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Plínio Marcos - entrevista: eu sou um teatrólogo

Plínio Marcos - foto (...)
"Eu sou um teatrólogo"

Agora, porém, o autor de "A navalha na carne" conta como e por que se está transformando num contador de histórias

Por Armando Salem e Sívio Lancellotti

O recorde entre uma gargalhada e outra não ultrapassou 40 segundos - exatamente o tempo que separou a piada mais longa da imediatamente seguinte. Embora Plínio Morcos devotasse um evidente interesse a um suculento prato de camarões, logo contraponteado por uma opulenta mistura de morangos com creme, a meia dúzia de pessoas que o escutava numa mesa do Restaurante Gigeto, em São Paulo, já não tinha mais fôlego para sustentar o riso. Era preciso guardá-lo para o impacto final da anedota, ou mesmo do caso verídico. Diante da pesquisa da platéia, afinal, estava um brilhante contador de histórias - natural, espontâneo, livre, fluente e muito engraçado.
Dias depois, para uma dupla de remanescentes do grupo anterior, haveria uma surpresa no palco do Teatro de Arte, onde ele mostra o show "O humor grosso e maldito das quebradas do Mundaréu". O Plínio Marcos do espetáculo era o mesmo da mesa do restaurante - íntimo, imediato, contundente, sem as agitações de um ator. "Eu não preciso representar", ele explica. "Sou assim mesmo. Até o 'Vitório' (da novela Beto Rockfeller), que tem um papo de débil mental, não me dá nenhum trabalho."
Nascido em Santos (SP), filho de um bancário, na família de Plínio Marcos havia muitos contadores de casos. "Uma tradição santista", ele diz. "Mas eu desenvolvi a coisa a partir de meu trabalho como palhaço de circo." Isso foi há vinte anos, quando tinha dezessete, era mau aluno, e decidiu ser artista: "Sempre que meus irmãos tiravam notas altas na escola, a família fazia festa para eles. Comigo, só houve comemoração quando aprendi a amarrar os sapatos. Com treze anos". Hoje, casado com a atriz Walderez de Barros, três filhos ("Dois meninos, oito e seis anos, uma menininha de três meses."), ele parece ter transmitido a habilidade aos descendentes: "Os garotos puxaram o pai", conta Walderez. "São excelentes para contar histórias." Acima de tudo, porém, não se pode esquecer de que Plínio Marcos é um teatrólogo, ainda que em recesso. "É o que gosto de fazer", ele lamenta. "Mas não posso."

- O Plínio Marcos teatrólogo morreu?
Plínio - Morreu. Ele não pode encenar as suas peças; logo, está morto.

- Não pode encenar, por quê? Elas estão censuradas?
Plínio - Eu escrevi umas quinze os dezesseis peças. Cheguei a encenar nove delas. Hoje, eu só poderia levar "Quando as máquinas param". Todas as outras não estão nem proibidas nem liberadas. Simplesmente não conseguem alvará para serem apresentadas. E olhe que não foi por falta de pedido. Recentemente, por exemplo, a Dercy Gonçalves quis montar "A navalha na carne", fazendo o papel da prostituta. O Silva Filho seria o "Veludo", e eu o gigolô. Ia sair faísca. A Dercy pediu licença para levar a peça. Não houve problema algum. Ninguém proibiu. Mas também não houve alvará.

- Então foi por isso que você parou de escrever?
Plínio - Parei de escrever teatro e passei a escrever contos, crônicas, romances.

- E virou "Vitório".
Plínio - É, por uma questão de sobrevivência. Mas também montei o show e voltei ao palco. A televisão não me satisfaz. Eu preciso estar em contato com o público. Eu preciso da platéia. Entendem? É isso que me leva ao palco.

- Você se considera um ator?
Plínio - Não.

- Um humorista?
Plínio - Também não. Eu não tenho nenhum compromisso com o humor. O Chico Anísio sim. Além de ser ator, ao abrir a boca ele tem de fazer a platéia rir. Eu não. Sou um contador de histórias. Se elas são engraçadas, eu apenas espero que o público ria.

- É difícil fazer o público rir?
Plínio - Depende do público. O difícil é entender o público. Tem dias que ele se desmancha de dar risada. Tem dias que não ri. Como tem dias que parece que todo mundo resolve ir ao teatro. Então a casa fica cheia. Tem dias que não, que não vem ninguém. Vai entender um negócio desses.

- Então é por isso que na abertura do show você diz que está ali, no palco, para mais um dia de trabalho, e "é muito bom" que o público também esteja, para lhe dar dinheiro?
Plínio - Não. Eu não tenho nenhum preconceito em relação ao público. E acho, sincera e honestamente, que o bom do Brasil é que o público não é de ninguém. Ninguém tem público. Hoje pode-se dormir com a casa lotada. Amanhã, pode não haver ninguém na nossa porta. Assim, o artista brasileiro é obrigado a conquistar todos os dias o seu público. E ai dele se não fizer isso. No meu show, aquela agressão contra o público é feita exatamente para que ele tenha a ideia de que eu estou ali forçado, e não por prazer. Que eu gostaria de estar fazendo outra coisa, em vez de estar apresentando aquele espetáculo.

Plínio Marcos - foto: Ana Caona
- E o que você gostaria de estar fazendo?
Plínio - Levando as minhas peças.

- Então o seu show não passa de mais um meio de você ganhar dinheiro?
Plínio - Não. Ele mostra também uma série de coisas sérias. Vai em defesa da música popular brasileira. Mostra que, como "Vitório", na TV, eu não ganho o suficiente para poder sobreviver. Ou seja, que o mercado de trabalho na televisão brasileira é uma m..., que artista americano morto - graças aos filmes - está trabalhando mais do que brasileiro vivo. Além disso, o show é uma forma de eu me desenvolver como contador de casos. Eu quero realmente me transformar num contador de casos. É isso que eu quero ser.

- E um contador de casos, se possível, engraçados, não?
Plínio - O que o público brasileiro quer é emoção. Algo que lhe proporcione impactos, risos, lágrimas. Não importa se neste impacto, ou emoção, venha embrulhada uma mensagem social ou não. O que ele quer é emoção. Então, através do impacto, com "A navalha na carne", "Dois perdidos numa noite suja", eu sempre tive público. Agora, cada artista tem um tipo de emoção, de impacto, para provocar no público. O meu, no momento, é fazer rir.

- E você lamente ter de fazer rir?
Plínio - Eu não lamento ter de fazer rir. Lamento é não poder encenar as minhas peças, porque elas costumam produzir um outro tipo de impacto.

- E quais são os ingredientes para este outro tipo de impacto?
Plínio - Não tem receita, amigo. Se tivesse, eu estaria milionário. Cada artista conta o que tem dentro de si. Esta é a sua arte. É besteira se chamarem caras que estão por aí curtindo flores, paz, amor e mandar que eles escrevam uma peça de fundo social. Eles podem até escrever, mas certamente esta peça vai sair desvirtuada. Só sei de uma coisa: nunca procurei renovar nada. Só tentei contar histórias. "A navalha na carne", por exemplo, é uma história bem contada. O cinema mexicano sempre procurou contar histórias de prostitutas, e sempre contou mal. Eu contei bem.

- Mesmo assim houve quem proclamasse como um dos vanguardeiros do teatro nacional.
Plínio - Eu não sou cara de entrar nessas esteiras de vanguardas. Porque o problema de todos esses movimentozinhos é que todos querem ser os papas. E como em cada movimento há lugar apenas para um papo, e em torno de cada papa se reúne um bando de medíocres, fica aquele negócio de se encabeçar um movimento onde apenas um artista cria e a mediocridade vem atrás. É a velha história: pintar um quadro modernoso qualquer um pinta. Agora, para pintar uma folhinha, o cara já precisa saber alguma coisa.

