Poeta e escritor persa, Saadi de Xiraz nasceu em 1210 na cidade de Xiraz. É considerado um dos maiores mestres da literatura clássica. Gulistão (O Jardim das Rosas) e Bustão (O Pomar) são as suas maiores obras, e influenciam desde há séculos todos aqueles que chegam às suas palavras. Viajou pelo mundo conhecido de então: China, Índia, Marrocos, Turquia e Abissínia foram alguns dos seus destinos. Faleceu na mesma cidade onde nasceu, estima-se que entre 1291 e 1294.
- Ilustração "imaginada" do poeta persa Saadi - (autor desconhecido)
OBRA DO POETA PERSA SAADI DE SHIRAZ EM PORTUGUÊS
Poesia - contos - fábulas
:: Fábulas orientaes. Saadi [tradução Francisco Freire de Carvalho a partir da edição francesa]. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1831. Disponível na Biblioteca Nacional *pt Digital / e link. (acessado em 25.2.2024). {tradutor português}.
:: O Jardim das Rosas. Saadi. [tradução Aurélio Buarque de Holanda, a partir da magnifica edição francesa da H. Piazza / traduzida por Franz Toussaint; ilustração Paul Zenkar; desenho bico de pena de Luis Jardim]. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944.
:: Vinho, vida e amor. Hafiz e Saadi. [tradução Aurélio Buarque de Holanda]. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1946.
:: Gulistan, o jardim das rosas. Saadi. [tradução Rosângela Tibúrcio, Beatriz Vieira e Sergio Rizek a partir da tradução de Omar Ali Shah; prefácio Omar Ali-Shah]. São Paulo: Attar Editorial, 2000.
Em revistas
:: Imagens do Oriente/ Poesia Persa - p. 121-176. In: Poesia Sempre - Revista Semestral de Poesia, ano 9 – n. 14. agosto 2001. [editor geral Marco Lucchesi]. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2001. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024)
Em Portugal
:: O Jardim das Rosas - Palavras sábias na procura da verdade. Saadi de Xiraz [seleção, tradução e organização José Luís Nunes Martins]. Editora Farol, 2021. {Uma recolha de contos e máximas a partir do Gulistão, uma das obras espirituais mais importantes de toda a história}. Trecho do livro.
Em espanhol
:: El jardín de las rosas. Saadi de Shiraz.[ traducción Carmen Liaño]. Editorial Sufí, 2001.
:: El bustan. Saadi de Shiraz. [traducción Equipo editorial]. Editorial Sufí, 2022.
«É um raro privilégio aceder às palavras sábias de um mestre buscador da Verdade, capaz de orientar a vida de qualquer pessoa em direção à plenitude, independentemente da sua origem, grau de instrução ou cultura.»
- José Luís Nunes Martins. In: O Jardim das Rosas - Palavras sábias na procura da verdade. Saadi de Xiraz [seleção, tradução e organização José Luís Nunes Martins]. Editora Farol, 2021.
- Saadi (bico-de-pena de Luis Jardim). In: O Jardim das Rosas. Saadi. Coleção Rubáiyát. Livraria José Olympio Editora, 1944.
SAADI
“Ainda hoje, aos olhos dos poetas do mundo inteiro, toda brisa que desfolha rosas parece espalhar sobre o seu túmulo perfumadas libações.”
São palavras da Condessa de Noailles numa página de alta e funda emoção poética (1) a propósito de Saadi.
Se houve algo de menos lírico na existência do maior dos poetas persas, terá sido precisamente a duração dela. Nascido em Chiraz, pátria também de Hafiz, em 1184 (580 da Hégira), atravessou o resto do século e entrou com vontade pelo século seguinte, só e despedindo da vida em 1291. 107 anos bem contados: o que nos espanta ao pensarmos num Castro Alves ou um Junqueira que não foram aos vinte e cinco, num Casimiro ou num Álvares de Azevedo mortos mal entravam na casa dos vinte, ou mesmo num Augusto dos Anjos que não chegou à dos trinta ou num Antônio Nobre evado pela tísica, tão amiga de poetas, na idade de Cristo, Nem os oitenta e tantos, sólidos e raros, de Goethe om do velho Hugo, fazem grande figura ante aqueles três algarismos do persa. E na própria terra de Saadi, dentre os seus mais ilustres camaradas e poesia e de sonho, Omar Kháyyam e Firdussi ficaram longe dos noventa e Hafiz mal atingiu os setenta – e não viveram pouco.
Dos anos de tão longa vida, Saadi, segundo o mais antigo dos seus biógrafos, “consagrou trinta ao estudo, trinta a percorrer o mundo, e durante outros trinta prosternou-se sobre o tapete da adoração para seguir as pegadas dos discípulos do ideal.”
Molish ed-Din-Abd-Allah era lugar-tenente do príncipe Saad-Ibn Zenghi, donde veio a seu filho Mucharrif ed-Din a alcunha de “Saadi”, isto é, “cliente ou favorito de aad”. Indo a estudar na famosa Universidade de Nizhamya, em Bagdá, criada pelo vizir Nidham-Ul-Mulk, ali o poeta e “contista divino, centro do sonho persa”, alistou-se na seita mística dos Sufis. Então empreendeu uma série de viagens através do Oriente, fazendo quinze vezes a peregrinação a Meca. Uma destas viagens – à Síria, Hejaz e Iêmene – realizou-a Saadi, conforme a lenda, para ouvir em sua inteira e nua pureza as célebres poesias árabes da literatura anterior ao Corão.
Dando-se à vida contemplativa, não renunciou, todavia, ao interesse e curiosidade pelo mundo.
Embora extremamente pobre, o que o levou a fazer-se arreeiro em Istambul e carregador de água em Jerusalém, efetuava sem maiores dificuldades as suas excursões, encontrando nas moradas de companheiros de credo, ou nos mosteiros, leito para o cansaço e mesa para a fome.
Na Síria, aconteceu-lhe cair em poder dos Cruzados, que, não conseguindo arrancar-lhe dinheiro de encher a vista, para o resgate, reduziram Saadi à escravidão, andando-o a trabalhar com os judeus na fortificação de Trípoli. Ali, foi resgatado por um opulento mercador de Alepo, que lhe deu a filha em casamento. Cioso, porém, de sua independência, o poeta não tardou a separar-se da mulher: fê-la voltar à companhia do pai, com as peças de ouro do dote e uma poesia em que, celebrando os encantos da rapariga, exaltava, acima de tudo, as excelências da liberdade. Conta-se que, lendo os versos, o mercador se pôs a chorar, de comovida admiração.
Percorreu ainda o Egito, Marrocos, e depois o Turquestão, e a Índia, onde se iniciou no bramanismo.
Voltando a Chiraz, aí por 1258, passou a residir num pequeno eremitério cercado de um jardim, perto da cidade. Lá, passava as horas sentado entre os jasmins e as rosas. “Escrevia, recordava as suas viagens, louvava a beleza das raparigas. Sua morada de tijolo e argila, onde o teto de telhas verdes avançava feito uma vaga detida no espaço, sombreava a relva Elisiane. Os ciprestes pontiagudos ondulavam à pressão do vento cálido, e, à maneira de pincéis embebidos em laque índigo, pareciam acariciar a nuvem, ostentar o azul sobre o azul, como faziam nas páginas dos pergaminhos os velhos miniaturistas. Por vezes, da cerejeira florida, do níveo cravo, do jasmim estrelado, desprendia-se molemente uma branca borboleta, como pétala que sentisse a nostalgia do céu. A água corrente, circulando em estreitos canais de faiança azul, compunha aos pés do poeta um céu líquido e retalhado. Perto, jarros de esmalte cor de miosótis, com especiarias e ervas aromáticas. Azues inumeráveis, distribuídos até pelas mais humildes coisas, e que lembram um dom celeste do próprio azul ao império da Pérsia!” (2)
Quis ser e foi enterrado no vale do Chiraz – vale de tantos esplendores que mereceu a alcunha de “O Jardim que alegra o coração”.
De sua obra poética, chamada, em conjunto, Kulliah, o livro de maior fama é o Gulistan (“O Jardim das Rosas”), escrito em prosa entremeada de versos. Citam-se ainda, entre outros, o Bustan (“Vergel”), de gênero idêntico, mas todo em verso; o Pend-Nameh (“Livro do Conselho”) e um Divã (coletânea) com elegias.
O Jardim das Rosas divide-se em oito capítulos, que tratam, respectivamente: da conduta dos reis; da conduta dos dervizes; da excelência da moderação; da utilidade do silêncio; do amor e da juventude; da fraqueza e da velhice; dos frutos da educação; e da maneira de viver no mundo.
O Jardim das Rosas... Das rosas que Saadi amou com exaltada ternura. A tal ponto que, ouvindo elogios às façanhas de Gengis-Khan, teve estas palavras: – “Não há dúvida, um nome que ficará na história; mas diga-me: ele amou as rosas?”
Da variedade dos temas, em geral muito ricos de interesse, e da graça e vivacidade no tratá-los, decorre, naturalmente, a boa fortuna da obra de Saadi. Ele desconhece o segredo de ser monótono.
Passa repentinamente da nota mais terna à mais irônica, vai até à sátira para em seguida descer à piedade. A grande poesia de Kháyyám é toda alagada de vinho e pessimismo. Hafiz deixa a taverna pelo vinho, aconselha a resignação, geme em surdina, na escura solidão das noites, o seu infeliz amor às raparigas de Samarcanda.
Em Saadi há um pouco de tudo isso: pessimismo – quase sempre sem amargura funda; amor – não somente o seu, mas também o amor dos outros homens e até o dos bichos; vinho – em doses quase frugais. Mas há muito mais ainda: há uma sondagem larga e funda na alma humana, há uma intensa palpitação de vida, um aceso interesse pelo destino dos homens, revolta contra as iniquidades. Se o vinho corre escasso pelas suas páginas, a verdade é que nelas circula, abundante, uma seiva mais rica. Agora ele zomba do tolo que, doente dos olhos, procurou um veterinário e acabou ficando cego; pouco adiante falará do sultão, o “poderoso que torturava os fracos”, e para quem o derviz pediu a morte, numa prece, declarando ao próprio sultão formulá-la “para felicidade tua e dos muçulmanos”. Aqui ele nos conta do professor apaixonado que não via um defeito sequer na aluna bonita; e não tardará em dizer do explorador de pobres lenhadores que se viu na miséria, devorado por um incêndio o seu depósito de lenha – “incêndio atiçado pelos suspiros de todos os pobres que tu roubaste”. Depois de nos dar a conhecer o eremita que o sultão fez vir da floresta para uma vida de prazer e luxo na cidade, apresenta-nos aquele pobre tão pobre que, mandando-lhe o sultão estender a veste, para sobre ela sacudir um punhado de moedas, respondeu: – “Como poderia fazê-lo, se não tenho veste?”
“Amor – não somente o seu, mas também o amor dos outros homens e até o dos bichos.” – foi dito um pouco atrás. Dos bichos: leia-se a admirável história da paixão de uma ratinha por um gato, história de um poder de comoção que humaniza as duas figuras — a do gato matreiro, calculista e mau, e a da gatinha abrasada numa tímida ternura. O amor dos outros homens – o dos namorados que, mutuamente presos pela cintura, “lembravam dois ciprestes que uma roseira enlaçasse”; o daquele daroês a quem no canto do rouxinol falava a mulher dos seus sonhos; ou a errada inclinação do cadi pelo filho do ferreiro. O seu próprio amor, o de Saadi – sobretudo o seu amor a Naziad,“linda moça de Chiraz”: a Naziad que “todas as noites, durante um verão inteiro, esteve nua e fresca nos meus braços”; a Naziad que lhe inspirou esta breve maravilha:
"Quando eu estiver adormecido para sempre, ponham-me sob a cabeça este saquinho, que contém, com um pouco de terra de Kerbela, o pequenino rôlo de seda onde escrevi, entre ciprestes de ouro, todos os nomes secretos que eu dava a Naziad enquanto minha mão lhe percorria o corpo esbelto e ondulante." (3)
AURELIO BUARQUE DE HOLANDA.
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(1) Prefácio à tradução de O Jardim das Rosas feita por Toussaint, e da qual me utilizei nesta versão.
(2) Prefácio da Condessa de Noailles, cit.
(3) No conto “O acaso” lê-se, no texto francês, moçallah. O Larousse du XX Siècle consigna a forma
mouçallah, que adaptei ao português: muçalá. Significa “oratório onde os muçulmanos fazem a prece. Às vezes simples praça, como o muçalá de Bucara.”
No conto “O amor”, a palavra mirhab. Transcrevo aqui a definição da Enciclopédia Espasa: “Santuário
ou simplesmente nicho aberto na parede de uma mesquita, voltado sempre em direção a Meca, e para o
qual devem olhar os fiéis quando rezam.”
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Aurélio Buarque de Holanda "SAADI'. In: O Jardim das Rosas. Saadi. [tradução Aurélio Buarque de Holanda, a partir da magnifica edição francesa da H. Piazza / traduzida por Franz Toussaint; ilustração Paul Zenkar; desenho bico de pena de Luis Jardim]. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944.
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- SAÂDI - Le jardin des roses - Miniature illustrant l'ouvrage de Saadi de Shiraz . Le jardin des roses, traduit par Franz Toussaint. origem L'édition d'art H.Piazza - Paris. Collection Ex Oriente Lux, Miniature dessinée par Paul Zenker - data 1942 / reproduzida na edição brasileira da Livraria José Olympio, 1944 - tradução de Aurélio Buarque de Holanda.
PREFÁCIO DE SAADI
EM NOME DE ALÁ CLEMENTE E MISERICORDIOSO
Rendamos graças a Alá clemente e glorioso! A prece e a adoração reconciliam o homem com Senhor, que lhe concede novos benefícios.
Como exprimir o quanto devemos a Alá!
Disse Ele: – “Admirai o meu poder, ó descendentes de Davi, e não esqueçais nunca os favores que vos prodigalizei!”
Ele derrama sobre todos os homens a chuva da Sua bondade. É justo para com o acusado. Aos sábios dá um alimento proporcionado aos seus trabalhos.
Ele ordenou ao vento da manhã que sacudisse as árvores em flor e sobre a relva dos vergéis estendesse um tapete de pétalas. Ordenou às nuvens do verão que se transformassem na água nutridora das frágeis raízes das plantas. Toucou as árvores de um vestido verde. Cada ano, para celebrar o nascimento da primavera, Ele as cobre de flores.
Ó irmão, se as nuvens, os ventos, o sol, a lua e todas as constelações se movem, é para que medites sobre o pedaço de pão que comes! Os astros executam as ordens de Alá. Como os astros, tu deves também submeter-te.
Então eu cantarei:
“Meu irmão atingiu o supremo grau da perfeição. Sua beleza ilumina a noite plácida. Bendita seja a sua posteridade!
"Se meu irmão deseja realmente auxiliar a construção da muralha que cercará nossa cidade, essa muralha será de uma permanente solidez. Um navegante experimentado pode-se atirar sem receio ao mar tempestuoso!
