu povo, em sua constante e fundamental doçura. Penso na Bahia nesta hora de minha vida, quando aqui chego com a responsabilidade de substituir Otávio Mangabeira. Chego coberto com a ternura de minha gente baiana. O fardão que envergo foi bordado com o ouro dos cacauais, foi a terra de Ilhéus, a terra do cacau, quem a ofertou a seu filho romancista, ao menino que ontem corria em suas ruas e atravessava suas estradas e hoje conta as histórias de espantar daquelas terras do sem-fim. E com o ouro da amizade com que o povo de Salvador agraciou-me, mas me cumulava numa festa de tanta emoção que não posso descer desta tribuna sem a ela me dirigir, na pessoa do ilustre governador e meu amigo Juracy Magalhães; nas pessoas de amigos tão caros ao meu coração, como Dorival Caymmi, cantor dos pescadores e do mar baiano; o sertanejo Wilson Martins, do rio São Francisco; o baianíssimo Odorico Tavares, vindo do Recife; meu velho e querido Giovanni Guimarães; o tranqüilo Mousés Alves, com seu sorriso e sua pintora Balbina; o jovem crítico Eduardo Portella, tão lúcido; a inquieta inteligência de Vavaldo Costa Lima; a doce ternura de Luiz Henrique, o riso largo de Mário Cravo e o coração de Mirabeau Sampaio; a sábia humanidade popular de Mãe Senhora, para dizer ao povo da Bahia que em nossas relações sou o único devedor. Do saber do povo me alimentei e se alguma coisa construí, ao povo o devo. Minha obra não é mais do que pobre recriação de sua grandeza.

Senhores Acadêmicos: chego à vossa ilustre companhia sem ódios e sem rancores. A vida foi generosa para comigo, deu-me mais do que lhe pedi e mereci. Pobre de bens materiais, sou rico de muitas outras coisas, muitos bens possuo em meu surrão - nem sei como tanto pude merecer da vida. Esposa e filhos, que são alegria diária e incentivo maior pra o trabalho, pais de toda dedicação, irmãos perfeitos na amizade. E tenho o mar da Bahia, os coqueiros do Nordeste, uma granja e uma praia em Pernambuco, mesa posta em tanta casa por esse Brasil afora, amigos em tantas partes do mundo, tantas mãos estendidas e tantos corações fraternais, saveiros navegando para o Recôncavo, adolescentes que me sorriem e me contam seus amores, uma roda de capoeira e uma cadeira de oba no terreiro do Ôpo Afonjá, à solta cabeleira de Yemanjá, as invencíveis de Oxóssi de Xangô. Tenho o mel e a rosa, a ânfora de água pura, a farinha e o pão, o obscuro metal, um pasto de veludo e a límpida manhã de cada dia.

Tenho a alegria de ter conservado jovem o coração, por não ter rompido jamais a unidade entre minha vida e minha obra, e por ter a certeza de que jamais a romperei.

E quando aqui chego, chegam a esta casa, a esta tribuna, vestindo este fardão, pessoas simples do povo, aqueles meus personagens, pois é por suas mãos que aqui ingresso. Vêm mestres de saveiros e pescadores. Mestre Manuel, Maria Clara, Lívia e Guma, e sua ansiosa espera da morte no mar; vêm negros e mulatos, pai-de-santo Jubiabá e o negro Balduíno, Rosenha Rosedá e o Gordo, vêm as crianças abandonadas, os capitães da areia, trabalhadores dos campos de cacau e rudes coronéis de repetição em punho; vêm o rei das gafieiras da Bahia, Quincas Berro D'água, a mulata Gabriela feita de cravo e de canela, e o comandante Vasco Moscoso de Aragão, que amava sonhar e comandava os ventos. Gente simples do povo, não sou mais de que ele, e se os criei, eles me criaram também e aqui me trouxeram. Porque eles são o meu povo e a vida que tenho vivido ardentemente.