- Teria acontecido isso quando tentaram transformar você no paladino do palavrão no teatro brasileiro?
Plínio - Exatamente. Eu acabei ficando marcado pelo palavrão. Hoje em dia ninguém me aceita sem palavrão. Me lembro um dia até em que eu estava na porta do Teatro de Arena, quando o Renato Consorte desceu de um carro, me viu e disse "Oi, Plínio Marcos..." E duas senhoras que estavam comprando ingresso reagiram como se tivessem ouvido um palavrão. Aí ele virou para elas e pediu desculpas por ter pronunciado o meu nome. Na verdade fui eu quem, com "Dois perdidos..." e depois com "A navalha..." usou pela primeira vez, com abundância, o palavrão no teatro brasileiro. Mas eu não estava preocupado com isso e sim com a obra, enquanto uns caras estavam preocupados em desviar a atenção do público para o palavrão, a fim de tentar anular a obra. Mas esta era a minha maneira de escrever e de falar. Eu sempre falei muito palavrão. Tanto que houve uma época em que o meu apelido  passou a ser "Plínio Po...". Eu não falava nada que não terminasse com um "po...". Mas o que importa é que o público entendeu que esta é a minha maneira de expressar e prestigiou as minhas peças lotando os teatros até que os seus alvarás terminassem.

- De qualquer forma, as peças que você andou escrevendo, com ou sem palavrão, sempre foram peças de teatro fundamentadas em histórias e personagens marginalizados na vida urbana, não?
Plínio - No meu livro ("Histórias das quebradas do Mundaréu"), eu tenho quarenta histórias diferentes. Na minha coluna do jornal "Última Hora", em São Paulo, eu já escrevi mais de setecentas histórias - também diferentes. "Barrela" (peça ainda não encenada), "Dois perdidos..." e "A navalha..." também são diferentes umas das outras. Mas todas elas são produtos de ambientes que eu frequentei, ou frequento. Se me contam alguma coisa, e eu gosto, ponho logo no meu show. E nele, nas minhas histórias, nas minhas peças, eu falo de futebol, de prostituição, de prisão, de malandros, de samba. Coisas que eu vivi e estou vivendo. Pois, como diz um dos críticos literatura, Geraldo Galvão Ferraz: eu sou o "parceiro do povão".

Plínio Marcos - foto (...)
- É este o compromisso que no final do seu show você conte ter assumido na esquina da rua da sua casa, quando ainda era garoto, saltando poças de água e pisando descalço em pedras?
Plínio - comigo mesmo e com a minha esquina, com a gente da minha rua. Quando eu era garoto, entre os catorze e dezesseis anos, seu Bernardo, um amigo do meu pai, lá da minha rua, quando me via me perguntava: "Por que você não arruma um emprego e não trabalha?" Meu pai me perguntava a mesma coisa em casa. Eu respondia que não. Que ia ser artista. Mas artista mesmo - e não personagem de coleção de figurinhas infantis. Era para ser realmente um porta-voz do meu povo. E de repente eu me vejo constrangido a fazer um papel apenas de figurinha infantil. Então eu sofro o impacto, e reajo. E coloco no meu show uma série de proposições em defesa da nossa música, do mercado de trabalho, das pessoas lá do meu bairro. Pois importar músicas estrangeiras, e filmes estrangeiros, e tudo que é estrangeiro, somente tira o mercado de trabalho do artista popular brasileiro. Eu só acredito que um povo seja realmente livre se conseguir preservar as suas formas de expressão mais puras. A arte popular é uma delas. Está sendo violentamente esmagada pela importação de cultura. Tem rádio que só tocam iê-iê-iê. E, quando se chega diante de uma platéia de estudantes, e se fala em congada, parece que está se falando em coisa de outro planeta.

- Como você mesmo disse, tudo que você escreve está relacionado com algo que você sentiu, viveu ou está vivendo. A música também?
Plínio - É, eu já andei fazendo umas musiquinhas de parceria com amigos. Gosto de samba, como gosto de futebol. E jogo bem, de centro-médio.

- "Barrela" também aconteceu com você?
Plínio - Não. "Barrela" foi a minha primeira peça. Eu a escrevi com 22 anos. "Barrela" foi um caso que aconteceu em Santos, e muito comentado. Eu ouvi a história e fiquei muito impressionado. Ela fala de um rapaz que passou dois dias na cadeia, em meio aos piores criminosos. Havia sido preso por pequenas desordens e, no chiqueiro (a cela), acabou sofrendo uma "barrela", quando os presos se lançam sobre um outro e o violentam. Mais tarde, este rapaz procurou um a um os presos que o haviam currado e matou todos.

- E "A navalha na carne"?
Plínio - Sabe como é, todo santista curtiu muito a zona do cais. A zona que o Lucas Nogueira Garcez (ex-governador paulista) fechou para acabar com um dos currais eleitorais do Ademar de Barros (também ex-governador de São Paulo). E "Dois perdidos..." foi escrita quando eu fui morar em São Paulo, sozinho, sem ter nenhum amigo com quem conversar. Mas é importante que eu diga que, de uma maneira geral, minha vida nunca foi triste. Eu nunca fui um cara sofredor. Mesmo nos tempos difíceis. Eu sempre fui alegre e tirava os problemas - a falta de lugar para dormir, a falta do que comer, que eu encontrei logo que cheguei em São Paulo - de letra. As pessoas têm a impressão, pelas coisas que eu falo, que eu fui um tremendo sofredor. Um agoniado que de repente fez sucesso e deixou de ser magoado com a vida. Não é verdade. Ao contrário, eu sempre fui um cara com muita vontade de viver. Eu passei por tudo isso com olhos abertos. Com um único objetivo: ser artista. Por isso procurava sempre enxergar coisas que mais tarde eu consegui contar aos outros com uma visão social.

- E você acha que todo o autor que pretenda fazer denúncias sociais tem de passar pelos compromissos de esquina e o sofrimento na pele que você passou?
Plínio - Alberto D'Aversa* já dizia: "Se um cara não jogou bola, ele não pode fazer bem o tipo brasileiro". É claro que a vivência ajuda. Mas também é bíblico: "São muitos os caminhos que levam à morada de meu Pai". Na verdade, não importa se uns aprendem as coisas da vida de uma maneira mais bruta, enquanto outros as percebem de uma maneira mais delicada. O que importa é que todos estejam produzindo. E o Brasil é um país novo com muita gente se atirando com tudo nas paradas. Nós não estamos enfrentando uma crise de criadores, mas sim de mercado de trabalho.

*Aliberto D'Aversa, italiano de Casarano, veio para o Brasil em 1956. Professor da Escola de Arte Dramática e da Faculdade de Comunicação da Fundação Álvares Penteado, em São Paulo, morreu em 1969, aos 49 anos.

- Você está se queixando de falta de mercado de trabalho somente porque os diretores das emissoras de TV não deixaram você escrever uma telenovela?
Plínio - Não, eu me queixo de falta de trabalho de uma maneira geral. Então, quando eu falo no meu show que 28 cinemas paulistas não queriam passar filmes brasileiros, na verdade estou defendendo a formação da indústria cinematográfica brasileira. O mercado de filmes sendo nosso vai haver indústria de filmes. Agora, de fato eu gostaria de escrever uma telenovela. Mas o pessoal não topa porque ela é diferente.

- Diferente como?
Plínio - Fazer novela é fácil. É só a gente ter um segredo que o público sabe e os atores não sabem; um segredo que os atores sabem e o público não sabe; e um casal que quer fazer amor e os outros não deixam. Sempre dá certo, em qualquer história. E, ao lado disso, eu montava a minha novela; uma história sobre os bastidores do futebol. Ela está prontinha e todos os dias ofereço para um diretor de TV. Mas acho que eles se cansam de pensar, não aceitam a história, mas não explicam por quê. Aliás, nunca ninguém me convidou para fazer nada. Eu sou o artista mais forçado do Brasil. Sempre tem algum amigo dizendo: "Olha o Plínio", "Põe o Plínio aí".

- E foi bom virar "Vitório"?
Plínio - Existem aspectos positivos e negativos. Ele me deu uma boa popularidade, e a popularidade, para todo artista, é importante. Pena que geralmente o público não dá sossego. Os caras acham que a gente tem de dar autógrafo, tem de falar da vida dos outros artistas, coisas que não interessam. Aí é chato. Agora, sempre é melhor ser popular do que ser apagado. Todo o artista luta para ser popular, e eu não sou daqueles que lutam para ser popular e depois usam óculos rayban à noite para se fingirem de incógnitos. Eu gosto de ser popular, ainda que dê muito trabalho.