“O meu irmão, admira a bondade de Alá! Seu escravo pecou, e Ele é que enrubesce.”
Confessemos: é um culto deplorável o que rendemos ao Senhor. Não o adoramos segundo Ele merece. Se tentamos descrever a luz de Sua glória, somos obrigados a reconhecer que ela nos ofusca.
Se alguém me pedira que falasse de Alá, eu responderia: – “Como falar da luz, como pintá-la? Os amantes são as vítimas do seu próprio amor, e aos agonizantes não resta força para gritar.”
Senhor, depois que sobre mim deixaste cair o teu olhar, meus olhos jorram sol!
Pode um escravo ter todos os defeitos: o defeito que o sultão aprova torna-se virtude.
*
Um dia, no banho, apanhei um pouco de argila perfumada, que uma jovem deixara cair.
És almíscar ou âmbar-cinzento? – perguntei à argila. – Teu cheiro me faz desfalecer.
E ela me respondeu:
– Eu não era mais do que terra sem valor, mas, tendo vivido algum tempo com a rosa, adquiri algumas das virtudes de minha companheira. Sem isto, não passaria nunca de humilde argila.
*
Certa noite, eu refletia sobre os dias passados e entre suspiros lamentava a dissipação de minha vida. Como diamantes acerados, as lágrimas me traspassavam o coração, e caíram-me dos lábios estes versos:
"A cada instante, desprende-se de nós uma parcela de vida. Ó tu que tens cinquenta anos e dormes ainda, saberás utilizar nobremente os poucos dias que te restam? Infeliz do que parte depois de uma existência estéril! O guia da caravana fez soar os címbalos, e o viajante não enrolara sua tenda.. O sono doce prendia-o nos seus laços.”
Cada um que chega constrói uma casa; depois deve partir e deixar para outro essa morada.
A vida é como neve que fosse exposta ao ardente sol do verão. Derrete-se a olhos vistos. Seu possuidor deve utilizá-la sem perda de tempo.
Vais ao mercado sem dinheiro? Duvido muito que voltes carregado de frutas.
Todo aquele que ceifou o trigo ainda verde será obrigado a respigar na época da colheita.
Ó meu irmão, escuta com o ouvido da alma os conselhos de Saadi! Eis o caminho: sê homem, e vai!
*
Um de meus amigos, velho companheiro de infortúnio, entrou, certo dia, em minha casa, a gracejar ruidosamente. A despeito do seu bom-humor, não o saudei. Fitou-me, irritado e disse-me:
– Desde que podes falar, camarada, serve-te da tua língua. Amanhã, quando a Morte bater à tua porta, emudecerás.
Um dos meus discípulos declarou:
– Saadi tomou a firme resolução de consagrar-se inteiramente ao culto de Alá, e fez voto de silêncio.
Meu amigo replicou:
– Juro pela glória do Senhor e por nossa velha amizade: não pronunciarei uma palavra, não darei um passo, enquanto Saadi permanecer silencioso!
Pensei: – “Que é a língua, na boca! É a chave que abre a porta da casa onde o sábio guarda o seu tesouro. Quando a porta está fechada, como saber se aquilo é a loja de um joalheiro ou a de um especieiro? ”
Duas coisas aborrecem o sábio: calar quando é preciso falar e falar quando é preciso calar.
*
Fomos passear.
Primavera. Espalhava-se pela terra um doce calor. Começava o reinado da rosa. As árvores traziam um vestido de folhas, semelhante ao traje de festa das pessoas felizes. Era a primeira tarde do mês djelaliano. Um rouxinol cantava num cipreste. Numa rosa purpúrea tremiam pérolas de orvalho, como gotas de suor nas faces coradas de uma rapariga.
Naquela noite conduzi o amigo ao meu jardim. Na verdade, não há jardim mais delicioso! Dir-se-ia que alguém espalhara uma poeira de diamantes sobre a relva e o colar das Plêiades pendia de cada pâmpano da vinha. O regato corria, límpido. Cantavam pássaros melodiosos. Havia um grande silêncio no meu coração.
Pela manhã, notei que meu amigo enchera a aba da veste de rosas e brasílicos, jacintos e amarantos. Queria levar consigo essa carga de perfumes. Eu disse-lhe:
– Como sabes, a rosa do jardim é efêmera. As promessas das flores são às vezes promessas vãs, e segundo a palavra do sábio, os amantes desdenham as alegrias fugazes.
– Que devo fazer, então?
Respondi-lhe:
– Tenciono compor, para recreação dos espíritos, o livro do Jardim das Rosas. E o vento do outono não maltratará as folhas das suas árvores, e furacões imprevistos não hão-de transtornar a ordem dos prazeres que nos traz a primavera.
Ele sorria, sem me acreditar. E eu continuei:
– Porque colher todos os lilases da Pérsia! Em vez disto, guardarás uma pétala de rosa do meu Jardim. A rosa dura apenas alguns dias, e o meu Jardim é eternamente florido.
Então ele deitou fora a sua messe de flores. Segurou-me pelo braço, e declarou:
– O homem de coração generoso, quando promete, é fiel à sua promessa.
No dia seguinte, sem perda de tempo, comecei a trabalhar no livro.
Esse livro, terminá-lo-ei quando o rei que é a sombra de Alá sobre a terra, o vencedor de todos os nossos inimigos, o luzeiro da religião eminente e a glória do islamismo, quando Saad, filho do rei dos reis árabes e bárbaros, sultão do mar e da terra, herdeiro de Suleimão – Mozafar Edduniá Ueddin Abú Bekr Ebn Saad Ebn Zenghi, – dignar-se de fazer anunciar-me que o lerá.
*
Perguntaram a Lokman o nome do filósofo que lhe ensinara a sabedoria. Ele respondeu:
– Contentei-me com observar os cegos. Eles não dão um passo sem primeiro tatear cuidadosamente o terreno. Antes de entrares em qualquer parte, procura saber onde fica a saída.
Confio na indulgência dos grandes. Espero não julguem com rigor as faltas que encontrarem no meu livro. Consagrei a este Jardim boa parte de minha preciosa existência. Agora, que o Senhor me ajude.
Quando o vento houver dispersado pelos ares o mais pequeno átomo das minhas cinzas, ainda os homens se embriagarão com os perfumes do meu Jardim. Minha única intenção foi escrever algumas linhas que me sobrevivam. Talvez um dia, à sombra doce de uma mesquita, algum sábio murmure uma prece pela alma de outro sábio, que amou as rosas.
Assim como o Paraíso tem oito Jardins, o meu livro tem oito capítulos – capítulos breves, para que a sua leitura não te fatigue. Quando os compus, levava uma vida agradavelmente ociosa. Era no ano 656 da Hégira.
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Meu desejo foi agradar-te. Votei a Alá os meus pensamentos, e parti.
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- SAÂDI - Le jardin des roses - Miniature illustrant l'ouvrage de Saadi de Shiraz . Le jardin des roses, traduit par Franz Toussaint. origem L'édition d'art H.Piazza - Paris. Collection Ex Oriente Lux, Miniature dessinée par Paul Zenker - data 1942 / reproduzida na edição brasileira da Livraria José Olympio, 1944 - tradução de Aurélio Buarque de Holanda.
ANTOLOGIA POÉTICA DE SAADI DE SHIRAZ (POETA PERSA)
O Jardim das Rosas. Saadi. [tradução Aurélio Buarque de Holanda, a partir da magnifica edição francesa da H. Piazza / traduzida por Franz Toussaint; ilustração Paul Zenkar; desenho bico de pena de Luis Jardim]. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944.
Eis os poemas em prosa traduzidos
por Aurélio Buarque de Holanda
O AZEDUME
Perguntaram a um escorpião:
– Porque não passeias durante o inverno?
E ele respondeu:
– Que apreço me demonstram no verão, para que eu saia também pelo inverno?
**
A BONDADE
Um pastor disse ao pai:
– Ensina-me a bondade.
E teve como resposta:
– Sê bom, mas que a tua mansidão não faça o lobo tornar-se audacioso.
**
A CARIDADE
Um ladrão penetrou na cabana de um anacoreta e, nada achando que levar, ficou muito
triste. Consternado por ser a causa dessa tristeza, o eremita foi roubar um velho tapete,
que enviou sem demora ao ladrão.
**
O TOLO
A um tolo que se cansava tentando instruir um burro disse o filósofo:
– És indiferente às zombarias? Apesar dos teus esforços, não lhe ensinarás a falar. Olha
que ele nada faz para que aprendas a calar.
**
A INDECÊNCIA
Uma mulher friccionava com água de rosas um velho, que gemia agonizante. Coisa
deplorável, quando tantos jovens amantes economizam em sua alimentação afim de
adquirir perfumes para os seios das amadas!
*
A VERDADE
Na região de Karabagh encontrei um ermitão.
– Meu pai – disse-lhe eu – ensina-me uma verdade absoluta.
E ele falou:
– Vai, e sê paciente como a terra; senão, enterra todos os livros que te instruíram.
*
O SONO
Quando eu estiver adormecido para sempre, ponham-me sob a cabeça este saquinho,
que contém, com um pouco de terra de Kerbela, o pequenino rolo de seda onde escrevi,
entre ciprestes de ouro, todos os nomes secretos que eu dava a Naziad enquanto minha
mão lhe percorria o corpo esbelto e ondulante.
*
O ASTRÔNOMO
Um célebre astrônomo estava em desespero por haver sabido que a mulher o enganava,
desde muito, com um dos seus amigos que lhe vivia sob o teto.
Disse-lhe um sábio:
– Como podes ter a pretensão de saber o que se passa no céu, se ignoras o que acontece
em tua própria casa!
*
A PRUDÊNCIA
Um mercador, que acabava de perder mil dinares, disse ao filho:
Não passes além esta infeliz notícia.
– Eu te obedecerei – replicou o jovem – mas gostaria de saber porque devemos calar a
nossa desgraça.
– É para que não haja duas: a perda do dinheiro e a alegria perversa do vizinho.
*
A LÂMPADA
Certa noite, a amada entrou em minha casa. Levantei-me com tal rapidez, que minha lâmpada caiu.
Ela me censurou:
– Porque, logo que me viste, apagaste a lâmpada?
Respondi-lhe:
– Já não precisamos dela, ó minha luz!
*
A SABEDORIA
Alguém perguntou a um velho:
– Porque não te casas?
Ele respondeu:
– Uma mulher idosa não me daria nenhum prazer.
– Mas, desde que és rico, escolhe uma jovem.
– Eu sou velho, e não tenho nenhuma inclinação pelas mulheres velhas. Como poderia
uma jovem sentir desejo por mim?
*
A PROPOSTA
Em Ispaão, uma tarde, uma mulher me perguntou:
– Queres amar-me? Eu sou dourada como uma tâmara.
Ora, na véspera, eu estivera a ponto de me engasgar com um caroço dessa fruta. E
contei à ardente criatura a seguinte fábula:
– Certo dia, uma tâmara disse a um camelo: – “Porque não me comes? Sou dourada
qual uma mulher.” O camelo fugiu, espantado de ouvir uma tâmara falar.
*
A RESPOSTA
Propuseram a um sábio o seguinte problema:
― Um homem está só, num quarto, com a mulher a quem ama. A porta bem fechada,
os criados dormindo, e o apaixonado treme de desejo. Como diz o árabe: a tâmara está
madura e o guarda do oásis não impede que ninguém a coIha. Achas que este homem,
pondo-se a orar com fervor, deixará de sucumbir?
O sábio refletiu, e respondeu:
– Se ele se livrar da mulher, não se livrará dos maldizentes.
*
A LEMBRANÇA
Esta manhã, num jardim de Bagdá, duas pombas arrulhavam à jovem primavera suas
queixas de amor. Minha amiga apoiou a cabeça em meu ombro, e disse:
― Tenho a alma pesada de felicidade como um ramo carregado de frutos. Mas, escuta
o canto triste dessas pombas... Estará ele a predizer que nos separaremos, um dia?
Porque, respirando a rosa, pensar no efêmero de sua beleza? Guarda a lembrança do
seu perfume, e esquecerás que ela murchou.
*
O SILÊNCIO
Certo rapaz, muito instruído, ficava inteiramente mudo quando se achava em companhia de sábios.
Um dia o pai lhe perguntou:
― Então porque não falas daquilo que sabes?
― Temo que me interroguem sobre o que ignoro, deixando-me mudo e confuso.
Com grande ruído, um derviz cravava pregos na sola de um dos seus calçados. Um
guerreiro segurou-o pela manga e disse-lhe:
― Vem terrar o meu cavalo!
*
A REFLEXÃO
Eu conseguira deter um insensato que se ia precipitando num rio.
― Deixa-me ― gritou o desesperado. ― Eu quero morrer. Acabo de saber que minha
amante me engana.
― Faze o que entenderes. Mas, antes de te afogares, tira a roupa, por favor, e dobra-a
com todo o cuidado.
O homem obedeceu. Foi-lhe preciso certo tempo para dobrar a roupa. Quando acabou,
disse-me:
― Eu te agradeço. Agora, quero viver.
*
A EMBRIAGUEZ
A filha de um sultão via passar um rapaz e uma rapariga mutuamente presos pela
cintura.
Lembravam dois ciprestes que uma roseira enlaçasse.
Ela disse:
― Vede como cambaleiam! Parece que vêm de uma festa onde fossem servidos todos
os melhores vinhos da Pérsia. Mas, admirai a graça do jovem par...
O vinho que eles tinham bebido, só na Pérsia se pode saborear. Em Bagdá, em
Damasco, em Misora, eu o saboreei muitas vezes, e, quando cambaleava, nem sempre era
de felicidade.
*
A PACIÊNCIA
Um filósofo se apaixonara vivamente por uma rapariga, que não perdia ocasião de
injuriá-lo.
Um dia eu lhe falei:
― Bem sei quanto amas aquela criatura. Mas, deixa-me dizer-te, é indigno de um
filósofo suportar o que suportas da parte dela.
― Não me censures mais! ― murmurou ele. ―
E mais fácil, para mim, sofrer os seus caprichos do que viver sem ela. Um sábio
escreveu: “Quando tua esposa te injuria, imagina que ela se está dirigindo a sua própria
mãe.”
*
A BATALHA
Numa das minhas viagens a Meca, surgiu forte contenda entre os companheiros de
peregrinação. Como é natural, pusemo-nos a trocar pancadas com ciência e furor. No
auge da peleja, um dos peregrinos disse ao outro:
― Coisa espantosa! Os peões de marfim, depois de haverem percorrido todo o
tabuleiro de xadrez, tornam-se reis, e os membros duma peregrinação, após atravessarem
o deserto, estão piores do que eram por ocasião da partida.
Bom peregrino é o camelo, que se alimenta de espinhos e conduz cargas arrasadoras.
*
O PERFUME
Um sábio mergulhara em profunda meditação. Quando saiu desse êxtase, um dos seus companheiros lhe perguntou:
― Que nos trazes do belo jardim onde passeavas?
― Eu enchera de rosas a aba de minha veste ― respondeu o sábio ― e queria distribuí-las convosco, mas fiquei tão embriagado com o cheiro delas, que a aba da veste se desprendeu de minha mão.