A atmosfera literária de 30

Não creio ter sido, no entanto, inútil e infecunda a existência da Academia dos Rebeldes, na Bahia, naqueles anos. A atmosfera literária da cidade e do Estado caracterizava-se naquele então por um rancoroso conservadorismo, professores de medicina preocupavam-se mais com a colocação dos pronomes e a criação de neologismo do que com o desenvolvimento das ciências médicas, onde uma retórica vazia matava os instintos criadores e anulava a nobre tradição baiana de uma literatura voltada para os grandes problemas e as causas populares. Naquele rumoroso discurso de palavras sonoras e difíceis, a ficção de Xavier Marques, a poesia de Arthur de Sales, os sadios panfletos de Pinheiro Viegas, eram execuções e manter a continuidade das letras baianas maus imitadores de Rui Barbosa sem as qualidades do mestre, acentuavam ao máximo exagero o verbalismo com que escondiam a falta de idéias e a falta de seriedade científica. Contra essa realidade desoladora levantaram-se os rebeldes, juntamente com o grupo do "Arco de Flexa", este diretamente influenciado pelo modernismo paulista, grupo de onde sairiam figuras da importância de Eugênio Gomes, Herman Lima, Pinto de Aguiar, Godofredo Filho, Carvalho Filho. Companheiros da mesma luta contra as mazelas de uma época literária decadente, não havia, no entanto, unidade entre nós, os da Academia dos Rebeldes, e os excelentes rapazes do "Arco e Flexa". Digladiávamo-nos nas mesas dos bares, inconseqüentemente. Inconseqüentemente? Não sei, em verdade... Ao recordar aquele tempo ardente de juventude, creio encontrar uma explicação para nossas divergências. Enquanto o "Arco e Flexa" refletia sobretudo o modernismo, o verde-amarelismo ou a antropofagia, influenciado por Duvald e Mário de Andrade, Bandeira, Cassiano, Menotti, G. de Almeida, nós queríamos ir além do modernismo, queríamos uma literatura de raízes e características mais populares, a realidade do nosso Estado, a captação dos anseios do povo. Tudo isso de forma embrionária e confusa, é certo, porém essa idéia central de nosso pensamento fez caminho, perdurou e floriu na atual realidade cultural da Bahia, magnífica.

Penso fazer-se urgentemente necessário o estudo daquela fase da literatura baiana e do que ela significou para nosso Estado. Onde está Eugênio Gomes, admirável mestre do ensaio brasileiro, escritor de perfeita consciência; onde está Dias da Costa, contista da cidade de Salvador, que guarda memória de cada detalhe de nossa vida de então - onde estão eles que não analisam e não contam os movimentos transformadores da vida intelectual baiana?

Jorge Amado, 1935 - foto: ...
Os anos de aprendizado

Eu vinha de uma infância nas terras bravias do cacau, assistira ao drama da conquista da selva, ouvira a voz dos advogados nos júris dos coronéis de toda audácia, ainda infante fora banhado pelo sangue de meu pai ferido numa tocaia. Traduzia dentro de mim os ecos da grande epopéia e também os lamentos lancinantes dos trabalhadores curvados nas rocas, numa vida de bestas de carga.

Os anos de adolescência na liberdade das ruas da cidade do Salvador da Bahia, misturado ao povo do cais, dos mercados e feiras, nas rodas de capoeira e nas festas dos candomblés e no átrio das igrejas centenárias, foram minha melhor universidade, deram-me o pão da poesia, que vem do conhecimento das dores e das alegrias de nossa gente. Ao rememorar esse tempo, posso medir e pesar a infinita compreensão, a paciência do coronel João Amado de Faria, conquistador de terra e plantador de cacau, e de dona Eulália Leal Amado, sua esposa, que muitas vezes dormiu com a repetição ao lado do leito como ainda hoje ama contar. Como todos aqueles rudes desbravadores, eles desejavam ver o filho feito doutor, advogado, médico ou engenheiro. E o filho desprezava os manuais de estudo para atirar-se à vida, procurar a redação dos jornais, escrever inconseqüências em pequenas revistas de limitada duração. Souberam eles compreender e confiar e, se alguma coisa realizei de perdurável a eles devo, à sua constante e comovente solidariedade.