- E dá tanto trabalho assim?
Plínio - Dá. Outro dia eu peguei um ônibus. Estava sentado, quietinho, quando de repente a mulher que estava do meu lado, me olhando com aqueles dois olhões fixos, duros, me disse: "Você não é o 'Vitório'?" Eu respondi que não. Ela ficou quieta e eu pensei "Bom, dessa eu me livrei". Mas lá ficou ela com os dois olhões duros em mim. E daqui a pouco falou de novo dando de ombro no meu ombro: "Ah! É você sim. Você é o 'Vitório'". Eu insisti que não era, mas ela não se conformou. Cutucou a passageira que ia no banco da frente e falou: "Ele não é o 'Vitório'?" A outra passageira concordou que sim, e daqui a pouco estava todo ônibus olhando para mim e falando no "Vitório". Tive de descer do ônibus, e longe de casa. Andei um bocado.

Plínio Marcos - foto: Ari Brandi
- Então você é contra a televisão?
Plínio - Muito pelo contrário. Acho que tem muita coisa importante sendo feita na TV. Agora, o problema é que não há tempo nem produção para se fazerem grandes criações. Então o trabalho na TV é uma coisa improvisada, resolvido na base do agrião. É a história da caveira que está faltando durante as gravações de Hamlet, e o contra-regra sai correndo para ir buscar uma no cemitério. Enfim, a TV brasileira vive exatamente da capacidade de improviso do artista brasileiro. Deve-se partir do princípio de que ainda não existe no Brasil o empresário da comunicação. Então o cara ganha dinheiro em comunicação - cinema, teatro ou TV - aplica seus lucros num outro tipo de negócio. E, enquanto isso não mudar, tanto a TV como o teatro e o cinema não vão para a frente.

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:: Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 20 de agosto de 1973 - Edição 260


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Grande Otelo - entrevista: eu sou todo cordura

Grande Otelo (foto: Luciana Whitaker)
"Eu sou todo cordura"

Depois de quase cinquenta anos de trabalho ele chega a Sancho Pança e diz que está finalmente se encontrando

Por Oswaldo Amorim

Preto e pobre, ele não poderia ir muito longe, exceto levando recados. Mas o talento e o destino fizeram do Bastiãozinho da tia Silvana, um menino muito esperto que vivia pelas ruas de Uberlândia (MG), um ator admirado e principalmente muito querido em todo o Brasil. Sebastião Prata, filho de Chico e Maria Abadia, que não tinham sobrenome e adotaram o Prata da família para a qual trabalhavam, transformou-se em Grande Otelo.
Bastiãzinho da tia Silvana, assim era conhecida sua bisavó, foi ajudante de palhaço de circo, ator mirim de uma companhia de comédias que o trouxe de Minas para São Paulo, estudou canto e declamação ("o maestro Pedro Arlécio dizia que eu tinha uma voz de tenorino e ainda ia dar um bom Otelo"), teve várias famílias - gente com quem morou até decidir sair de cada ou ser mandado embora -, frequentou o Juizado de Menores, trabalhou em dúzias de palcos e picadeiros, batizou um filho Osvaldo Aranha ("homenagem a um grande amigo"), contracenou com Josephine Baker, virou Macunaíma no cinema e agora é Sancho Pança no teatro, em "O homem de La Mancha". Com 57 anos de idade, ele recebe as palmas da platéia e as críticas que classificam sua atuação como extraordinária - jan Michalsky, do "Jornal do Brasil", afirma que o espetáculo no Rio, com Grande Otelo, está muito melhor do que em São Paulo, sem Grande Otelo - com a mesma simplicidade com que antigamente recebia aplausos por ser o campeão de charleston do seu bairro, na época em que morou com uma rica família paulista, os Queiroz, e estudava em colégios finos. "Até que um dia o dr. Queiroz descobriu que eu estava vendendo alguns livros raros de sua biblioteca."
"E por que você vendeu os livros?"
"Para comprar pastéis e vinho. Eu adorava comer pastéis com vinho. Também comprava ioiôs. Além do charleston, eu fui campeão de ioiô."
Irreverente, irresponsável, bêbado, briguento, de Grande Otelo já se disse tudo isso. Com a vida marcada pela pobreza e por alguns acontecimentos trágicos, como o suicídio de sua primeira mulher, ele no entanto parece hoje estar muito próximo de uma espécie de paz interior: "Eu trabalho como ator há quase cinquenta anos, e só agora tive oportunidade de fazer papéis de acordo com a minha maneira de ser. Na TV faço uma novela onde sou o Pimpinone, um crioulo criado num cortiço por um velho italiano. Estou adorando esse personagem. Um sujeito bom que trata de acalmar todo mundo, de fazer com que os outros vivam bem. Ainda há pouco fui ao Rio Grande do Sul filmar "O negrinho do pastoreio". Outro personagem suave, que perdoa as ofensas e mesmo chicoteado e supliciado não guarda raiva do patrão. Aí vem o Sancho Pança, um tipo de muita cordura, muita paz".

Oswaldo Amorim - Você disse uma vez que tinha poucas oportunidades de aparecer como um grande ator poque era aceito apenas como um cômico, um sujeito engraçado. Agora parece que finalmente decidiram levar você a sério.
Grande Otelo - Em parte é verdade, mas eu já fiz vários papéis sérios, principalmente no cinema. Em "Amei um bicheiro" fiz uma cena altamente dramática e incluída numa antologia do cinema brasileiro. Perseguido pela polícia, eu me escondo no cubículo do relógio de gás de um edifício. Vem um polícia e bate a porta com o pé e ela fecha. Há um escapamento de gás e eu morro. Fiz um papel sério no "Assalto ao trem pagador". No teatro fiz dois monólogos dramáticos. Mas a estereotipação do ator é quase inevitável. É muito mais fácil aproveitar alguém pronto para um determinado papel. Ninguém ia chamar Tarcísio Meira agora para um papel cômico. Às vezes até o ator se acomoda nesses papéis. E não consegue mais se libertar. Mas ninguém deve ser eternamente engraçado ou vilão. O José Lewgoy, por exemplo, está reagindo e vivendo tipo diferentes do homem mau na televisão e no teatro.

Oswaldo Amorim - E por que você começou pelo cômico? 
Grande Otelo - Um pouco pelo tipo físico. E para se começar na carreira é mais fácil. Principalmente no meu tempo, quando não havia escolas de teatro e a gente se fazia levando na valsa, batendo papos, esperando as oportunidades. E principalmente para o negro, que no Brasil é melhor aceito se for engraçadinho.

Grande Otelo (foto: ...)
Oswaldo Amorim - Então você concorda com a frase "no Brasil não há preconceito de cor porque os negros conhecem o seu lugar"?
Grande Otelo - Não é bem isso. No Brasil, no tempo da escravidão, os negros se destacavam pelo trabalho e pela força física. As negras pela beleza e porque iam para a cama dos senhores. Com o 13 de maio, na minha opinião, foi como se tivessem aberto uma porteira e soltado o rebanho. O negro ficou sem saber o que fazer. Mas o coração português sempre foi terno e carinhoso. Então, ao mesmo tempo que dava a bronca, criava um caso, ele oferecia um prato de comida, tomava uma bebida junto com os negros e mulatos. Os negros então começaram a progredir, mas às vezes isso é muito difícil. Em vez do preconceito, o que existe é a ânsia do preto em progredir. Mas temos que levar em conta a cabeça do negro, o que está dentro dela. O que ele passou lhe deixou vários estigmas. Pelo tempo em que se escondeu no mato, pelo tempo em que foi ladino, cavorteiro, inzoneiro. Então ele procura chegar nas coisas através do sorriso, da inteligência nata. Enquanto tenta abrir caminho violentamente em outros países, aquele ele procura abrir caminho inteligentemente, através da arte e dos estudos. É verdade que até um negro chegar à posição de um branco tem de saber dez vez mais do que o branco. Porque em cada branco está um senhor de engenho, um feitor de fazenda. Em cada mulato está um capitão do mato. Então o negro está acuado por todos os lados. Ele tem que lutar, não dando a essa luta o nome de preconceito, mas o de luta pela sobrevivência, que todo branco pobre enfrenta também. Eu pessoalmente não sinto o preconceito. Eu sinto paternalismo. Por exemplo, depois que tive um enfarte, no ano passado, vários bares da cidade se recusaram a me servir uma simples cervejinha. Dona Laura, no Beco da Fome, só me deixava beber se eu comesse.