Ó rouxinol, a borboleta ensina-te como se deve amar! Abrasada de amor, ela expirou
em silêncio.
*
O IDIOTA
Certo vizir tinha um filho idiota. Mandou-o estudar com um sábio, a quem disse:
― Cuida desse menino. Talvez ele se torne inteligente.
Durante alguns meses o sábio ensinou à criança, sem nenhum resultado. Desiludido,
escreveu ao pai: “Teu filho continua idiota, e eu tornei-me quase tão idiota quanto ele.”
Não laves sete vezes o teu cão no mar. Com isto só conseguirias que o seu mau cheiro
se tornasse pior. Se alguém conduzisse a Meca o asno de Jesus, ele não deixaria de ser
um asno quando de lá voltasse.
*
A JUSTIÇA
Um indivíduo maluco sofria dos olhos. Procurou um veterinário e disse-lhe:
― Dá-me um remédio.
O veterinário lhe instilou nos olhos o colírio que empregava nos animais, e o nosso
pobre homem ficou cego.
Levada a questão ao conhecimento de um cadi, este declarou:
― O veterinário não está sujeito a multa nenhuma. Se esse doente não fosse um asno,
não teria ido consultá-lo.
Embora o fabricante de esteiras saiba tecer, ninguém o põe a trabalhar em sedas.
*
A GLÓRIA
Alp Arslã entregara a alma Àquele que lhe tinha dado. Seu filho, Malik-Chah, acabava
de cingir a coroa. O rei defunto abandonara, pois,
o trono pelo sepulcro, segundo a lei que faz cair das árvores os frutos maduros.
No dia seguinte, um desses muitos homens avisados a quem facilmente chamam de
insensatos exclamou, ao ver passar o cortejo do novo soberano:
― Admirável! Ninguém considera que ele não tardará em partir ao encontro do pai.
Algum de vós se deixaria prender a uma mulher que muda de amante todos os dias? Pois
assim é a glória.
*
A VAIDADE
Um rato faminto girava em torno de uma noz. Do interior da noz um verme lhe disse:
― Não nos leves! Eu comi toda a polpa deste fruto, e tu te arrependerias de tocar nele.
O rato refletiu:
― És gordo ou magro?
E o verme, vaidoso:
― Sou gordo, e nada mais quero da vida.
― Muito bem ― disse o rato. ― Espero que tua gordura tenha sabor de noz.
Roeu a casca, tirou o verme e o comeu.
Imita o sábio, que, mesmo na opulência, permanece modesto.
*
A PRECE
Alá ouvia todas as preces de um derviz que morava em Bagdá. Hedjadj mandou
chamar o religioso e ordenou-lhe:
― Reza uma prece em meu benefício!
O derviz levantou a mão e murmurou:
― Senhor, faze-o morrer!
― Justos céus! ― exclamou Hedjadj. ― Que prece é esta?
E o santo velho respondeu:
― Eu a formulo para felicidade tua e dos muçulmanos.
Ó poderoso que torturas o fraco, até quando te obstinarás nessa tarefa? No interesse de
tua alma, antes queríamos saber-te morto do que ocupado em atormentar os homens.
*
O SONO
Um sultão injusto e cruel perguntara a um derviz:
― Em que momento julgas que o Senhor me considera com benevolência: quando rezo, quando passeio ou quando trabalho?
– Quando dormes – declarou o santo homem.
O sol flamejava no céu. À sombra de uma árvore um terrível usurário fazia a sesta. Despertei-o.
– Queres dinheiro? – perguntou-me. – Eu não empresto mais, porém abrirei exceção para ti, pois me acordaste. Eu sonhava que todos os meus devedores acabavam de morrer.
*
O ACASO
Um rei da Pérsia possuía um anel de grande valor. Certo dia, a caminho do muçalá de Chiraz, ele fez colocar esse anel na cúpula do Adzed Eddulah e proclamar que a joia pertenceria ao archeiro cuja flecha a atravessasse. Quatrocentos archeiros consumados tudo fizeram para atingi-la. Erraram todos o alvo. Quem acertou foi um menino que, trepado no teto de um mosteiro, atirava flechas a torto e a direito, para se distrair. O vento de Leste levou uma das setas para o anel, que caiu. Fizeram-lhe presente da joia, deram-lhe um rico vestuário, e dinheiro. Na mesma tarde o rapazinho queimou as flechas e o arco. Como lhe perguntassem porquê, ele respondeu:
– Assim fiz para não ser tentado a nova façanha.
*
O CIPRESTE
Deram para resolver a um filósofo a seguinte questão:
– De todas as árvores criadas por Alá, só uma é estéril: o cipreste. Como interpretar esta exceção?
Ele respondeu:
– Todas as árvores, menos o cipreste, produzem frutos. Ora resplandecem, graças a esses frutos; ora estão despojadas de folhas, e lúgubres. O cipreste, este não dá frutos, mas é eternamente verde. Eis o símbolo do homem livre.
Não prendas o coração ao que é transitório. O Tigre atravessará Bagdá ainda muito tempo depois da morte do califa. Se és rico, sê generoso como a palmeira. Se és pobre, sê livre como o cipreste.
*
O SONHO
Um rei de Coraçã viu em sonho o sultão Mamude, filho de Sebuk-Teghin, cujo corpo estava reduzido a pó, exceto os olhos, banhados de lágrimas.
Nenhum sábio conseguiu interpretar este sonho. Apresentou-se um daroez e disse:
– O sultão Mamude considera, agora, que o seu terceiro sucessor tornou o reino próspero, e lamenta haver-se julgado um grande soberano.
Quantos homens ilustres sepultados, de quem não resta nenhum vestígio sobre a terra! O nome venturoso de Nuch-Irreuã ainda perdura, graças ao bem que ele fez. Ó tu que me estás lendo, pratica ao menos uma boa ação, e colhe com prudência os frutos da vida, antes que uma voz grite: – “Não há mais!”
*
O NAUFRÁGIO
Dois jovens navegavam juntos no vasto mar. Batida por uma tempestade, a embarcação foi a pique, e as ondas tragaram os navegantes.
Um marinheiro conseguiu salvar um deles.
– Larga-me – pediu o infeliz. – Procura, antes, encontrar o meu companheiro...
E quando já ia perdendo os sentidos:
– Não deixes discorrer acerca do amor aquele que viu morrer o amigo sem tentar salvá-lo.
Tira proveito de todas as minhas histórias. Saadi conhece tão bem as regras do jogo do amor como os habitantes de Bagdá conhecem o árabe. Não olhes outra mulher senão a tua amada. Se Medjnum e Laïlá voltassem à terra, saberiam que a vida é fugaz e ficariam todo o tempo de mãos dadas.
*
O APAIXONADO
Um professor, que se tomara de paixão por uma aluna de rara beleza, passava o tempo a dizer-lhe:
– Ó irmã das hurís do Paraíso, penso de tal modo em ti, que já nem sei se existo! Não posso deixar de olhar-te a cada instante.
Certo dia, a aluna disse ao galante mestre:
– Rogo-te que empregues em me instruir o mesmo zelo que usas em me louvar. E se notas que eu tenho graves defeitos, apontamos, que tratarei de me corrigir.
– Pede a outro esse rigor – respondeu ele.
– Eu só vejo os teus méritos.
Se tens sessenta defeitos e uma qualidade, teu amante verá somente a qualidade.
*
A NOITE
Em Sana, no Iêmene, um de meus filhos morreu. Não preciso dizer quanto sofri. A beleza de meu filho era maravilhosa. E o túmulo ia devorá-lo! No Jardim da Vida não há cipreste, por mais alto, que o vento da morte não termine desenraizando, e não me espanta ver tantas rosas nesse jardim, se tantas crianças de faces róseas dormem sob a terra.
Tal era a minha angústia, que levantei a pedra da sepultura de meu filhinho, para contemplá-lo ainda uma vez. Entrei no sepulcro. Que terrível espanto! Mudei de cor. Quanto voltei a mim, cuidei ouvir a voz de meu filho:
– Se tremeste de pavor nesta escuridão trágica, procede de maneira que a noite do túmulo em que repousarás seja tão luminosa como o dia. Para isto, acende, desde já, a lâmpada das boas ações.
*
O VIAJANTE
Naquela noite, em Pechauar, eu não achava meio de livrar-me de certo indivíduo que me contava com orgulho a única viagem que fizera, durante sua vida, de Cabul a Kachgar. Ora, dois anos antes eu partira de Damasco e, seguindo o caminho outrora percorrido pelos reis assírios e, depois, por Dario e Alexandre, entrara em Bagdá, Meched, Herat e Candar. Poderia, pois, dizer ao importuno que a sua erudição em matéria de viagens não me causava espanto; mas contive-me. De repente, não sei porquê, perguntei-lhe se vira as duas gigantescas estátuas de Buda que santificam o vale de Bamiã.
– Se as vi! – bradou ele. – Admirei-as muito e andei em torno delas diversas vezes.
– Permite-me beijar a fimbria de tua veste! – disse-lhe eu. – És o rival dos djins, pois conseguiste rodear essas estátuas, esculpidas num rochedo.
Pouco depois, ele falou-me dos eloendros de Cabul.
*
A LIÇÃO
Eu caminhava para o Hejaz, entre jovens com quem recitava versos místicos e cuja beleza me incitava a louvar ardentemente o Senhor. Veio reunir-se ao grupo um falso devoto, de aspecto repelente, que se ostentava sobre um camelo. Como atravessássemos um deserto, um árabe saiu de sua tenda tocando exótico instrumento. O camelo deu uma popá violenta, e o falso devoto caiu.
– Ó xeque – disse-lhe eu –acabas de ver que esta música impressionou o teu animal! Eis o que te diria um rouxinol: – “Teu camelo pulou de alegria, e tu permaneceste insensível. Em boa razão, teus companheiros deveriam, durante a jornada, oferecer-te ervas, a ti, e dar tâmaras ao teu camelo; mas isto para ti ainda seria muito, pois a erva não fica imóvel quando a brisa canta.”
O vento faz ondular os salgueiros, e deixa imóveis as rochas.
*
A AMIZADE
Estando sem dinheiro, um derviz roubou um tapete em casa de um dos seus amigos. Impiedoso, o juiz determinou que lhe fosse cortada a mão.
O dono do tapete intercedeu em favor do derviz:
– Dou-lhe o tapete de presente.
– A lei é a lei – respondeu o Cadi.
– Tens razão – falou o religioso. – Mas quando um homem rouba dinheiro proveniente de um legado pio, não lhe cortam a mão. Tudo o que pertence aos darvizes é legado pio.
O juiz perdoou ao culpado, mas sem deixar de adverti-lo:
– Será que o mundo já não é o vasto mundo? Não podias roubar em outra parte que não na casa de um teu amigo?
E o derviz:
– Senhor, já ouviste, decerto, esta sentença: “Volta sempre o olhar para a casa dos teus amigos, e não batas nunca à porta daqueles que não conheces.”
*
A SULTANA
Outro derviz amava uma jovem. A notícia espalhou-se. Não obstante as censuras que lhe faziam e as multas que era obrigado a pagar, o religioso não renunciava à sua paixão. Repetia, entre suspiros:
– Não te abandonarei, nem que me espanques! Es o meu único asilo, o meu único refúgio. Se fugires, eu te seguirei.
Perguntei-lhe:
– Que aconteceu à tua preciosa inteligência, para que a domine essa vil paixão?
Depois de longa meditação ele respondeu-me:
– Em todos os lugares por onde tem passado a Sultana do Amor, os homens perderam a razão.
– Muito bem. Agora, ser-me-ia permitido vê-la, a essa incomparável criatura!
– Impossível! – exclamou o daroez. – Mas podes ouvir o que ela me diz.
E apontou-me um rouxinol que cantava no ramo de um cedro.
*
A PREVIDÊNCIA
Estavam a assar uma caça para Nuch-Irreuã o Justo, e faltava sal. Mandaram buscá-lo por um escravo à aldeia mais próxima.
– Não deixes de pagar esse sal – disse Nuch-Irreuã. – Se o roubasses, isto se tornaria praxe, e os habitantes da aldeia ver-se-iam dentro em pouco reduzidos à fome.
Um cortesão exclamou:
– Na verdade, se o escravo não paga o sal, o prejuízo não será grande!
– No mundo – respondeu o rei – a tirania e a injustiça começaram por uma coisa infinitamente pequena.
Se o sultão come um fruto do jardim de um dos seus súditos, os escravos, por trás dele, levarão a árvore.
Se o sultão resolve tomar de alguém um ovo, seus guerreiros, por trás dele, tomarão mil galinhas.
*
A HONRA
Durante a guerra que sustentamos contra os tártaros, um dos nossos valentes guerreiros recebeu um ferimento horrível. Um dos seus companheiros disse-lhe:
– Conheço um negociante que te oferecerá, decerto, um vulnerário muito eficaz..
Mas a avareza e rapacidade desse boticário eram tão célebres quanto a generosidade de Hatim Talí. Se ele fosse dono do sol, ninguém, até à Ressurreição, veria a luz do dia, senão em sonho.
O ferido respondeu:
– Se eu lhe pedir o vulnerário, ele o dará, ou não. Se o der, eu me curarei, ou não. Só uma coisa é certa: repugna-me fazer um pedido esse incrível comerciante.
Tudo o que pedes a pessoas vis beneficiará teu corpo, mas prejudicará tua alma. Um filósofo escreveu: “Se alguém vendesse ao preço da honra a água da fonte da Vida, nenhum sábio a compraria.”
*
A VOLTA
De volta de longa viagem, eu quis rever uma rapariga a quem muito amara. Não me lembrei, então, das palavras do sábio: “No inverno, os ramos da árvore não oferecem à pomba um abrigo muito confortável.”
A moça fitou-me e baixou os olhos. Em torno de nós, no ar cristalino, uma dourada ronda de abelhas tontas de primavera.
Não julguei de bom aviso recordar-lhe que eu tinha a mesma idade sua mas não ficara sempre sentado no meu jardim.
Naveguei todos os mares. Atravessei todos os desertos. Todos os ventos esculpiram estas rugas do meu rosto. Entretanto, a rosa de ontem é sempre a rosa!
“As uvas que eu colhi na alegria e na angústia, outros farão com elas um vinho precioso; mas deixa-me falar-te do meu amor, doce jovem de olhos descidos!”
Eis o que eu pensava, mas não cheguei a dizê-lo, pois acabava de lembrar-me das palavras do sábio.
*
A PRESUNÇÃO
Haviam posto na mesma gaiola um corvo e um papagaio. Humilhado por se achar em companhia de ave tão feia, o papagaio dizia:
– Que horrível cabeça! Que corpo irrisório! Odioso espetáculo, na verdade! Ó corvo, comedor de cadáveres, que haja entre nós, quanto antes, a distância que separa o Oriente do Ocidente – eis tudo quanto peço a Alá!
Coisa verdadeiramente extraordinária: o corvo, por sua vez, estava indignado de ter o papagaio como vizinho. Gemia:
– Alá todo-poderoso, tira-me daqui!