A eles e ao povo de meu Estado. Com o povo aprendi tudo quanto sei, dele me alimentei e, se meus são os defeitos da obra realizada, do povo são as qualidades porventura nela existentes. Porque, se uma qualidade possui, foi a de me acercar do povo, de misturar-me com ele, viver sua vida, integrar-me em sua realidade. Seja no mundo heróico e dramático do cacau, seja no oleoso mistério negro da cidade de  Salvador da Bahia.

Penso, assim , poder afirmar que chego à vossa ilustre companhia pela mão do povo, pela fidelidade conservada aos seus problemas, pela lealdade com que procurei servi-lo tentando fazer de minha obra arma de sua batalha contra a opressão e pela liberdade, contra a miséria e subdesenvolvimento e pelo progresso e pela fartura, contra a tristeza e o pessimismo, pela alegria e confiança no futuro. Segundo a lição da literatura baiana, fiz de minha vida e de minha obra uma coisa única, unidade do homem e do escritor, aprendida na estrela maior do céu baiano, o poeta Castro Alves, estrela matutina da liberdade, estrela vespertina dos ais de amor.

Alencar e Machado: duas vertentes

E chego para ocupar, pleno de humildade, uma cadeira cujo fundador foi Machado de Assis, alicerce e fundamento desta Casa e cujo patrono, por ele escolhido, é José de Alencar, viga mestra de nossa literatura. José de Alencar e Machado de Assis, o próprio romance brasileiro, o conjunto das qualidades de nossa prosa de criação.

Quando digo que Alencar e Machado são o romance brasileiro, não o faço tão-somente para exaltar a grandeza do criador de Iracema ou a grandeza do criador de Capitu. Faço-o, sobretudo, para ressaltar a oposição existente entre essas duas grandezas, ambas, no entanto, autênticas e fundamentais em nossa história literária.

A grandeza de Alencar resulta de certos valores que marcam e definem toda uma vertente de nossa ficção, assim como a grandeza de Machado é conseqüência de valores outros que marcam e definem toda uma vertente do romance e do conto brasileiros. Um é a força do povo, bravia, descontrolada, enchente e enxurrada, árvore nunca podada, jequitibá gigante, floresta enredada de cipós, grávida de cores violentas, rumorosa de vozes de pássaros, espalhando-se sem fronteiras como um rio em cheia, banhada de sol e de luar, de "verdes mares bravios de nossa terra natal", excessiva de deslumbrante. Tentando transpor para o plano literário a língua doce e musical de nossa gente; longe da gramática portuguesa e da limitação dos clássicos numa liberdade e numa libertação próprias das grandes massas e das nações jovens. De valores assim é feita a obra de Alencar e seus defeitos e limitações provêm da terra onde está plantada, da pujança de suas raízes e de sua condição revolucionária. Sua permanência e sua universalidade, seu tempo e seu espaço independem dos críticos, dos filósofos, dos professores, dos estudos, dos ensaios, das palmas dos intelectuais do elogio dos pedantes e aristocratas, independem do papel escrito, pois os escritores dessa família de Alencar escrevem menos com tinta do que com sangue, menos com as regras da gramática do que com o conhecimento da vida. Por isso se sofrem o nariz torcido de certa crítica esteticista, arrastam consigo o amor do povo, e é nas mãos do povo que partem para o futuro, para serem amanhã os clássicos de seu tempo. Que importa a Alencar o persistente silêncio de nosso ensaísta e de nossos críticos, a desconfiança com que olham o mundo por ele criado, amedrontados ante as picadas por ele abertas, que importa a Alencar essa conspiração de silêncio se suas edições crescem e multiplicam-se com o passar dos anos, se cada homem do povo conhece e estima seu nome, se a cada dia batizam-se dezenas de Iracemas, se os índios de seus romances viraram folclore, dança e carnaval, habitam para sempre nossos corações? Sua imortalidade não é de edições críticas, do refinado gosto dos raros, não é conservada nas bibliotecas. Sua imortalidade é viva, está nos trens dos subúrbios, nos alucinados lotações, nos bondes lentos, na bolsa do estudante, na noite pobre da costureirinha, no despertar do adolescente, nos milhares e milhares diariamente debruçados sobre livros seus comovidos com a leitura. Essa é a glória que corresponde aos escritores da família de Alencar.

