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Sylvio Back: em duas entrevistas

ENTREVISTA I
Sylvio Back - foto: Frederico Mendes (2014)
SYLVIO BACK
Entrevista concedida à Sandro Moser - (Jornal 'Gazeta do Povo', Curitiba/PR – 12.6.2016).

GAZETA – “Lance Maior” é considerado o filme fundamental da cinematografia em Curitiba. Padrão de excelência técnica e de linguagem moderna. O que passava na cabeça do Sylvio Back de então? Que referencia você tinha? Como você projetava sua carreira na época? 

Back – No Festival de Brasília de 1968, com “Lance Maior”   homenageado pelos seus quarenta anos, pois estreara nacionalmente ali, cercado pelas atrizes Regina Duarte e Irene Stefânia convidei o público a rever o filme no seu cinquentenário! Primeiro, silêncio e quando caiu a ficha, uma gargalhada geral. E não é que já estamos chegando à soleira dessa data redonda? Na verdade, meio século é um tempo muito curto para carimbar sobre vida de uma obra de arte. Suficiente, no entanto, para men surar o seu espectro multiplicador. Sim, a partir de “Lance Maior”, impossível deixar de reconhecer a paternidade de inestimáveis filhos legítimos (como os premiados Sérgio Bianchi e Joel Pizzini, meus primevos assistentes), e tantos quantos bastardos que, apesar do talento, da cinefilia e da vontade, ficaram a meio caminho ou não souberam materializar a quimera. Todos, no entanto, e é com alegria que legitimo o fato, compõem soberba prole de cineastas, documentaristas e videastas que, com sua obra, acabou tirando da solidão o primeiro filme que cravou Curitiba (e o Paraná) na história e no mapa e cinematográficos do país. Esse é o título mais desfrutável que o filme ostenta. À distância, o veio estético fundador de “Lance Maior” fica cada vez mais difuso: um tanto ancorado na poesia de mestres como Rossellini, Bergman, Visconti,  Resnais, meio no existencialismo de “O Grande Momento” (1957), de Roberto Santos e “São Paulo S/A” (1965), de Luís Sérgio Person, outro tanto nas pro postas políticas do Cinema Novo, na modernidade da Nouvelle Vague (e quem não era pi cado pela revolução formal do cinema de Godard e “sua” turma?). E, reinando so bre tudo e todos, o cinema americano – o pão-nosso-de-cada-dia de qualquer cinéfilo que se prezasse (e eu me prezava!, até como crítico dele: vendo,  “lendo” e escrevendo sobre filmes de Hollywood, aprendi as melhores e piores lições de cinema...). Talvez por estar desalinhado ao discurso cinematográfico vigente nas telas de seu tempo, talvez pura adivinhação da década sangrenta engatilhada pelo AI-5, “Lance Maior” ainda exala uma inocência de lin guagem e autoria irrepetíveis no meu cinema. Quem sabe aí (não) se escondam os germes que lhe adiam a morte e o esquecimento? 

GAZETA – Teu cinema, a meu ver, tem três elementos essenciais. Um é a questão do imigrante, do desterrado num espaço, muitas vezes, hostil. Outro tema é o conflito, a guerra, o fim da diplomacia entre os homens e povos. Ainda há o terceiro que é a poesia. Faz sentido minha análise? Há outros? Por que estes são os pilares do teu cinema? 

Back – Nasci poeta já homem maduro, aos 58, abençoado literariamente por Paulo Leminski (que dedicou poema festejando minha estreia), consciente de que se lida com a mais complexa manifestação do espírito humano. O poema é que escolhe seu autor, assim, senti-me eleito após décadas voraz leitor de poesia, jamais ousando um verso sequer. E, numa dicção rara e rala na poética nacional, o livro inaugural é de poemas eróticos, por sinal, ano passado republicado com outros quatro títulos afins em “Quermesse” (Topbooks). Então, como os roteiros surgem por força de uma epifania, assim é a aventura com a palavra. Curiosamente, a poesia sempre esteve presente na escritura dos roteiros, e isso é  evidente nos diálogos e na montagem de inúmeras sequências. Para um dos meus docs, “Yndio do Brasil”, enquanto trabalhava na edição, as imagens inspiraram sete poemas que acabaram dotando o filme de novo sentido, dada a inesperada pertinência estética e ética deles. Acredito que os meus filmes com as mais diversas embocaduras de linguagem e temáticas (basicamente, a história remota e recente do Brasil), tanto quanto os poemas, não obedeceram nem se pautam por planificação alguma. Pelo que significam existencialmente, são como se fossem minha família. Todos traem em seus fotogramas e frames os mesmos sacrifícios, alegrias, expectativas, tristezas e glórias, umas vãs e outras, também! Entre as alvíssaras recentes preciso celebrar e compartilhar: nestes tempos de crise do mercado recém vieram a lume, em lançamento nacional, meus doze longas-metragens em DVD, todos acondicionados em duas coleções na chamada "Cinemateca Sylvio Back". Trata-se de um luxo à toda prova! Aliás, não é de hoje que seu distribuidor, a DVDVersátil de São Paulo aposta na minha obra, cujo Vol. I, lançado anos atrás e esgotado, estava a exigir uma segunda fornada. Então, resolvemos aguardar a estreia nacional em cinemas de "O Universo Graciliano" para, juntamente com mais cinco títulos inéditos no digital, juntar no Vol. II, e assim oferecer ao público a obra completa de longas. Não posso deixar de sentir-me orgulhoso e recompensado de poder disponibilizar esses filmes de pegada absolutamente independente, seja a ficção a contrapelo da narrativa de consumo televisivo, sejam os antidocumentários na outra margem da febre de docs "chapa branca" e hagiográficos. Um cinema moral, como escreve a crítica paranaense, Solange Stecz, autora do meu verbete na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, uma filmografia que vem imprimindo sua marca registrada desde "Lance Maior" em 1968, minha estreia na direção de longas-metragens. Portanto, filhos, sejam bem vindos! 

GAZETA – Você é notório como cineasta por criar grandes equipes. Quem lê os créditos dos teus filmes com atenção se surpreende com alguns nomes que você chamou e lançou. Pessoas muito importantes de seus segmentos e de lugares diferentes. Isto é inato ou é pensado.

Back – Ambos se imbricam, pode crer. Afinal, o cinema, ainda que o diretor assine o filme, é obra coletiva. Quase todo filme de ficção, por menor que seja a produção, envolve entre 200 e 300 pessoas, incluindo o projecionista, que faz parte do espetáculo! Se deixar a imagem fora de foco ou o som desajustado, é como tivessem sido captados tal qual. É o estro dessa coletividade que dá estofo, sentido e poesia ao filme. Como odeio miséria tecnológica, pois o cinema nasceu na sociedade industrial, com o interruptor, e não na Idade Média nem na China Antiga, adoro me cercar de “estrelas”. Intuitivamente, sei lidar com “estrelas”, seja à frente da câmara, ou as que ficam do meu lado. E quanto mais luz receber delas, mais iluminado: é quando a criação toma forma e alma. Mesmo tendo por estilo dirigir à base do cochicho, jamais levantando a voz durante a filmagem, isso não quer dizer que não tenha enfrentado conflitos de surda combustão ao longo de alguns filmes com atores, atrizes e técnicos, desde “A Guerra dos Pelados” (1971) e “Aleluia, Gretchen “(1976) a “Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro (1999) a “Lost Zweig” (2003). Nada, felizmente, que deixasse cicatrizes na tela, que lhe deslustrasse o brilho e o acabamento técnico. Dirigir um espetáculo é uma permanente administração de egos, a começar pelo próprio... Posso afiançar que, sinceramente, não sei se faço bons filmes (meus 76 prêmios nacionais e internacionais podem, talvez, até soar como aval!), mas tenho mesmo uma convicção apenas, já que a artística depende da posteridade: o apuro tecnológico, pois sou perfeccionista desde o doc inaugural, “As moradas”, de 1964, ao recente “O Universo Graciliano”, a qualidade de imagem & som é grife incontornável da qual jamais abro a mão.  

GAZETA – “A Guerra dos Pelados” é um faroeste, é Cinema Novo, é neorrealismo e conta uma história ”mal contada” no país. O que te motivou especialmente para fazer este filme? 