Anunciava cataclismos próximos, predizia revoluções.
– Estranho destino, o meu! – repetia, martelando com o bico as grades da gaiola e esfregando as patas, colérico. — Eu deveria, sem dúvida, estar passeando com dignidade no jardim de um palácio! Que feio crime cometi para que me hajam aprisionado junto com semelhante parvo?
Antes de expor o teu retrato, indaga a ti mesmo se irá muita gente vê-lo. Se tens de ir ao Paraíso, muitas outras pessoas preferirão ir ao inferno.
*
A PÉROLA
Era uma vez um velho que resolveu casar-se com uma jovem. Pediu a mão de uma virgem muito linda, chamada Gueuher (a Pérola).
Como acontece à maior parte dos recém-casados, o nosso velho sentiu desejo pela mulher, e tentou fazê-la aproveitar esse acontecimento. Mas, logo na primeira escaramuça, o arco afrouxou e a flecha errou o alvo.
O desgraçado foi queixar-se aos amigos. Buscava pretextos para a sua derrota. Acusava os céus.
– Aquela insolente veio trazer a inquietação ao meu lar – repetia.
Como é fácil imaginar, esse lar se tornara uma dependência do inferno. O barbaças e a mulher discutiam da manhã à noite e trocavam pancadas a torto e a direito. O caso assumiu tais proporções, que o velhote e a companheira foram levados à presença do cadi.
– Tua esposa não é culpada – decidiu o juiz.
– Tu que tens a mão trêmula, como poderias furar uma pérola?
*
O INCÊNDIO
Um homem injusto obrigava pobres lenhadores a lhe venderem lenha por preço que ele mesmo fixava – muito aquém do normal, como é fácil ver.
Disse-lhe um sábio:
– És serpente, para morder assim? Se com os lenhadores consegues sair-te bem na tua violência, ela não te será de bom efeito perante o Mestre para quem não há segredos. Não uses, pois, de semelhantes processos para com teus semelhantes, afim de que Alá não ouça continuamente as maldições que eles te lançam.
O homem ficou profundamente irritado, e não tomou o conselho.
Certa noite, um incêndio, que irrompeu em sua cozinha, terminou devastando-lhe o depósito de lenha. No dia seguinte, o mau rico só tinha para sentar-se, em vez de macios coxins, um amontoado de cinzas ardentes. Alguns dias depois, aquele mesmo sábio espantou-se de ouvi-lo dizer aos amigos:
– Não posso compreender como este incêndio se propagou de tal maneira...
– E que ele foi atiçado pelos suspiros de todos os pobres que tu roubaste – declarou o sábio.
*
A VIAGEM
Esta caravana que vai partir não leva apenas sedas do Laristão e urnas de água de rosas. Leva, também, a saudação que envio às doces regiões aonde sonho ir contigo.
Mas para quê realizar semelhante viagem, se em tua cabeleira tenho o perfume que se respira no Kotã e se todo o langor indiano se espreguiça em teu olhar?
Lá, que colares eu poderia dar-te mais preciosos do que os colares de beijos com que adorno o teu colo? Que volúpias eu te faria conhecer tão finas como aquela de que te embriagas, aqui, ouvindo-me suspirar de desejo?
Pretenderá, finalmente, aproximar-se de mim o escanção que derrama a felicidade, ou se distanciará sem me haver olhado? Entretanto, o orvalho enguirlanda de pérolas todas as tulipas do jardim, até a menos bela.
É uma lágrima em teus cílios! É uma gota de luar? É um rouxinol que canta, ou teu amante infeliz?
Os beijos da Aurora acabam de despertar a Terra. Espero que também me venhas arrancar da minha treva e inundar-me de luz.
*
A SEVERIDADE
No país de Magrebe conheci um mestre-escola de aspecto repelente, elocução difícil e costumes deploráveis, e que passava o tempo a atormentar os vizinhos e a mendigar. Sua presença numa rua consternava os bons muçulmanos, tanto quanto sua maneira de ler o Corão. Rapazes e mocinhas estavam sujeitos aos caprichos desse homem, que lhes proibia rir e falar. Ora ele martelava de socos a face de rosa dum adolescente. Ora feria a perna de cristal de uma menina. Terminou sendo espancado sem dó e expulso da cidade.
Os alunos foram confiados a um santo homem, que vivia sempre mergulhado em fundas meditações. Começaram desde logo, pois, a tecer louvores ao novo mestre. Transformados em verdadeiros demônios, não queriam estudar: a maior parte do tempo, dormiam, brincavam, ou esmurravam-se.
Duas semanas depois o antigo professor voltava às suas funções. Indignado, murmurei:
– Só Alá é Deus! Mas porque se faz do Diabo preceptor dos anjos?
Um velho que me ouviu disse sorrindo:
– Fizemos voltar aquele homem para que os nossos traquinas saibam bem o que é o inferno, e o temam.
*
O MORIBUNDO
Uma tarde, eu discutia com vários sábios, na principal mesquita de Damasco, quando um homem chegou, gritando:
– Algum dos senhores entende o persa?
Indicaram-me, e eu perguntei ao desconhecido:
– Que é que há?
– Um dos meus vizinhos, de cento e dez anos de idade, está agonizante e pronuncia, em persa, palavras que não compreendemos. Acompanhe-me até lá, por favor. Poderemos recompensá-lo generosamente, pois, ao que nos parece, o velho pretende fazer testamento em nosso benefício.
Cheguei à cabeceira do moribundo, que gemia:
– Eu não quero morrer. Ai! quase não posso mais respirar. Ó dor! Mal bebi alguns goles de vinho, na mesa das delícias da vida, e a urna me foi arrebatada...
Era meu dever reconfortar esse louco.
– Escuta – disse-lhe eu. – Certamente não chegaste a essa idade sem ouvires dizer que a morte é inevitável. Como não sou responsável por esta lei, é-me fácil induzir-te a que te submetas a ela. Queres consolações? Seja! Ofereço-te aquela que os dentistas repetem aos clientes: – “E apenas um mau instante, e não se pensa mais nisso.” Mas se um vivo pode lastimar a perda dos dentes, um morto não pode ter saudades da vida, pois ele não sabe que morreu. Eis aí, pois, uma grande vantagem para ti. Não achas?
– Convenhamos que seja! – murmurou, arquejante.
E expirou.
*
A DECLARAÇÃO
Uma rapariga abandonara o amante. Passou-se um mês, e o mundo não veio abaixo, como pensava o pobre homem.
Certa manhã, estava ele em casa quando chegou a infiel, acompanhada de duas amigas.
– Bom dia! Sou eu – disse calmamente.
Ele quase não pôde falar:
– Onde estavas? Eu sentia desejo de ti.
– Antes o desejo que a saciedade – declarou a mulher com a mesma placidez.
O homem sentiu-se ferido:
– Eu nunca me mostrei saciado de ti! Lembra-te bem! Negas que eu te procurava diversas vezes, de dia e de noite?
– É verdade – confirmou a indiscreta.
Suas amigas, mais bonitas do que ela, escutavam com interesse o debate.
– Que bravo! – soprou uma delas ao ouvido da outra. – Eis aí justamente o homem de que eu preciso.
E tanto fez, a insolente, que o amante de sua amiga se tornou seu amante.
Soube este caso pelo fascinante demônio que nele figura como heroína. Estava eu sentado perto de uma das fontes de um jardim de Damasco.
Ela dormitava nos meus braços. De repente, disse-me:
– Quero ser a lâmpada que iluminará tua vida.
– Não falemos de lâmpada. Ofenderíamos este lindo luar. É a hora em que as rosas só têm sonhos moderados, se acaso as rosas sonham.
*
A EXPERIÊNCIA
Um rei viajava por mar, com um jovem escravo estrangeiro. Este, que nunca pusera o pé num navio, ainda não conhecera o mal-estar que provocam as viagens marítimas na maior parte das pessoas. Contudo, chorava e gemia. Tremia de medo. Inutilmente os vizinhos procuravam tranquilizá-lo: ele permanecia agitado, incomodando, assim, aos passageiros.
Não se descobria remédio para o terror do adolescente. Então, um médico disse ao rei:
– Se me permite, tentarei fazer calar esse importuno.
– Eu te ficarei grato por isso – respondeu o monarca.
O médico imediatamente mandou que lançassem o escravo ao mar. Deixaram o infeliz desaparecer diversas vezes nas ondas; depois, suspendendo-o pelos cabelos, puseram-no sobre uma cordoalha, onde ele quedou em silêncio.
Espantado, gritou o rei:
– Que singular mistério!
– Não há mistério nenhum – disse o médico. – Esse escravo desconhecia o incômodo da imersão e o valor da tranquilidade de que gozamos neste navio. Agora, o convalescente sabe o quanto vale o repouso.
Para os Eleitos o purgatório é um inferno. Se interrogasses os danados, eles responderiam que purgatório é o Paraíso.
Há uma diferença entre o homem que acaricia uma mulher querida e aquele que tem os olhos presos à porta de casa, perguntando a si mesmo se a bem-amada tardará ou não a vir.
*
O LEVIANO
Conheci um negociante que possuía cinquenta camelos, sessenta escravos e vinte fâmulos. Uma tarde, na ilha de Kich, ele arrastou-me ao seu quarto, onde me importunou com incessante parolagem:
– Tenho tal associado no Turquestão, e tal entreposto no Indostão. Este papel que vês é uma escritura de arrendamento. Para tal negócio, Fulano é o meu procurador.
De repente anunciou-me:
– Tenciono ir a Alexandria: o clima dessa cidade é muito saudável.
Pôs-se a refletir.
– Não! – gritou subitamente. – Não irei a Alexandria. O mar do Ocidente é muito agitado. Ó Saadi, eu tenho na cabeça outras viagens. Quando as tiver feito, abandonarei o comércio e ficarei sentado a um canto de casa, até o derradeiro dia.
– Bem! Mas quais são os teus projetos?
– Quero exportar enxofre persa para a China, louça chinesa para a Grécia, brocados gregos para a Índia, aço indiano para Alepo, espelhos de Alepo para o Iêmene, panos de riscado do Iêmene para a Pérsia...
Continuou assim, por muito tempo. Afinal, notou que eu já não o escutava.
– E as tuas intenções, Saadi? – perguntou-me. – Gostaria muito de conhecê-las.
– Só tenho uma intenção: a de contar-te esta breve história: Um dia, na Síria, um agitado da tua espécie caiu do camelo e machucou os rins. Corri para ele e disse-lhe: – “Aonde vais, agora? Para que endereço devo mandar a tua bagagem? Ao Paraíso ou para o Inferno?”
*
A MENTIRA
Ouvi contar que um sultão mandara matar um prisioneiro. Nessa deplorável situação, o desgraçado começou a dirigir ao soberano as injúrias mais grosseiras e mais odiosas. Ninguém entendia, porém, a língua que ele falava.
Aquele que não tem amor à vida diz tudo o que sente no coração.
O sultão teve notícia do que esse homem vociferava. Um vizir, Abú'l Faradj, disse:
– Senhor, ele declara que Alá ama aqueles que domam a própria cólera, são indulgentes e praticam a caridade.
Compadecido, o monarca perdoou ao condenado.
Outro vizir julgou, então, oportuno dizer:
– As pessoas de nossa humilde condição devem falar aos soberanos com sinceridade. Senhor, esse miserável te injuriou.
O sultão franziu o cenho e bradou:
– A mentira do vizir Abú'l Faradj me foi mais agradável do que a verdade que acabas de contar: Abú'l Faradj queria salvar o prisioneiro, e tu procuras desgraçá-lo. Ignoras, sem dúvida, as palavras do sábio: “Antes a mentira de consequências felizes do que a verdade de consequências funestas.”
Na abóbada da sala de audiência de Feridum havia esta legenda: “Meu irmão, o mundo não te pertence. Não te abandones às suas volúpias nem às suas dores, pois que terás de deixá-lo. Quando o sábio se dispõe a empreender a última viagem, que lhe importa morrer num trono de ouro ou numa esteira de caniços!”
*
O DELITO
Um casal de jovens passeava num bosque.
Sentaram-se. Através de uma moita, um homem mandava à rapariga beijos apaixonados. Imitava os delírios de um amoroso, e chegou ao ponto de cometer a suprema inconveniência.
A moça, já impaciente, disse ao namorado:
– Bem sei o que deseja de mim esse desconhecido. És forte. Vai castigá-lo!
O rapaz levantou-se e correu atrás do energúmeno, moendo-o de pancadas.
Recomeçou no bosque o suave silêncio.
No dia seguinte, estava o jovem par ainda na cama, entrelaçado, quando bateram à porta, e se apresentou um estranho.
– Fui incumbido de comprovar que estás em delito.
O moço reconheceu nesse estranho o indivíduo que ele espancara na véspera, e este reconhecera também o seu agressor.
– Irmão – perguntou-lhe o rapaz – és verdadeiramente qualificado para fazer prova do nosso delito?
O outro baixou os olhos e respondeu:
– A vida tem dessas ironias, concordo, mas, nesta manhã, eu represento o cadi.
– Aconselho-te a que lhe digas – concluiu o culpado – que eu fui positivamente obrigado a passar a noite com essa rapariga para extinguir o ardor que nela acendeste, ontem, no bosque.
Deixo a teu cuidado, leitor, extrair a moral desta breve história, de que fui herói, no tempo em que amava a Naziad, linda moça de Chiraz.
Em Chiraz, em Ispaão, em Damasco, sob tantos céus, respirei o perfume de tantas rosas! Todas, agora, são os elos da cadeia que me prende à vida.
Podes censurar ou lastimar – como achares melhor – o representante do cadi; mas não deixes de consagrar um dos teus pensamentos a Naziad, que, todas as noites, durante um verão inteiro, esteve nua e fresca nos meus braços.
*
A RESIGNAÇÃO
Durante minha viagem a Meca, eu tinha por companheiro um filósofo a quem um emir oferecera cem dinares. Um dia, a caravana foi assaltada por ladrões da tribo de Khafadjah, que levaram o nosso dinheiro. Os mercadores lamentavam-se – inutilmente. Só o filósofo sorria.
– Decerto os ladrões não carregaram as tuas moedas... – disse-lhe eu.
– Carregaram-nas, sim, mas eu não sofri com a perda, porque ainda não estava habituado a elas.
– Acabas de me trazer à lembrança o que me aconteceu outrora. Eu amava uma encantadora rapariga. Um ventre de mulher não dará mais ao mundo maravilha igual. Certo dia, essa jovem mergulhou nas areias da Morte. Eis os versos que então compus:
“Porque não expirei, também, quando o Destino te apunhalou? Quando vivíamos juntos, tu não adormecias sem que eu desfolhasse sobre o nosso leito jasmins e narcisos. Agora, os beijos da Morte enegreceram as rosas de tuas faces, e durmo sobre uma moita de espinhos! Outrora, eu era altivo como um pavão num jardim de amor. Hoje, separado de ti, contorço-me de sofrimento, como uma cobra decapitada.
