COMPARTILHE NAS SUAS REDES

Sérgio Buarque de Holanda: A democracia é difícil (entrevista)

Sérgio Buarque de Holanda 
2016 - 80 ANOS DO CLÁSSICO "RAÍZES DO BRASIL" DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

A democracia é difícil

Sérgio Buarque de Holanda: A democracia é difícil, entrevista concedida a João Marcos Coelho|Revista Veja, em 28 de janeiro de 1976.

A caminho dos 74 anos, que completará em julho (1976), Sérgio Buarque de Holanda é, ao mesmo tempo, um impecável historiador e um fascinante contador de histórias. Grande viajante, entremeia reflexões sobre o exercício da História com finas observações do tipo: "Me diverti muito quando estive na Grécia. Lá, os carregadores de bagagens são chamados metaphoras, e os que esperam na fila do ônibus estão em ekstasis. É agradável, mas também chocante, você se deparar de repente com as palavras sendo utilizadas em seu sentido rigoroso, não é?
Seu primeiro livro, "Raízes do Brasil" (1936), forma, junto com "Casa-Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr., o grande tripé básico da cultura brasileira no século XX. Começou a lecionar na Universidade do Distrito Federal, transferindo-se em 1938 para o Instituto Nacional do Livro. Dez anos depois passou a ocupar a cadeira de História Econômica do Brasil na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A partir de 1956, assumiu o posto de catedrático de História da Civilização na Universidade de São Paulo. Pronunciou conferências e deu cursos nos Estados Unidos, França, Itália, Suíça e Chile. Entre as universidades americanas, lecionou em Colúmbia, Harvard, Califórnia, Indiana, Yale e na New York State University.
Desde 1960 dirige a "História Geral da Civilização Brasileira", já em seu sétimo volume publicado: "Do Império à República". Embora negue predileção pelo período do Segundo Reinado, Sérgio diz que "basicamente a coleção é um trabalho de equipe, mas este volume é apenas meu. Eu ia fazer apenas uma resenha do aspecto político do Império, mas ela acabou virando um livro, publicado como último tomo do século XIX. Um pouco cansado com o trabalho de coordenar uma coleção desse porte, pedi um sucessor para a parte da República. E Bóris Fausto foi o escolhido". Contudo, ainda este ano Sérgio pretende publicar uma nova versão de "Do Império à República", consideravelmente ampliada.
Confortavelmente sentado em uma poltrona, numa das salas - todas literalmente atulhadas de livros - de sua casa normanda no bairro do Pacaembu, em São Paulo, Sérgio (ou o "pai do Chico Buarque", como adora ser chamado) falou sobre a História. E também contou muitas outras.

JOÃO MARCOS COELHO - O que o senhor modificaria, hoje, em seu livro "Raízes do Brasil", escrito na década de 30?
SÉRGIO BUARQUE - Muita coisa. Eu escrevi dois de seus capítulos na Alemanha, quando lá morei, entre 1928 e 1931. A idéia básica era a de que nunca houve democracia no Brasil, e de que necessitávamos de uma revolução vertical, que realmente implicasse a participação das camadas populares. Nunca uma revolução de superfície, como foram todas na História do Brasil, mas uma que mexesse mesmo com toda a estrutura social e política vigente.

JOÃO MARCOS COELHO - E a ideologia brasileira do homem cordial, que vem da passagem do século e o senhor de certa forma adota, ainda valeria?
SÉRGIO BUARQUE - Critica-se muito, mas poucos entenderam o verdadeiro sentido da expressão homem cordial. Quando falo cordial, não é no sentido de "cordiais saudações", como Cassiano Ricardo o fez. A cordialidade com que caracterizei o brasileiro pode ocorrer mesmo em situações de confronto, fatos comuns em nossa história. Nesse sentido, ela tem sido incruenta. Tem havido muita discussão, recentemente, a respeito da História do Brasil, se ela é cruenta ou incruenta. Considero esse debate bizantino. É inegável, porém, que a independência, a proclamação da República e mesmo as revoluções de 1930 e 1964 se fizeram sem derramamento de sangue. Portanto, a cordialidade continua valendo para a nossa História.

JOÃO MARCOS COELHO - O que o levou a tentar explicar globalmente o caráter nacional brasileiro?
SÉRGIO BUARQUE - Hoje, eu não me aventuraria mais a tentar uma empreitada dessa espécie. Simplesmente porque os tempos são outros. Eu estava muito influenciado pelo sociólogo alemão Max Weber. Aliás, foi naquela mesma década de 30 que surgiram outras obras brasileiras cuja característica também era a de tentar a grande síntese: "Casa Grande & Senzala", "Formação do Brasil Contemporâneo". Há pouco tempo uma editora francesa, a Gallimard, me propôs a tradução de "Raízes do Brasil". Pediram-me também um ensaio, que seria publicado na edição francesa, atualizando minhas idéias. Tentei, mas acabei desistindo. O livro está superado e plenamente datado. Minhas preocupações eram outras. Não tem sentido reescrever eternamente uma mesma obra.

JOÃO MARCOS COELHO - Quando o senhor afirma que no Brasil nunca houve democracia, isso talvez signifique que, num certo sentido, as massas populares jamais participaram do jogo político nacional?
SÉRGIO BUARQUE - Claro. No Brasil, sempre foi uma camada miúda e muito exígua que decidiu. O povo sempre está inteiramente fora disso. As lutas, ou mudanças, são executadas por essa elite e em benefício dela, é óbvio. A grande massa navega adormecida, num estado letárgico, mas em certos momentos, de repente, pode irromper brutalmente.

JOÃO MARCOS COELHO - Em quais momentos esse despertar teria ocorrido?
SÉRGIO BUARQUE - Até agora, todas as revoluções dentro da História do Brasil foram de elites, civis ou militares, mas sempre elites. E, quando a questão se restringe a querelas elitistas, o processo caminha como numa briga de família: aparece um primo, um tio, ou um amigo da família com bom relacionamento com ambas as partes capaz de contornar diplomaticamente o confronto direto. E é exatamente no conchavo que pode surgir a figura do homem cordial. Por isso a democracia, que nasceu aqui num mal-entendido, percorreu em nossa História um caminho inusitado. Ou seja, foi murchando aos poucos.