Back - Nas quatro décadas que separavam o filme de ficção "A Guerra dos Pelados" (1971) das filmagens e finalização de  "O Contestado - Restos Mortais" (2010), uma sensação de lesa pátria nunca deixou de me angustiar (e que, de certa forma, continua...), não apenas como cidadão, mas por ser um cineasta cuja obra é seduzida pela ânsia de reverter as falácias e o esquecimento da história oficial. É flagrante o quão submersos, ignorados, omitidos, destorcidos e minimizados permanecem os fatos & atos dessa verdadeira guerra civil no hinterland de Santa Catarina e do Paraná, a ainda mal conhecida Guerra do Contestado (1912-1916), neste ano completando o centenário do seu sangrento epílogo. Para o bem e para o mal, o que eu imaginava jamais fosse acontecer, aconteceu: "A Guerra dos Pelados" e este "O Contestado – Restos Mortais" parecem filmes feitos por dois cineastas diametralmente opostos. Não apenas quanto à narrativa e realização cinemáticas, mas em todos os sentidos: da apreensão crítica da sua linguagem, que ensejou uma estética suprarreal, ao sentido político-ideológico do conteúdo; do questionamento existencial às mais pertinentes incursões filosóficas e morais que sacudiram o país e o mundo ao longo do século XX. Meu cinema tem investido, sem premeditação alguma, quase de forma intuitiva, no desmonte de tabus, mitos e utopias da história do Brasil, ora tematizando o conluio do nazismo com o integralismo (em "Aleluia, Gretchen") e a evangelização autoritária dos guaranis nas missões jesuíticas do Cone Sul (em "República Guarani"); ora escancarando a violência da Guerra do Paraguai (em "Guerra do Brasil") e a tragicomédia da presença da FEB na II Guerra Mundial (em "Rádio Auriverde"); ora denunciando a militarização do índio brasileiro (em "Yndio do Brasil) e desvelando a magnitude do maior poeta negro da língua portuguesa, rejeitado pela comunidade afrodescendente, o catarinense, Cruz e Sousa (em "Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro"); enfim, confrontando e colocando sob suspeita as próprias convicções e certezas politico-ideológicas de toda uma vida e carreira. Por isso busquei formatar com "O Contestado – Restos Mortais" um debate com a ficção de "A Guerra dos Pelados", lançando mão de um procedimento insólito para apreensão da história: a inserção da fala de médiuns em transe no corpo do filme, o que provocou a maior polêmica sobre essa instância perturbadora do inconsciente coletivo do homem. Justamente, por se tratar de um discurso imagético que vai ao ventre dessa história insepulta que o Brasil ainda precisa homenagear com as devidas e  merecidas exéquias morais. Assim, por vias transversas e convertendo o invisível e o indizível em visibilidade e oralidade, frequentei poeticamente (transe mediúnico é pura poesia!) o pretérito através do resgate mágico de personagens que poderiam ter existido. Sobre se os transes são verdadeiros ou mera encenação de atores é a primeira dúvida que veio à cabeça do espectador. Simplesmente porque ele não consegue acreditar no que vê e ouve. Nos debates do Festival de Gramado cheguei a ser elogiado pela crítica pela direção daqueles supostos atores e atrizes. Lógico, levei o elogio à conta dos diversos prêmios que ganhei como diretor de ator/atriz dos meus filmes de ficção. Tive que decepcionar a todos, não há nenhuma dramatização prévia nas cenas de alta voltagem emocional. Ao longo de semanas, frequentando o perímetro bélico do Contestado (centro-oeste de Santa Catarina) onde ocorreram os maiores massacres e degolas em massa, ou nos fornos crematórios feitos de taipa para queimar cadáveres de fanáticos e soldados, filmamos mais de cinquenta médiuns em transe. Para minha sorte, ainda que naturais e morando no chão do Contestado, essas pessoas pouco sabiam sobre o fatídico evento. O que, mais uma vez comprovando o fato de que a memória do Contestado vem sumindo. Ou seja, o que as nossas câmaras e microfones capturaram não era o que poderia ser visto como uma "leitura" de nossas mentes informadas sobre o assunto. Era tão poderosa a energia que emergia dos médiuns que chegava a nos conturbar na hora das filmagens. E eu tinha e tenho a maior admiração por esse indecifrável mergulho no âmago da humanidade. Daí a ideia de levar ao público esse meu fascínio através da inquietante linguagem cinematográfica de ”O Contestado – Restos Mortais”. 

GAZETA – Teu cinema de ficção em geral é história. Nos documentários (alguns) você se permite lançar elementos narrativos não convencionais. Há limites no cinema e como saber borrá-los? 

Back – No dia-a-dia trato do aqui e agora, apenas de olho no futuro imediato. Nos filmes, sim, reenceno o passado munido da memória (e do próprio esquecimento, por que não?), que é o melhor cineasta, pois embaralha tudo ansiando atualização ontológica como se nada tivesse mudado. A dinâmica do pretérito é a força motriz para desvendar o seu mistério com as armadilhas de plantão. Sim, apraz-me borrar as fronteiras entre documentário e ficção. Daí eu investir no chamado docudrama, uma espécie de antidoc, ou seja, naquilo que o realidade não dá conta, o imaginário vem em socorro, e ambos se irmanam poeticamente feito siameses. Depois, como saber o que é um ou é outro quando submetidos à voragem da linguagem, dos cortes e dos efeitos visuais, uma invenção da modernidade que subverteu os códigos de leitura e apreensão do real até então conhecidos. Cada filme é uma viagem ao tempo. Da iluminura mental que desencadeia sua realização a imagens editadas faiscando na tela, há um périplo criador que ora avança a ideia original, ora a deteriora, quando não a inverte ou deleta, pura e simplesmente. É que não consigo vislumbrar diferença entre ficção e documental. Quando homens e seus feitos se tornam cinema, tudo vira recordação (acordes do coração?). Reitero, como saber onde começa uma e termina o outro? Tanto é que na ficção ou nos "docudramas", o passado sofre tamanho up grade imagético, fruto de uma voraz bricolagem (ressignificação icônica e irônica de filmes de arquivo), a ponto de conturbar o espectador. Evitando levá-lo pela mão como a uma criança, sinto enorme prazer em deixar a plateia órfã, sem corrimão de qualquer natureza política, ideológica ou moral, creditando a ela a conclusão da narrativa que o filme deixou em aberto. Portanto, é um privilégio poder estabelecer esse diálogo de mão dupla, ora à revelia da história oficial, como em "República Guarani", "Revolução de 30" ou "Rádio Auriverde", ora resgatando a angústia de personagens e temáticas ambíguas, como em "Lost Zweig", "Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro", "O Contestado - Restos Mortais", ou "Aleluia, Gretchen". Em síntese, no futuro, gostaria que quando minha 
obra fosse lembrada que se dissesse que cada filme do Sylvio Back foi feito por outro diretor!

GAZETA – “Aleluia, Gretchen” é um filme de formação? Conte um pouco da tua situação familiar em relação a produção de “Aleluia, Gretchen”? 

Back – É sabido que nenhum criador tem controle absoluto sobre o repique visual, mental e moral de sua criatura junto ao público. Desde a estreia de “Aleluia, Gretchen” no Festival de Brasília de 1976 deixei patente que o filme era, antes que tudo, um acerto de contas com minhas origens europeias, filho de imigrantes fugindo da Alemanha nazista, ainda que seu enredo e atualização (na última sequencia surge a palavra “Hoje”) contrabandeassem inequívoca metáfora da ditadura Geisel que atravessávamos. A destacar que o roteiro, depois multipremiado, por contar com a inestimável co-escritura do romancista Manoel Carlos Karam (1947-2007) e do jornalista e contista, Oscar Milton Volpini, meu fiel parceiro desde “Lance Maior” e “A Guerra dos Pelados”, acabou extravasando suas fronteiras familiares e históricas. Daí para uma polêmica nacional, de viés tanto pessoal quanto político e ideológico, que depois passou a ser uma espécie de marca registrada pelas diatribes provocadas por “República  Guarani”, “Guerra do Brasil” e “Rádio Auriverde”, foi o passo decisivo para que se lançasse novo olhar crítico sobre minha obra. Era como se, avant la lettre, a queda do Muro de Berlim a tivesse atingido levando de roldão idealizadas convicções doutrinárias (fortemente explícitas em “A Guerra dos Pelados”) que remontavam aos anos do imprescindível engajamento de toda a minha geração contra o golpe militar de 1964. Pela natureza ambígua de sua estrutura episódica e inusitado epílogo, com “Aleluia, Gretchen” nascia impensado cinema que passei a chamar de desidelogizado, por ser pleno de dúvidas e desconfiança, além de incrédulo de toda e qualquer utopia, de direita ou de esquerda, o que acabou contaminando os filmes por vir e do porvir! Aliás, essa feliz expressão “cinema que desconfia” devo ao crítico e escritor carioca, Carlos Alberto Mattos. Sim, ele foi na jugular das minhas atenções, intenções e pretensões morais, existenciais e estéticas, tanto quando filmo, como quando promovo colagens/bricolagens com obra de terceiros nos já citados “docudramas”. Jamais filmei flertando com o público, a mídia ou a crítica. Embora eles sejam, ora direis, a razão do meu cinema, procuro antes que tudo, como seu primeiro espectador, não levar ninguém pela mão, nem fundar verdade alguma. Mas ser fiel a mim mesmo, insubmisso a ideários servis e ao código narrativo de plantão. Nessa atitude instintivamente na contramão do estatuído (que me define desde a juventude!), talvez resida aí alguma dificuldade, não por acaso, de uma historiografia de corte unívoco do cinema brasileiro, em reconhecer a incontornável estética e ética da minha obra, cuja validade é inoxidável se comparada ao que se tem produzido, majoritariamente, nos últimos cinquenta anos. Ou, nas palavras do designer húngaro, Tibor Kalman, que faço minhas: “Se você faz algo que ninguém odeia, ninguém amou”. Uma solidão, no entanto, que tem dado consistência a esse projeto absolutamente pessoal. Um conjunto que reflete a coerência de uma filmografia que, formatada com inescapáveis laivos autobiográficos dentro de circunstâncias adversas com que se produz no país, acaba revelando um candente torque humanista e poético sobre temas & personagens, esses, muitas vezes excluídos, quando não, perdedores tout court! Dessa forma, a atual edição dos dois packs da já citada "Cinemateca Sylvio Back", cuja denominação se refere ao estilo desconcertante de mesclar ficção, filmagem ao vivo e material de arquivo através de um discurso equidistante das paixões de seu tempo. Postura que, talvez (a incompreensão faz parte da obra de arte!), permita às novas gerações conferir o azimute histórico, político e social de uma cinematografia sempre ancorada no imaginário do espectador. 

GAZETA – Os totalitarismos europeus do século XX são tema importante para você. Hoje, se fala muito em neofascismo. Você vê algum risco de um novo momento de fascismo?