Antes de sepultar-te, espalhei tua cabeleira sobre o teu rosto. Que essa noite perfumada te separe para sempre da luz do Paraíso, onde eu não estou, onde não mais desejo entrar, pois tu me deste alegrias que os Eleitos não conhecem!
Muitas vezes consigo vencer a dor e sorrir às minhas rosas, dizendo, entre mim, que se eu te houvesse possuído mais longamente, me habituaria talvez à tua beleza, à tua graça, e não te amaria tanto como te amei.”
*
O POBRE
Num momento de embriaguez, um sultão devasso bradou:
– Nunca fui tão feliz! Não sei mais o que é o bem nem o mal, e não tenho preocupações.
Um pobre, que tiritava sob uma janela do palácio, ouviu essas palavras e disse:
– Senhor, compreendo muito bem que não tenhas nenhuma preocupação contigo mesmo, mas não poderias ter alguma comigo?
Agradou ao soberano esta reflexão. Mostrando ao homem uma bolsa cheia de dinares, ordenou-lhe:
– Estende a tua veste!
– Como poderia fazê-lo – respondeu o desgraçado – se não tenho veste?
Compadecido de tal miséria, o sultão enviou-lhe uma roupa e uma bolsa com cem dinares de ouro.
Três dias depois, o louco dissipara sua riqueza.
Levaram ao conhecimento do sultão que o pobre lhe mandava pedir mais cem dinares.
– Prendei-o imediatamente!. – gritou o poderoso aos vizires. – Estou indignado com semelhante audácia! Ele deverá levar dez chibatadas por cada dinar que gastou.
Um vizir levantou a mão e interveio:
– Senhor, julgo prudente e necessário concederes a esse mendigo uma pequena pensão mensal, pois ele parece ter muitas necessidades e pouco juízo. Queres puni-lo? Permite-me que te diga: não tens razão; ele podia dispor à sua vontade das moedas que lhe deste. Acaso lhe recomendas-te que fosse econômico? Não. Proibiste-o de voltar? Também não. Já vês, pois... Com tua licença, eu vou anunciar ao pobre homem que ele receberá, dora em diante, cinquenta dinares por mês.
– Podes dizer sessenta! – murmurou o sultão.
*
O GOLPE
Era uma vez um atleta que se fizera exímio lutador. Conhecia trezentos e sessenta golpes irresistíveis. Cada dia renovava a sua técnica de combate.
Esse homem apaixonou-se por um dos seus alunos, de notável beleza. Ensinou-lhe trezentos e cinquenta e nove golpes e reservou para si o tricentesimo-sexagesimo.
Por sua vez, o rapaz tornou-se um lutador invencível. Ninguém lhe podia resistir.
– Se eu proclamo que meu mestre é mais temível do que eu – disse, uma tarde, perante o sultão – é em consideração à sua idade e ao que lhe devo. Na verdade, sou tão ágil e tão forte quanto ele.
Irritado com tal arrogância, o sultão ordenou que os dois lutadores se medissem.
Escolheu-se o terreno. Uma multidão de homens de Estado e poderosos da Corte compareceu ao espetáculo.
Como um elefante furioso, o jovem precipitou-se na arena. Uma força de abalar montanha.
O mestre, vendo que o discípulo era capaz de vencê-lo, atacou-o com o golpe secreto. O outro ficou sem meio de defesa. O velho lutador levantou-o, levou-o acima da cabeça, e novamente o deitou por terra.
A assistência prorrompeu num imenso clamor.
O sultão mandou dar ao vencedor uma soma considerável de dinheiro.
– Agora, traze-me aqui o adversário.
Chegou o rapaz.
– Tiveste a pretensão de vencer o teu mestre, e foste derrotado...
– Senhor respondeu o atleta – não foi pela sua força que ele me venceu, mas graças a um golpe que não me quis ensinar.
– Eu guardava-o para este dia! – exclamou o velho lutador – pois um sábio já disse: “Não ensines a teu aluno toda a tua ciência. Quem sabe se ele amanhã não se tornará teu inimigo?”
A maior parte dos meus amigos eu ensinei a manejar o arco, e alguns me utilizaram como alvo.
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O REMÉDIO
Um sultão padecia de horrível moléstia, cujo nome não convém enunciar. Depois de examiná-lo, um eminente médico grego declarou:
– Só há um remédio para esta doença: o fel de um indivíduo que possuir as virtudes que te vou enumerar.
Por ordem do sultão, saiu gente à procura dum homem dotado de tais virtudes, e, ao cabo de muitos esforços, conseguiram encontrar esse homem. No dia seguinte, o vizir anunciou que era lícito derramar o sangue de um súdito para se conservar a vida do sultão.
O carrasco preparava-se para decapitar o infeliz, quando este se pôs a rir.
– Que tens? – indagou-lhe o soberano.
– Desculpa-me. Eu estava conversando com Alá.
– Com Alá?!
– Sim. Eu acabava de ouvi-lo a respeito do teu caso. Não queria morrer sabendo-te responsável pela minha sorte. Disse-me Alá que tu vais condenar em vão a tua alma, pois nós temos a mesma doença e o meu fígado deverá agravar os teus males.
– É verdade? – murmurou, aterrado, o poderoso.
– Não se deve descrer daquele que está nos últimos instantes. Eu poderia dizer-te ainda outra coisa, mas compreendes minha impaciência em pôr termo a esta desagradável cerimônia.
E voltando-se para o algoz:
– Vamos, meu bravo! Despachemo-nos...
– Para! – gritou o sultão. –Quero saber o resto. Fala, e eu te restituirei a liberdade!
– É o seguinte: Alá confiou-me que o teu médico grego é a única pessoa no mundo cujo fel te curaria. Mas para que esse fel te seja absolutamente eficaz, não se deve decapitar o homem, e sim enterrá-lo de pé, até o peito, fazendo-o devorar vivo por uma multidão de ratos esfaimados até que estes atinjam o fígado.
– Louvado seja Alá, e que ele te conceda longa vida! Não ignoro que o nosso Mestre supremo ilumina algumas vezes aqueles que vão morrer. Guardas, ide em busca do meu médico e fazei com ele o que Alá julga necessário para que eu não morra, conforme ouvistes!
Jamais esquecerei estes versos que um ladrão cantava, uma tarde, à margem do Nilo: “Eu te louvo, ó Senhor, por nos haveres recusado o exato conhecimento do bem e do mal e o teres guardado para Ti somente!”
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O SEDUTOR
Ouvi contar, em Istambul, que a filha de um cadi amava perdidamente o filho do chefe de uma quadrilha de ladrões. Como é fácil imaginar, esse rapaz era belo. Apesar de sua detestável reputação, as mulheres, quando o viam passar, olhavam-no com ternura, e pensavam sempre nele quando os maridos as possuíam. Assim são as nossas companheiras. Dai-lhes mel, e elas vos pedirão vinagre. Fazei-lhes caricias, e lamentarão que não as sevicieis. Por mim, habituei-me a não pensar no que pode desejar a mulher que tenho entre os braços, e recordo-me frequentemente das palavras do sábio: “A fruta que comes não te diz se está satisfeita, ou não. Acaso a acharias mais saborosa se soubesses que ela está contente?”
Em resumo: a filha de um cadi amava o filho de um chefe de ladrões, o que já me parece muito interessante. Longe de ocultar sua paixão, ela dizia a quem quisesse ouvi-la: – “Eu acompanharia aquele rapaz ao país dos tártaros. Para merecer o seu amor, eu seria também capaz de roubar.”
Não faltaram almas caridosas que levassem ao cadi as palavras de sua filha. Este, porém, homem de muita experiência, dizia a sorrir: – “Seria para mim um grande favor que ajudasses minha filha Nadjeh a encontrar-se com este senhor ladrão.” Se alguém se espantava, ele tornava a sorrir, acrescentando: – “Não vejo outro meio para curá-la de sua paixão ridícula.”
Todos concordaram em que o juiz perdera a razão.
Certo dia, nosso ladrão, que praticara um crime horrível, teve, a um só tempo, o infortúnio de ser preso e a felicidade de comparecer perante o cadi.
– Alá! – exclamou este, de súbito – prefiro perder o meu cargo a condenar esse adolescente..
Desesperado, o assessor do cadi gritou-lhe ao pé do ouvido:
– Estás louco? Ele matou um velho para roubá-lo.
– Evidentemente, o fato é deplorável – vociferou o juiz, com veemência maior – mas o diabo do rapaz é muito belo! Repito: não tenho coragem de puni-lo. Deem-me um substituto! Realmente... não! Condeno-o, e a prisão perpétua. Ele cumprirá a pena em minha casa. Guardas, antes de levardes esse criminoso, ide dizer a minha filha que, por ordem minha, vá para casa de sua avó e não ponha nunca mais os pés em minha casa!
Apenas ficou sozinho com o assessor, o cadi suspirou diversas vezes, e murmurou depois:
– Eis a obra do amor!
– Está salva a honra da justiça – disse o outro.
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A PARTIDA
Em certo dia do ano em que se fez a reconciliação do sultão Moamede com o rei dos Khitaí, entrando eu na principal mesquita de Kachgar, avistei uma jovem de fascinante beleza. “Tua ama te ensinou a arte de seduzir e arrebatar os corações” – pensei. – “Ensinou-te a indiferença, os requebros, a crueldade. Essa ama devia ser uma fadą: és tão bela que só uma fada poderia ter sido tua ama.”
A adorável rapariga lia a gramática de Abú'l Kacem Mamude. Repetia: – “Saíd feriu Amr. O complemento de Saíd é Amr.”
– Eu disse-lhe:
– Ó minha rosa, Moamede e o rei dos Khitaí fizeram as pazes! Poderia ainda durar a disputa entre Saíd e Amr?
Ela riu, e perguntou-me onde eu nascera.
– Nasci em Chiraz, a cidade de tuas irmãs, as rosas.
– Conheces as poesias de Saadi, e poderias recitar-me algumas?
Improvisei:
“Um mau gramático me persegue. Eu sou como Said lutando com Amr. Inutilmente desfiz os vincos de minha veste: tu não te dignas, sequer, de me olhar. Ó rosa embriagadora que me reténs em teu cálice, eu estou só a contemplar-te e tu só pensas em teu livro!”
Na manhã do outro dia, um caravaneiro disse à bela jovem:
– O homem que conversava ontem contigo não era outro senão Saadi.
Ela veio ao meu encontro, correndo. Lançou-se-me aos braços, e ficou triste ao saber de minha partida próxima.
– Porque não me disseste quem eras? – perguntou-me.
E eu lhe respondi:
– O poeta mais notável ou o sábio mais ilustre não valem nada diante de uma linda rapariga.
– Não poderias passar alguns dias em minha casa? Se soubesses quanto nos instruís! quanto gostamos de te ouvir!
– Não me é possível – repliquei – e vais compreender a razão. Vi, numa montanha, um sábio que habitava uma caverna. Indaguei-lhe:
– “Porque não vens à cidade?” E ele me respondeu: – “Lá existem muitas jovens encantadoras! Bem sabes que os elefantes escorregam principalmente sobre as rosas.”
Beijei os lábios de minha admiradora, e parti, na cálida doçura da tarde.
A maçã deve ter dito adeus a muitas maçãs: sua face é tão vermelha!
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A SALVAÇÃO
Um eremita vivia numa floresta havia cerca de quinze anos. Alimentava-se unicamente de raízes. Orava da manhã à noite. Mas às vezes sofria tentações. O sultão do país soube disto, e foi ao encontro do anacoreta:
– Se quiseres, mandarei preparar-te, na capital, uma habitação agradável e higiênica, onde poderás vagar, melhor que nesta floresta, em teus exercícios espirituais. Assim, o povo aproveitará o teu exemplo e poderá receber as tuas bênçãos.
Como estas palavras deixassem indiferente o ermitão, um vizir julgou de bom aviso falar-lhe:
– Meu amigo, vem, por deferência ao sultão, passar alguns dias em nossa cidade. Visitarás a morada que te foi oferecida. Depois, se o clima não te convém ou se achas incômodos os teus vizinhos, poderás voltar à floresta.
O religioso decidiu-se e partiu.
Construíram-lhe um pavilhão de mármore e cedro num grande jardim onde inumeráveis rosas eram faces de lindas raparigas e centenas de jacintos os perfumados anéis de suas cabeleiras. Laranjas, pêssegos, romãs entreabertas, flamejavam entre a verdura.
O vizir mandou ao religioso uma virgem tão bela que, ao fitá-la, a gente suspirava de desejo. Mandou-lhe também um jovem escravo, de incomparável esplendor. O mais sábio dos sábios e o mais virtuoso dos eremitas não resistiriam ao sorriso desse adolescente, que expunha à vista de todos a ambrósia, mas não a servia a ninguém.
O anacoreta vestiu um hábito magnífico, e entrou a desfrutar a sua nova existência.
Passaram-se meses. O santo homem alimentava-se de frangos recheados, peixes raros, finos pastéis e sorvetes extraordinários. Saboreava excelentes frutas, degustava preciosos vinhos, sempre contemplando ou acariciando a jovem e o escravo.
Certo dia, o sultão, em companhia do vizir, foi visitar o seu protegido. Não o reconheceu. Obeso, vermelho, o ermitão achava-se estendido num fresco divă de couro azul. Um servo encantador abanava-o com um leque de penas de pavão e fazia-o respirar rosas.
O monarca regozijou-se com essa felicidade.
Momentos depois, falavam de amor, de doces, de bons pratos, quando o sultão declarou:
– É para mim grande alegria observar que preparas admiravelmente a tua salvação.
O vizir não se conteve:
– Senhor, o teu gracejo ofende a virtude. Serás responsável perante Alá por haveres contribuído para a danação dessa alma.
E o sultão, em voz baiza:
– Desengana-te! Eu ajudei a salvar a sua alma. Ninguém pode desprender-se dos bens deste mundo senão depois de haver abusado largamente deles.
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A LOUCURA
Um derviz, que perdera a razão, cortejava uma rapariga de conquista difícil e perigosa.
Se tua riqueza, teu espírito ou teu rosto não fascinam a mulher que desejas, deixa-a de mão. Sonharás, talvez, que ela te ama.
Alguns amigos do pobre homem deram-lhe conselhos. Um deles assim falou:
– Renuncia a este amor! Lembra-te de que muitos homens vulgares e muitos homens dotados de méritos iguais aos teus já foram escravos do mesmo desejo que te abrasa.
O derviz pôs-se a chorar:
– Não me adiantam os teus conselhos! Sei melhor do que tu o que apraz à minha amada. Seria loucura a gente privar-se de amar e contemplar uma rapariga sob o pretexto de que ela um dia nos fará sofrer.
Quanto mais inacessível é uma mulher, tanto mais nos devemos esforçar por seduzi-la.
– Não posso tomar outra resolução: vou procurá-la – decidiu o insensato. – Poderão as flechas silvar aos meus ouvidos e os sabres retalhar-me o corpo: se tiver a ventura de aproximar-me dela, entoarei louvores a Alá; se nada conseguir, expirarei à sua porta.
Os amigos do insensato resolveram detê-lo: inútil.