Machado somou, ao seu conhecimento da vida e dos homens, a qualidade literária conquistada dia a dia, palmo a palmo, é feito de meia luz e de meia sombra. Em sua obra é tão importante o que foi apreendido nos livros quanto a experiência vivida e, por vezes, até mais importante. Nele tudo é medido, num cálculo sábio e preciso, cada coisa em seu lugar, a voz não se altera em gritos. Há uma busca de perfeição, em cuidado de forma, respeito à língua literária portuguesa aos seus cânones e regras, a lição dos clássicos, que faz com que ele, brasileiro mestiço, escreva um português mais puro e comportado de que na mesma época escrevia m Portugal Eça de Queiroz, como se, a julgar-se pela língua, português fosse Machado e o brasileiro fosse Eça. Mais próximo do ceticismo do que confiança no homem, mais do pessimismo em relação à vida que do otimismo voltado para o futuro, mais da pena bem aparada e da tinta do que do sangue aos borbotões, bosque bem cultivado de formosas árvores, de cuidados caminhos, seus espinhos estão escondidos nas pétalas das flores, os embaraçosos cipós foram retirados, nele culmina a literatura como arte. Há tanto que aprender em sua obra como feitura literária, tanta lição de artesanato e de arte, que apaixonados curvam-se sobre sua obra a estudá-la, a analisá-la, a buscar os segredos de cada parágrafo e de cada palavra os ensaístas, os historiadores da literatura, os críticos em cujas mãos repousam sobretudo a glória e a imortalidade da obra machadiana. Sem que, no entanto, deixou de repousar nas mãos do povo, no respeito e na admiração do povo, pelo que ela contém de vida e de verdade, de brasileiros apesar da língua lusitana pelo mundo de ambientes, figuras e sentimentos brasileiros, pelas Capitus de olhos de ressaca e pelos senhores tímidos e irônicos, pelo Rio de Janeiro, bela retratada e recriada pelo carioca amante de sua cidade, pelo amor mais poderoso que o ceticismo a iluminar sua criação.

Romance Social e Romance Psicológico

São os dois caminhos do nosso romance, nascendo um de Alencar, nascendo outro de Machado, indo um na direção do romance popular e social, outro com uma problemática ligada à vida interior, aos sentimentos e problemas individuais, a angústia e a solidão do homem, sem, no entanto, perder seu caráter brasileiro.

É curioso notar que, se numerosa é a descendência de Alencar, não tem ele praticamente imitadores, como se os romances que compõem esta vertente de nosso romance recebesse do mestre apenas a indicação de um caminho. Enquanto a maioria dos descendentes de Machado - com evidentes e importantes exceções - são seus imitadores copiando do mestre não apenas a posição ante a vida transposta para a arte, mas também os cacoetes e os modismos. É que Alencar nos logra a vida e a vida vive-se, não se imita, enquanto Machado nos lega a literatura, a perfeição artística que invejamos e tentamos imitar.

Jorge Amado - foto: ...
Falo dessa oposição entre a obra dos dois grandes mestres, oposição que se prolonga em nossa
novelística, não para fazer o elogio de uma vertente e a crítica da outra, para concluir pela validade de uma delas e o erro da outra. Seria atitude não só sectária, mas falsa e tola, infelizmente habitual e
corrente, resultante de uma limitação do espírito crítico. Válidas são uma e outra, qualidades e defeitos encontramos nas duas, e o justo e certo é considerar a necessidade da existência e do desenvolvimento das duas vertentes, do debate por elas provocado, do diálogo por elas situado, do confronto por elas estabelecido. A meu ver é da soma dessas duas vertentes, da soma de seus valores, que se forma o complexo do romance brasileiro. Sem Alencar não teríamos romance brasileiro. Não o teríamos sem Machado de Assis. Não somos apenas um lado de nosso corpo, não somos apenas a mão direita ou a mão esquerda.