JOÃO MARCOS COELHO - Como se deu esse esvaziamento?
SÉRGIO BUARQUE - Pela Constituição de 1824, somente os escravos (porque dependiam do senhor), os religiosos em regime claustral, as mulheres e os menores não votavam. Ela permitia o voto dos analfabetos, dos libertos. O censo pecuniário (mínimo de renda mensal para poder votar) era de 100 mil-réis - esta quantia, só os indigentes não conseguiam obter. Era uma Constituição relativamente democrática. Em 1846, houve uma reforma, mas só para aumentar a renda mínima, devido à desvalorização da moeda, de 100 para 200 mil-réis. Havia duas espécies de participantes do processo eleitoral: os votantes, que tinham o direito de escolher os eleitores; e estes, que, por sua vez, elegiam os deputados e senadores. Os primeiros constituíam toda a massa ativa da população, mal ou bem participando realmente do jogo político. Na década de 70, em pleno Segundo Reinado, os partidos Liberal e Conservador se uniram para lutar por eleições totalmente diretas. Com a passagem dos votantes, grande maioria da população, para a condição de eleitores, entretanto, a democracia sofreu um golpe, pois a renda mínima foi muito aumentada (400 mil-réis, sujeitos a comprovação), que por sua vez era discutível. Isso alijou os antigos votantes e restringiu o número de eleitores de 1,5 milhão para pouco menos de 300 000. Tanto é que um estudo, coordenado por Santana Nery, publicado em Paris, em 1889, afirmava: "O Brasil é o país que tem menor número de votantes: apenas 1,5% da população tem esse direito". Computando-se as habituais abstenções, não se chegava a 1 %. Somente em 1930, quando a massa popular votava, subiu-se para 5%. Então, veio o freio da revolução, que sustou o processo eleitoral por algum tempo.

JOÃO MARCOS COELHO - Seria correto afirmar que no Brasil sempre se confundiram as palavras democracia e liberalismo?
SÉRGIO BUARQUE - Evidente. O liberalismo pode perfeitamente sobreviver sem a prática da democracia, e isso é o que sempre aconteceu no Brasil. O substantivo liberal surgiu nas Cortes de Madrid, entendido como oposto ao servil, ou iliberal. Dicionarizado em 1803, no Brasil ainda significava pessoa generosa, dadivosa. Em toda a História do Brasil, porém, a palavra é freqüentemente usada como sinônimo de concessão por parte das elites dominantes. O próprio dom Pedro I, quando dissolveu a Assembléia Constituinte de 1823, afirmou que a Constituição que outorgaria era duplicadamente mais liberal do que a elaborada pelos constituintes. "Quero uma Constituição para o povo, não pelo povo", chegou a dizer, deixando claro que apenas com sua permissão se podia praticar a liberdade. Isso pairou idealmente em todo o Segundo Reinado, embora jamais tenha existido na prática.

JOÃO MARCOS COELHO - Quer dizer que a democracia sobreviveu no Brasil apenas quando era bom o humor das elites dominantes?
Sérgio Buarque de Holanda - foto: Ivanaldo/Folhapress
SÉRGIO BUARQUE - Sim. E alguns políticos mais lúcidos perceberam isso já no século passado. Nabuco de Araújo, em 1869, dizia que nós tínhamos liberdade, ou liberalismo, mas só nas capitais. No interior, quem resolvia era o capanga, o prefeito ou o chefe de polícia. Em um discurso particularmente inflamado, chegou a afirmar que "a liberdade existe para nós, homens de gravata lavada, e não para o povo". Na época, usava-se uma gravata de seda ou linho, com colarinho alto, com um nó triplo bastante saliente, colorindo o peito e forçando a pessoa a uma posição sempre altiva. E a cor, obrigatoriamente branca. Com o calor do Rio de Janeiro e sua situação urbanística (para chegar ao Senado, na antiga rua do Areal, era preciso passar pelo Campo de Santana, onde haviam capim, brejos e burro soltos), o consumo de gravatas diárias chegava a cinco ou seis. E naturalmente era preciso ter dinheiro para manter esse enorme estoque. Outro político contemporâneo de Nabuco de Araújo, Teófilo Otôni, cognominado o "Tribuno Liberal", numa circular para seus eleitores mineiros, usou expressão semelhante: "O que eu quero é a democracia de classe média, a democracia de gravata lavada".

JOÃO MARCOS COELHO - Ao que parece, eles só pensavam numa democracia higienicamente asseptizada.
SÉRGIO BUARQUE - Na verdade, a palavra democracia era mal vista pelos liberais brasileiros no começo do Império. Talvez devido a uma identificação com os ideais de Robespierre, o que, os levava a associar democracia com anarquia. Quando ganhou status, em meados do Império, a palavra já tinha perdido seu sentido original. E passou a significar liberalismo. Aliás, outro bom exemplo é o de frei Caneca, que em um de seus escritos afirmou: "É impossível viver com esta gentalha composta de mulatos e mestiços", deixando entrever um nítido desprezo pelas classes populares.

JOÃO MARCOS COELHO - E a partir da República? Continuou o processo de esvaziamento da democracia?
SÉRGIO BUARQUE - Sim. O período republicano se iniciou entre nós com uma vitória de Rui Barbosa: o chamado censo literário, com que, finalmente, se barrou o acesso dos analfabetos ao voto. Um dos argumentos constantes do grupo vitorioso era o de que uma parte da população ainda não estava preparada para participar do jogo democrático. Era preciso esperar o progresso, que naturalmente elevaria a massa à condição de 'alfabetizada e, portanto, apta a votar. Esta, no fundo, é uma idéia reacionária: não é preciso lutar, o progresso há de vir, independentemente de nossa vontade. Mais de oitenta anos se passaram e nem com o Mobral o problema foi resolvido. Aliás, José Bonifácio, "o Moço", que adotou posição contrária à de Rui Barbosa (um seu ex-aluno a quem muito respeitava) usava argumentos bastante convincentes: "Por que os analfabetos não podem votar? Amanhã vão dizer que os surdos também não podem, depois os mudos, e depois ainda só votarão as pessoas formadas em universidades: depois os epilépticos, conhecidos ou desconhecidos". Em seguida, dirigiu-se ao governo: "Eu sou a Democracia... fostes para as alturas e eu fiquei. Não vos acuso.., neste país há lugar para todos. Pois bem, deixai também lugar para mim".

JOÃO MARCOS COELHO - Como encarar a história brasileira, de 1930 em diante?
SÉRGIO BUARQUE - Certamente como uma nova versão, modernizada, da democracia de gravata lavada. Falar em democracia, hoje, todo o mundo fala. Inclusive os países comunistas. Até durante o nazismo mais de 90% da população alemã votava. Claro que pressionada e num jogo de cartas marcadas. Mas votava. A fachada da democracia sempre está presente, inclusive nos regimes autoritários e totalitários.