Foram dizer à moça: – “Um homem de qualidade vive a rondar-te a casa continuamente. Pronuncia frases sem nexo. Parece que tem o amor no coração e a loucura na cabeça.”
A rapariga compreendeu que o daroez a amava. Atirou-se-lhe aos braços.
– Pertenço-te. Leva-me... – declarou, docemente.
Como que inerte no oceano do amor, o religioso não dizia palavra.
Em desespero de causa, a moça bradou:
– Causei-te decepção! Achas-me porventura menos bela? Temes a meu pai?
– Não. Mas volta para tua casa. Acabo de perguntar a mim mesmo o que faria se não viesse, todos os dias, contemplar as tuas janelas.
Ela murmurou:
– Tens razão. Adeus. Ainda poderei também perguntar a mim mesma quem me ama.
É fácil discutir sobre este caso. Se saber dizer quanto se ama é amar pouco, saber mentir é amar ainda menos. Sem dúvida, esse derviz não ignorava que o amor não é eterno, e essa rapariga não ignorava que mais vale a esperança do que a posse.
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O SUFÍ
Havia em certa cidade um homem muito rico, chamado Kiazim, que tinha como vizinho um sufi muito pobre, mas muito sábio, Yali. O rico votava ao pobre o mais completo desprezo.
Um belo dia, um dos íntimos de Kiazim foi ter com Yali, e anunciou-lhe:
– Meu amigo dará, amanhã, uma grande festa, e sentiria vivo prazer em contar-te entre os seus convidados.
– Deveras? E por que razão Kiazim me concede semelhante honra?
– Vamos ser francos – respondeu o outro.
– Kiazim deseja a tua presença para conversares com dois ilustres sábios que ele convidou e com os quais não seria capaz de manter a mais ligeira palestra. Apenas, pediu-me te recomendasse que vás bem vestido, pois acima de tudo ele põe a elegância.
Yali refletiu.
– Agradece a Kiazim, em meu nome, seu amável convite, e dize-lhe que lá estarei com o maior prazer.
A hora marcada, Yali entrou na sala do festim. Trajava uma veste de seda bordada de ouro e babuchas incrustadas de pedras preciosas. Espanto geral. Encantado, Kiazim pediu-lhe ocupasse um lugar a seu lado.
Principiou o banquete. Ao servirem o segundo prato, Yali, que ainda não tinha dito nem comido nada, tomou de um peixe, cortou-o e espalhou alguns pedaços pela veste, dizendo: – “Come, minha roupa!” Uma originalidade de poeta – pensaram todos, e sorriram com indulgência.
Ao terceiro prato, tirou uma asa de frango, cheia de molho, e colocou-a no ombro, repetindo: – “Come, minha roupa!” Indiferente à surpresa dos circunstantes, apoderou-se de uma urna de vinho e banhou-se com ele, exclamando: – “Bebe, minha roupa!”
– Estás louco? – explodiu Kiazim, rubro de cólera e vergonha.
– Não – respondeu Yali. Estou servindo o jantar à minha roupa, pois foi a ela que convidaste.
No dia seguinte, ele encontrou um ladrão que lhe acabava de saquear a cabana e trazia sua esteira, seu cobertor, seu cântaro e a gaiola de seu pássaro. Acompanhou o gatuno.
– Quem és tu? – perguntou-lhe este, ao entrar em casa. – Que vens fazer aqui?
– Não resolveste alojar-me em tua residência! – replicou Yali.
Uma noite em que se dispusera a jantar bem, mandando preparar um velho corvo que viera morrer-lhe perto da cabana, o nosso homem foi pedir emprestada uma marmita a um dos vizinhos. No dia seguinte fez a devolução do utensílio, ao qual juntara um vaso menor, como prova de gratidão. Discretamente, disse:
– Tua marmita deu à luz esta criança, que te pertence.
O outro agradeceu, sem levantar a menor dúvida quanto a esse nascimento extraordinário.
Alguns dias depois, Yali, querendo deliciar-se com um peixe que encontrara no lixo do mercado, foi de novo tomar emprestada a marmita. Como é fácil imaginar, o dono apressou-se em atendê-lo.
Passou-se uma semana. Muito inquieto por não ter notícia do objeto confiado ao sufi, o vizinho foi ter à sua cabana. Com pouco, Yali, chorando, abriu a porta.
– Porque choras? Que desgraça te aconteceu?
– Nem me fales! Uma desgraça terrível... Tua marmita morreu.
– Morreu?! Uma marmita? Ladrão, bandido, entrega-me a marmita imediatamente!
Yali arregalou os olhos:
– Como!? Outro dia não duvidaste que ela tivera um filho, e agora não queres acreditar que ela morreu?
Entediado de mortificações, Yali casou-se. Quero, antes, crer que ele tomou esta decisão para submeter-se a novas provações, pois sua esposa era feia e má. E, para cúmulo de desventura, glutona como poucas; devorava sempre a parte de alimento que tocava ao marido. Em desespero de causa, o sufi saía a vagar pelo mercado, onde às vezes lhe davam algumas frutas. Certa manhã, um açougueiro, compadecido de sua magreza, ofereceu-lhe três libras de excelente carne. Em vez de guardar esse tesouro, Yali confiou-o à mulher. – Como hoje estou de sorte, volto ao mercado, para tentar obter alguns legumes. Não me esperes para comer, mas guarda-me a metade dessa carne.
Quando voltou, a mulher roncava, estirada na cama. Despertou-a:
– Vejo que comeste bem. Agora, é a minha vez! Dá-me o meu quinhão.
Ela suspirou:
– Pobre de mim! não toquei na carne, pela simples razão de que o gato se apoderou dela e a devorou.
Yali foi buscar o gato, que dormia a um canto, colocou-o numa balança e pesou-o com gravidade. O braço da balança marcou três libras.
– Anda, fala, mulher – gritou o sufi –o que eu estou pesando é o gato, ou é a carne? Se é a carne, onde está o gato?
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A CARETA
Há diversos meios de nos libertarmos de um sofrimento moral ou físico. Em ambos os casos os expedientes não diferem muito, mas são de absoluta eficácia quando bem utilizados. Para as doenças da alma – a inquietação, a angústia, o desespero... – usam-se, quase sempre, ou calmantes elaborados por certos filósofos ou drogas preparadas por certos comerciantes. Se nos arruinamos para nos tratar por meio da filosofia ou dos eletuários, disso resulta sempre um bem definitivo, pois a maior parte dos nossos tormentos espirituais provém do fato de possuirmos pouco dinheiro e não podermos adquirir tudo quanto nos falta. Quando não nos resta sequer um dracma, não nos é possível pensar em obter o que desejamos. Não demonstrou o Buda que o desejo cria o sofrimento! Os dois outros grandes recursos empregados para remediar às fraquezas de nossa alma e de nosso corpo têm valor idêntico. O primeiro consiste em nos abandonarmos aos desígnios de Alá: para isto é preciso, antes de tudo, uma resignação rara. O segundo consiste em orar fervorosamente ao Senhor, implorando-lhe a graça de nos conceder o que nos falta ou nos restituir o que perdemos. Estes últimos meios não estão, porém, ao alcance de toda a gente, ou, melhor, ao alcance das almas estreitas, que são, infelizmente, as mais numerosas. Em suma, as armas que utilizamos contra as nossas misérias têm o inconveniente de ser de dois gumes ou pesadas de mais para os nossos braços.
Durante uma longa prisão a que me submeteram saqueadores do Hadramut, tive ensejo de refletir na triste condição dos homens e na ineficácia dos remédios de que eles dispõem para enfrentar as provações morais e físicas. A situação atroz em que me encontrava foi, sem dúvida, propícia à fertilidade dos meus pensamentos. Ela me permitiu, sobretudo, comprovar, de maneira incontestável, a excelência de um método curativo que o acaso me fez conhecer. Nessa época, eu era, sem dúvida, o mais desgraçado dos homens. Numa estreita enxovia onde a luz entrava, exígua, por uma fresta que dava para uma sentina, eu padecia fome, sede, verminose e uma espécie de febre que naturalmente só entre os danados do inferno deve grassar. Já não me servia de nada toda a minha prudência, toda a minha filosofia. Pedia a Morte, mas tão fracamente que ela não me escutava. Certa manhã em que, arrastando-me, conseguira chegar ao pequeno vaso de madeira que continha a minha ração quotidiana de água, realizei uma descoberta diante da qual a de Arquimedes não tem positivamente nenhum valor. No vaso, graças a um raio de luz, meu rosto se refletia como num espelho, e o esforço que eu havia feito me produzira uma careta de tal ordem, que me pus a rir.
Estava salvo. Tinha rido! Rido aos meus sofrimentos, ao destino, ao próprio Inferno! Possuía agora o remédio infalível, que não se compra e que, aliás, nenhum Creso poderia pagar. No sentido próprio e no figurado, eu me ria agora da prisão, das torturas. Aquele vaso providencial, logo o conduzi comigo para o único recanto onde podia sentar-me. Cada dia, abstinha-me quanto possível de matar a sede para não diminuir muito a superfície do meu espelho. Desde que a luz mo permitia, debruçava-me sobre ele e fazia algumas caretas, que me davam imediata alegria. Meu martírio já não tinha importância. Eu ria. Até o dia seguinte estava inteiramente liberto daquela horrível situação. Com enorme surpresa dos algozes, que contavam com minha morte muito próxima, tornei-me capaz de suportar durante oito semanas o suplício que eles me infligiam. Não foi menor o seu espanto quando me ouviram agradecer-lhes o serviço a mim prestado. Devo dizer que eles me tomaram por insensato e atribuíram minha loucura às sevicias a que eu fora submetido.
Meses depois, viajando pelo Afeganistão, tive notícia, em Gorbend, de que um homem fora preso por haver roubado um cavalo de grande valor, destinado ao rei do país. Sabia-se que o ladrão seria empalado, depois de julgamento sumário, e toda a gente se compadecia de tão dura sorte, pois ele praticara o crime sem lhe conhecer a gravidade. Com pequeno esforço consegui licença para visitá-lo na prisão. Ele não ignorava que ia ser espetado vivo. Estendido de bruços numa esteira, gemia ininterruptamente. Enfim, escutou-me. Como ele não tinha nem escudela nem espelho, não pude aconselhá-lo a utilizar, para acalmar-se, o processo que me fora de tão bom resultado; mas ocorreu-me à ideia de estimulá-lo a fazer ao seu juiz, no momento devido, uma careta horrorosa.
– Seja como for – disse-lhe eu – não corres nenhum risco, pois não te poderão infligir suplicio mais terrível do que o empalamento; e é bem possível que te salves.
Não me foi nada fácil orientar o infeliz, que respondia aos meus argumentos com gemidos dilacerantes. À custa de muita paciência, acabei por convencê-lo.
No dia seguinte, à hora da terceira prece, ele compareceu perante o juiz, que era o mais temível da região e, ainda por cima, estava rubro de cólera.
– Serás empalado, ao pôr do sol.
Seguindo o meu conselho, o condenado, sem dizer palavra, meteu os dedos mínimos na boca, distendendo-lhe as comissuras. Com o dedo médio virou os olhos em direção às têmporas, e pôs-se a olhar vesgo para o juiz. O efeito foi imediato. O juiz desatou a rir, e comutou em três meses de prisão a pena de empalamento.
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A AURORA
Um cadi de Hamada, de nome Chehab, amava loucamente o filho de um ferreiro. Os homens mais eminentes têm às vezes gostos singulares. Um rei de Sana não amou uma avestruz, e um grande astrônomo de Babilônia não se apaixonou por uma burra! Mas, tantos de nossos amigos se tomam de amores por uma coruja...
O coração desse cadi tornara-se tão ardente como ferro em brasa. O infeliz procurava por toda parte o filho do ferreiro, a gemer: – “Onde te ocultas, meu belo cipreste? Desde que te vi, nada mais existe para mim. Perdi a razão. Condeno inocentes e absolvo culpados. Em pleno dia, acendo minha lâmpada. Em plena noite, vou ao mercado. Se fosse apenas isto! Até penso em roubar, para poder oferecer-te uma casinha.”
Certa manhã, o rapaz encontrou o cadi. Soubera que este o amava, e o seu desgosto não tinha limites. Injuriou-o. Atirou-lhe pedras. Usou de todos os meios para demonstrar-lhe o seu ódio.
Chehab disse a um respeitável sábio que o acompanhava:
– É verdadeiramente um magnífico rapaz! Como lhe assenta bem a cólera! Observa as suas lindas sobrancelhas franzidas...
Os árabes afirmam: – “É tão doce ser espancado pelo amigo como saborear uvas bem maduras.”
No fim, ele se acalmará – prosseguiu o cadi. – Então, respirarei deliciado o perfume do seu arrependimento. Muitas vezes os reis, apesar de bons, falam com severidade.
Chehab voltou ao tribunal. A sua chegada, os secretários beijaram o chão, em sinal de respeito, e um deles começou:
– Permite-me que te fale. Bem sei que assim fujo às convenções, mas é para servir-te, levado pelo reconhecimento de que já te havemos dado tantas provas. Calar-me seria trair-te. O que te peço, ó cadi, em nome dos meus camaradas, é que deixes de cobiçar o filho do ferreiro. Tu ocupas uma posição elevada. Não manches o teu cargo. O filho do ferreiro é o que viste, e eu te disse o que desejava dizer-te.
Chehab admirou o discurso, louvou a bondade e o fiel devotamento dos seus secretários. ninguém pode tornar
– Mas – concluiu – ninguém pode tornar branco a um negro.
No outro dia, enviou ao jovem um emissário encarregado de informar-se das suas disposições e oferecer-lhe muito dinheiro.
Todo pobre que vê ouro se inclina, com risco, embora, de se ferir no braço de ferro da balança.
– Certa noite, Chehab teve, afinal, a alegria de ver entrar-lhe portas a dentro o seu belo cipreste.
Chegou ao conhecimento do governador da cidade que o cadi, copiosamente bêbado, apertava ao coração o adolescente, se esquecia de dormir e repetia: – “Este jovem galo não cantará com os seus irmãos! Os amantes são insaciáveis de beijos. O rosto do meu amigo brilha entre os anéis da sua cabeleira. O rosto do meu amigo lembra uma bola de marfim numa raqueta de ébano. Vamos! desperta... Ignoras que a vida é curta? Enquanto não ouvires o muezim salmodiar a primeira prece no muezim da mesquita da Sexta-Feira, ou o ressoar dos timbales de prata na porta do palácio de Atabeque, não cometas a loucura de afastar os teus lábios dos meus! Esses galos que se esganiçam não anunciam a aurora.”
Estava o nosso cadi nessa bela situação, quando um dos seus amigos entrou, dizendo-lhe:
– Levanta-te, e foge sem demora, senão estás perdido! Alguns dos teus inimigos acabam de comunicar ao sultão que te achas entregue aos mais condenáveis excessos. Ainda nos é possível extinguir o incêndio deste escândalo, mas, se não nos apressamos, ele abrasará a cidade inteira.