Back – Vagidos sempre assomam, aqui e acolá, sim! Mas regimes totalitários e tragicamente assassinos com os quais, no século passado, tivemos que nos haver, quando não, conviver, não vislumbro que existam condições para que ressurjam naquele patamar. Isso deve-se, essencialmente, ao planetário avanço da democracia representativa, da liberdade de expressão e da arraigada consciência sobre a prevalência dos direitos humanos, hoje, inextricáveis em qualquer sociedade moderna. E como primordial elemento agregador e difusor de todo essa contemporaneidade, o extraordinário poder de comunicação viral da Internet, que vem soterrando planos e projetos fascistas de quem se desavisou com a história. Ainda que o terrorismo, de viés religioso e ideológico ou de ódio à diversidade sexual e à própria humanidade, tenha assumido proporções industriais e mediáticas, encurralando pessoas, cidades e países, seu alcance esbarra nos mecanismos supra nacionais de defesa institucional e nas nossas irrenunciáveis liberdades civis, essas, infelizmente, muitas vezes atropeladas! Se em determinadas circunstâncias, a sensação é de impotência diante da virulência do terror, é dentro desse marco democrático que ele precisa ser enfrentado, combatido e desidratado. Imaginar que possa ser destruído para sempre seria como acreditar na utopia que o move fanaticamente pela criação de um “novo homem”!   

GAZETA – Você tem escrito mais do que filmado, qual a diferença (e as semelhança) destes dois ofícios artísticos? Quais são seus novos projetos? 

Back – Toda imersão estética, moral e ontológica na criação é tão prazerosa (a palavra exata!) quanto a consumação física e mental do coito. Não à toa que, quando damos um poema ou roteiro por terminados ou assistimos à primeira cópia do filme; quando abrimos livro recém-publicado ou ouvimos a gravação inaugural de uma música, etc., bate uma lassidão igual a que sentimos pós-orgasmo! Como se adentrássemos num universo onírico que parecia inalcançável, e que, já é, está aí, é todo seu! Para o bem e para o mal... Nessa, me permita uma revelação como boutade: há alguns anos resolvi só comemorar aniversário quando estivesse com obra concluída! Assim, sinto-me em plenos 38 anos (!), já que “O Universo Graciliano”, agora em DVD, é o meu rebento mais novinho nessa contabilidade biográfica. A exemplo dos artistas medievos de múltipla expertise e produção, circulo por nichos afins da criação, da escritura de roteiros (dez na estante), de poesia (nove títulos, como o recente “kinopoems” (EdUFSC, 2014), poemas em prosa a partir dos médias-metragens, “O auto-retrato de Bakum” e “Vida e Sangue de Polaco”; e do longa, Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro”), a ensaios e artigos na grande mídia. Prontos para em breve serem produzidos, filmados e editados, respectivamente, o roteiro da ficção, “El Tigre Royal” e o livro de poemas, “Musas de carne e osso”. 

GAZETA – O que Sylvio Back pensa das formas de gestão publica da Cultura, o grande tema da área no momento? E o cinema brasileiro na última década? Há quem veja com otimismo a formação de um mercado e há quem veja uma distorção nisso. Como você vê? 

Back – É público e notório que em praticamente todos os países civilizados do mundo o cinema é subsidiado, direta ou  indiretamente, pelo Estado, fundações culturais, muitas delas vinculadas a televisões públicas. Inclusive, nos Estados Unidos onde, fora as centenas de filmes anuais que Hollywood produz, entidades privadas e públicas fomentam o cinema independente, cuja viabilidade econômica se curva aos propósitos de experimentação e invenção das obras financiadas. Entre nós vige mecanismo próprio e, por que não, original, nem só estatal, nem só privado, de estímulo à produção cinematográfica. São os chamados incentivos fiscais oriundos de empresas estatais e da iniciativa privada, que servem tanto para a produção cultural patrocinada através da Lei Rouanet (teatro, livros, música, balé, etc.) quanto, especificamente para o cinema, através da Lei do Audiovisual. Quase a totalidade dos filmes brasileiros, desde sua criação no governo Itamar Franco, serve-se dela, o que tem incrementado a produção nas últimas décadas a um volume que ultrapassa os cem títulos por ano para telonas e telinhas. Assim, ainda que ambas as formas sofram distorções políticas na sua aplicabilidade, trata-se de sui-generis parceria público-privado, e guichê único aberto para filmes de todo e qualquer roteiro e envergadura de produção. Se de um lado, atualmente, cresce o número de filmes e público no mesmo diapasão com que inquietude temática e de linguagem da maioria despenque, isso se deve, principalmente, às comédias românticas e que tais, de inspiração televisiva. Execradas pela crítica, mas cujo sucesso se remonta às chanchadas da Atlântica, também vilipendiadas à sua época, e hoje reverenciadas como filmes “cult”! Portanto, suas belas bilheterias devem ser chanceladas, já que nossas telas sempre souberam absorver sustos e surtos provocados pelo secular tsunami de Hollywood com o mesmo ímpeto de sobrevivência, ainda que seja às custas do achatamento do cinema independente e dos filmes de invenção, como os que assino, fiquem cada vez mais à deriva. Nada mais nos resta do que resistir, filmando!

GAZETA – Como é seu cotidiano de trabalho? O senhor vive onde em que bairro do Rio de Janeiro? 

Back – Estou comemorando trinta anos de Rio de Janeiro com vista para a praia de Ipanema. Curiosamente, o mesmo tempo  que morei em Curitiba pela segunda vez (dos anos 1956 a 1986), depois da juventude em Antonina e Paranaguá. A primeira foi na meninice vindo de Santa Catarina, nascido em Blumenau, filho de pai judeu húngaro e mãe alemã. Por ter profunda conexão existencial e cultural com a cidade gerada nesses anos todos, venho acarinhando filme cujo título, sem coincidência, é “Véu de Curityba”, justamente, para contar essa saga tão pessoal quanto indeclinável e urgente. Em síntese, o “docudrama” (como expliquei acima, misto de doc & fic) vai procurar estabelecer uma interlocução mágica entre o presente e o retrato falado, musical, emotivo e memorial que a cidade alguma vez lançou sobre si mesma. Trespassado por sua história e pelo inconsciente de seus habitantes, a partir do mote, “quem é o curitibano”, o roteiro de “Véu de Curitiba” responde com atilado mergulho anímico no gomo oculto, desfrutável e excitante de uma cidade que nem sempre se dá a conhecer. A propósito de sua efetiva viabilização, face à implacável madrastice financeira  que voa de jeito randômico sobre o cinema de autor no país, há que inventar projetos que já nasçam longevos! É o caso... Aplicado na Lei do Audiovisual, “Véu de Curityba”, já parcialmente financiado, ainda aguarda aporte final de incentivo fiscal de empresas locais e nacionais para que as filmagens possam ser encetadas. Não é de hoje que repito o mantra de que é preciso viver cento e cinquenta anos(!) para formatar uma obra no Brasil tantos os percalços entre um filme e outro, quando há outro no horizonte... Mesmo que você seja o autor de quarenta filmes como eu, ou planeja sua obra de estreia. Entrementes (Graciliano Ramos odiava essa palavra, pois lhe conheci as entranhas linguísticas filmando o doc, “O Universo Graciliano”), venho participando de corpo e alma num projeto absolutamente inédito no cinema brasileiro e que eu definiria, ainda que possa soar exagerado, como a redenção da minha geração e dos cineastas que já estão e os que estão a caminho... Trata-se de colocar em prática a intransigente defesa dos direitos autorais do diretor de cinema e do audiovisual, já que é, como se diz, cláusula pétrea prescrita em todas as constituições e consagrada na Declaração dos Direitos Humanos da ONU. Sem diretor não tem filme, novela, minissérie, documentário ou animação! Com essa palavra de ordem, cineastas de todas embocaduras, de filmes pop a filmes cabeça, retomando projeto fundado em 1975 pelo mestre Nelson Pereira dos Santos (hoje com 87!) e Leon Hirzman (1937-1987), criamos há um ano a DBCA – Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual, organismo apoiado por dezenas de congêneres da América Latina/Caribe, da Europa/Leste, África, Oriente Médio e Ásia/Pacífico, dedicadas à cobrança e pagamento de direitos autorais de todo audiovisual com nossa assinatura que tenha comunicação pública em qualquer plataforma analógica ou digital. Direitos autorais é o salário do criador! Uma verdadeira revolução no audiovisual brasileiro! Cineasta ou não, quem estiver a fim de conhecer a DBCA, para a qual fui honrosamente eleito presidente, por favor, caro leitor, consulte nosso saite DBCA. Para finalizar na mesma batida de alto astral, por coincidir com autorização do MinC de março último liberando à DBCA o repatriamento de milhares de Euros, dólares e pesos de direitos autorais arrecadados na Argentina devidos a cineastas e diretores de TV brasileiros, a poderosa CISAC (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores) acaba de outorgar à DBCA, em sua assembleia anual em Paris realizada dia 03 de junho último, a excelsa condição de membro provisório. Esse diploma, único e pela primeira fez concedido a um organismo brasileiro, dá autoridade à DBCA para fechar acordos de reciprocidade com dezenas de entidades irmãs do mundo inteiro onde os nossos filmes, novelas, docs e animação são consumidos e com direitos autorais coletados. Uma vitória a compartilhar, nesta inestimável entrevista à “Gazeta do Povo”, com alguns dos mais importantes cineastas paranaenses, de nascimento ou por adoção que, de moto pioneiro, como Fernando Severo, Elói Pires Ferreira, Salete Machado, Geraldo Pioli, Paulo Munhoz, Marcos Jorge, Werner Schumann, Beto Carminatti, Nivaldo Lopes, Willy Schumann, Alessandro Yamada. Aly Muritiba, Pedro Merege, Paulo Biscaia Filho e Luciano Coelho, em consonância com grandes realizadores do resto do país (hoje já somos 200 filiados), estão aderindo à entidade, registrando suas obras. Com este movimento de absoluto reconhecimento e solidariedade à DBCA, posso afirmar que estamos todos de parabéns! 