17/7/1961

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* Fonte: ABL

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Página atualizada em 28.11.2016.


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Giorgio Agamben - entrevista: Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro

Giorgio Agamben - foto: ...

"O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro", afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, em 16 de agosto de 2012.

Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, Giorgio Agamben foi definido pelo Times e por Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.

A tradução é de Selvino  J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, para o site do Instituto Humanitas Unisinos.

Peppe Salvà - O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe  financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itáli. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?
Giorgio Agamben - “Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ”Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.
Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a idéia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas - assumiu  o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania ), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.

Peppe Salvà - A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?
Giorgio Agamben - A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado.  Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido,  ele, como hoje aparece  como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico,  mas talvez consista nisso, no fato de que  o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história  e o passado tem um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.
O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi.  Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar)  têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim,  da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com  as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.
Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado  ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.

Giorgio Agamben - foto: ...
Peppe Salvà - A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?
Giorgio Agamben - Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua  (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo,  foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder.  Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política.  O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma  da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.

Peppe Salvà - O mal-estar, para usar um eufemismo, com que  o ser humano comum se põe frente  ao mundo da política tem a ver especificamente com a  condição italiana ou é de algum modo inevitável?  
Giorgio Agamben - Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais  econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência.  As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo,  aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.

Peppe Salvà - O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?
Giorgio Agamben - Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia  em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos.  Poucos  sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmaras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível  aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmaras não é mais um lugar público: é uma prisão.

Peppe Salvà - A  grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal,  o futuro será melhor do que o presente?
Giorgio Agamben - Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: ”a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.

Peppe Salvà - Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a lectio que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação  de como sair do xequemate no qual a arte contemporânea está envolvida.
Giorgio Agamben - Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade  que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercadorização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea,  as duas coisas coincidem.
Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made?  Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente - a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança  aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um  objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer
Giorgio Agamben - foto: ...
Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.
Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercadorização.  Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio,  infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com  não-obras e performances a museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.


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Pedro Bloch - entrevistado por Clarice Lispector

Pedro Bloch - foto: ...
“Gosto até de quem não gosta de mim.”

Fui convidada pela doce Miriam Bloch para almoçar na casa agradabilíssima deles, aceitei contente. E entrevisto Pedro, uma das pessoas mais entrevistáveis que conheço.

Clarice Lispector – Pedro, você é uma das pessoas de maior coração que já vi. E acho que em todas as bondades entra uma parte de inteligência, senão a bondade não seria eficaz. Quando você julga os outros de um modo tão compreensivo e tão seu, é por bondade estritamente falando, ou por inteligência de descobrir a verdade?
Pedro Bloch – O que você chama de bondade talvez seja minha sintonia com o mundo. Sou coletivo. Tenho o mundo dentro de mim. Acho que todo ser humano tem uma dimensão universal, única, insubstituível. Por respeito a cada ser humano, em todos os cantos da Terra, e por gostar de gente, gostar de gostar, é que eu encontro em cada indivíduo o reflexo do universo. Desculpe, mas eu gosto até dos que não gostam de mim. Mas gosto dos que gostam.

Clarice Lispector – Você é um grande médico, teatrólogo famoso: falta-lhe alguma coisa para sentir o homem completo que na verdade você é?
Pedro Bloch – Não sei se sou grande médico. Sou teatrólogo famoso, porque a estatística o afirma. Mas não sendo grande em nada, ajo como se o fosse. Quando atendo a um paciente, procuro ser o melhor que posso. Quando escrevo uma peça, acredito que estou fazendo a coisa mais importante do mundo. Completo, não. Completo lembra realizado. Realizado é acabado. Acabado é o que não se renova a cada instante da vida e do mundo. Eu vivo me completando nos outros, mas falta um bocado.