Chehab fitou-o a sorrir e murmurou:
– O leão que tem a presa em suas garras desdenha o latido dos cães.
Um vizir perguntou ao sultão:
– Quais são as tuas ordens?
– Eu tenho esse cadi como um dos homens mais ilustres da nossa época. É possível que os seus inimigos estejam tentando perdê-lo. Só acreditarei no que vir.
Ao amanhecer, o sultão, acompanhado de seu primeiro vizir, entrou em casa de Chehab. As lâmpadas ainda se conservavam acesas. O adolescente dormia. Viam-se poças de vinho nos tapetes juncados de taças partidas, e o cadi perdera até a noção de sua própria existência.
O sultão despertou-o delicadamente:
– Levanta-te! O sol já se levantou.
Chehab, após algum tempo, deu acordo de si:
– De que lado se levantou o sol?
Do lado do Oriente.
– Louvado seja o Senhor! Cem mil vezes louvado! O profeta Maomé disse: – “Os servidores de Alá poderão arrepender-se dos seus pecados até o dia em que o sol se levantar no Ocidente.”
Baixou os olhos e acrescentou:
– Peço perdão ao Senhor. Farei penitência.
– Na situação em que te encontras – declarou o soberano – é inútil o teu arrependimento. Vais morrer.
Prenderam o cadi, que declarou tranquilamente:
– Resta-me dizer algumas palavras.
– Eu te escutarei – afirmou o sultão.
O nosso homem levantou um dedo:
– Porque me condenaste, não penses que deixarei de implorar-te perdão...
– Falas admiravelmente; mas seria absurdo e contrário à lei que a tua eloquência te salvasse a vida. Julgo indispensável fazer-te precipitar do alto da minha cidadela. Esse castigo servirá de exemplo e lição ao povo.
– Ó Senhor do mundo – exclamou Chehab – não me causa. grande espanto a curiosa decisão que tomaste a meu respeito: muitas semelhantes a ela tomava eu, nas minhas funções de juiz. Nos casos difíceis, eu não tinha outro conselheiro senão a minha fantasia e só pensava em me divertir. Agora, permite-me lembrar-te que centenas de homens, diariamente, cometem o crime pelo qual me condenaste à morte. Manda prender um desses miseráveis e ordena que ele seja precipitado do alto da tua cidadela. Asseguro-te que tal castigo me servirá de exemplo.
O sultão pôs-se a rir e perdoou ao cadi. No dia seguinte, três dos seus oficiais foram ter com os denunciadores de Chehab, saudaram-nos, e disseram-lhes depois:
– Todos vós tendes defeitos. Não censureis, portanto, os defeitos dos vossos irmãos. Aquele que vê o seu próprio vício é indulgente para com os outros.
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O AMOR
Uma ratinha amava um gato. Que história! E como irei contá-la? Logo de começo, dir-me-eis: – “Não te acreditamos. Como podes afirmar que uma ratinha estava apaixonada por um gato, como a doce e flexível Khalila, em Ispaão, por um terrível guerreiro tártaro que lhe matara pai e mãe? Acaso a ratinha te revelou os seus sentimentos, ou a ouviste confessá-los ao gato? Admitimos que esses dois encantadores animais se entendessem bem, como uma ovelha e um lobo que fossem criados juntos; mas não é possível ir mais longe. Se tens novas informações acerca dos amores de Khalila e do seu guerreiro tártaro, então serás escutado com interesse." Vejo que não frequentaste a Universidade Nizhamiya, onde se fala de coisas muito mais surpreendentes. Porventura um estudante, lá, abana a cabeça, descrente, quando o professor lhe ensina que Dario obteve a coroa graças à jumenta do seu escudeiro Mavuz? Ou levanta os ombros ao ouvir que, em Tebas, um crocodilo salvou o filho do faraó Nectanebo, que se ia a afogar no Nilo? Noutra ordem de ideias: ousa ele formular objeções se lhe afirmam que tal borboleta pode ir diretamente ao encontro da fêmea, a mil parasangas do jardim onde esta foi capturada? Limito-me a repetir-vos que devemos acreditar em tudo, porque ignoramos tudo. A verdadeira ciência consiste em saber que não sabemos nada.
Enquanto eu vos fazia esta digressão, tivestes ensejo de vos arrepender, e de pensar na ratinha e no gato. Eles são tais como os vistes. Rogo-vos, pois, que não cuideis mais em Khalila, apesar do vestido de seda que usa minha ratinha, nem no guerreiro tártaro, não obstante os rijos bigodes do meu gato. Agora, estais enganados se imaginais que essa ratinha e esse gato se encontravam numa casa ou numa loja, numa água-furtada ou numa adega, num terreno devoluto ou num campo. Não: era numa mesquita em ruínas, onde ele desfrutava de grande consideração, em virtude do sacrifício que o profeta Moamede se impôs, um dia, para não despertar seu gato adormecido. Eis porque os gatos, como bem sabeis, são os únicos animais que podem entrar no Paraíso.
Essa mesquita não era mais bela nem mais fresca do que outra qualquer. Pelo contrário! De todas aquelas de que se orgulhava Tabriz, era ela a mais miserável e a mais exposta às intempéries.
Conheço as mais nobres mesquitas do mundo. No Cairo, recolhi-me à mesquita de Amrú, que tem vinte e nove naves paralelas e quatro mihrab. Em Jerusalém, orei na mesquita de Omar, onde se erguia o tribunal de Daví. Em Bagdá, ouvi arrulhar as pombas da mesquita de Al Mamum. Em Mussul, ouvi arrulhar as fontes da mesquita de Saíf Ed Din Ghazi. Em Ispaão, eu não podia afastar-me da área interna da mesquita Djumá. Passei oito dias na mesquita de Ocba, em Cairuane, e cinco noites na mesquita Karauiyin, em Fez. Vi, pois, as mais belas mesquitas do mundo, mas, nas minhas recordações, a todas ultrapassa a humilde mesquitinha de Tabriz. Abandonada desde há um século, era ela o asilo de uns vinte mendigos e de ladrões errantes, de quatro pobres de espírito e três sábios a quem a excessiva ciência tornara incapazes de viver como toda a gente. Posso estar em erro, mas creio que o Senhor devia considerar com benevolência essa reunião, em seu templo, de tão grande número de vítimas do destino. E tanto mais o creio quanto aquele refúgio me foi precioso em certa época da vida em que eu acabava de sucumbir numa luta com minha consciência, minha honra e minhas aspirações. Uma bela e cruel rapariga de Tabriz fora a causa dessa luta, de que, afinal, eu poderia ter saído vencedor, se com isso me houvesse preocupado a sério. Mas eu sabia haver tantas rosas nessa mesquita em ruína, e tantas estranhas personagens! Estava, pois, vencido de antemão.
Durante a batalha, o bom guerreiro deve ter, a um tempo, o olho no inimigo e numa posição de retirada.
Eu escolhera, pois, aquele recanto, onde ficava sozinho quando a temperatura permitia aos ladrões e aos mendigos irem tratar de seus negócios. Em tais dias, procurava desalentar os três sábios, que logo se iam embora, e, por outro lado, tratava de livrar-me dos pobres de espírito, mandando-os a lugares muito distantes em busca de coisas extraordinárias, que não existiam. Uns regressavam na mesma tarde, outros no dia seguinte, todos empenhados em recomeçar a procura, tanto é certo que os homens, insensatos ou não, têm necessidade de esperar.
Ora, cada manhã, à mesma hora, chegava um belo gato cinzento, que também tinha a pretensão de reinar como soberano naquela mesquita.
“Secretamente apaixonado, ó gato, esperas ou procuras, mas logo desdenhas o que alcançaste: a carícia ou a presa.
O pássaro, em seu ninho, tem medo de ti, e o peixe nas ervas da margem do rio, e o grilo à beira de seu esconderijo.
A mulher em que te roças, estremece. O menino que te pega, examina as tuas garras. O homem que deseja castigar-te, hesita.
Sultão veloz das noites serenas, tranquilo sultão das noites tempestuosas, gemes de amor, ou de cólera, quando vagas pelas açoteias inundadas de luar?”
Compunha estes versos, e muitos outros, enquanto, imóvel, observava o gato. Como tudo é possível, a princípio eu havia imaginado que a paz da mesquita o atraíra também. Mas na realidade, como logo percebi, o que lá o atraía não era outra coisa senão os murganhos que infestavam o templo.
Durante quatro dias seguidos esse paciente e ágil soberano fez carnificinas que eu comparo às de Dario contra os babilônios e os citas. Fulminante como o raio, ele pulava de uma cornija ou saltava de um canto de parede, e logo jaziam, ofegantes, dez camundongos. No quinto dia, uma ratinha, que conseguira escapar à última chacina, saiu do seu abrigo e, a passo lento, caminhou em direção ao guerreiro.
– Ó gato – disse ela, de longe – és verdadeiramente superior aos homens, pois eles são incapazes de realizar as tuas façanhas! Os sobreviventes e as sobreviventes da nossa tribo consideram-te o senhor do universo, e aqui me vês muito feliz por ter sido incumbida de transmitir-te esta notícia.
Piscando os olhos, com ar muito sereno, o gato respondeu:
– Eu sou um pouco surdo. Não entendo o que me dizes. Queres-te aproximar um pouco?
– Não se deve falar de perto aos sultões e aos heróis – tornou a ratinha. Agradeço-te muito a honra que me fazes pretendendo violar, em meu favor, essa regra absoluta. Entretanto, insisto em observá-la: minhas irmãs me espreitam, e delas recebi ordem de ser muito respeitosa para contigo, por mais bondosamente que me tratasses.
Ficou neste pé a conversa, e a nossa ratinha voltou à sua toca, sem perder de vista o poderoso.
Mal foi entrando, as amigas cercaram-na.
– Ouviram o que ele me disse? – perguntou, sentada em sua traseirinha, com olhos perscrutadores.
– Não! não! – responderam as outras. –
Diga logo!
Ela começou:
– Que gato! Que graça, que delicadeza! Declarou-me que teria o maior prazer em conversar sempre comigo e que me daria prova de sua deferência permanecendo longe do lugar onde eu estivesse. Pedi-lhe que não me tratasse com essa atenção, com essa cortesia exagerada, mas ele não me atendeu. Em vão tentei induzi-lo a dar alguns passos: ele não se mexeu. Serei, naturalmente, muito feliz na próxima vez. Agora, deixem-me sozinha. Vou pensar no meio que empregarei para fazê-lo afastar-se desta mesquita.
Devo concluir, para não vos fatigar a atenção. O essencial de minha história é que a ratinha ficou apaixonada pelo gato – incrivelmente apaixonada. Ela disse a si mesma: – “As palavras que lhe dirigi, certamente o impressionariam se eu tivesse o porte dele. Como é triste ser pequenina e tímida! Mas, afinal de contas, por que razão um gato não poderia amar a uma ratinha, porque não seria ele sensível à minha fraqueza e à minha doçura, justamente pelo fato de ser forte e ousado! Ah! como eu seria feliz se dormisse em seu pelo, que tem o cheiro da areia quente! Sem dúvida, algumas vezes ele brincará rudemente comigo... Mas o vento também maltrata as flores! A sua brutalidade eu oporei a minha submissão, e às suas cóleras a minha serenidade.”
Na manhã do dia seguinte, depois de haver alisado cuidadosamente o pelo, ela aproximou-se do gato, que dormia enroscado, com uma pata sobre a cabeça.
– Aqui estou eu! – disse a ratinha. –Pensei que talvez me amasses...
– Amo-te muito – murmurou ele, espreguiçando-se. — Queria confessá-lo ao teu ouvido, repeti-lo entre carícias. As confidências de amor não se fazem a distância. Queria, também, recitar-te alguns versos. Passei dias em casa de um poeta que os dizia maravilhosos à filha do vizinho. Decorei-os, mas só podem ser exalados baixinho, como suspiros. Aproxima-te. Fecha os olhos. Escuta.
Carícias, versos... Já desfalecida de emoção, a ratinha aconchegou-se ao gato.
Com uma pata quebrada, o flanco aberto, ela conseguiu escapar-se e ganhar o esconderijo.
– Não é nada – declarou às comadres, que tinham vindo novamente recebê-la. – O gato não me obedeceu quando eu lhe mandei ir-se embora daqui. Tentei castigá-lo. Brigamos, e eu fiquei um tanto arranhada.
Alguns instantes depois, morria, sussurrando:
– Adormeço... Estou um pouco fatigada, vocês compreendem...
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CONFIDÊNCIAS
SÔBRE A VIDA
Rio caudaloso não faz ruído.
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O pior cheiro é o do dinheiro.
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A esmola é uma prece silenciosa.
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O único recurso definitivo é a espada.
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Só se atiram pedras a árvore frutífera.
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Não estendas as pernas além do cobertor.
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Quando morreres, só levarás aquilo que tiveres dado.
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Sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere.
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Rompe com o amigo que frequenta os teus inimigos.
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Só ames aquilo que te pode conduzir: um cavalo, um navio...
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Para o desgraçado o trabalho é o único remédio eficaz.
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Primeiro prende teu asno, e recomenda-o depois a Alá.
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Não dês a chave de tua casa nem a uma mulher nem a um médico.
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Ter piedade da pantera é ser injusto para com os cordeiros.
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Se queres consolar-te, pensa em todos os males de que estás isento.
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És inimigo de ti próprio se não matas o inimigo que tens diante de ti.
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Provas tua tolice quando interrompes uma conversa para enunciar a tua opinião.
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Perguntaram ao mu: – “Quem é teu pai?” E ele respondeu: – “A jumenta é minha mãe.”
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Dize ao grosseiro zângão: – “Já que não produzes mel, pelo menos não firas com o teu ferrão!”
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Não pronuncies em segredo nenhuma palavra que não pudesses pronunciar diante de mil pessoas.
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Que há de surpreendente se falta a voz ao rouxinol que tem um corvo por companheiro de prisão?
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Quando hesitares em tomar uma decisão, escolhe o partido que apresentar o menor número de inconvenientes.
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Perante dois inimigos, fala de maneira que não tenhas de corar de tuas palavras se eles se tornarem amigos.
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Antes de pronunciar um discurso, mesmo se tiveres sido insistentemente rogado, indaga de ti mesmo se o que vais dizer é mais importante que o silêncio.
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Não te orgulhes do bom êxito de teu discurso. Pensa na quantidade de ignorantes que há em toda reunião.
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Três coisas não permanecem estáveis sem três outras coisas: a riqueza sem o comércio, a ciência sem a controvérsia, o poder sem a autoridade.
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Um sabre bem afiado não corta a seda mole, Usando de boas palavras e modos corteses, podes conduzir um elefante com um cabelo.
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Lastima aquele que julga haver achado a felicidade. Inveja aquele que a procura e que a abandonará, apenas a encontre. A única felicidade consiste em esperar a felicidade.
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Se uma mulher deseja recitar-te versos, dize-lhe que a rosa não sabe versos. Se ela insiste, manda-a começar, e adormece. A gente sempre fecha os olhos quando escuta com atenção.