JOÃO MARCOS COELHO - Parecem coexistir hoje dois grandes grupos de historiadores preocupados com o Brasil. De um lado, os brasileiros, que, numa posição extremamente critica, procuram, grosso modo, reconstituir o que chamam de história da dependência. E, de outro, os chamados brazilianists, estrangeiros que têm dado preferência a certos temas da nossa História, como por exemplo, a escravidão, o Estado Novo e os governos da Revolução de 1964. Eles se completam, de alguma maneira?
SÉRGIO BUARQUE - Primeiro, é preciso esclarecer que o interesse pelo Brasil não é novo. Na década de 40, quando o presidente Roosevelt pôs em prática o que chamou de política de boa vizinhança, houve muitas teses sobre o Brasil. Até eu fui convidado a visitar os Estados Unidos para participar de um congresso sobre estudos brasileiros, durante três meses. Em 1965, em nova ida aos EUA para dar cursos, vivi como um nababo: me hospedei no Waldorf Astoria, um carro do ano com motorista à disposição, tudo por conta do governo americano. Agora, porém, essa nova vaga parece ter raízes mais profundas e duradouras. Os historiadores Richard Morse, Thomas Skidmore (autor de "De Getúlio a Castello"), Stanley Stein e Richard Graham me parecem os melhores. A explicação para a escolha de determinados temas é relativamente fácil: a escravidão, por exemplo, é um dos temas americanos permanentes. Quando ouviram comentários de que tinha havido no Brasil o bom senhor, e escravos unidos - graças a um livro de Frank Tannembaum, "Slave and Citizen", e a edição inglesa de "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre -, rapidamente o assunto virou moda. Já quanto aos temas contemporâneos, de Getúlio para cá, tive uma boa resposta quando, na Universidade de Berkeley, Califórnia, fiz esta pergunta a um brazilianist. Sua resposta: "Cuba". A posição do Brasil como país estratégico, política e militarmente, tem se reforçado cada vez mais nos últimos tempos e por isso é preciso, do ponto de vista americano, conhecê-lo muito bem.

JOÃO MARCOS COELHO - Em que consistiu a contribuição dos brazilianists para a historiografia brasileira?
SÉRGIO BUARQUE - Existe um preconceito com relação aos historiadores americanos de que são ingênuos e pouco teóricos. Isso não é muito correto mas tem um fundo de verdade. Um amigo me contou que um dia encontrou um rapaz numa biblioteca americana preparando uma tese sobre o Renascimento. Perguntou-lhe se ele já tinha lido o celebérrimo livro de Jacob Burckhardt a respeito e obteve esta resposta: "Ainda não cheguei lá. Estou nos autores cujos nomes começam por A". Isso ilustra a capacidade de coleta de material deles, espantosa em seu rigor e meticulosidade.

JOÃO MARCOS COELHO - Uma das críticas que se fazem, não somente ao historiador mas ao intelectual brasileiro em geral, é a de que ele tem a obsessão de ultrapassar rapidamente a realidade empírica e partir para a ensaística, ou interpretação teórica, sem bases sólidas.
SÉRGIO BUARQUE - Concordo integralmente, e é por isso que eu jamais escreveria de novo "Raízes do Brasil". Principalmente porque o livro ficou no nível do ensaio. Não sou contra a ensaística ou a interpretação, mesmo hoje. Mas a pesquisa deve ser rigorosa e exaustiva. Se não, o resultado são apenas elucubrações, às vezes brilhantes, mas desvinculadas da realidade.

JOÃO MARCOS COELHO - De qualquer modo, não há jeito de escapar da ideologia?
SÉRGIO BUARQUE - Não. E é engraçado observar como diversas vezes, na História do Brasil, pessoas mascararam suas verdadeiras posições em função do momento político. Quando Dom Pedro I abdicou, devido a inúmeras pressões, no período imediatamente seguinte - a Regência - os grupos dirigentes permaneceram unidos, porque tinham pavor da volta dele ao poder. Somente depois de 1834, quando dom Pedro morreu, é que se revelaram as verdadeiras posições. Tanto que os conservadores fundaram seu partido em 1837, opondo-se aos moderados. O próprio Gilberto Freyre, quando surgiu, era tido como altamente revolucionário apenas porque usava palavrão, falava da vida sexual e era contra os jesuítas e a maçonaria. Grande parte do clero se voltou, decididamente, contra ele e contribuiu para forjar dele uma falsa imagem revolucionária.

JOÃO MARCOS COELHO - Os historiadores brasileiros têm tentado detectar as ideologias que determinam os fatos de nossa história e fazer uma revisão de tudo o que já foi dito?
SÉRGIO BUARQUE - A revisão da História não tem que ser absolutamente um momento privilegiado. Ela tem que ser feita a todo instante. A história não é prisão ao passado. Ela é mudança, é movimento, é transformação. E por isso estamos irremediavelmente presos a ideologias que na maioria das vezes são exóticas, pois não nasceram aqui. A atual geração de historiadores considera que a ideologia representa um pensamento falso. Mas eu pergunto: será possível assumir uma ideia que seja válida? Cada um de nós tem, no fundo, uma certa ideologia, um certo conceito de tempo. Para transcender isso, somente um gênio. E não devemos ficar eternamente de braços cruzados à espera desse ser excepcional, devorador de ideologias, que assumiria o ponto de vista da eternidade.


Adicionar legenda
JOÃO MARCOS COELHO - Então, fazer história é reescrevê-la perpetuamente?
SÉRGIO BUARQUE - Eu diria, junto com Benedetto Croce, que toda história é história contemporânea. Ou seja, nós sempre privilegiamos um aspecto em função de nossa realidade. Por exemplo, quando Bismarck governava todo-poderoso a Alemanha, a Escola Prussiana de História, ao estudar a Grécia antiga, privilegiou muito as qualidades de Alexandre Magno, o homem forte que dominou toda aquela região por um bom tempo. Tudo isso em função de Bismarck. Nós contamos a história a partir da vivência cotidiana de nossos problemas, de nossa realidade. Os historiadores sempre foram e serão presa fácil de seu tempo.
----
:: Fonte: Sérgio Buarque de Holanda: A democracia é difícil. [entrevista concedida a João Marcos Coelho]. Publicada originalmente na Revista Veja, em 28 de janeiro de 1976. 
-----
AQUI NESTE SITE MAIS SOBRE O AUTOR

© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske

____
** Página atualizada em 20.6.2016.


Licença de uso: O conteúdo deste site, vedado ao seu uso comercial, poderá ser reproduzido desde que citada a fonte, excetuando os casos especificados em contrário. Direitos Reservados © 2016 Templo Cultural Delfos

Julio Cortázar - entrevista

Julio Cortázar - foto: ...
"É difícil entender Godard"

As divagações de Cortázar, que está para vir ao Brasil, sobre a arte, a comunicação, os sonhos