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ENTREVISTA II

Sylvio Back - foto: acervo Revista do Cinema Brasileiro
Sylvio Back, um cineasta que vira a história do Brasil pelo avesso
Diretor catarinense conhecido pelas abordagens polêmicas sobre fatos e personalidades tem seus 12 longas reunidos em duas caixas de DVDs (*
- Entrevista concedida à Marcelo Perron- (Jornal 'Zero Hora', Porto Alegre/RS, 24 de maio de 2016)

Por trás da história oficial registrada nos livros e na memória coletiva, Sylvio Back costuma enxergar uma ponta solta a ser recosturada e iluminada por outro ponto de vista. Questionar fatos e mitos, na ficção e no documentário, levou o cineasta catarinense de 79 anos a trilhar no cinema brasileiro um caminho permeado por polêmicas. Já falou dos nazistas entusiasmados do sul do país que foram para a sombra quando Hitler começou a cair (em Aleluia, Gretchen, 1976) e observou com sarcasmo a campanha dos pracinhas da FEB na II Guerra (em Rádio Auriverde, de 1991).

Os 12 longas-metragens que Back realizou desde 1968 foram reunidos pela distribuidora Versátil em duas caixas de DVDs, denominadas Cinemateca Sylvio Back, à venda por R$ 94,40 cada — o volume 1, que estava fora de catálogo, é um relançamento, e o volume a segunda traz seus filmes mais recentes. Back diz que faz um "cinema engajado antes de tudo com o imaginário do espectador". Reconhece ser um provocador:

— Polêmica não se premedita. É o que tem sucedido com quase todos os meus filmes desde Aleluia, Gretchen, no qual chamei Getúlio Vargas de "ditador" pela primeira vez no cinema brasileiro. República Guarani e Guerra do Brasil remoem acidamente mitos da proto-história do Rio Grande do Sul, Cruz e Sousa — O Poeta do Desterro foi boicotado pela comunidade afrodescendente, que tacha o genial poeta de "preto de alma branca".

Entrevista com Sylvio Back: "A história é sempre um cadáver a ser exumado"

Provocador e original são adjetivos que costumam ser atrelados ao senhor. Eles lhe parecem justos com sua trajetória?

Uma verdade é irrefutável: polêmica não se premedita. Ela acontece, simples assim, independente do seu desejo. É o que tem sucedido com quase todos meus filmes. Desde Aleluia, Gretchen (onde, pela primeira vez no cinema brasileiro, chamei Getúlio de "ditador", o que me custou surda execração no Festival de Gramado!). República Guarani e Guerra do Brasil, que remoem acidamente mitos da proto-história do Rio Grande do Sul, Cruz e Sousa — O Poeta do Desterro, boicotado pela comunidade afrodescendente, que tacha o genial poeta de "preto de alma branca", ou O Contestado — Restos Mortais, quando elenquei médiuns em transe como porta-vozes da história. Sim, essa independência moral tem custos, tenho consciência. Mas, Rádio Auriverde (1991) foi o que mais levantou incompreensões. Houve até um infausto escriba carioca que, saudoso da ditadura militar, invocou a necessidade da volta da censura a fim de evitar que fosse ao ar. Ainda que vitima até de ameaças à integridade física, ou de repórteres vaticinando o fim da minha carreira, nenhum filme, no entanto, provocou uma reflexão de que deveria ter sido feito de outra forma. Simplesmente porque jamais entrei pela portas dos fundos da história. Senti-me confortável diante das reações terroristas ao conteúdo abusado e politicamente incorreto de Rádio Auriverde quando a mídia em todo o país abriu generosos espaços ao filme. Como faço um cinema que desconfia e, portanto, na outra margem do discurso político ideológico da vez, em momento algum manipulo a historia para que ela se adapte às minhas convicções. Nem tento impor ou fundar alguma verdade. Jamais levar o espectador pela mão feito criança, eis o mantra do meu cinema, pois a plateia é sempre mais esperta do que o filme e o diretor juntos!

O senhor tem uma obra muito focada em episódios e personagens históricos de diferentes épocas. Em um país que pouco valoriza sua história e sua memória, como o Brasil, seu trabalho é devidamente valorizado por público e crítica?

Não consigo vislumbrar uma fronteira muito nítida entre ficção e documental. Quando pessoas e personas, circunstâncias e instâncias do cotidiano ou da história são transportados para a tela, tudo vira memória. Como saber onde começa um e termina outro? Tanto é que nos filmes de enredo ou nos docudramas, nosso passado recente ou remoto é submetido a uma voraz atualização e bricolagem (ressignificação icônica e irônica de filmes de arquivo), objetivando conturbar o espectador. Adoro deixar a plateia órfã, sem corrimão de qualquer natureza política, ideológica ou moral, creditando a ela a conclusão da narrativa que o filme deixou em aberto. Portanto, é um privilégio poder estabelecer essa empatia libertária, de mão dupla, com quem o assiste. Em síntese, no futuro, gostaria que, quando minha obra fosse lembrada, se dissesse que cada filme do Sylvio Back parece ter sido feito por um diretor diferente.

Questionar a história oficial, sobretudo quando ela é balizada por patriotismo ou pela voz dos mais poderosos, é fundamental para compreendê-la e interpretá-la sob diferentes pontos de vista e complexidades narrativas?

Há sempre uma inequívoca vocação "chapa branca", como se fora a "voz do dono", e de viés evangelizador rondando o cinema brasileiro, de ficção e/ou documental. E não é de hoje. Já se pode afirmar, pela longevidade desse compromisso, que ele se localiza na retomada nos anos 1990, após o fechamento na marra da Embrafilme pelo governo Collor. Há toda uma geração de jovens, alguns nem tanto, inclusive da minha faixa etária, que abriu mão de questionar o passado do país, preferindo repicar as falácias da história oficial, seja ela de cunho estatal, acadêmico ou partidário. Como se o dissenso fosse palavrão. É assustador, quando não, triste e vergonhoso, assistir a dezenas de docs restaurando utopias que já viraram entulho da história na Europa e nos Estados Unidos e que hoje são recauchutadas com a maior desfaçatez. Sem ao menos alguma desconfiança de que a verdade permanece no fundo do poço, como dizem os chineses.

O cinema brasileiro contemporâneo tem mostrado interesse por nossa história? Que filmes produzidos nos últimos anos lhe chamaram a atenção?


Me permita um reverente silêncio em relação a títulos ficções ou docs mais recentes que se detêm na investigação da história contemporânea ou remota do Brasil. Com as exceções que confirmam a regra, os filmes não ultrapassam a soleira da "história oficial", mantendo-se caninamente fiéis a ela, aí tanto faz seja de direita seja de esquerda. A história é sempre um cadáver a ser exumado, ela não termina com o pretérito. Ao contrário, o pretérito é sempre testemunha de acusação, rara e ralamente absolve o consolidado. E, quando se investe em fazê-lo, frequentemente exalta o mito, exala mentira, cheira mal!

Entre os títulos das coleções, está seu primeiro longa, Lance Maior. Como o senhor o espelha diante do universo temático que trilhou em seus filmes posteriores? Em que momento o senhor teve a convicção de qual seria sua marca autoral.

Marca autoral nunca é fruto de uma epifania. Penso que, se alguma marca autoral existe para meu cinema, ela foi se construindo à medida que os filmes foram nascendo, crescendo e aparecendo. Quem sabe seja essa pegada desideologizada deles seu DNA, por sua falta de aderência às idiossincrasias político ideológicas de seu tempo e à narrativa imagética em voga. Já intitulei minha filmografia de "cinema torto". Uma tortuosidade que também me confunde, pois a criação é sempre algo randômico, incontrolável e imprevisível. E no cinema mais ainda, é algo que eu chamaria de uma "epifania industrial". Se o filme deu certo como linguagem e encaixe moral, procuro torná-lo "estrangeiro", como se não tivesse saído das minhas entranhas intelectuais, psicológicas e físicas. Parto para o desconhecido, com tudo, justamente para me haver mais uma vez com a angústia que caracteriza tanto a criação quanto a imponderável empatia com público. Fora dela, da angústia, não há criação legítima e duradoura.

Cruz e Sousa, Graciliano Ramos e Stefan Sweig foram personagens de seus filmes. Qual sua conexão, afetiva, intelectual, com essas figuras?

Já escrevi alhures que meus filmes são melhores do que eu. São personagens, como Stefan Zweig, cujo duplo suicídio com sua jovem esposa, em fevereiro de 1942 em Petrópolis (RJ), é atinente com o destino do meu pai, seu trágico igual, como ele, um judeu nascido no império austro-húngaro. E, sem nenhuma coincidência, sua retidão moral e solitária postura político e ideológica me encantaram desde a juventude quando comecei a ler toda sua obra. Acabamos parceiros nessa independência e, também, na crítica, no menosprezo e na incompreensão, até na ridicularia, dos contemporâneos. Cruz e Sousa e Graciliano Ramos são, igualmente, paixões que se remontam aos anos 1950 quando, já mordido pelo cinema, queria também ser poeta e escritor. Mordo meus sonhos como quem degusta uma iguaria ansiada, não os largando até torná-los realidade factível, daí eu colecionar 24 livros publicados por editoras nacionais (nove de poemas, 10 roteiros e cinco de ensaios) e 38 filmes, com 12 longas-metragens.

O senhor é um cineasta conhecido pelo zelo dedicado à obra que produz, não apenas no seu lançamento, mas também na sua preservação. Como procede, e qual dificuldade encontra, para manter seus filmes "vivos" em iniciativas como esse lançamento em DVD?