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Fere a cabeça da víbora com o punho de teu inimigo. Disso te resultará necessariamente um bem. Se teu inimigo vencer, a víbora morrerá. Se for mordido, terás um inimigo a menos.
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Ouve com a máxima atenção os versos que te vêm recitar os maus poetas. Hás-de achá-los tão enfadonhos, que ou deixarás de escrever ou então só escreverás versos admiráveis.
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A única verdadeira obra-prima criada pelo homem: um vaso. A única verdadeira obra-prima criada pela natureza: um seixo absolutamente redondo e liso. Uma flor pode ter a perfeição de um seixo, porém morre.
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Despreza a pintura. Que é um quadro? A representação exata da natureza, ou uma interpretação dela. Sendo a representação exata, é obra vã: a natureza vale muito mais. Sendo interpretação, admitem-se todas as fantasias, e os absurdos também. O pintor é o mais inútil dos artistas.
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Duas pessoas viveram inutilmente: a que jantou dinheiro e dele não gozou, e a que adquiriu saber e não o pôs em prática. Não é um sábio esse burro que conduz uma carga de livros. Sabe ele, acaso, se carrega lenha ou poesias?
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Não reveles ao amigo todos os teus segredos: sabes se ele não se tornará, um dia, teu inimigo! Não causes a teu inimigo todo o mal que lhe podes fazer: sabes se ele não se tornará, um dia, teu amigo? Esse segredo que desejas ter oculto, não o contes a ninguém, nem mesmo ao amigo digno de tua confiança. Como queres que outra pessoa seja mais zelosa com teu segredo do que tu próprio?
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SOBRE DEUS
Tu procuras Alá, e não perguntas se ele precisa de ti.
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Estende a mão aos que caem. Alá estender-te-á a sua.
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A verdadeira prece, a mais nobre, consiste em murmurar: – “Senhor, eu sou incapaz de te conceber, de te definir.”
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Quem criou as estrelas, as flores, o homem? A despeito de sua fraqueza e sua ignorância, ou, antes, precisamente por causa delas, o homem responde: – “Alá!” Quando ouviremos a resposta das estrelas e das flores?
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SOBRE O AMOR
No amor, o momento mais difícil é aquele em que se cai, saciado.
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É loucura discutir com uma mulher. Acaso discutes com a água, o fogo, o vento?
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O coração é a gaiola do segredo do amor. Se o pássaro foge, nunca mais volta à gaiola.
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Muitas vezes o amor caminha perto de nós, cauteloso, buscando não sair da sombra onde o confundimos com a amizade.
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Quando contemplares uma bela mulher, embriaga-te de desejos e reflete, depois, no que se sofre quando se ama.
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Observa a maneira como se despe a mulher que vais possuir. Se ela começa por tirar as babuchas, está em pleno domínio de si mesma, e tu serás presa dela.
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Se a mulher que tu afagas se põe a sorrir, – mau sinal! Ela continuará sorrindo, ou contará as estrelas de uma constelação.
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Hoje uma mulher te diz “não”. Amanhã, sem dúvida, te dirá “sim”. Entre estas duas palavras há um “talvez”, que é o melhor do amor.
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Se tua amada fechou os olhos para receber o teu primeiro beijo, toma cuidado: ela deve conhecer os seus recursos. Podes ter confiança na mulher que te entrega os lábios de olhos abertos.
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Não te mostres muito valente numa primeira noite de amor. A mulher dessa noite será tua por um ano, talvez. Pode vir o cansaço, e não é bom que a ouças, um dia, invocar contra ti aquela antiga façanha.
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Uma mulher pode-te dizer: – “Não peço o teu coração. Quero apenas o teu corpo e as tuas carícias.” Essa mulher é hábil. Cuidado com ela. Ela sabe como o caçador atrai o leão para a armadilha.
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Outra te pode dizer: – “Quero apenas o teu coração.” Cuidado com ela, também. Ela deve saber que a maior parte dos homens acredita que o coração é uma guloseima.
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Nem o túmulo do sultão Sandjar, em Merv, nem o palácio dos Seldjúquidas, em Konieh, nem a mesquita do Kutah, em Delhi, possuem a majestade de uma tenda de couro onde frágil rapariga mantém vencido de amor um emir transbordante de glória.
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A noite ronda o teu jardim. Estás sentado sob a árvore predileta. Sofres por te achares alí, solitário, anônimo, enquanto poderias realizar grandes coisas, ou, simplesmente, fazer feliz a uma mulher. Contempla essas flores de jasmim que estrelam a folhagem de tua árvore, e recebe a lição que elas te oferecem.
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Eu via pular uma jovem, que o vento esculpia. Como se fossem uma proa dupla, seus seios rasgavam o espaço. Com a cabeça atirada para trás, ela, correndo, parecia quase decapitada. Depois, cansada, quedou-se imóvel. Vencida ou triunfante? Mas a moça estava sozinha. E somente no amor a derrota é uma vitória para a mulher.
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Tua amiga acaba de pousar a cabeça sobre o teu peito. Aperta-te as mãos entre as suas, de olhos fechados; palpita-lhe o seio, e num sorriso descobre os dentes luminosos. Não beijes agora os seus lábios: não verias mais esse lindo sorriso.
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Tua amiga te repete que nunca pertenceu a outro homem. Contou-te a sua vida, citando os nomes das pessoas que lhe podem confirmar as declarações. E no entanto sorris: bem sabes que ela pertenceu a outro, e está mentindo. Mas, que importa! Seus lábios serão, por isso, menos voluptuosos ao contacto dos teus, nem suas espáduas menos flexíveis às tuas carícias?
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Agora, sobre esse tapete juncado dos destroços de todos os objetos que ela quebrou, tua amiga, prostrada, soluça, a cabeça entre as mãos. Em vez e pensares na de ficares num silencioso desespero morte, levanta-te e vai afastar-lhe as mãos. Quase chego a jurar que os seus olhos estão secos. Se ela, realmente, chora, que os teus beijos lhe enxuguem as lágrimas. Semelhante ao mel numa torta de cevada – assim será o sal das lágrimas em teus beijos.
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Amuada, tua amiga acaba de sentar-se a um canto do quarto. Põe-se a desfolhar uma rosa, com fingido interesse, trauteando uma canção. E tu, que fazes? Toma outra rosa e respira em seu cálice o perfume deste momento: ardente e magoada, tua amiga virá, sem demora, lançar-se em teus braços.
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ADEUS AO LEITOR
O livro do Jardim das Rosas chegou ao fim. Graças ao Senhor, nada tomei de empréstimo aos outros escritores, como, infelizmente, tantas vezes acontece. Procurei reunir o sério ao gracioso, o vinagre da moral ao mel do bom-humor. Espero ter conseguido agradar-te. Seja como for, penso haver desempenhado a tarefa que me propusera.
Leitor, reza por mim a Alá! Implora-lhe perdão para o copista inhábil, e pede-lhe, para ti mesmo, aquilo que desejas.
Chiraz, último dia da primavera
do ano 656 da Hégira.
DO LIVRO
O Jardim das Rosas. Saadi. [tradução Aurélio Buarque de Holanda, a partir da magnifica edição francesa da H. Piazza / traduzida por Franz Toussaint; ilustração Paul Zenkar; desenho bico de pena de Luis Jardim]. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944.
O Jardim das Rosas. Saadi. [tradução Aurélio Buarque de Holanda].
Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944.
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- Imaginary depiction of Saadi Shirazi by Hossein Behzad
SAADI
(m. 1294, c.)
O órfão
Estende sobre o órfão tua sombra tutelar,
retira o pó; arranca seu espinho...
Quando vires o órfão andando, cabisbaixo,
não beijes o rosto de teu filho.
Se ele chorar, quem há de acalmá-lo?
Se ele ficar com raiva, quem há de partilhar seu sofrimento?
Ao enxugares suas lágrimas, mostra-lhe compaixão;
retira ternamente a terra de seu rosto.
Oh! que ele não chore mais! pois o Trono divino
não para de tremer quando um órfão chora.
- Saadi [tradução Ana Thereza Vieira e William Soares]. In: Imagens do Oriente/ Poesia Persa. Poesia Sempre - Revista Semestral de Poesia, ano 9 – n. 14. agosto 2001. [editor geral Marco Lucchesi]. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2001. p, 169.
§§
O amor místico
Na escura noite, quando estava insone,
lembro que a mariposa disse à vela:
"Se eu te amar, serei por ti consumada;
ah! por que esse teu pranto, esse ardor?"
"Vivo tão apaixonada! - disse a vela -,
minha querida, levaram-me o mel,
e dês que sua doçura está tão longe,
como Farhad, um fogo me consome."
Falava e uma dolorosa torrente
de lágrimas rolava no seu rosto.
"Mas o amor não foi feito para ti:
não tens paciência nem perseverança,
tu foges quando sentes minha chama;
eu fico e sou de todo consumada;
esse fogo de amor não queima as asas,
mas me consome da cabeça aos pés; Ah!
sente meu ardor e minhas lágrimas!"
Uma parte da noite se passara,
e a jovem apagou aquela chama.
Ao subir a fumaça, ela dizia:
"Considera o desenlace do amor,
o caminho, se queres conhecer:
pois a morte é quem salva desse ardor."
- Saadi [tradução Ana Thereza Vieira]. In: Imagens do Oriente/ Poesia Persa. Poesia Sempre - Revista Semestral de Poesia, ano 9 – n. 14. agosto 2001. p. 170.
- Persian MSS 35. Gulistān (“The Flower Garden”), by Sa’dī (1210-1292), copied 1525.
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O VERSO DE SAADI SHĪRĀZĪ NA SEDE DA ONU EM NOVA YORK
- Tapete Persa do artista Mohammad Seirafian com o verso de Saadi Shīrāzī na Sede da ONU em Nova York, data 2005
Todos os seres humanos são membros de uma mesma estrutura,
pois todos, a princípio, vieram da mesma essência.
Quando o tempo aflige um membro com dor,
Os outros membros não podem permanecer em repouso.
Se você não sente a miséria dos outros,
Um ser humano não é um nome para você.
............................................................................ tradução Michael Laitman
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“All human beings are members of one frame,
Since all, at first, from the same essence came.
When time afflicts a limb with pain,
The other limbs cannot at rest remain.
If thou feel not for other’s misery,
A human being is no name for thee.”
............................................................................ translation Edward Eastwick / site onu
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بنیآدم اعضای یک پیکرند
که در آفرينش ز یک گوهرند
چو عضوى بهدرد آورَد روزگار
دگر عضوها را نمانَد قرار
تو کز محنت دیگران بیغمی
نشاید که نامت نهند آدمی
............................................................................. The poem comes from Saadi's book the Gulistan or Golestan (chapter 1, story 10), completed in AD 1258. {Bani Adam (Persian: بنیآدم; Arabic: بني آدم; Hebrew: בן־אדם), meaning "Sons of Adam" or "Human Beings", is the name of famous poem by Persian poet Saadi Shirazi from his Gulistan}
- Ilustração "imaginada" do poeta persa Saadi - (autor desconhecido)
FORTUNA CRÍTICA DE SAADIA DE SHIRAZ (POETA PERSA)
CASTELLO, José. Sai versão integral de obra mística persa. In: O Estado de São Paulo, Caderno 2 - 27 de janeiro de 2001. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024) / republicado no site da Attar Editorial, Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
ELIAS, Janaina. Quem foi o poeta Saadi de Shiraz?. In: Chá-de-Lima da Persia, 21 de abril, Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
IRÃO - Mushrifudin Saadi, o poeta iraniano. In: Baia da Lusofonia, 7 de março de 2015. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
LAITMAN, Michael. "Sobre O Verso de Saadi Shīrāzī" na Sede da ONU Em Nova York”. In: Laitman - Cabalá e o Sentido da Vida, 20 de dezembro de 2023. Disponível no link. (acessado em 25.2.2024).
MORALES, Manuel. Saadi, el clásico de la poesía farsi que citó Pedro Sánchez. In: El País, 5 de abril de 2020. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
POEMAS de Saadi de Shiraz. {em espanhol}. In: Biblioteca dMais, agosto de 2010. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
PREFÁCIO: de Omar Ali Shah. In: Gulistan, o jardim das rosas. Saadi. [tradução Rosângela Tibúrcio, Beatriz Vieira e Sergio Rizek a partir da tradução de Omar Ali Shah; prefácio Omar Ali-Shah]. São Paulo: Attar Editorial, 2000. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
SAADI de Shiraz. poemas. In: ZUNÁI - Revista de poesia & debates, s/data. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
[SAADI]. A comemoração de Saadi Shirazi, poeta de grande talento e o pacifigador mundial. In: Parstoday, 21 de abril 2018. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
VIEIRA, Beatriz de Moraes. Sutileza e memória: um olhar sobre a literatura persa clássica. In: Poesia Sempre , Rio de Janeiro, v. 14, p. 121-132, 2001. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024).
- A manuscript of the Gulistan (Rosegarden) by Sa'di; Sa'di in a Rose garden GovardhanText dated 1468, illumination added early 16th c., paintings repainted ca. 1645 . Acervo National Museum of Asian Art.
- 'Dancing Dervishes', Folio from a Gulistan of Sa'di - criador. Sa'di (Folio from an illustrated manuscript) - Acervo Metropolitan Museum of Art, New York, NY.
- Illuminated Folio (verso) from a Gulistan (Rose Garden) of Sa'di (c. 1213-1291) - Sultan Ali Mashhadi (Iranian, 1520) . c. 1525-30 - Acervo The Cleveland Museum of Art.
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- King Salih of Syria Entertaining Two Dervishes', Folio from a Bustan (Orchard) of Sa'di ( Folio from an illustrated manuscript) - Acervo Metropolitan Museum of Art, New York, NY.
- Sufi riding a leopard from a Bustan (Orchard) by Sa'di (1291) - Calligrapher. Ahmad al-Husayni al-Mashhadi - data. 1525 (931 A.H.) . Acervo National Museum of Asian Art.
A TUMBA DE SAADI
A tumba de Saadi é uma homenagem a um dos maiores poetas e literatos do Irã. Ele é também conhecido com Saadi Shirazi Sua tumba foi construída dentro de um jardim persa onde estão plantados muitos ciprestes e existem inúmeros canteiros de flores multicoloridas, o que torna o local muito agradável para visitar. Sua tumba é muito visitada por turistas, bem como por cidadãos iranianos.
- Tomb of the Persian poet Saadi in the Iranian city of Shiraz. Illustration for Geschichte der Weltlitteratur by Julius Hart (Neumann, c 1894)
Saadi - poeta persa
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- A bust of Persian poet Sadi the International Friendship Park of Nanjing, the capital of China’s eastern Jiangsu province (2018)
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COMO CITAR:
FENSKE, Elfi Kürten; SILVA, José Alexandre da. (pesquisa, seleção, edição e organização). Saadi - poeta persa. In: Templo Cultural Delfos, março/2024. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
FENSKE, Elfi Kürten; SILVA, José Alexandre da. (pesquisa, seleção, edição e organização). Saadi - poeta persa. In: Templo Cultural Delfos, março/2024. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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:: Página atualizada em 8.3.2024.