Oswaldo Amorim - Quer dizer que você nunca enfrentou problemas por ser negro?
Grande Otelo - Não. Sempre tive a mulher branca que eu quis. Eu tive uma loura, linda, francesa, chamada Simone. Antes de se casar na França mandou uma carta dizendo que o pai tinha morrido e ela precisava sustentar a casa. Foi a primeira loura da minha vida. A segunda foi uma polonesa. Também sempre tive entrada nos lugares em que quis entrar. É como diz o Simonal: "Em lugar que preto não entra, pobre branco também não entra". Entre as namoradas de meus filhos há brancas, negras e mulatas. É preciso que me façam sentir o preconceito para que depois eu declare o preconceito. A cada jovem de cor que eu encontro pergunta se está estudando, em que ano está. Se eu posso ajudar, eu ajudo.

Grande Otelo, no filme Macunaíma
Oswaldo Amorim - Mas a verdade é que seu talento custou para ser reconhecido. E talvez a cor tenha influído nisso, não acha?
Grande Otelo - Não é verdade. Depois de "Macunaíma*", falou-se muito no meu nome. Mas o reconhecimento veio antes. Acho que do tempo de Uberlândia, quando eu cantava para os hóspedes dos hotéis da cidade e ganhava um dinheirinho. Nessa época eu fui descoberto pela atriz Abigail Parecis, a primeira pessoa entendida a dizer que eu tinha talento. E tanto acreditava nisso que me levou para São Paulo. Ainda no início da minha carreira muita gente me aceitava como um artista de talento. Mas nesse aspecto ninguém fez mais do que Jardel Jercolis, o pai do Jardel. Ele acreditou em mim apesar de meus sucessivos fracassos em sua companhia, inclusive na Argentina e na Europa.

* Em 1969, depois de uma fase de relativo ostracismo, Grande Otelo foi convidado para fazer o papel-título em "Macunaíma", dirigido por Joaquim Pedro de Andrade. O filme foi sucesso de crítica e bilheteria.

Oswaldo Amorim - E por que você fracassou?
Grande Otelo - Porque eu fiz apenas uma ou duas "cortinas" na Argentina. Depois fomos para a Europa, ou melhor, para Portugal e Espanha. Isso em 1935. Em Portugal fui mais ou menos visto. Mas na Espanha nem tomaram conhecimento de mim. Creio que não houve propriamente fracasso. O que faltou foi sucesso.

Oswaldo Amorim - "Macunaíma" foi seu grande êxito no cinema? Ou o melhor filme?
Grande Otelo - O melhor filme continua a ser "Moleque Tião", que eu fiz em 1942. Foi meu primeiro papel importante no cinema. Era dirigido por José Carlos Burle e foi muito bom para minha carreira. Esse filme tem uma passagem da minha vida que eu fiz questão de colocar. É a cena em que uma senhora vai ao Juizado de Menores buscar um menino para brincar com seu filho. Botei isso no filme em homenagem a dona Maria Eugênia e ao dr. Antônio Queiroz, que me tiraram do abrigo de menores e me deram uma chance de estudar. Foi um episódio definitivo na minha vida. Agora, em "Macunaíma" eu fui eu mesmo. Eu me lembrei do Bastiãozinho que catava gabiroba atrás do cemitério. Fiz a cara do Bastiãozinho e o negócio funcionou muito bem, graças a Deus.

Oswaldo Amorim - E a época de ouro das chanchadas? Não se fazem mais chanchadas como antigamente?
Grande Otelo - Mas ainda se fazem filmes engraçados. Eu vi "Copacabana me engana" e "Toda donzela tem um pai que é uma fera" e um outro filme em que o Paulo José, que eu nem conhecia na época, me chamou a atenção. São filmes engraçados.

Grande Otelo em cena com Oscarito (foto: ...)
Oswaldo Amorim - E o Oscarito?
Grande Otelo - O Oscarito era uma espécie de símbolo do carioca da época. Sabido. Malandro. Era
um ator de uma histrionice fantástica. Foi também um excelente colega. O único que não estrilava quando eu chegava atrasado. Ele poderia também ser um outro Macunaíma.

Oswaldo Amorim - Durante muito tempo você teve fama de mau profissional, irresponsável. É justa essa fama?
Grande Otelo - Injusta. Injusta. É que eu só funciono na hora em que tenho que funcionar. Esse negócio de pensar que é só apertar um botão e eu começo a funcionar, como um bonequinho de corda, não dá certo. Preciso de um papel que me agrade. Uma situação de estabilidade para a minha família e condições psicológicas para interpretar um papel. Se eu não tenho isso, perco a vontade de ir trabalhar. Se estão me pagando pouco porque na época de fazer o contrato eu estava passando fome, aquilo me vai irritando e não consigo fazer mais nada. Como alguns empresários, que eu prefiro não citar, têm interesse em me diminuir, eles ficam espalhando que eu sou irresponsável. Mas atualmente eu duvido que você chegue na TV Globo e eles digam que eu sou mau profissional. Pergunte ao Joaquim Pedro, ao Luiz Carlos Barreto, inclusive ao Roberto Farias.

Oswaldo Amorim - E aquela confusão que você armou no Copacabana Palace?
Grande Otelo - Eu tinha sido chamado para filmar na Itália algumas cenas que ficaram faltando em "Uma rosa para todos", um filme que tinha sido rodado aqui com a Claudia Cardinale. Coisa para uns quinze dias. Mas o Carlos Manga, com quem eu estava trabalhando numa peça no Copacabana, resolveu cobrar não sei que dinheiro a mais para me liberar e a Columbia desistiu. E eu perdi outra chance internacional na minha vida. Fiz um apelo ao Manga, em vão. Aquele negócio foi me irritando. Um dia enchi a cara e fiz um escândalo tremendo, no teatro, e fui posto para fora a pontapés.

Oswaldo Amorim - E quais foram as outras chances perdidas?
Grande Otelo - Antes disso eu já tinha perdido uma viagem aos Estados Unidos no tempo de Cármen Miranda. Foi a maior frustração da minha vida e acho que só me curei dela depois do meu segundo casamento. A frustração foi tão grande que decretou minha fama de bêbado. O que me atrapalhou na época foi o contrato com o Cassino da Urca, que me obrigava a pagar cinquenta por cento do que ganhasse por fora. Outra vez foi a Columbia, que me convidou para um filme com a Ann Miller. Não fui porque não tinha meu imposto de renda em ordem e não achei ninguém que quisesse se responsabilizar por ele. Eu tinha ou não tinha razão de estrilar com a intransigência do Manga?


Grande Otelo (foto: ...)
Oswaldo Amorim - Você largou de beber definitivamente?
Grande Otelo - Não bebo mais cachaça, nem uísque. Quando vou a coquetéis tomo Coca-Cola. Só uma vez ou outra tomo um pouco de vinho, como acompanhamento do jantar.

Oswaldo Amorim - E como você conseguiu largar a bebida?
Grande Otelo - Ou na Clínica São Vicente, onde fiz tratamento, ou na cabana de Pai Jatum, que é o meu terreiro. Só sei que não estou bebendo mais. Nem sentindo falta.