Por Cley Gama de Carvalho

A escadaria antiga, escura, termina num quarto andar bem iluminado pela claraboia que dá um tom irreal ao vermelho corrimão. A porta, também vermelha e irreal, se abre para um apartamento comum do Quartier Latin.
À minha frente e do alto, um rosto aparentemente vindo do teto esboça um ligeiro sorriso no topo daqueles surpreendentes quase dois metros de seriedade. No corredor estreito que o conduz à sala, ele anda encurvado, pois o forro é baixo. Quantos anos terá aquele homem? Cortázar não é o tipo de pessoa da qual determinamos idade pela aparência. Fica marcada a impressão de que ele sempre teve e terá uns quarenta anos. Um homem de meia-idade.
Entretanto, nasceu em Bruxelas em 1914, de pais argentinos com antepassados bascos, franceses e alemães. A família retorna à Argentina em 1918. Vai viver em Banfield, subúrbio de Buenos Aires.
"Fiz meus estudos na Argentina, diplomei-se 'mestre de letras', título que não quer dizer grande coisa porque os cursos eram muito ruins. Fui professor de escola primária e. de 1937 a 1944, do curso secundário. Professor-orquestra: geografia, história, lógica, instrução cívica... Mas fui um bom professor, sei disso, e tratei sempre meus alunos como se fossem cronópios*, quer dizer que os ajudei a empregar a imaginação. Entre 1945 e 1946, fui professor universitário. A chegada de Perón ao poder me fez renunciar. Consegui emprego de meio dia como gerente de Câmara do Livro em Buenos Aires, que me dava bastante tempo para vagar, ler e escrever. Em 1949, passei nos exames e tornei-me 'tradutor público' e me associei a um outro tradutor. Montamos um escritório para traduzir patentes, documentos judiciais, etc... Em 1951, decidi vir à Europa.

* No livro História de cronópios e de famas, Cortázar divide as pessoas em dois grupos. Os "famas" são os que vulgarmente se chamam "quadrados". São meticulosos, sem imaginação. Já os "crocópios" são imaginativos, simpáticos, desorganizados.


"Passei mais ou menos mal no princípio. Depois obtive trabalho como tradutor da UNESCO. Desde então, quando falta dinheiro, faço serviços lá. Nunca quis um emprego permanente. Ser 'free-lancer' teve e tem a vantafem de me dar grande independência em relação aos editores, isto é, quando não recebo por meus livros, trabalho na UNESCO e vice-versa, e estamos todos contentes, creio."
O apartamento não é muito amplo. A sala em L tem as paredes forradas de estantes. Numa grande almofada, como que um visitante sempre disposto a longas e incríveis conversas, a figura de um homem de cobre, uma escultura.
Fica combinado que não haverá uma entrevista gravada ou anotada: "Sou um escritor, prefiro escrever o que achar interessante num questionário que você me apresentará por escrito. Escolha os temas, ou as armas".
Proponho então luvas de boxe. Cortázar aceita. Esclareço que será uma luta-dança, com a guarda baixa. Cortázar concorda inclusive com a definição proposta para o encontro: quinze assaltos com Julio Cortázar.
Assim sendo, neste canto, Julio Cortázar, 58 anos. Inúmeras obras, talvez a principal delas uma antinovela, "O jogo da amarelinha". Está de saída de Paris para uma viagem que o levará até o Brasil, onde chegará nos primeiros dias de fevereiro, via Equador e Peru. Seu destino: Buenos Aires, onde vai lançar seu novo livro, "O livro de Manuel". Muito curioso a respeito da literatura brasileira, antes de subir ao ringue indaga de Clarice Lispector, de Drummond.
Na introdução do seu pequeno livro de poesias, "Pameos y meopas", publicado no final do ano passado, escreve que "se a poesia do homem de hoje pode dar-se como e dá em Octavio Paz ou em Drummond de Andrade, também se dá cada dia mais na linguagem dos rabiscos nos muros, nas canções de Lei Ferré, de Atahualpa Yupanqui, de Caetano Veloso, de Bob Dylan, de Raimon e Leonard Cohen, no cinema de Jean-Luc Godard e de Glauber Rocha... que abrem cada dia mais ao grande público a passagem para novas formas do estético e do lúdico".
Entre os escritores, latino-americanos atuais, Cortázar está cronologicamente ao lado de Juan Rulfo, entre a geração mais velha de Borges, Asturias e Carpentier, e a mais jovem, de Carlos Fuentes, García Márquez e Vargas Llosa. Dedicou dois anos a traduzir para o espanhol as obras completas de Edgar Allan Poe e considera importantíssimo o experimento surrealista. Sua biblioteca: 60% de livros franceses, 30% de ingleses e 10% de espanhóis...
Cortázar interrompe a apresentação: "Quero esclarecer algo importante. Vou escrever à maior velocidade possível em uma máquina elétrica Coronet, cuja denominação técnica é SMC Smith Corona. (É importante porque cada vez que respondo a entrevistas faço um rascunho e reviso cuidadosamente o texto.) Isso significa que estou disposto a jogar o jogo a fundo, deixando-me ir ao acaso da imaginação. Tudo pronto? Então... GONG!"

Cley Gama de Carvalho - Borges confessa que para ele a literatura não é outra coisa senão um sonho dirigido...
Cortázar - Borges, que tanto ama o inglês, se esquece do terrível valor que tem em nossos tempos a expressão "dreams that come true". Pode ser que a literatura seja um sonho dirigido, mas tudo depende da direção que se tê a esse sonho. Em seu caso, aí, receio que consiste em mantê-lo no plano do sonho, ou de um cômoda realidade que se mantém no nível dos sonhos.
Mas na América Latina a realidade é outra coisa. E, se se trata de sonhar, a operação consiste, para mim, em levar os sonhos à realidade para aperfeiçoá-la e embelezá-la, e não submeter a realidade a sonhos individuais e egoístas. Os sonhos de José Marti podem e devem "come true". Os de Borges e tantos outros seguirão sendo sonhos.

Cley Gama de Carvalho - Como se chama o simpático monstro de cobre sentado na sua sala? Altas horas da madrugada ele é um bom papo ou dorme às primeiras palavras?
Cortázar - Quando ia responder a essa pergunto, Jojó desceu de seu almofadão e veio até a máquina. Compreendi que desejava responder por sua conta, embora sua mão de bronze fatalmente me arrebentasse o teclado da Coronet.
"Cley, és um grande desgraçado. Vieste aqui e meu amigo Julio te serviu uísque, conversou e fumou contigo, e agora tu, lá do teu país, te atreves a qualificar-me de 'monstro simpático'. Se crês que me chamando de simpático vais apagar o 'monstro' te equivocas. Alegra-te de estar longe, poque te teria dado um golpe de judô daqueles que mandam para o hospital por quinze dias.
"Eu me chamo Jojó, não sou monstro, sou uma formosíssima escultura e vivo em estreita camaradagem com Julio. Ele me faz escutar discos de Mozart, de Carlos Gardel, de Baden Powell, de Thelonius Monk. Á noite, às vezes, saímos juntos a andar pelas margens do Sena, e buscamos mulheres e gatos, pescamos de madrugada debaixo do Pont Neuf e cantamos juntos e muito bem as canções de Joni Michell e de Leo Ferré..."

Cley Gama de Carvalho - Você teria alguma instrução especial para o leitor brasileiro ler sua obra?