Clarice Lispector – De que modo, Pedro, você reconstruiria o mundo?
Pedro Bloch – Começaria por me reconstruir. O mundo somos todos nós, responsáveis, um a um, um por um, pelo que fizemos do mundo. Só depois de me reconstruir é que eu me sentiria no direito de reconstruir o mundo.

Clarice Lispector – Por Deus, como e onde é que você capta tantas coisas maravilhosas ditas pelas crianças?
Pedro Bloch – E só ter ouvidos de ouvir criança. Confesso a você que tenho a vaidade de ser “o homem das historinhas de crianças”. Elas afinam comigo. Tanto que a diferença de idade nem dói. Por isso é que saíram aquelas coisas como “O cor-de-rosa é um vermelho... mas muito devagar”, “Coitado do trenzinho do Pão de Açúcar... está pensando que é avião.” “O gato morreu... porque o gato saiu do gato e só ficou o corpo do gato.” Aprendo com as crianças tudo que os sábios ainda não sabem.

Clarice Lispector – Você é considerado um papa na reabilitação da voz, dando, inclusive, voz a quem não tem. Como é que você se sente neste trabalho?
Pedro Bloch – No mundo em que vivemos, de conhecimentos tão vastos e informação tão constante, ninguém é papa em nada. Só mesmo o próprio. Como me sinto? Com uma permanente, grande responsabilidade. E é por isso que eu recomeço a cada dia, às cinco da manhã, estudando, duvidando e procurando aprender com quem sabe mais.

Clarice Lispector – Além de foniatra, você tem dado cursos para médicos e técnicos. O que levou você a atividades didáticas? A fraternidade humana? A capacidade de dar de si sem avareza? Pioneirismo?
Pedro Bloch – Ninguém é pioneiro de nada. Houve sempre alguém que fez antes. O problema não é de prioridade. É a gente se encontrar a si mesmo. Eu já disse que a gente só é gente quando a gente é a gente mesmo. Se eu sei... ensino. Se não sei... procuro aprender. Aliás, eu poderia repetir que “eu não ensino... mostro”.

Clarice Lispector – Quantas peças teatrais suas foram levadas ao palco?
Pedro Bloch – Todas. Quase trinta.

Clarice Lispector – E quais foram as representadas no exterior?
– Quase todas. Quase trinta. Tive a alegria de saber que uma peça minha, no mesmo dia, era representada em todos os continentes.

Clarice Lispector – Eu acho que não consegui me realizar como escritora. Você consegue se realizar como teatrólogo?
Pedro Bloch – Se você diz que não conseguiu se realizar como escritora, sendo a maior escritora do continente, então ninguém se realizou em nada.

Clarice Lispector – Que acha você do amor?
Pedro Bloch – Não acho. Amo. Não acho. Achei: Miriam.

Pedro Bloch - foto: ...
Clarice Lispector – Todos acham – embora sem mover uma palha para isso – que há falta de amor no mundo, amor no seu sentido amplo. A seu ver, é esse ingrediente que faria o mundo se mover em sentido enfim construtivo?
Pedro Bloch – As pessoas chamam de amor ao amor-próprio. Chamam de amor ao sexo. Chamam ao amor de uma porção de coisas que não são amor. Enquanto a humanidade não definir o amor, enquanto não perceber que o amor é algo que independe da posse, do egocentrismo, da planificação, do medo de perder, da necessidade de ser correspondido, o amor não será amor. O que faz o mundo se mover em sentido construtivo é a verdade. Ainda que provisória. Ainda que seja mais caminho que meta. As palavras afogam tudo: o amor, a verdade, o mundo. Enquanto o homem não marcar um encontro sério consigo mesmo, verá o mundo com prisma deformado e construirá um mundo em que a Lua terá prioridade, um mundo de mais Lua que luar.

Clarice Lispector – Por que motivo você não escreve uma espécie de memórias, de diário?
Pedro Bloch – É que eu já reparei que só quando a gente começa a perder a memória é que resolve escrever memórias. Eu ainda a tenho razoável. Quanto ao meu diário, ele estaria vazio de mim e cheio das pessoas que amo. Por isso prefiro escrever sobre elas, e não o meu diário.