Oswaldo Amorim - Depois de tanto trabalho você tem apenas um apartamento e um sítio. Você é um perdulário ou nunca mais lhe pagaram bem?
Grande Otelo - Nunca me pagaram bem. Mesmo porque eu nunca exigi. Queria apenas obter um papel bom, em que pudesse aparecer. O dinheiro era secundário. Agora estou meio mudado. Acho que já fiz tudo o que tinha de ser feito para aparecer. Atualmente os empresários tem de pagar o meu preço. Mas a gente acaba sempre entrando num acordo. Ainda agora tinha pedido 15.000 (cruzeiros) por mês para fazer o Sancho Pança. Acabei concordando com 5.000 (cruzeiros) porque sei das dificuldades da Bibi Ferreira para pagar o elenco.

Oswaldo Amorim - Você ainda se lembra do primeiro dia em que pisou num palco?
Grande Otelo - Eu tinha sete anos e não foi palco, foi picadeiro. Apareceu um circo lá em Uberlândia e eles precisavam de um menino para contracenar com o palhaço numa pantomima. Eu me apresentei. Mas não me avisaram que haveria tiros durante o espetáculo. Quando eu ouvi os estampidos, fugi assustado. Acharam muito engraçado.

Oswaldo Amorim - E quando você tentou se candidatar a vereador, em 1950, era pra fazer graça ou a sério?
Grande Otelo - Era a sério. Eu pretendia ser um representante dos artistas. Uma pessoa que pudesse dialogar dentro dos quadros do governo. Porque a ideia que se tinha da vida de artista a de que os homens eram boêmios, e as mulheres prostitutas. Hoje em dia essa imagem está mudando um pouco porque já temos com quem dialogar, até mesmo em nível ministerial, como é o caso do ministro Jarbas Passarinho. Mas nem cheguei a ser candidato. Meu nome foi vetado pela direção do PTB.

Grante Otelo (foto: ...)
Oswaldo Amorim - E as suas aventuras como compositor?
Grande Otelo - A única música de sucesso de minha autoria foi "Praça Onze". E acho que fez sucesso
porque não é minha. Eu vou revelar agora para você. Na "Praça Onze" eu só entrei com a ideia. Eu li uma reportagem falando sobre o fim da praça Onze. Achei aquilo muito triste e fiz uns versos: "Meu povo, este ano a escola não sai (...) não temos mais praça para fazer evoluções (...)", etc. ... Mostrei esses versos a vários compositores e nenhum se interessou. Só o Herivelto Martins. Mas disse que aquilo não era letra de samba. Ali mesmo ele pegou o violão e de um jato fez a primeira parte do samba. Naquela época nós trabalhávamos juntos no cassino de Icaraí, em Niterói. Quando voltávamos para o Rio, na barca, ele pegou de novo o violão e fez a segunda parte. Então, letra e música, é tudo dele.
Na época eu fiz também um samba patriótico, chamado "Desperta, Brasil". Foi gravado pela Linda Batista e me deu algum dinheiro. Era um samba de ocasião. Estávamos em tempo de guerra. Fiz outras composições, mas nenhuma delas fez sucesso. Também eu estava mais interessado em ser cantor do que compositor. Antigamente, não sei por que, era muito difícil alguém ser cantor e compositor, como o são hoje o Caetano, o Chico, o Gilberto Gil. A única exceção era o velho Ataulfo. Mas outros que tentaram misturar as duas coisas, como Heitor dos Prazeres e Henricão, não conseguiram.

Oswaldo Amorim - No ano passado você virou busto na praça principal de Uberlândia, foi tema de documentário a cores, recebeu várias homenagens. Isso significa que está se aproximando a hora da aposentadoria?
Grande Otelo - De jeito nenhum. Não pretendo parar nunca. Vou morrer no palco ou na coxia. Ou nos bastidores, fazendo alguma coisa. Aposentado eu estou desde o ano passado. Recebo 2.000 (cruzeiros) por mês do INPS.

Oswaldo Amorim - Mas você não se sente cansado, envelhecido?
Grande Otelo - Ao contrário. Meu temperamento nunca esteve tão próximo do Bastiãozinho da tia Silvana, um garoto bom e alegre. Mas esse reencontro exigiu uma longa e penosa caminhada.

Oswaldo Amorim - Grande Otelo, você é um sentimental...
Grande Otelo - Todo ator é um sentimental. Do contrário não seria ator. A gente tem que ser um doido, um sentimental, um idealista. Se não for assim, não poderá ser bom ator.

Grande Otelo, 1983 (foto: Jorge Rodrigues)


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:: Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 14 de fevereiro de 1973 - Edição 232


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Lya Luft - entrevista

Lya Luft (foto: ...)
A o longo de uma carreira que já soma cinco décadas, foram várias as reinvenções de Lya Luft. De poeta e autora de crônicas que ela mesma considera ingênuas hoje, passou a romancista conceituada com a publicação de As Parceiras, em 1980, seguida de uma produção romanesca intensa e prolífica. Depois de uma série de dificuldades pessoais que a afastaram por um tempo da escrita, ela novamente se reinventou no alvorecer do século 21, desta vez como ensaísta best-seller após a publicação de Perdas & Ganhos. E finalmente deixou aflorar um lado mais brincalhão e menos trágico em histórias voltadas para crianças – escritas para suas netas.

Carlos André Moreira – A carreira da senhora começa com a publicação de um livro de poesia. Quando passa a se dedicar à prosa, publica um livro de crônicas e, só mais tarde, dedica-se ao romance, forma predominante em sua carreira. A senhora está testando seu fôlego narrativo?
Lya Luft – Sempre quis escrever histórias. Era muito meninota, em Santa Cruz do Sul, e traduzia os livros infantis que lia em alemão. Sempre inventei histórias, mas nunca achei que seria escritora. Queria entender o mundo e achava que as respostas estavam nos livros. Então, eu lia feito louca. Fiz uma faculdade, fiz outra, aprendi que as respostas não estão em lugar nenhum. Depois, uma amiga me disse “Escuta, tem um concurso do IEL, manda tuas poesias”. Mandei, ganhei o prêmio, e o livro demorou a ser editado, saiu só em 1964. Comecei a trabalhar como tradutora quando a Editora Globo ainda fazia aquelas grandes coisas. Continuei trabalhando com isso, chamada por outras editoras, e fazendo poesia. E aí me deram uma coluna no Correio do Povo, que se chamava Poliedro, acho. Lendo essas crônicas muito mais tarde, achei tudo muito besta, muito cor-de-rosa, “ai, minha família”, “a lua”, coisa muito leve. E continuei a fazer poesia. Depois, o Leopoldo Boeck, da Sulina, fez uma coleção chamada Poetas Hoje, tinha livro do Carlos Nejar, Itálico Marcon. Aí, juntei uns poemas e saiu o Flauta Doce.

Carlos André Moreira – E em que momento a senhora chega à prosa de ficção?
Lya – A Lygia Fagundes Telles, sobre cujo romance As Meninas fiz mestrado de Literatura Brasileira, ficou minha amiga. Acho que As Meninas é um dos grandes romances brasileiros esquecidos, aquela linguagem dela... E um dia ela me disse: “Lya, você devia escrever prosa”. Aí, resolvi escrever o que achei que era uma novelinha, um pequeno romance que chamei O Túnel, um título bem besta e que era algo muito no estilo da prosa poética. Mostrei para um escritor que eu admirava muito, ele leu e disse: “Olha, Lya, está muito bonito, tu escreves muito bem, mas isto aqui não é ficção, não acontece nada”. Botei fora. Uma pena, hoje eu gostaria de dar uma olhada. Eu devia ter uns 27 anos. Aí, resolvi escrever contos, porque achava que tinha pouco fôlego. Sou prolixa para falar, mas lacônica para escrever. Já estava traduzindo para a Nova Fronteira, então mandei para o Pedro Paulo Sena Madureira, que era o grande editor naquela época. E ele, depois de uns dias, telefonou-me e disse: “Lya Luft, seus contos são todos publicáveis, eu posso publicar”. Aí eu disse: “Mas não quero ser ‘publicável’, se é só isso, não publique”. E ele me respondeu: “Mas você é romancista, todos os contos são romances abortados. Sente e escreva um romance”.