Nestes tempos de crise, o lançamento da Cinemateca Sylvio Back é um luxo à toda prova. O volume 1, por se encontrar esgotado, estava a exigir uma segunda fornada. Então, resolvemos aguardar a estreia nacional em cinemas de O Universo Graciliano para, juntamente com mais cinco longas inéditos em DVD, agregar ao volume 2, e assim oferecer ao público todos os meus 12 longas-metragens. Sinto-me orgulhoso e recompensado de poder disponibilizar esses filmes de torque absolutamente independente, da ficção desalinhada à narrativa de consumo televisivo, aos antidocumentários na contramão da febre de docs chapa branca e hagiográficos. Um cinema moral, a partir de um olhar desideologizado sobre homens e seus feitos. O conjunto reflete a coerência de uma filmografia que acaba trazendo à tona um pleito humanista e poético sobre personagens e temas sem que jamais isso me leve a flertar com o público, a mídia ou a crítica.

Cite três filmes que poderiam servir de síntese dos objetivos que o senhor persegue como cineasta

Minha paleta cinematográfica é muito diversificada porque que nunca vi diferença entre documentário e ficção, nem entre arte e entretenimento. O importante é a linguagem e o estofo moral do filme. São inúmeros os filmes que influenciaram o meu cinema, ou que não me abandonam a retina, a mente, o coração e o ventre. Preciso citar mais que três... Todos eles trespassam indelevelmente a minha paixão de cinéfilo e realizador, ainda que nunca tenha grudado o olho no visor da câmara tentando "homenageá-los". Ao mesmo tempo, na contramão dessa percepção, digamos, ontológica, novos inventores da narrativa cinematográfica (como Angelopoulos, Lynch, Von Trier, Kitano, Sokúrov, Kar-Wai, Kusturica) surgem e fundem a fronteira entre arte e entretenimento, tornando-a cada vez menos nítida e urgente. Tomo a liberdade de reproduzir lista histórica de filmes (em ordem alfabética) que, a pedido do crítico Carlos Alberto Mattos, enviei ao seu blog Faróis de Cinema: Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola; Corações e Mentes (1974), de Peter Davis; Dançando na Chuva (1953), de Stanley Donen e Gene Kelly; Hiroshima mon Amour (1959), de Alain Resnais; Hitler, Um Filme da Alemanha (1978), de Hans-Jürgen Syberberg; La Dolce Vita (1960), de Federico Fellini; Le Chagrin et la Pitié (1970), de Marcel Ophüls; Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman; e O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima.

Em relação à TV paga, a lei que obriga os canais a exibirem conteúdo nacional abriram espaço para seus filmes? Quais costumam ser mais exibidos?

Por não assinar um cinema de puro entretenimento, os espaços continuam exíguos e seletivos para o filme de invenção. Inclusive, isso é visível e ainda mais escancarado, literalmente, quando se compulsa a programação cotidiana dos cinemas. Minha obra, de Lance Maior (1968) e o épico A Guerra dos Pelados (1971), que reinauguraram o cinema existencial e politicamente engajado no extremo sul — o que levou Glauber Rocha a me chamar, carinhosamente, de "Cacique do Sul" —, aos recentes O Contestado — Restos Mortais e O Universo Graciliano (2013), tem tido constante veiculação tanto na TV aberta quanto nas emissoras por assinatura (TV Cultura de São Paulo, TV Brasil, Canal Brasil e Canal Curta).

Quais histórias o senhor ainda pretende contar em seus próximos projetos?

Como a madrastice financeira voa aleatoriamente sobre o cinema de autor no país, há que inventar projetos e roteiros que já nasçam longevos. É preciso viver 150 anos para formatar uma obra no Brasil, tantos são os percalços entre um filme e outro, quando há outro no horizonte. No entanto, confesso que, feito os artistas medievos de múltipla expertise, circulo por nichos vizinhos à criação, da escrita de roteiros e poemas, a ensaios e artigos na grande mídia. Portanto, a cesta do "a realizar" é desfrutável. Gostaria, no entanto, de preservar-lhes o ineditismo, para não quebrar o encanto. Uma novidade que vem me mobilizando nos últimos meses diz respeito ao delicado âmbito dos direitos patrimoniais e autorais do cineasta brasileiro. Nesses tempos de barbárie da internet, nosso audiovisual é cotidianamente veiculado sem que tenhamos retorno financeiro por essa comunicação pública. Apenas os emissores, cinemas, TVs abertas, por assinatura, streaming e "nuvens" digitais de toda ordem e quadrante, se monetizam com nosso estro. É incontornável que sem diretor não tem filme, telenovela, minissérie, documentário ou animação. Com essas palavras de ordem, cineastas de filmes pop a filmes cabeça, criamos há um ano a DBCA — Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual, entidade apoiada por dezenas de congêneres da América Latina e da Europa dedicada à arrecadação e distribuição de direitos autorais de todo audiovisual que chegue ao público em qualquer plataforma analógica ou digital no Brasil e no Exterior. Trata-se de uma verdadeira revolução no audiovisual brasileiro. Cineasta (hoje já somos 200 filiados) ou não, quem estiver a fim de conhecer a DBCA, para a qual fui honrosamente eleito presidente, veja nosso site.
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.(*) Os filmes da coleção de DVDs:
Selo: Versátil Home vídeo/ Seleções
 
Sylvio Back, por Felipe Lima
Cinemateca Sylvio Back — Volume 1

  • A GUERRA DOS PELADOS (1971)
  • ALELUIA, GRETCHEN (1976)
  • GUERRA DO BRASIL (1987)
  • RÁDIO AURIVERDE (1991)
  • YNDIO DO BRASIL (1995)
  • CRUZ E SOUSA: O POETA DO DESTERRO (1999) 
Cinemateca Sylvio Back — Volume 2
  • LANCE MAIOR (1968)
  • REPÚBLICA GUARANI (1978)
  • REVOLUÇÃO DE 30 (1980)
  • LOST ZWEIG (2002) 
  • O CONTESTADO: RESTOS MORTAIS (2010)
  • O UNIVERSO GRACILIANO (2014)

VEJA 'NESTE SITE' A BIOBIBLIOGRA E FILMOGGRAFIA DE SYLVIO BACK

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Página atualizada em 8.8.2016



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Maria Manuela Margarido - a poesia e o grito de liberdade

Maria Manuela Margarido, por Christian Fischgold (2018)

© Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske
Por gentileza citar conforme consta no final desse trabalho.  
Página original AGOSTO/2016 | ** Publicação revisada, ampliada e atualizada SETE...


NOTA: Página em atualização. Grata!


Maria Manuela da Conceição Carvalho Margarido (escritora, diplomata e lutadora contra a ditadura fascista e o colonialismo) nasceu na Roça Olímpia, na ilha do Príncipe, a 11 de Setembro de 1925. O pai, David Guedes de Carvalho, era de uma família judia do Porto, de nome Pinto de Carvalho. A mãe era mestiça, filha de angolana e indiano. O avô materno era descendente de uma família Moniz, de Goa - «Trago bem marcada a fusão das minhas origens. Sinto-me como a última geração do que se convencionou ser o império português. Há no meu sangue uma mistura de continentes, nos meus afectos uma mistura de gentes, na minha formação a cultura portuguesa, na minha poesia o resumo do pulsar da minha ilha.»

Começou a viajar para Portugal muito nova. A primeira vez, apenas com três anos. A mãe morreu cedo. Um dos irmãos foi juiz na Madeira, Moçambique e Angola e da família restam alguns familiares nas Ilhas do Príncipe e em S. Tomé. 

Maria Manuela Margarido
Apesar de ter passado grande parte da infância em S. Tomé e Príncipe, não falava fluentemente o crioulo. Filha de professora e de juiz, havia na sua casa a pretensão de que os filhos fossem um exemplo no modo de se expressar em português. (O professor Lindley Cintra costumava gabar-lhe a correcção com que se expressava na língua portuguesa). 

Fez a escolaridade num Colégio de franciscanas em Valença do Minho e, depois, no Sagrado Coração de Maria, em Lisboa. Teve sempre boas notas, «e vinte valores em comportamento, em delicadeza, em pontualidade. Eram os frutos da mentalização inculcada pelo meu pai que nos dizia que, como judias e mestiças, deveríamos estar melhor preparadas do que as outras raparigas para vencer na vida. Foram palavras que me marcaram para sempre». 

Em 1953 levantou a voz contra o massacre de Batepá, perpetrado pela repressão colonial portuguesa. (1)

Voltou para África nas vésperas do início da guerra colonial. «Todos nós, africanos, voltámos para casa». Porém, iria ter de regressar de São Tomé, muito doente, indo para Valença do Minho repousar. Curou-se graças a cuidados especiais. Casou em Lisboa e por ali ficou muitos anos, sempre atenta aos anseios dos africanos que aí estudavam. Frequentava assiduamente a Casa dos Estudantes do Império (CEI), em Lisboa, onde participava em actividades culturais e convivia com residentes de todas as colónias e portugueses democratas. Manuela Margarido aparecia na CEI para conversar, falar de livros, da situação política nacional e internacional e, naturalmente, das suas terras. Eram seus companheiros de então Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Chissano, Fernando Mourão, Narana Cossoró, Rui Romano, Francisco Tenreiro, entre outros. (2)

Manuela Margarido atribuía a Francisco Tenreiro a consciência étnica que imprimia nas suas poesias: «Através dele seguimos de perto o pensamento e a obra de Senghor e de Aimé Césaire que, de certa forma, se tornaram nossos mentores do mesmo modo que foram referências históricas para a África negra. (...) Os meus poemas tornaram-se mais africanos». Em Alto como o Silêncio (Lisboa, 1957), a sua poesia é a saudade dos sons, cheiros, luz e, também das angústias, dos medos e sonhos da sua ilha. Fala dos homens, dos pássaros, dos cacaueiros, dos coqueiros e do mar, daquilo que a libertava e a oprimia.