Cortázar - Wff67hgr?&. Cley, olhe como a pergunta anterior deixou meu teclado. Me deves 200 francos do conserto da máquina. Protesto pela expressão "instruções especiais". Se alguém tem que explicar um livro fornecendo um guia para entrar nele, esse livro tem algo que não funciona.
Eu quero que me leiam com a mesma maneira como fazem o amor, ou brincam com os filhos, ou olham as nuvens, cheios dessa grave alegria que acompanha todos os atos verdadeiros, não impostos pela rotina ou pelo "establishmet" mental ou social.

Cley Gama de Carvalho - Como se sentiu vendo um personagem seu, Rocamadour, tomar parte no livro de García Márquez, Cem anos de Solidão? García Márquez tem uma teoria de que todos os escritores latino-americanos estão escrevendo uma única novela.
Cortázar - Quando encontrei o Rocamadour em "Cem anos de solidão" me senti prodigiosamente feliz e recompensado. A mim me parece que nada pode ser mais exaltante para um escritor do que encontrar seus personagens no livro de outro escritor.

Cley Gama de Carvalho - O Brasil pode ser incluído na literatura hispano-americana? Ou está isolado culturalmente do resto da América?
Cortázar - Desconheço elementos essenciais desse problema tão grave e tão presente para nós. Mas, apesar das minhas dificuldades para ler português, basta avançar em um conto, um poema ou um ensaio para sentir que temos uma literatura latino-americana e que o Brasil faz parte dela com direito próprio por profundas raízes. Falo de livros e também de cinema, pintura, música, falo de uma maneira de entender o mundo e o destino. Á margem das particularidades óbvias, somos uma única lenta marcha comum rumo a nós mesmos.

Julio Cortázar - foto: ...
Cley Gama de Carvalho - Fale sobre a evolução do livro na cultura ocidental, as histórias em quadrinhos que são mais lidas que os livros tradicionais. Os experimentos de seus livros como "Último round" e "Volta ao dia" são uma tentativa de modificar o esquema acadêmico do livro?
Cortázar - Tudo isso está muito em moda, e por isso desconfio. Em Paris, existem pessoas para as quais os "comic strips" "comunicam" melhor que qualquer texto e para as quais o cinema substituiu a literatura. Eu gosto de algumas histórias em quadrinhos, como as aventuras de Valentina e por certo "Phoebe Zeitgeist", onde a ficção científica e o erotismo nascem de uma considerável liberação de imaginação, assim como num plano mais íntimo e terno amo as sagas de Peanuts. Creio também que o cinema de Godard impõe um tipo de mensagem que os textos escritos somente transmitem penosamente. Mas isso não me parece uma ameaça ao livro. Em troca, creio que o livro pode e deve assumir uma elasticidade digna dos relógios moles de Salvador Dalí. Permanecer na noção severa do livro como pináculo da comunicação cultural é um critério bibliotecário. É por isso que, em "A volta ao dia em oitenta mundos" e "Último round", introduzi muito ar livre, nuvens, níveis diferentes de leitura, caprichos gráficos e uma atmosfera geral de almanaque e de disparate. Tudo isso com a maior seriedade possível.
Diariamente, em pleno 1972, recebo livros que parecem feitos nos tempos de Goethe. Os piores são quase sempre os de "esquerda". Os nossos esquerdistas são incrivelmente direitistas em sua linguagem. Menos mal, porque seus escritores não são canhotos. Uma revolução se faz seriamente, isto é, "sonhando" a sério, é por isso que na capa de "Último round" coloquei uma frase admirável de Lênin: "É preciso sonhar, mas com a condição de se crer seriamente em nosso sonho, de examinar com atenção a vida real, de confrontar nossas observações com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossa fantasia". O livro precisa de uma daquelas sacudidelas que fazem sair voando as traças. Então entrará em uma nova dinâmica e em vez de cair de nossas mãos o veremos brincar como um gato com uma bola, cheio de vida e de exigência e de desafio.

Cley Gama de Carvalho - Existem muitas referências musicais em seus livros, principalmente em relação ao jazz.
Cortázar - Eu escrevo em "swing". Tudo que vivo, sinto e formulo vem de um ritmo e busca seu equivalente rítmico. Se você me perguntasse o que é esse ritmo, qual o seu sentido, não poderia responder. Ou teria que usar imagens demasiado fáceis, falar de pulsações cósmicas ou algo no estilo. Somente sei que, quando escrevo, algo vibra continuamente em mim, eu sou Max Roach, eu sou Louis Armstrong, eu sou o músico índio que inscreve sua "raga" em um tempo fora dos calendários aprovados pela ciência aristotélica. Se me perguntassem: "Em síntese, a que se parece sua obra?", responderia sem falsa modéstia que se parece aos solos de Satchmo em "Potato Head Blues" ou ao encontro do canto de Bessie Smith em "Baby Doll". Me parece necessário lembrar que aos críticos da literatura estas aproximações "elementares" parecem muito ruins. Mas que fazer, irmão?

Cley Gama de Carvalho - E o retrato do escritor enquanto homem?
Cortázar - Creio que o descobrimento de mim mesmo enquanto escritor se me fez claro no dia em que compreendi que escrevia para fugir da realidade. De uma realidade com a qual não estava de acordo, que me fustigava. Trinta anos depois, digamos neste mesmo instante, sinto que escrevo obedecendo justamente ao contrário: entrar cada vez mais na realidade, para conhecê-la no mais essencial e, ali onde for possível, alterá-la, metamorfoseá-la cada vez mais naquilo que acho deve ser a realidade humana digna de ser vivida. Tudo isso sem a menor pretensão messiânica, sem validade de demiurgo, dando de ombros simplesmente, trazendo meu ladrilhinho para a construção da "Casa".

Cley Gama de Carvalho - Gostaria que descrevesse uma "leitura" sua de Valentina ou de um filme de Godard.
Cortázar - Sou muito tonto para entender Valentina. Gasto horas relendo. Penso que fiquei para trás, e que qualquer leitor jovem, acostumado aos "comic strips", decifra rapidamente o que a mim escapa. No cinema é a mesma coisa. Assis até quatro vezes a alguns filmes de Godard porque não entendia nada. Penso que Valentina, a quem tomo como símbolo dessa forma de comunicação, é mais interessante como mecânica do que como fundo (como significante do que como significado). Quando termino um episódio tenho a impressão de que nada mudou em mim. Mas em troca me sinto ágil tecnicamente, aprendo a eliminar etapas intermediárias em qualquer operação intelectual ou vital. Então creio que posso retornar a Malcolm Lowry ou Roberto Musil*, dos quais um só capítulo é suficiente para me descompor de alto a baixo, com a vantagem de poder ir mais longe neles e por eles. Valentina é como essas amantes que nos ajudam a ser mais felizes com nossa verdadeira mulher.

* Lowry é um novelista inglês nascido em 1909. Suas obras principais são Ultramarine (1933) e Under the volcano (1947). Musil, morto em 1942, era austríaco. Autor de O homem sem qualidade, foi definido pelo "London Times Literary Supplement" como o mais importante novelista em língua alemã da primeira metade do século.