Carlos André Moreira – E de onde vinha a impressão de que sua prosa tinha fôlego curto?
Lya – Eu era muito tímida intelectualmente. Casei-me com o Celso Pedro Luft – eu tinha 24 anos, e ele, 42 e já era uma sumidade. E, de repente, os meus amigos eram Guilhermino César, Maurício Rosenblatt, Erico Verissimo... Saltei uma geração, então ficava quietinha escutando. Nesse meio-tempo, já lecionava, era professora de Linguística, mas não era minha vocação. Depois, tive um problema, um acidente, comoção cerebral. Fiquei gaga, desmemoriada durante um ano. Pedi demissão da faculdade e pensei: por que não escrevo de uma vez um romance? Se ninguém quiser editar, não se perde nada. Sentei e escrevi As Parceiras. Quando terminei, resolvi mostrar para o Celso, meu marido, meu mestre. Ele pegou, foi ler na varanda. E quando ele terminou, me entregou e disse: “Tá muito bom...”. Aí, mandei o romance para o Pedro Paulo Madureira por meio de uma escritora, Rachel Jardim, que era filiada àquele memorialismo mineiro bonito, A Cristaleira Invisível... Ela pôs o livro na mesa do Pedro Paulo, e ele me ligou dizendo: “Lya Luft, quero publicar esse romance e todos os que você escrever”. Saiu o livro no começo de 1980 e, de repente, eu era uma romancista. Comecei a escrever um livro atrás do outro, porque abriu aquela porta e veio uma enxurrada que estava reprimida. Eu escrevia, escrevia, escrevia, lançava um livro por ano.

Carlos André Moreira – Em As Parceiras, estabelece-se uma visão que vai acompanhar toda a sua obra, a da família como um núcleo não de proteção, mas de opressão. Qual a origem dessa concepção?
Lya – É engraçado, porque as pessoas que leram As Parceiras e A Asa Esquerda do Anjo comentavam: “Coitada da Lya, deve ter tido uma infância muito infeliz, que desgraça”. E aí vai algo dos meus dois mundos, é algo que digo sempre: “Tenho um olho alegre que vive e um olho triste que escreve”. Na minha vida pessoal, não sou uma pessoa dramática. Mas tenho dentro de mim uma visão muito triste do drama existencial humano. Tive uma vida muito legal, uma infância protegida, pai, mãe, irmão pequeno, casa boa, vida no interior, brincando na calçada. Mas acho que a gente já nasce feito. Eu era muito observadora, e percebia: “Ah, aquela tia não gosta daquela avó...”. Esse mundo me fascinava, até hoje ainda me fascina. Porque eu fui infeliz? Não. Mas eu era uma criança que tinha muito medo, provavelmente porque tinha muita imaginação. Tinha medo do escuro, do fundo do corredor, de algumas casas... No romance Reunião de Família, usei uma epígrafe do Miguel Torga: “Sinto medo do avesso”. É o lado avesso da vida que me fascina. Nunca vou escrever um romance alegre. Até escrevi coisas divertidas, os livros das bruxas são meu lado gaiato, mas são para crianças.

Lya Luft (foto: ...)
Carlos André Moreira – Essa imagem do “lado avesso” é recorrente em sua obra. No próprio Reunião de Família, a construção ficcional mostra que os personagens vão revelando seus “outros lados”. A senhora também escreveu um livro de poemas chamado O Lado Fatal. O objetivo é tentar expressar uma visão do ser humano como um ente compartimentado?
Lya – Acho que sim. Somos muito ambíguos, e nossa vida é toda muito ambígua. Sou uma pessoa extremamente ligada à família. É uma coisa de que eu preciso muito. Mas, por outro lado, sei que a maior parte das vidas das famílias é muito complicada. Vivo muito a ambiguidade. Minha mãe dizia: “A Lya está sempre no mundo da lua”. São meus dois lados. O lado do mundo da lua escreve.

Carlos André Moreira – As Parceiras também inaugura um procedimento que a senhora repete ao longo da sua obra: é a memória do personagem que constrói o romance. A senhora falou há pouco do acidente que a deixou desmemoriada. Isso talvez explique um pouco esse uso da memória em sua ficção?
Lya – Nunca pensei nisso, mas é possível. Neste novo livro que está em progresso, digo que o tempo corrói tudo, mas a memória é a guardiã da vida. Dou muito valor à memória, mas não sou uma pessoa saudosista. A infância era boa, mas era muito chata, todo mundo mandava em mim.

Carlos André Moreira – A Asa Esquerda do Anjo se estrutura em torno do embate entre a matriarca Frau Wolf e sua nora brasileira. É uma representação da resistência da cultura germânica a ser assimilada na experiência da imigração? 
Lya – O pessoal de Santa Cruz ficou muito chateado comigo na época, acharam que eu estava tentando retratar a vida das famílias de lá, o que é uma besteirada. Claro que sempre há a figura de velhas avós, tinha uma avó matriarca, mas ela não era a Frau Wolf, a frau Wolf é um monstro. Eu não tive uma prima linda que tocava violoncelo. A minha ficção não é uma coisa tão simples que eu pegue fulano, fulano e fulano e bote num livro. Mas sempre fui rebelde. Se me dissessem que não podia passar dali, era dali que eu ia passar. Achava muito chata aquela rigidez. Com uma das minhas avós, eu tinha que falar só em alemão quando pequena, porque ela achava que português era um idioma de pessoas inferiores, e eu achava aquilo horrível. E aquelas velhas primas, porque em cidade do interior todo mundo é primo, falavam: “Nós, os alemães, e eles, os brasileiros”. E eu dizia: “Não, eu sou brasileira, eu nasci aqui”. Meus avós nem conheceram a Alemanha. Fui conhecer com mais de 40 anos... Na minha casa, não havia essas duas divisões fortes na região naquela época: os protestantes e os católicos, os brasileiros e os alemães. Isso era também uma ficção. Então, coloquei nesse livro como um símbolo de isolamento, de solidão, de rigidez, essa questão da educação. Que foi em parte a minha educação, não com aquele exagero que pus no livro, mas que era: “senta direito”, “faz isso”, não faz aquilo”, “não te queixa”. Então, nesse romance acho que coloquei a minha rebeldia contra isso.

Carlos André Moreira – Em Reunião de Família, o pai reúne uma série de imagens de autoridade. É uma forma de concentrar esse questionamento à autoridade que a senhora comentou  há pouco?
Lya – Acho que sempre fui contra a autoridade, sempre fui anárquica. Não desses que andam por aí de máscara preta quebrando os troços. Sempre fui muito rebelde, e a minha rebeldia era das pequenas coisas: por que tenho que dormir às sete e meia, por que não pode comer tal coisa? E a minha mãe dizia: “Criança não pensa, criança não tem querer, quem manda é o adulto”. Todos os meus livros são rebeldia contra a autoridade e contra a morte.

Carlos André Moreira – Até A Sentinela, os homens em sua ficção são encarnações da autoridade patriarcal, tirânica e severa. Nesse livro, o pai Mateus é uma figura mais doce e dominada pela mulher exigente. Qual a origem dessa mudança de representação?
Lya – Nunca havia pensado nisso, mas é verdade. A única coisa de que me dei conta é que a personagem principal, a Nora, que foi submetida a várias fatalidades, coisas de tragédia grega, como em geral em todos os meus romances, é a minha única personagem até ali que ensaia uma volta por cima, inclusive na aceitação do filho homossexual. Essa coisa da figura masculina diferente, eu não havia percebido antes. Na verdade, a minha visão do masculino, e por isso algumas amigas mais feministas implicam comigo, é muito positiva. Meu pai foi uma influência muito positiva em minha vida. Ele era um homem muito autoritário, mas, ao mesmo tempo, muito liberal. Foi ele que me formou. E tenho dois filhos homens. E estou no terceiro casamento, e nunca tive na minha vida o homem boçal, o homem autoritário que te cobra e quer te podar. Meus três maridos sempre foram pessoas que me empurraram para frente e para cima. Mas vejo muita coisa, não escrevo sobre minha vida particular. Vi muitos homens autoritários, manipuladores, irônicos, críticos. E também muita mulher chata, que cobra, que corrói... A relação humana é muito difícil.