Na década de sessenta começaram as perseguições aos nacionalistas africanos e os exílios. 
Alfredo Margarido
Em 1962 foi presa pela PIDE e levada para Caxias. «Nós queríamos tão somente a autonomia das colónias, inspirados no modelo francês. Ninguém nos ouviu. A minha poesia tornava-se num grito de liberdade. Em Vós que ocupais a nossa terra (1963), denuncio "a cobra preta que passeia fardada", a polícia e os soldados do continente, tema que foi recorrente na minha poesia de contestação. É um poema muito dorido e que reflecte o sentir da geração esclarecida das ilhas nessa época».

Nos anos 60, com o marido, Alfredo Margarido (4), Edmundo Bettencourt, Cândido da Costa Pinto e Manuel de Castro, fazia parte de uma tertúlia que reunia aos fins de tarde no café Restauração da Rua 1º de Dezembro (Lisboa). 

O espartilho da censura e da opressão política empurrou-a para o exílio. Foi viver para Paris, onde ficou trinta anos e fez a sua formação académica. Diplomou-se em Ciências Religiosas na École Pratique des Hautes Études ( foi aluna de Roland Barthes). Licenciou-se em Letras (foi aluna de Francastel) e estudou Cinema. Foi secretária-bibliotecária do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, e secretária da Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular em Paris. 

Durante a década de 60 continuou a escrever sobre temas africanos e publicou Os Poetas e Contistas Africanos (S. Paulo, 1963); Poetas de S. Tomé e Príncipe, (Lisboa, 1963); Nova Soma de poesia do mundo negro "Présence Africaine nº 57" (Paris, 1966). (2)

Fez teatro em Paris, sob a direcção do pintor Benjamim Marques; e com encenação de Carlos César, fez a Barca de Gil Vicente. Colaborava em jornais e na revista Estudos Ultramarinos.
Depois da Revolução de Abril, iniciou com grande entusiasmo uma nova fase da sua vida, entregando-se à participação na construção da sua pátria recém-nascida, como Embaixadora de São Tomé e Príncipe. «Era a oportunidade de dar a conhecer aquelas ilhas que amo, pequenos pontos no Atlântico Sul para os grandes países da Europa, procurar dar a conhecer a cultura própria das suas gentes. Tenho orgulho em ter sido embaixadora de S. Tomé e Príncipe em dez países (dos quais Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega) e oito organizações, entre elas a UNESCO e a FAO».

Da sua vivência como embaixadora, destacou sempre com particular emoção os anos em que ocupou o lugar em Paris, por ter sido a cidade onde, no passado, adquirira a sua maior bagagem cultural e onde tinha deixado importantes relações de amizade.

Quando Mário Soares foi Presidente da República Portuguesa, ocupou o lugar de consultora para os assuntos africanos.

Desempenhou ainda outras funções, entre as quais, como membro do Conselho Consultivo da revista Atalaia, do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL).

Praia das Conchas - São Tomé e Príncipe
Uma vez terminada a sua militância de activa cidadania, pensou voltar à ilha do Príncipe onde continuava a ser proprietária da Roça Olímpia (uma grande extensão de coqueiros, cacaueiros e cafézeiros), mas «não tinha nem meios económicos, nem saúde para a explorar».

«Sempre tive consciência de que os valores portugueses nos tinham formado as raízes do pensamento, até no modo como reagimos à colonização. (...) Fez-se a descolonização e o meu país sentiu-se livre. Mas independência não foi nem é tudo. Há muito para fazer em toda a África, é necessário e urgente cuidar da língua portuguesa, para que se mantenha. Estou confiante de que outros virão para concretizar os sonhos da minha geração, talvez de outro modo porque os tempos exigem sempre desafios diferentes. A nossa utopia será substituída por outras utopias que darão sentido às lutas por um mundo melhor. Gosto de pensar que tantos anos de perseverança num ideal, que se concretizou ao longo da minha vida, é reconhecido aqui e lá no meu pequeno país»
Morreu aos 82 anos, a 10 de Março de 2007, em Lisboa, onde vivia, com um contínuo empenhamento na divulgação do nome e da cultura de seu país. As cerimónias fúnebres tiveram lugar na sede do Grande Oriente Lusitano (Maçonaria). 
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. notas
(1) Massacre de Batepá, campo de concentração de Fernão Dias ou massacre da trindade?. in: Téla Nón (acessado em 7.8.2016).
(2) A Associação C.E.I. foi fundada em 1943 e era a fusão de diversas Casas de Estudantes oriundos de todo o espaço do ultramar português. (...) Era uma iniciativa apadrinhada pelo regime. No chão de uma sala, havia um grande mapa com todas as colónias da autoria do Arquitecto Trofa Real, de Angola, que também frequentava a Casa dos Estudantes do Império. A Casa estava organizada por secções autónomas: de Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, e assim sucessivamente. Assegurava alojamento e tinha cantina própria. Era, também, lugar de convívio e de cultura: organizavam-se exposições, colóquios, recitais, bailes e actividades desportivas. As produções literárias dos associados eram publicadas na revista Mensagem, fundada por Carlos Ervedosa, Alfredo Margarido e Costa Andrade e constitui, hoje, uma obra de referência das primeiras produções de poetas e escritores da lusofonia. Em 1965, a PIDE/DGS selou as portas da Casa dos Estudantes do Império e o ficheiro foi apreendido para facilitar as identificações. Em 1993, a Câmara Municipal de Lisboa celebrou os cinquenta anos da fundação da Casa e publicou uma brochura alusiva ao acontecimento.
(3Manuela Margarido: uma poetisa lírica entre o cânone e a margem, por Inocência Mata. in: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 240-252, 2º sem. 2004. Disponível no link. (acessado em 7.8.2016).
(4) Biografia de Alfredo Margarido (acessado em 7.8.2016).
Obs.: mantemos a grafia original do português de Portugal.
:: Fonte: antifascistas da resistência (acessado em 7.8.2016).

Paira sobre mim a presença
de uma mão partida
e sempre uma ave parte:
nunca sei para onde.
- Maria Manuela Margarido, poema "XVI". no livro "Alto como o silêncio".
Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.


Maria Manuela Margarido - escritora e diplomata de São Tomé e Príncipe

OBRA POÉTICA DE MARIA MANUELA MARGARIDO

:: Alto como o silêncioMaria Manuela Margarido. Coleção Cancioneiro geral, vol. 20. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.
:: Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geraçãoMaria Manuela Margarido. [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.

Ensaio/antologia
:: Costa Alegre e Francisco José Tendeiro: um percurso poético santomense. Maria Manuela Margarido. Lisboa: Edição do Autor, 1963, 212p.

Antologia poética e biográfica (participação)
:: Poesia negra de expressão portuguesa. [organização José Francisco Tenreiro e Mário Pinto de Andrade; prefácio Manuel Ferreira]. Linda-a-Velha: África Editora, 1982. (1953).
:: Poetas de São Tomé e Príncipe. [organização e prefácio Alfredo Margarido]. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1963.
:: Presença do arquipélago de S. Tomé e Príncipe na moderna cultura portuguesa. [org. Amândio César]. São Tomé: Câmara Municipal, 1968.
:: No reino de Caliban II: Angola e São Tomé e Príncipe. [organização Manuel Ferreira]. Lisboa: Seara Nova, 1976; 2ª ed., Lisboa: Plátano Editora, 1988.
:: Antologias de Poesia da Casa do estudantes do Império (1951-1963): Angola – São Tomé e Príncipe. I volume, Lisboa: Edição ACEI (Associação Casa dos Estudantes do Império), 1994.
:: Antologia da poesia feminina dos PALOP (países africanos de língua oficial Portuguesa).. [organização e tradução Xosé Lois García]. Bilíngue Português/espanhol. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 1998. {autoras presentes por paísAngola: Alda Lara, Ermelinda Pereira Xavier, Amélia Veiga, Eugénia Neto, Maria Eugénia Lima, Manuela Abreu, Deolinda Rodrigues, Maria Celestina Fernandes, Paula Tavares, Lisa Castel, Maria Alexandre Dáskalos, Dorina, Isabel Ferreira, Ana de Santana, Maria Amélia Dalomba, Ana Branco | Cabo Verde: Dina Salústio, Arcília Barreto, Ana Júlia, Vera Duarte, Alzira Cabral, Lara Araujo, Paula Martins | Guiné-Bissau: Eunice Borges, Domingas Samy, Mariana Ribeiro, Maria Odete da Costa Semedo |  Moćambique: Glória de Sant'Ana, Clotilde Silva, Noémia de Sousa, Maria Manuela de Sousa Lobo, Josina Machel, Joana Nachaque, Maria Emília Roby, Rosalia Tembe | São Tomé e Príncipe: Maria Manuela Margarido, Alda do Espírito Santo, Ana Maria Deus Lima, Conceição Lima}.
:: Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau. [coordenação Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco].  Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.
:: Bendenxa: 25 Poemas de São Tomé e Príncipe para os 25 anos de Independência. [organização Inocência Mata]. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.
:: Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração. [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra, e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.
:: Polifonias insulares: Polifonias insulares: cultura e literatura de São Tomé e Príncipe. [organização Inocência Mata]. Lisboa: Edições Colibri, 2010.
:: Literaturas Insulares: Leituras e Escritas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe [edição e organização Margarida Calafate Ribeiro e Silvio Renato Jorge]. Série Textos, 92. Porto: Afrontamento, 2011.
:: Caderno de poesia negra de expressão portuguesa. [org. Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro; introd. Luís Kandjimbo].  Ed. facsimilada de Lisboa (1953). Lisboa: Silver Designers, imp. 2012. 
:: O feminino nas literaturas africanas em língua portuguesa. [organização Fabio Mario da Silva]. Lisboa: CLEPUL, 2014. Disponível no link. (acessado em 8.9.2021).
:: Antologias de Poesia da Casa de Estudantes do Império 1951-1963 - Angola e S. Tomé e Príncipe - volume I. UCCA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, 2014. Disponível no link. (acessado em 8.9.2021).