Cley Gama de Carvalho - Passada a natural tensão do chamado caso Padilla*, poeta cubano acusado de traição pelo regime de Fidel Castro, você poderia esclarecer sua posição em relação a ele?
Cortázar - O "caso Padilla" foi em última análise uma espécie de psicodrama necessário e positivo. Muitas máscaras caíram, e os verdadeiros dirigentes e intelectuais revolucionários, cubanos ou não, puderam verificar na prática que dialética não é uma merda palavra de raiz hegeliana ou marxista, senão que é além disso uma pulsação profunda, algo que deve cumprir-se cada vez que um processo revolucionário se veja ameaçado de estancamento ou monolitismo. Há sempre feridos e contundidos, justiças e injustiças nesse tipo de trompadas, mas o que conta é a afirmação final da única atitude que pode levar-nos adiante: a de verificar em plena vigília nosso sonhos.
Contra a opinião de muitos, creio que o processo revolucionário cubano se beneficiou com o episodio e demonstrou seu dinamismo e sua vontade de não se estancar.

* Herberto Padilla, em 1968, recebeu um prêmio literário internacional, mas dirigentes cubanos recusaram sua validade por considerarem sua obra "à margem dos princípios revolucionários". Ele foi preso em março de 1971 e libertado após uma autocrítica considerada uma farsa por escritores e intelectuais esquerdistas em todo o mundo.

Cley Gama de Carvalho - Num conto seu, um personagem entra no metrô em Buenos Aires e desce em Paris, cem anos atrás. Serão os metrôs todos iguais?
Cortázar - Viajando no metrô de Buenos Aires conheci uma garota que resultou ser aeromoça. O destino a havia levado a descer de seu metrô entre as nuvens para entrem em contato com um viajante subterrâneo. O metrô de Paris me deu as primeiras imagens do que seria "El perseguidor". Não sei se os metrôs são todos iguais. Em todo caso, parecem ter repercussões e consequências muito diferentes. E como vê, Cley, o metrô serve para tudo.

Cley Gama de Carvalho - Como vê o problema dos direitos autorais para o escritor que vive do que escreve?
Cortázar - Gosto dessa pergunta, especialmente porque faz pouco tempo escutei jovens, que devem ser muito idealistas, sumamente ofendidos porque Gabriel García Márquez faz frequentes referências a seus problemas em matéria de direito do autor, venda de seus livros, etc. Os escritores não são anjos e, em meu caso particular, entendo que os direitos do autor não são uma justíssima recompensa. Chegar a viver comodamente de seus direitos de autor não faz mal algum a um escritor de verdade, quero dizer, a um escritor que não escreve para ganhar direitos de autor.

Cley Gama de Carvalho - "Existem outros mundos, mas estão neste..."
Cortázar - A frase de Éluard resume, creio, quase tudo o que quis dizer ao longo de uns quantos livros, e frente a ela o grito de Rimbaud, "Il faut changer la vie", recebe todo seu valor, especialmente valor político que essas duas noções têm atualmente para os latino-americanos. Em uma troca de opiniões, que muitos chamam de polêmica, com o colombiano Oscar Collazo, disse o mais claramente possível que era o meu sentimento da realidade, um sentimento que nada tem a ver com realismo segundo entendem muitos escritores de nossos países.
Julio Cortázar - foto: ...
Curiosamente, os "materialistas", dialéticos ou não, tendem a manter uma visão mais positivista e apenas se fala do azar, da magia ou da antimatéria, sacam o revólver ideológico. E digo curiosamente porque os que conhecem de verdade e a fundo os problemas físicos são hoje os primeiros a abandonar as ideias recebidas sobre matéria e realidade, e a abrir maravilhosas interrogações no campo científico. Assim, um bom físico é muito menos materialista do que muitos profanos emperrados em crer que o universo é redutível ao pensamento racional. Se fôssemos capazes de compreender a
linguagem das almas matemáticas, é aí onde provavelmente encontraríamos uma poesia, um mistério, uma música da realidade que escapa aos escravos mentais do sistema decimal e outras unidades de medida.
Um menino me disse um dia: "Que estranhas são as árvores. Quando faz frio deixam cair toda a roupa e se abrigam muitíssimo no verão". A mãe dele pôs-se a rir e comentou o tolo que era o menino. E olhei para ela e saí para brincar com o menino. Ela nunca me perdoou por isso. Lástima, porque era muito bonita.


------
:: Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 7 de fevereiro de 1973 - Edição 231.

VISITE AQUI NO SITE: Julio Cortázar - vida e obra

OUTRAS ENTREVISTAS PUBLICADAS NO SITE: Veja aqui!


© Direitos reservados aos seus herdeiros
____
Página atualizada em 19.6.2016.


Licença de uso: O conteúdo deste site, vedado ao seu uso comercial, poderá ser reproduzido desde que citada a fonte, excetuando os casos especificados em contrário. 
Direitos Reservados © 2016 Templo Cultural Delfos

Lygia Fagundes Telles - entrevistada por Clarice Lispector

Lygia Fagundes Telles - foto: ...
Você sabe o que uma famosa escritora disse para a outra? Se não sabe, leia o que Clarice Lispector perguntou e Lygia Fagundes Telles respondeu. Mas o final dessa conversa poderá ser na Academia.
Eu pretendia ir a São Paulo para entrevistar Lygia Fagundes Telles, pois valia a pena a viagem. Mas acontece que ela veio ao Rio para lançar seu novo livro, Seminário dos ratos. Entre parênteses, já comecei a ler e me parece de ótima qualidade. O fato dela vir ao Rio, o que me facilitaria as coisas, combina com Lygia: ela nunca dificulta nada. Conheço a Lygia desde o começo do sempre. Pois não me lembro de ter sido apresentada a ela. Nós nos adoramos. As nossas conversas são francas e as mais variadas. Ora se fala em livros, ora se fala sobre maquilagem e moda, não temos preconceitos. Às vezes se fala em homens.
Lygia é um best-seller no melhor sentido da palavra. Seus livros simplesmente são comprados por todo o mundo. O jeito dela escrever é genuíno pois se parece com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia são muito sensíveis, muito captadores do que está no ar, muito femininos e cheios de delicadeza. Antes de começar a entrevista, quero lembrar que na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras línguas, usam-se poetas e poetisas, autor e autora. Poetisa, por exemplo, ridiculariza a mulher-poeta. Com Lygia, há o hábito de se escrever que ela é uma das melhores contistas do Brasil. Mas do jeitinho como escrevem parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro. Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores. Sabe-se também que recebeu na França (com um conto seu, num concurso a que concorreram muitos escritores da Europa) um prêmio. De modo que falemos dela como ótimo autor. Lygia ainda por cima é bonita.
Comecemos pois:

Clarice Lispector – Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?
Lygia Fagundes Telles – São perguntas que ouço com frequência. Procuro então simplificar essa matéria que nada tem de simples. Lembro que algumas ideias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A ideia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador que avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A paciência. A vontade do escritor de se comunicar com o seu próximo, de seduzir esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham) que ao menos fique a alegria de criar.