Lya Luft (foto: ...)
Carlos André Moreira – Em vários de seus livros, repete-se o mote do jogo infantil, uma brincadeira de criança que tem como origem um elemento sombrio e profético. Em Reunião de Família, é o “jogo do espelho”, uma brincadeira de derrisão da identidade. Em O Quarto Fechado,  há o “jogo da morte”, em que a protagonista finge que está morta. As brincadeiras em seus livros encenam os terrores da vida?
Lya – Acho que sim, que os jogos de infância são muito simbólicos. Eu me fingia de cega quando era criança, andava dentro de casa de olhos fechados. Acredito que muitos jogos infantis (que eu não sei se ainda se fazem tantos), as canções, os contos clássicos, que eram tradição oral antes de os Irmãos Grimm e do Andersen transformarem em histórias, são todos altamente psicológicos. A criança encena em seus brinquedos, é tudo muito adulto.

Carlos André Moreira – Isso explica por que, em algumas de suas histórias narradas por crianças, a voz narrativa é madura?
Lya – Um dos meus livros de que eu mais gosto, que fiquei muito tempo querendo escrever e demorei para começar, é O Ponto Cego. Queria escrever a história das famílias desgraçadas pelo ponto de vista de uma criança. Mas não achava o tom. Não queria escrever com a linguagem de uma criança. Como a literatura me dá liberdade, acabei usando uma criança com linguagem adulta. Gosto muito do pobrezinho daquele menino, que quis enganar o tempo, e o tempo lhe passou uma rasteira. Sempre tem a criança, mas não só uma criança. Também porque, em O Ponto Cego, ele é um pequeno adulto. Quando comecei a escrever esse livro, falei com a minha filha, Susana, que é médica pediatra: “Sabe que eu estou escrevendo um livro com um menino, uma criança, e que, de repente, o organismo dele acelera e ele fica velhinho em poucos anos...”. E ela me disse: “Mãe, isso existe, é uma doença chamada progéria”.

Carlos André Moreira – Sua obra inicial enfoca a mulher perplexa em se perceber como o “outro” na sociedade patriarcal. Nesse sentido, seus livros são feministas?
Lya – O termo está um pouco desgastado, não? Se ser feminista é valorizar a mulher, eu nasci feminista. Mas a minha obra, meu trabalho, minhas palestras, sempre foram no sentido da dignidade. Da mulher, do homem, da criança, do negro, do branco, do amarelo, do anão, não importa. Nunca fui engajada, mas, para mim, era natural que as mulheres fossem respeitadas. Eu sabia que não eram, eu via que não eram, mas queria que fossem. Mas acho meio pobre dizer “literatura feminista”, porque isso tudo já passou. Teve uma época em que eu ia para os Estados Unidos, era convidada para aqueles congressos feministas, e achava tudo muito chato. As mulheres eram tão bravas, havia tanto ódio, tanto rancor. Até acho que tinha razão de ser, mas eu não era tão radical, também achava que os homens eram uns coitados. A vida é difícil para todo mundo. Acho a vida dos homens mais solitária do que a das mulheres. Porque as mulheres têm a amiga, a comadre, se falam, as mulheres confidenciam, há uma solidariedade no sentido emocional que não sei se os homens têm.

Carlos André Moreira – Nos anos 2000, a senhora deu uma pausa na ficção longa. Publicou ensaios, poesia, crônicas, um livro de contos que sai 10 anos depois de Perdas & Ganhos. Por que esse hiato?
Lya – Não tenho a menor ideia. Se soubesse, teria escrito. O Silêncio dos Amantes acho que comecei escrevendo como um romance que virou um conto, aí fiz outros contos que talvez fossem capítulos de um romance, foi uma coisa meio confusa, isso eu me lembro. E bem depois apareceu O Tigre na Sombra, porque as histórias me aparecem. Fico muito quieta, pensando, e esse pensar, de coisas meio vagas, é como se aparecessem uns bonequinhos que eu vou pendurando no varal, e eles ficam me fazendo caretas. Aí, um deles, de repente, me fascina. Foi assim com todos os meus livros. Quando escrevi Reunião de Família, estava meio cansada de escrever em sequência dois romances de pessoas sofredoras, puxando angústias. Quis fazer uma personagem que fosse a típica pacata dona de casa, a que tem varizes, que vai na feira com a sua sacola de verduras. Só que – e a minha literatura nasce muito do “só que” e do “e se” – me perguntei: “E se essa pacata dona de casa for uma falsa pacata dona de casa, que, no fundo, tem um universo diabólico?”. E aí apareceu a Alice do Reunião de Família.

Lya Luft (foto: Fernando Gomes / Agencia RBS)
Carlos André Moreira – Em sua obra não ficcional recente, como Múltipla Escolha, a senhora parece olhar em volta e alega sentir falta de uma ordem segura de valores.
Lya – Hoje está tudo muito bagunçado, e estou achando tudo muito chato. As crianças mal-educadas, os adolescentes desorientados. Acho que tem mais é que se manifestar, tem muita coisa muito ruim, se eu fosse mais moça, iria para a rua. Mas a expressão de ódio que vejo quando eles estão destruindo coisas...  Isso acho meio demais. Passamos de rigidez demais para um endeusamento da juventude. Sinto falta de um meio-termo que não sei se teremos no meu tempo de vida. Podem cuspir em cima de mim, mas quem é que põe uma certa ordem? Não tem. Então, o pessoal está reclamando de coisas completamente loucas. Algumas são justas, mas outras são malucas. Sinto falta de certa ordem e não vejo uma saída tão cedo para isso.

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:: Entrevista publicada originalmente no jornal Zero Hora, 31 de agosto de 2013. 

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Fernando Sabino - entrevistado por Clarice Lispector

“Gostaria de morrer em nome de alguma coisa, mas não creio que mereça tanto.”

Fernando Sabino e Clarice Lispector (foto: ...)
Esta entrevista foi feita antes de Fernando Sabino declarar que a literatura morreu.

Clarice Lispector – Fernando, por que é que você escreve? Eu não sei por que eu escrevo, de modo que o que você disser talvez sirva para mim.
Fernando Sabino – Há muito tempo que não escrevo. A última vez foi ali por volta de 1956, 1957. Escrevia por necessidade de me exprimir. Desde então tenho me utilizado da palavra escrita como atividade profissional, por necessidade de ganhar a vida. Mas não chamo a isso de escrever, como ato de criação artística.

Clarice Lispector – Como é que começa em você a criação, por uma palavra, uma ideia? É sempre deliberado o seu ato criador? Ou você de repente se vê escrevendo? Comigo é uma mistura. É claro que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que não é de modo algum deliberada.
Fernando Sabino – A criação nunca começava por uma palavra ou por uma ideia. Era uma espécie de sentimento em mim que partia em busca dessa palavra ou dessa ideia. Qualquer palavra, qualquer ideia. Hoje o sentimento ainda existe, mas tem-se dispensado de se exprimir através de palavras ou ideias – de certa maneira me contento com o próprio sentimento, que procura fora de mim alguma forma de expressão já existente com que se identificar. A música, por exemplo – especialmente a de Thelonious Monk.

Clarice Lispector – Há quanto tempo você escreve crônicas? Falta-lhe assunto às vezes? A mim, no Jornal do Brasil, por enquanto ainda não.
Fernando Sabino – Escrevo crônica desde 1947. Sempre falta assunto – é penoso ter de inventar. Procuro suprir o jornal ou a revista que me pagaria com a matéria escrita que corresponda ao que esperam de mim, ou seja, agradar o leitor. Aceito alegremente a tarefa, como um móvel.

Clarice Lispector – Que é que você acha do protesto dos jovens no mundo inteiro? Que estão eles querendo, na sua opinião?
Fernando Sabino – Na minha opinião estão querendo o mesmo que eu queria quando era jovem – e continuo querendo: repudiar um mundo errado que os mais velhos lhes querem deixar como herança. Estão querendo acertá-lo e não sabem como – mas nós muito menos.