Clarice Lispector – Pedro, você me parece expansivo, espontâneo. E, no entanto, é um homem também reservado, voltado para dentro de si, no sentido em que você dá aos outros e pouco pede para si. Como é você de verdade?
Pedro Bloch – Fiz, uma vez, uma receita de viver que acho que me revela. Viver é expandir, é iluminar. Viver é derrubar barreiras entre os homens e o mundo. Compreender. Saber que, muitas vezes, nossa jaula somos nós mesmos, que vivemos polindo as grades em vez de libertar-nos. Procuro descobrir nos outros sua dimensão universal e única. Não podemos viver permanentemente grandes momentos, mas podemos cultivar sua expectativa. A gente só é o que faz aos outros. Somos consequência dessa ação. Talvez a coisa mais importante da vida seja não vencer na vida. Não se realizar. O homem deve viver se realizando. O realizado botou ponto final. Tenho um profundo respeito humano. Um enorme respeito à vida. Acredito nos homens. Até nos vigaristas. Procuro desenvolver um sentido de identificação com o resto da humanidade. Não nado em piscina se tenho mar. Gosto de gostar. Todo mundo é perfeito até prova em contrário. Gosto de fazer. Não fazer... me deixa extenuado. Acredito mais na verdade que na bondade. Acho que a verdade é a quintessência da bondade, a bondade a longo prazo. Tenho defeitos, mas procuro esquecê-los a meu modo. “Saber olvidar lo malo también es tener memoria.”

Clarice Lispector – Você acredita em milagre?
Pedro Bloch – Eu só acredito em milagre. Nada mais miraculosa que a realidade de cada instante. Acredito mais no sobrenatural. O sobrenatural seria o natural mal explicado, se o natural tivesse explicação. Gilberto Amado anotou esta frase minha. Deve ser boa.

Clarice Lispector – Miriam é a sua companheira ideal, são pássaros do mesmo ninho. Em que mais, além do grande amor, essa criatura acompanha você?
Pedro Bloch – Não há mérito em amar a Miriam, porque nela encontro todas as mulheres do mundo. Ela me acompanha em tudo. No trabalho – é minha colaboradora melhor, na reabilitação da voz – na vida, em tudo. Ela é tão despida de egoísmo que chega às raias do desumano. Nunca vi de Miriam um gesto, uma palavra, uma atitude que não fosse para o bem dos outros. Quis casar com ela na mesma hora em que a conheci. Mas, agora que a conheço mais gostaria de tornar a casar todos os dias.

Clarice Lispector – De suas peças, qual levou mais tempo em cartaz?
Pedro Bloch – Muitas levaram “mais tempo”. A recordista, porém, é As mãos de Eurídice. Os pais abstratos vai pelo mesmo caminho... e é a penúltima. Agora termino Orfeu espacial que é a visão do mundo através dos olhos lúcidos e apavorados de uma juventude que ama os astros e os computadores.

Clarice Lispector – Suas peças são arquitetadas ou você as segue mais ou menos ao sabor do que vai acontecendo?
Pedro Bloch - foto: ...
Pedro Bloch – Minhas peças são primeiro sofridas, depois escritas e depois arquitetadas. A arquitetura vem em último lugar. Eu só escrevo o que vivi, senti e sofri, na própria pele ou transbordando dentro da corrente humana, mesmo quando meus problemas estão superados. Acho que Os pais abstratos reflete o homem de hoje mais do que qualquer peça de protesto. A verdade é sempre o maior protesto.

Clarice Lispector – Você gosta de você?
Pedro Bloch – Eu poderia dizer que gosto de todo mundo... até de mim.


PEDRO BLOCH – Pioneiro da foniatria no Brasil escreveu As mãos de Eurídice, um dos maiores sucessos teatrais brasileiros. Destacam-se também Dona Xepa e Os pais abstratos.

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Fonte: 
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.


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