Clarice Lispector  – Para mim a arte é uma busca, você concorda?
Lygia Fagundes Telles – Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade:
Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?
– Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil, há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De ambiguidades.

Clarice Lispector – Fale-nos do Seminário dos ratos.
Lygia Fagundes Telles – Procurei uma renovação de linguagem em cada conto desse meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada ideia: um conto pode dar assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas ninguém vai esquecer esse conto-retrato se nesse retrato houver algo mais além da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo, se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então esse será um retrato inesquecível. O escritor – ai de nós – quer ser lembrado através do seu texto. E a memória do leitor é tão fraca. Leitor brasileiro, então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O padre Luís (um padre santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando, os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar?
Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas são muito volúveis”, concluiu padre Luís. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha quando um mês depois de ser carregado nos ombros por uma multidão delirante, com o mesmo fervor e no mesmo estádio foi fragorosamente vaiado. Tão volúveis...

Clarice Lispector – Isso não é pessimismo?
Lygia Fagundes Telles – Não sou pessimista, o pessimista é um mal-humorado. E graças a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais discretamente) do meu próximo que se envaidece com essas coisas, do próximo que enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por aí, duro de vaidade. De certeza, tantas medalhas, tantas pompas e glórias, eu ficarei! Não fica nada. Ou melhor, pode ser que fique, mas o número dos que não deixaram nem a poeira é tão impressionante que seria inocência demais não desconfiar. Sou paulista, e como o mineiro, o paulista é meio desconfiado. Então, o certo é dizer com Millôr Fernandes: “quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou lançar esse Seminário dos ratos. O que já é alguma coisa...

Clarice Lispector – Como nasceu esse título?
Lygia Fagundes Telles – Houve em São Paulo um seminário contra roedores. Lá acontecem diariamente dezenas de seminários sobre tantos temas, esse era contra os ratos. “Daqui por diante eles estarão sob controle”, anunciou um dos organizadores, e o público caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e discursos com pequenos intervalos para os coquetéis. Palavras, palavras. E de repente pensei numa inversão de papéis, ou seja, nos ratos expulsando todos e se instalando soberanos no seminário. “Que século, meu Deus”, exclamariam repetindo o poeta. E continuariam a roer o edifício. Assim nasceu esse conto.

Clarice Lispector – Quais são os temas do livro?
Lygia Fagundes Telles – São quatorze textos que giram em torno de temas que me envolvem desde que comecei a escrever: a solidão, o amor e o desamor. O medo. A loucura. A morte – tudo isso que aí está em redor. E em nós. Quando fico deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e o escritor. Mas reajo, não sei trabalhar sem a esperança no coração. Sou de Áries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo, tenho paixão por Deus.

Clarice Lispector – Há muita gente louca no Seminário dos ratos?
Lygia Fagundes Telles – Sim, há um razoável número de loucos nesse meu livro e também nos outros. Mas a loucura não anda mesmo por aí galopante? “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, disse Pascal.

Clarice Lispector – O que mais lhe perguntam?
Lygia Fagundes Telles – Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado através do meu trabalho fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? “As glórias que vêm tarde já vêm frias”, escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente.


Lygia Fagundes Telles - foto: ...
LYGIA FAGUNDES TELLES – Autora do premiado As meninas (1973) que arrebatou os principais
prêmios literários brasileiros: o Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro e o de Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte. Membro da Academia Brasileira de Letras. Recebeu o Prêmio Camões, em 2005, considerado o Nobel da língua portuguesa. Publicou O seminário dos ratos em 1977. Entrevistas realizadas por Clarice Lispector, entre maio de 1968 e outubro de 1969.

- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

VISITE AQUI NO SITE: Lygia Fagundes Telles - vida e obra

VEJA AQUI OUTRAS ENTREVISTAS REALIZADAS POR CLARICE LISPECTOR:

OUTRAS ENTREVISTAS PUBLICADAS NO SITE: Veja aqui!

© Direitos reservados aos seus herdeiros
____
Página atualizada em 18.6.2016.


Licença de uso: O conteúdo deste site, vedado ao seu uso comercial, poderá ser reproduzido desde que citada a fonte, excetuando os casos especificados em contrário. 
Direitos Reservados © 2016 Templo Cultural Delfos

Elis Regina - entrevistada por Clarice Lispector

Elis Regina, 1972 - foto: Paulo Moreira
“Eu me encontrei tanto nessa coisa de cantar que jamais pensei em procurar outros caminhos.”

Pequenina, de traços delicados, cabelo cortado rente à cabeça, movimentos livres, gesticulando um pouco, com uma inteligência alerta e rápida, facilidade de expressão verbal – eis Elis Regina, pelo menos uma delas.

Clarice Lispector – Por que você canta, Elis? Só porque tem voz magnífica? Conheço pessoas de ótima voz que não cantam nem no banheiro.
Elis Regina – Sei lá, Clarice, acho que comecei a cantar por uma absoluta e total necessidade de afirmação. Eu me achava um lixo completo, sabia que tinha uma voz boa, como sei, e então essa foi a maneira para a qual fugi do meu complexo de inferioridade. Foi o modo de me fazer notar.

Clarice Lispector – O que é que você sente antes de enfrentar o público: segurança ou inquietação?
Elis Regina – Inquietação. Sou segura em relação ao que eu vou fazer, mas profundamente inquieta quanto a reação das pessoas que me ouvirão.

Clarice Lispector – Se você não cantasse, seria uma pessoa triste?
Elis Regina – Seria uma pessoa profundamente frustrada e que estaria buscando uma outra forma de afirmação.

Clarice Lispector – Qual seria essa outra forma de afirmação?
Elis Regina – Não tenho realmente a menor ideia, porque eu me encontrei tanto nessa coisa de cantar que nunca pensei nisso.

Clarice Lispector – Você tem um tipo extrovertido. É o natural em você ou você se faz assim a si mesma para não se deprimir, ou seja, fala tudo para não ficar muda?
Elis Regina – Sou um ser do tipo sanguíneo que oscila muito. Tenho momentos de extrema alegria e momentos de profunda depressão. Não obedeço a uma agenda: hoje vou sentir isso, amanhã vou sentir aquilo. Reajo aos acontecimentos à medida em que o ambiente reage sobre mim. Mas como sou hipersensível, as coisas têm às vezes um valor que a maioria das pessoas acha ridículo. Mas eu sou assim mesmo. Por exemplo, às vezes fico furiosa com uma pessoa cujo problema talvez, você contornasse com um simples puxão de orelha. Ao mesmo tempo, tomei agora consciência de que essa não é uma atitude lógica e estou procurando me reestruturar.