Em revistas e jornais
MARGARIDO, Maria Manuela. De Costa Alegre a Francisco José Tenreiro: um percurso poético santomense. In: Estudos ultramarinos: literatura e arte.- nº 3, 1959, p. 93-107.
MARGARIDO, Maria Manuela. Dois poemas quase religiosos. In: Colóquio, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1977. p. 58-59.



Tatiana Hackman - Cores africanas

POEMAS SELECIONADOS DE MARIA MANUELA MARGARIDO


Memória da Ilha do Príncipe
Mãe, tu pegavas charroco
nas águas das ribeiras
a caminho da praia.
Teus cabelos eram lemba-lembas
agora distantes e saudosas,
mas teu rosto escuro
desce sobre mim.
Teu rosto, liliácea
irrompendo entre o cacau,
perfumando com a sua sombra
o instante em que te descubro
no fundo das bocas graves.
Tua mão cor-de-laranja
oscila no céu de zinco
e fixa a saudade
com uns grandes olhos taciturnos.

(No sonho do Pico as mangas percorrem a órbita lenta
das orações dos ocás e todas as feiticeiras desertam
a caminho do mal, entre a doçura das palmas).

Na varanda de marapião
os veios da madeira guardam
a marca dos teus pés leves
e lentos e suaves e próximos.
E ambas nos lançamos
nas grandes flores de ébano
que crescem na água cálida
das vozes clarividentes
enchendo a nossa África
com sua mágica profecia.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.

§

Nas minhas ilhas
nada escapa à contabilidade dos espíritos
na claridade do dia como na opacidade das noites
espíritos e homens estão ligados
com a força das lianas.
Dêvé é pagar o que os espíritos pedem
com suas vozes silenciosas
insistentes
quando na noite despertam as vegetações
mais tensas e mais opulentas
cheias de gestos de palavras de desejos
Se os espíritos pedem comida e tabaco
com seus movimentos oscilantes
é para manter viva esta comunicação
necessária entre os que já partiram
e os que vão chegar,
mensageiros do além:
quando a criança nasce
traz na palma da mão o tangen
roteiro mais do que destino
- Maria Manuela Margarido, "Dois poemas quase religiosos". in: Colóquio, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, p.58.

§

1. Instalada na encruzilhada
a boneca aberta na madeira do ocá
cria a reversibilidade do tempo
permite o regresso dos que partiram

tão hesitantes que devem voltar
para nos dizer nas lentas horas nocturnas
os segredos mais ousados
os mais eternos
possivelmente os mais dramáticos
quando o homem está colocado
nas margem dos rios
perante a alvura cintilante
do ocosso.

2. Tanta doçura
pela vassoura de sete ramos de andala
e penas de galinha!
As sete bandeiras triangulares
desenham a crespura vegetal do mundo:
se os amigos abatem amorosamente o chicote
sobre o teu corpo
é para o abrirem à confidência eterna
dos que nos acompanham do outro lado
da vida e da morte.
- Maria Manuela Margarido, "Dois poemas quase religiosos". in: Colóquio, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, p.59.

§

Paisagem
Alto sonho, alto
como o coqueiro na borda do mar
com os seus frutos dourados e duros
como pedras oclusas
oscilando no ventre do tornado,
sulcando o céu com o seu penacho
doido.
No céu perpassa a angústia austera
da revolta
com suas garras suas ânsias suas certezas.
E uma figura de linhas agrestes
se apodera do tempo e da palavra
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração". [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra, e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.

§

Roça
A noite sangra
no mato,
ferida por uma aguda lança
de cólera.
A madrugada sangra
de outro modo:
é o sino da alvorada
que desperta o terreiro.
E o feito que começa
a destinar as tarefas
para mais um dia de trabalho.

A manhã sangra ainda:
salsas a bananeira
com um machim de prata;
capinas o mato
com um machim de raiva;
abres o coco
com um machim de esperança;
cortas o cacho de andim
corn um machim de certeza.

E à tarde regressas
a senzala;
a noite esculpe
os seus lábios frios
na tua pele
E sonhas na distância
uma vida mais livre,
que o teu gesto há-de realizar
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração". [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra, e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.

§

Socopé
Os verdes longos da minha ilha
são agora a sombra do ocâ,
névoa da vida,
nos dorsos dobrados sob a carga
(copra, café ou cacau - tanto faz).
Ouço os passos no ritmo
calculado do socopé,
os pés-raizes-da-terra
enquanto a voz do coro
insiste na sua queixa
(queixa ou protesto - tanto faz).
Monótona se arrasta
até explodir
na alta ânsia de liberdade.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Antologias de Poesia da Casa do estudantes do Império (1951-1963): Angola – São Tomé e Príncipe". I volume, Lisboa: Edição ACEI (Associação Casa dos Estudantes do Império), 1994.

§

Vós que ocupais a nossa terra
E preciso não perder
de vista as crianças que brincam:
a cobra preta passeia fardada
à porta das nossas casas.
Derrubam as árvores fruta-pão
para que passemos fome
e vigiam as estradas
receando a fuga do cacau.
A tragédia já a conhecemos:
a cubata incendiada,
o telhado de andala flamejando
e o cheiro do fumo misturando-se
ao cheiro do andu
e ao cheiro da morte.
Nos nós conhecemos e sabemos,
tomamos chá do gabão,
arrancamos a casca do cajueiro.
E vós, apenas desbotadas
máscaras do homem,
apenas esvaziados fantasmas do homem?
Vós que ocupais a nossa terra?
- Maria Manuela Margarido, no livro "Poetas de São Tomé e Príncipe". [organização e prefácio Alfredo Margarido]. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1963.

§

I

Penetras secretamente
na realização aerodinâmica
dum mundo transparente
onde desembocam as cores
dos rostos amargos,
verdadeiramente necessários.
Coroado de espinhas,
és um oouriço circulando no ventre da noite,
procurando
a solução embaladora
na chuva de espelhos nocturnos.
E com ritmos férreos
és o sentido íntimo de enlaçar a tarde,
estendendo os músculos das recordações de infância
através da poeira que cresce nos jornais do dia,
ilustrando os milhares de problemas
das viagens dialogadas.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.

§

V

A ilha te fala
de rosas bravias
com pétalas
de abandono e medo.

No fundo da sombra
bebendo por conchas
de vermelha espuma
que mundos de gentes
por entre cortinas
espessas de dor.

Oh, a tarde clara
deste fim de Inverno!
Só com horas azuis
no fundo do casulo,
e agora a ilha,
a linha bravia das rosas
e a grande baba negra
e mortal das cobras.
- Maria Manuela Margarido, no livro "No reino de Caliban II: Angola e São Tomé e Príncipe". [organização Manuel Ferreira]. Lisboa: Seara Nova, 1976.

§

XXI 
No dia em que te foste embora,
longos navios de silêncio
encheram a casa,
tão grande, tão vasta!
Todos os gatos da vizinhança
comiam cogumelos
e varriam as cascatas dos cemitérios
com agudas lâminas de tédio.
No cais das horas
fiquei a esperar-te:
grande pedra de saudade
de olhos hirtos.
Paira sobre mim a presença
de uma mão pálida
e sempre uma ave parte:

nunca sei para onde.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.

§

© Michel Rauscher

FORTUNA CRÍTICA DE MARIA MANUELA MARGARIDO

ALÓS, Anselmo Peres. Versos pós-coloniais: manifestações poéticas em São Tomé e Príncipe. Itinerários, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012. Disponível no link. (acessado em 8.8.2016).
ANDRADE, Mário de.. Antologia Temática de Poesia Africana 1. Na Noite Grávida de Punhais. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1976.
CASTAÑO, Joana; LIMA, Conceição. Bibliografia sobre Literatura São-Tomense em Português. in: Cátedra de Português - Língua Segunda e Estrangeira - Instituo Camões | Universidade Eduardo Mondlane Moçambique. Disponível no link. (acessado em 8.8.2016).
CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania. (org.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.
MARTINS, Izabel Cristina Oliveira. Pelas sendas do feminino: Diáspora e exílio nas literaturas africanas de língua portuguesa. (Tese Doutorado em Literatura e Interculturalidade). Universidade Estadual da Paraíba, UEPB, 2019. Disponível no link. (acessado em 1.9.2021).
MARTINS, Izabel Cristina Oliveira. Palavras: escrita feminina, lusofonia, Áfricas. In: XIII Conages - anais, 2018. Disponível no link. (acessado em 1.9.2021).
MATA, Inocência; ANDRADE, António; SALVATERRA, Danilo; PIRES, Júlio (org.). Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.
MATA, Inocência. Emergência e existência de uma literatura - O caso santomense. Linda-a-Velha: ALAC, 1993.
MATA, Inocência. Manuela Margarido: uma poetisa lírica entre o cânone e a margem. In: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 240-252, 2º sem. 2004. Disponível no link. (acessado em 7.8.2016).
QUEIROZ, Amarino Oliveira de.. As inscrituras do verbo: dizibilidades performáticas da palavra poética africa. (Tese Doutorado em Letras). Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2007. 
QUEIROZ, Amarino Oliveira de.. Cantares de São Tomé e Príncipe: a militante poesia de Maria Manuela Margarido e Alda Espírito Santo. In: Contexto, Vitória, n. 25, 2014. Disponível no link. (acessado em 8.8.2016).
SECCO,  Carmen Lucia Tindó. Três vozes Guerreira Femininas de São Tomé e  Príncipe: D. Alda, Manuela Margarido, Conceição Lima. In: MATA, Inocência/ SILVA,  Agnaldo Rodrigues da..  Trajectórias culturais e literária das ilhas do Equador: Estudos sobre São Tomé e Príncipe. Campinas: Pontes Editores, 2018. p. 281-299.