Fernando Sabino (foto: ...)
Clarice Lispector – Que é que você acha de Marcuse?
Fernando Sabino – Só li de Marcuse algumas páginas da tradução de um livro seu, o suficiente para
ver que ele parece ignorar, na proposição de suas ideias com relação ao mundo de hoje, um dado elementar: o de que o mundo de hoje tem muito mais gente que o mundo do princípio do século. E quanto a isso, ele não apresenta nenhuma outra solução. Nem mesmo a pílula.

Clarice Lispector – Por que você, Fernando, com o grande talento que tem, só escreveu um romance? Teve tanto sucesso que isso deveria incentivar você a produzir mais. Ou o sucesso atrapalhou você? A mim quase que faz mal: encarei o sucesso como uma invasão.
Fernando Sabino – O sucesso sempre atrapalha: neutraliza a nossa necessidade de se afirmar. No meu caso, entretanto, não foi o sucesso do meu romance que me atrapalhou, mas a necessidade, a que não soube resistir, de fazer da palavra escrita um ofício do qual tiro o meu sustento. Deixando de escrever, e indo buscar de dentro do mais obscuro anonimato um meio de expressão, é possível até que eu começasse realmente a escrever. Não desisti: lhe asseguro que ainda pretendo começar.

Clarice Lispector – Fernando, qual o seu processo de trabalho, você se inspira como? Ou se trata de uma disciplina?
Fernando Sabino – Há muito tempo que não me dou a esse luxo: o de inspirar-me. Contar com algum tema, alguma solicitação, algum estímulo que signifique uma verdadeira inspiração. E a verdadeira inspiração é aquela que nos impele a escrever sobre o que não sabemos, justamente para ficar sabendo.

Clarice Lispector – Conte-me um pouco sobre a Editora Sabiá.
Fernando Sabino – A Editora Sabiá tem grandes planos para este ano. Vamos prosseguir na nossa série de antologias poéticas bilíngues, iniciada com Pablo Neruda, publicando uma de Garcia Lorca. E entre as nacionais, será lançada em breve a de Jorge de Lima. Vamos iniciar também uma série de traduções de grandes romances modernos, o primeiro dos quais será Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez – um verdadeiro monumento da literatura moderna, best-seller internacional, considerado o livro mais importante da língua espanhola desde Don Quixote. Além disso, Rubem Braga e eu não perderemos de vista o objetivo pessoal que nos levou a fundar a Editora Sabiá: o de publicar nossos próprios livros em melhores condições e, por extensão, os dos nossos amigos.

Fernando Sabino (foto: ...)
Clarice Lispector – Em que jovem de hoje você tem esperança como futuro grande escritor?
Fernando Sabino – Não tenho acompanhado como devia a atividade de nossos jovens escritores – passei algum tempo fora do Brasil e ainda não retomei o contato como gostaria. Mas sei que há diversos jovens escrevendo o que há de melhor por esse Brasil. Os de Minas, por exemplo, ocasionalmente me têm dado prova disso, através do excelente suplemento literário do Minas Gerais, dirigido por Murilo Rubião. Já realizados como escritores da nova geração, eu poderia citar, entre outros, Oswaldo França Júnior e José J. Veiga, que me parecem admiráveis. Mas no Brasil, mal um escritor entrou na casa dos trinta, já é considerado velho...

Clarice Lispector – Qual foi, Fernando, a sua maior decepção na vida?
Fernando Sabino – Eu poderia responder repetindo Léon Bloy: a de não ter sido um santo. Mas modestamente, entretanto, prefiro dizer que foi a de não me ter ainda realizado como romancista.

Clarice Lispector – Quando é que você se alegra?
Fernando Sabino – Sou sempre alegre – daquela alegria interior dos fronteiriços da debilidade mental e que, portanto, têm ainda uma oportunidade de salvação.

Clarice Lispector – O que é que você desejaria para o Brasil?
Fernando Sabino – Desejaria que o Brasil conseguisse realizar nada menos que o grande sonho da humanidade: o de atender à necessidade de justiça social para todos sem prejuízo dos direitos fundamentais de cada um. Uma utopia, que no entanto deve ser o mínimo de ideal a ser sustentado por um homem digno desse nome.

Clarice Lispector – Como é que você resumiria o conteúdo da palavra amor?
Fernando Sabino – Amor é dádiva, renúncia de si mesmo na aceitação do outro. Amar o próximo como a si mesmo e a Deus sobre todas as coisas.

Clarice Lispector – Quais são os seus projetos como romancista?
Fernando Sabino – Não sei. Só vou ficar sabendo depois que escrever um novo romance. É preciso que eu me convença de que um romance não é mais do que um romance. Tenho de esquecer o pouco que aprendi e sair tateando às cegas até encontrar o botão de luz.

Clarice Lispector – Você acha que a nossa geração falhou? Eu acho que sim. Acho que nos faltou dar o corajoso passo no escuro. Nós não tínhamos desculpa, porque tínhamos talento e vocação.
Fernando Sabino – Não sei se nossa geração falhou. Nunca me senti, como escritor, como parte de uma geração. (Nem eu, pensei.) Sempre me senti sozinho e este talvez tenha sido o meu erro. Quis aprender sozinho e perdi a inocência. O artista é um inocente. Era preciso reaprender a olhar tudo como se fosse pela primeira vez. Eu olhei como se fosse a última. Em tempo: o romance que não consegui escrever se chamaria O salto no escuro. Estou dispensado até deste título, pois já saiu outro com o mesmo nome.

Fernando Sabino (foto: ...)
Clarice Lispector – Fernando, você tem medo antes e durante o ato criador? Eu tenho: acho-o grande demais para mim. E cada novo livro meu é tão hesitante e assustado como um primeiro livro. Talvez isso aconteça com você, e seja o que está atrapalhando a formação de seu novo romance. Estou ficando impaciente à espera de um romance seu.
Fernando Sabino – O que atrapalha a criação de um novo romance é a presunção de que somos capazes de criar. Diante da grandiosidade da tarefa, descubro que não sou coisa nenhuma. Era preciso partir da consciência de minha própria insignificância, e reconhecer com humildade que a tarefa nem grandiosa é, mas apenas um ato de louvor a Deus na medida das minhas forças.

Clarice Lispector – Você é profundamente católico ou apenas superficialmente?
Fernando Sabino – O catolicismo é uma herança de minha formação familiar que, graças a Deus, não abandonei. Deus não abandona aos que não o abandonam. Mas isso é assunto para conversa só entre nós dois.

Clarice Lispector – Qual o seu santo preferido?
Fernando Sabino – Não tenho preferência. Acho os santos uns chatos, pela inveja que me despertam, me fazendo ainda mais pecador.

Clarice Lispector – Você, que morou na Inglaterra como adido cultural nosso, notou lá algum movimento novo na literatura? Eu acho a literatura do mundo muito parada. Não há quem me satisfaça numa leitura. E você?
Fernando Sabino – Atualmente eu me interesso mais pelo depoimento pessoal, pelo documentário jornalístico – que talvez sejam novas formas de literatura.

Clarice Lispector – Como é que você encara o problema da morte?
Fernando Sabino – Deixar este mundo não me faz mais alegre, porque a vida é boa. Mas a morte é o eterno repouso. E eu tenho muita vontade de repousar eternamente. E muita curiosidade. Espero que não doa muito. Gostaria de morrer em nome de alguma coisa. Morrer deliberadamente, e não como alguém que depois do jantar espera que o garçom lhe traga a conta e fica pensando na gorjeta. Fazer da minha morte a justificação da minha vida. Mas não creio que mereça tanto.


Fernando Sabino (foto: ...)
FERNANDO SABINO – cronista e romancista, o autor de O encontro marcado e O homem nu foi uma presença marcante na vida literária de Clarice Lispector atuando como uma espécie de consultor na publicação de seus livros. Foi seu editor nas editoras do Autor e Sabiá. Manteve uma extensa correspondência com Clarice quando esta residiu no exterior, publicada em Cartas perto do coração.

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Fonte: 
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.


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