Clarice Lispector – Que é que você tem feito de positivo em matéria de auto-reestruturação?
Elis Regina – Estou fazendo um tratamento genial que é, dizem, moderníssimo – reflexologia.

Clarice Lispector – Em que consiste?
Elis Regina – Parte das descobertas dos reflexos condicionados de Pavlov. No meu caso, está sendo atacada de início a minha taquipsiquia, isto é, minha tendência de pensar mais rápido do que eu mesma posso agir. Portanto, quando as coisas chegam a acontecer, já tomaram proporções monstruosas, não na realidade, mas dentro de minha cuca.

Clarice Lispector – E como é que o médico intervém nesse sistema?
Elis Regina – Primeiro, mostrou que tenho essa tendência e provou que isso era verdade. E está agora me dando condições psíquicas para que eu saiba exatamente o momento em que a aranha da taquipsiquia começa a se movimentar, e como devo jogá-la para fora de casa.

Clarice Lispector – Você foi considerada má colega. Pelo que tenho lido a seu respeito, me parecera pelo contrário: boa colega. O que é ser má colega?
Elis Regina – Bom, toda a minha vida disseram que fui má colega. Mas, enquanto eu dei quarenta no Ibope tive um programa de televisão na mão e as pessoas puderam se sobressair. Utilizaram-se de todas as vantagens que a artista Elis Regina poderia lhes dar no momento. Nenhum artista dos que hoje me acusam de má colega deixou de comparecer e usufruir de meu programa e meu sucesso. Então, eu não sei mais quem foi e quem é má colega. Má colega, na minha opinião, é aquela que esconde seus parceiros. Eu, muito pelo contrário, nunca agi assim e fui até criticadíssima porque no meu programa acontecia de tudo, sem que tenha havido uma estrutura prévia. Se eu fosse a déspota que dizem, no meu programa só daria eu. Mas acontece o oposto: quanto mais pessoas estiverem agregadas ao processo, melhor para mim. Seria mais cômodo ter minha gangue, e não trabalhar como trabalhei tanto tempo com gente diferente e de sucesso. Que os meus colegas digam que sou uma pessoa geniosa, dou a mão à palmatória. Mas mau caráter é quem cospe no prato em que comeu.

Clarice Lispector – Se você não pisasse no palco, o que faria de sua vida?
Elis Regina – Não sei. Realmente não tenho a menor ideia.

Clarice Lispector – Pense agora então.
Elis Regina – É que o palco está tão ligado à minha maneira de ser, à minha evolução, aos meus traumas, que eu acho que me separar de um palco é a mesma coisa que castrar um garanhão: ele deixa de ter razão de existir.

Clarice Lispector – A vida tem sido boa para você?
Elis Regina – Muito boa. Acho até que eu tenho mais do que mereço ter. E não estou fazendo demagogia barata: acho mesmo isso.

Clarice Lispector – Você já esteve apaixonada? Se esteve, suas interpretações mudaram nesse período?
Elis Regina – A pessoa apaixonada se comporta completamente diferente em relação a tudo, principalmente sendo sensível como eu sou.

Clarice Lispector – É bom estar apaixonada?
Elis Regina – Bem melhor do que não sentir nada!

Clarice Lispector – Você mudou de estilo de cantar. Por exemplo, não usa tanto os braços. Por que a mudança? Para sair da rotina ou porque você ficou mais moderna?
Elis Regina – A gente vai vivendo – e eu sou uma pessoa que vive intensamente, tirando o máximo de tudo – a gente vai vivendo e modifica-se a cada dia. Juntando-se a isso a pouca idade e maturidade incompleta no meu início de carreira, é absolutamente normal, penso eu, que eu esteja me modificando sempre. Acho que nenhum ser tem o direito de se cristalizar nem os outros têm o direito de exigir isso dele.

Clarice Lispector – Como é que você tem recebido os comentários negativos sobre Elis Regina?
Elis Regina – Procuro antes saber porque a pessoa falou isso. Depois, analiso se existe algum envolvimento pessoal na crítica. Faço a soma, tiro a prova dos nove, e passo a limpo, se for o caso.

Clarice Lispector – Quando você está em casa, com o tempo disponível, e põe um disco na vitrola, quem canta nesse disco?
Elis Regina – Frank Sinatra – respondeu prontamente, sem hesitação.

Clarice Lispector – Dizem alguns que o seu show é o Mièle. Que é que você acha?
Elis Regina – Este show é um conjunto de coisas. Talvez, mais que Mièle, o show seja Bôscoli. Isso no que diz respeito à parte dos bastidores. Agora, em palco, Mièle é o maior artista que já vi trabalhar em cena, além de que tudo o que ele faz é absolutamente natural: ele é assim. Sinto-me profundamente feliz de ter sabido escolher bem, mais uma vez, o meu parceiro de trabalho. Não se deve esquecer também, nas críticas, que eu sou a íntima conhecida de todo o mundo e que o Mièle é que é o novo no espetáculo. Sei que não sou nenhuma novidade. Mas estou feliz que a novidade seja exatamente Mièle, que é meu amigo, meu produtor, meu confidente e uma das poucas pessoas que me restituíram no pouco que lhes dei.

Elis Regina - foto: Armênio A. Meireles
Estava mais ou menos encerrada a entrevista, se bem que esta pudesse se completar muito mais. Foi o que aconteceu quando Elis me deu carona no seu carro e conversou comigo. Infelizmente não posso transmitir a conversa, que me mostrou uma Elis Regina responsável, misteriosa nos seus sentimentos, delicada quanto aos sentimentos dos outros. Uma Elis Regina, enfim, que tem mais problemas do que o de ser acusada de mau coleguismo. Mostrou-me uma Elis Regina que não quer ferir ninguém. Se há outras Elis, no momento, não me foi dado ver. A que eu conheci tem uma espontaneidade e uma simpatia raras.


ELIS REGINA – Tornou-se conhecida nacionalmente em 1965, ao sagrar-se vencedora do I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, defendendo a música Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes. Ao lado de Jair Rodrigues apresentou um dos programas musicais mais importantes da televisão brasileira: O Fino da Bossa, estreado em 1965 na TV Record. Lançou inúmeros compositores como Milton Nascimento, Ivan Lins, Zé Rodrix, Belchior, Aldir Blanc e João Bosco. Entrevistas realizadas por Clarice Lispector, entre maio de 1968 e outubro de 1969.

- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.


VEJA AQUI OUTRAS ENTREVISTAS REALIZADAS POR CLARICE LISPECTOR:

OUTRAS ENTREVISTAS PUBLICADAS NO SITE: Veja aqui!

© Direitos reservados aos seus herdeiros
____
Página atualizada em 18.6.2016.


Licença de uso: O conteúdo deste site, vedado ao seu uso comercial, poderá ser reproduzido desde que citada a fonte, excetuando os casos especificados em contrário. 
Direitos Reservados © 2016 Templo Cultural Delfos

COMPARTILHE NAS SUAS REDES