© Théo Lautrey  - São Tomé e Príncipe

MARIA MANUELA CONCEIÇÃO CARVALHO MARGARIDO 'DEPOIMENTO AUTOBIOGRÁFICO' 

"Sinto-me como a última geração do que se convencionou ser o império português. Há no meu sangue uma mistura de continentes, nos meus afectos uma mistura de gentes, na minha formação a cultura portuguesa, na minha poesia o resumo do pulsar da minha ilha.
Nasci na Roça Olímpia na ilha do Príncipe, S. Tomé e Príncipe, a 11 de Setembro de 1925. O meu pai, David Guedes de Carvalho, era de uma família judia do Porto, de nome Pinto de Carvalho. A minha mãe era mestiça, filha de angolana e indiano. O meu avô materno era descendente de uma família Moniz, de Goa, e trago bem marcada a fusão das minhas origens.
Comecei a viajar para Portugal muito nova. A primeira vez que aqui estive tinha apenas três anos e fui baptizada em Lisboa.

A minha mãe morreu cedo e dos meus irmãos, só a Maria Helena está viva. Um dos irmãos foi juiz na Madeira, Moçambique e Angola. Ficaram sobrinhos, um deles meu afilhado, também é advogado. No Princípe e em S. Tomé, tenho uma cunhada, sobrinhos e a minha prima Julieta do Espírito Santo, entre outros parentes menos próximos.

Apesar de ter passado grande parte da infância em S. Tomé e Princípe, não falo, fluentemente, o crioulo. Filha de professora e de juiz, havia na minha casa a pretensão de que os filhos fossem um exemplo no modo de se expressar. O professor Lindley Cintra costumava gabar a correcção do modo como me expressava na nossa língua.

Fiz a minha escolaridade num Colégio de franciscanas em Valença do Minho e, depois, no Sagrado Coração de Maria, em Lisboa. Por esse tempo, a madre-geral do Sagrado Coração era americana e tinha o hábito de organizar uma cerimónia no final do ano lectivo onde apresentava as classificações finais das alunas. Eu tive boas notas e vinte valores em comportamento, em delicadeza, em pontualidade. A madre, muito simpaticamente, exclamou: vinte e um valores! Eram os frutos da mentalização inculcada pelo meu pai que nos dizia que, como judias e mestiças, deveríamos estar melhor preparadas do que as outras raparigas para vencer na vida. Foram palavras que me marcaram para sempre.

Voltei para África nas vésperas da guerra. Todos nós, africanos, voltámos para casa.

Regressei de S. Tomé muito doente e fui para Valença do Minho repousar. Curei-me graças aos cuidados do Dr. Tapian, um médico muito considerado na época.

Casei em Lisboa e por aqui fiquei muitos anos.

Estive sempre atenta aos anseios dos africanos que aqui estudavam. Encontrávamo-nos na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, onde participava em actividades culturais, com residentes de todas as colónias. A Associação C.E.I. foi fundada em 1943 e era a fusão de diversas Casas de Estudantes oriundos de todo o espaço do ultramar português. (...) Era uma iniciativa apadrinhada pelo regime.

(...) Lembro-me de que, no chão de uma sala, havia um grande mapa com todas as colónias da autoria do Arquitecto Trofa Real, de Angola, que também frequentava a Casa.

(...) A Casa dos Estudantes do Império estava organizada por secções autónomas: de Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, e assim sucessivamente. Assegurava alojamento e tinha cantina própria. Era, também, lugar de convívio e de cultura: organizavam-se exposições, colóquios, recitais, bailes e actividades desportivas. As produções literárias dos associados eram publicadas na revista Mensagem, fundada por Carlos Ervedosa, Alfredo Margarido e Costa Andrade e constitui, hoje, uma obra de referência das primeiras produções de poetas e escritores da lusofonia.

Eu colaborava nos eventos culturais e aparecia por lá para conversar. Falávamos de livros, da situação política nacional e internacional e, naturalmente, das nossas terras.

Estiveram lá Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Chissano, Fernando Mourão, Narana Cossoró, Rui Romano, Francisco Tenreiro, meu amigo pessoal, entre outros de que não me lembro agora.

O Francisco Tenreiro foi muito importante para as gerações seguintes do arquipélago pela consciência étnica que imprimia nas suas poesias. Através dele seguimos de perto o pensamento e a obra de Senghor e de Aimé Césaire que, de certa forma, se tornaram nossos mentores do mesmo modo que foram referências históricas para a África negra. (...) Os meus poemas tornaram-se mais africanos.

Em Alto como o Silêncio (Lisboa, 1957), a minha poesia é a saudade dos sons, cheiros, luz e, também das angústias, dos medos e sonhos da minha ilha. As minhas composições falam dos homens, dos pássaros, dos cacaueiros, dos coqueiros e do mar que nos libertava e nos oprimia.

(...) Na década de sessenta começaram as perseguições e os exílios.

Em 1965, a PIDE/DGS selou as portas da Casa dos Estudantes do Império e o ficheiro foi apreendido para facilitar as identificações. Esse ficheiro está, agora, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em 1993, a Câmara Municipal de Lisboa celebrou os cinquenta anos da fundação da Casa e publicou uma brochura alusiva ao acontecimento.

Em 1962 fui presa, em Caxias, pela P.I.D.E. Eu tinha conhecido Salazar nas festas centenárias da cidade de Guimarães, era então aluna num colégio de Valença e, como tinha boa voz, fui escolhida para, com o Amândio César, darmos as boas vindas a Salazar. E ele beijou-me! Eu repetia para a P.I.D.E. que o Salazar me tinha beijado, que era amiga do Cardeal Patriarca, mas de nada me valeu. Afinal, nós queríamos tão somente a autonomia das colónias, inspirados no modelo francês. Ninguém nos ouviu.

A minha poesia tornava-se num grito de liberdade. Em Vós que ocupais a nossa terra (1963), denuncio "a cobra preta que passeia fardada", a polícia e os soldados do continente, tema que foi recorrente na minha poesia de contestação. É um poema muito dorido e que reflecte o sentir da geração esclarecida das ilhas nessa época.

O espartilho da censura e da opressão política empurrou-me para o exílio. Fui para Paris onde fiquei trinta anos. Fiz lá a minha formação académica. Diplomei-me em Ciências Religiosas na École Pratique des Hautes Études, onde fui aluna de Roland Barthes. Licenciei-me em Letras (Fui aluna de Francastel) e estudei Cinema. Fui secretária-bibliotecária do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, e secretária da Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular em Paris. Também fiz teatro, quando era dirigido pelo Benjamim Marques. Com o Carlos César fiz a Barca de Gil Vicente. Ia colaborando em jornais e na revista Estudos Ultramarinos.

(...) Continuei a escrever sobre temas africanos e publiquei Os Poetas e Contistas Africanos (S. Paulo, 1963); Poetas de S. Tomé e Príncipe, (Lisboa, 1963); Nova Soma de poesia do mundo negro "Présence Africaine nº 57" (Paris, 1966).

Depois da Revolução de Abril, iniciou-se uma nova fase na minha vida, talvez mais aliciante ou, espero, mais útil à minha pátria recém-nascida. Era a oportunidade de dar a conhecer aquelas ilhas que amo, pequenos pontos no Atlântico Sul para os grandes países da Europa, procurar dar a conhecer a cultura própria das suas gentes. Tenho orgulho em ter sido embaixadora de S. Tomé e Príncipe em dez países (dos quais Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega) e oito organizações (entre elas a UNESCO e a FAO).

Quando Mário Soares foi Presidente da República Portuguesa, ocupei o lugar de consultora para os assuntos africanos.

Enquanto fui embaixadora, foi com muita emoção que ocupei o lugar em Paris, a cidade onde cresci culturalmente. Para além dos assuntos relacionados com as minhas funções oficiais foram importantes as relações de amizade.

(...) Acabada a minha tarefa, pensei voltar à ilha do Príncipe onde ainda sou proprietária da Roça Olímpia, uma grande extensão de coqueiros, cacaueiros e cafézeiros que se espraia pela costa. Mas não tenho meios económicos nem saúde para a explorar. (...)

Sempre tive consciência de que os valores portugueses nos tinham formado as raízes do pensamento, até no modo como reagimos à colonização. (...)

Fez-se a descolonização e o meu país sentiu-se livre. Mas independência não foi nem é tudo. Há muito para fazer em toda a África, é necessário e urgente cuidar da língua portuguesa, para que se mantenha. Estou confiante de que outros virão para concretizar os sonhos da minha geração, talvez de outro modo porque os tempos exigem sempre desafios diferentes. A nossa utopia será substituída por outras utopias que darão sentido às lutas por um mundo melhor.


Gosto de pensar que tantos anos de perseverança num ideal, que se concretizou ao longo da minha vida, é reconhecido aqui e lá no meu pequeno país"
- Maria Manuela Conceição Carvalho Margarido "Depoimento autobiográfico". in: Revista de Estudos sobre a Mulher, Lisboa: Edições Colibri, n. 9, ano 2003 | reproduzido em 'Almariada blog' e 'Lusofonia poética'. (acessado em 8.8.2016). 




©Maitê 

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Lúcida mergulho na água,
fria água da memória.
Só o vento, só o vento
me acompanha
- Maria Manuela Margarido, poema "XXII". no livro "Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.
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COMO CITAR:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção, edição e organização). Maria Manuela Margarido - a poesia e o grito de liberdade. Templo Cultural Delfos, agosto/2021. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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** Página atualizada em 30.8.2021
* Página original AGOSTO/2016.




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