Garden in Montmartre With Lovers, by Vincent van Gogh 1887 |
- Rubem Alves, em "Retratos de amor". Campinas/SP: Editora Papirus, 2002.
ALGUNS POEMAS DE AMOR
The promenade, by Pierre-Auguste Renoir |
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
- Carlos Drummond de Andrade, em "Claro enigma". 1951.
Amo-te muito, meu amor, e tanto
Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo
tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo
tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
- Jorge de Sena, em "As evidências". 1955.
Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.
- Carlos Drummond de Andrade, em "As impurezas do branco". 1973.
Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.
- Adélia Prado, em "Terra de Santa Cruz". Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 23.
Arte de amar
Quem diz de amor fazer que os actos não são belos
que sabe ou sonha de beleza? Quem
sente que suja ou é sujado por fazê-los
que goza de si mesmo e com alguém?
Só não é belo o que se não deseja
ou que ao nosso desejo mal responde.
E suja ou é sujado que não seja
feito do ardor que se não nega ou esconde.
Que gestos há mais belos que os do sexo?
Que corpo belo é menos belo em movimento?
E que mover-se um corpo no de um outro o amplexo
não é dos corpos o mais puro intento?
Olhos se fechem não para não ver
mas para o corpo ver o que eles não,
e no silêncio se ouça o só ranger
da carne que é da carne a só razão
- Jorge de Sena, em "Exorcismos". 1972.
não aprendi de livro nem de mapa inventado
Jamais escrevi em caderno
o nome deste rio
Nunca desenhei a giz
o movimento de suas águas
Sei deste rio
por seu silêncio
deste rio que ninguém me falou
Não surgiu de histórias passageiras
Não precisa de suborno para estar comigo
Nem de mentiras enfeitadas
sequer de afinidades sorrateiras
Este rio vem despojado de intransigências,
preconceitos,
perplexo no eterno desejo
Dádiva e dívida
comigo mesmo
E dos outros homens
Também a esmo
Flui em mim este rio sem vulgaridades
Atemporal, flui em mim com sabor de
paciência
e extraordinário sabor de nada
Nem sequer de buscas e tempo perdido
nem sequer de nada
Este rio nome secreto
e não
E corpo de rio
onde outros rios se vão
Porque o rio
é como o homem:
sem nome
mora no esquecimento,
sem corpo
é árvore cortada,
é menos que nada
Ah! Não fosse o amor sempre e de novo
a estação sem fim
Esta eterna duração
onde, quem passa, não passa,
floresce fácil,
flui
Ah! Não fosse este rio chamado amor
de peso feito, medida e saudade infinita
Não teria o homem medida
de sua própria medida finita
- Lindolf Bell, em "O código das águas”. 1ª ed., São Paulo: Global editora, 1984.
Lovers in Pink, Marc Chagall 1916 Private Collection |
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
- Carlos Drummond de Andrade, em "O corpo". 1984.
Bilhete
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
- Mario Quintana, em "Esconderijos do tempo". Porto Alegre: L&PM, 1980.
Campo de flores
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus — ou foi talvez o Diabo — deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
In the springtime, by James Jabusa Shannon 1896 |
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua côr dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.
Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.
Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.
- Carlos Drummond de Andrade, em "Claro enigma". 1951.
Da chegada do amor
Sempre quis um amor
que falasse
que soubesse o que sentisse.
Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.
Sempre quis um amor
que coubesse no que me disse.
Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice
do macho
quanto a sabedoria do sabedor.
Sempre quis um amor cujo
BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
sabor da mesma golada.
Birthday, by Marc Chagall 1915 |
Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.
Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.
Sempre quis uma amor
que não se chateasse
diante das diferenças.
Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.
Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto
que ora eu fosse o fácil, o sério
e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.
Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.
Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos
Sem senões.
Sempre quis um amor
com definição de quero
sem o lero-lero da falsa sedução.
Eu sempre disse não
à constituição dos séculos
que diz que o "garantido" amor
é a sua negação.
Sempre quis um amor
que gozasse
e que pouco antes
de chegar a esse céu
se anunciasse.
Sempre quis um amor
que vivesse a felicidade
sem reclamar dela ou disso.
Sempre quis um amor não omisso
e que sua estórias me contasse.
Ah, eu sempre quis uma amor que amasse.
- Elisa Lucinda, em "Euteamo e suas estréias". 1999.
De longe te hei-de amar
Young Lovers by Robert Archibalt Graafland, 1911 |
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.
Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.
Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?
E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.
- Cecília Meireles, em "Canções". Editora Livros de Portugal, 1956.
Espaço-tempo
Quero-te mesmo, amor, na ausência ou na presença,
com rumores de sombra, alarde ou desafios.
―Dormir num chão de luar à sombra de roseiras
ou sob os pirisais na baixada dos rios...
Assim te amo e te sei amando dia-a-dia,
acordada ou dormindo o germinal segredo.
E te abraço sem ter teu corpo ao meu, beijando
a saudade sem ser de quem se tem sem medo.
Amo-te mesmo, amor, no madrigal do tempo,
derrubando androceus e gineceus se amando
nas pálpebras do estio que o sono não acorda.
No teu dorso eu descanso a caminhada enorme
que fiz pra te encontrar ― lábios ardendo em busca
da tua noite azul onde minh'alma dorme.
Amo-te mesmo, amor. Se me vens ou te vais.
Sinto-te à flor da pele e à superfície da água
que dessedenta o bem que nos lava o mal.
Amo-te e não sei quem és ― teu nome nem origem.
Só sei que és homem são e me sabes mulher.
Que beleza este amor sem pranto nem vertigem,
sem princípio nem fim, nem dimensão sequer!
- Adalcinda Camarão, em "Antologia Poética". Belém: CEJUP, 1995.
Hoje te canto
Two lovers embrace, by Albena Vatcheva |
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teu pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E de um verde negro teu casco e os areais
Onde me pisas fundo. Hoje te canto
E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.
De escarlate.
- Hilda Hilst, em "Sobre a tua grande face". São Paulo: Massao Ohno, 1986.
Horas rubras
Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...
Oiço olaias em flor às gargalhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas...
Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve e branca e mist'riosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!
- Florbela Espanca, em "Livro de sóror saudade". Lisboa: Edição da Autora, 1923.
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.
A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.
A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma.
Assim é o amor: mortal e navegável.
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro domínio". 1972.
Ode ao amor
Tão lentamente, como alheio, o excesso de desejo,
atento o olhar a outros movimentos,
de contacto a contacto, em sereno anseio, leve toque,
obscuro sexo à flor da pele sob o entreaberto
de roupas soerguidas, vibração ligeira, sinal puro
e vago ainda, e súbito contrai-se,
mais não é excesso, ondeia em síncopes e golpes
no interior da carne, as pernas se distendem,
dobram-se, o nariz se afila, adeja, as mãos,
dedos esguios escorrendo trémulos
e um sorriso irónico, violentos gestos,
amor...
ah tu, senhor da sombra e da ilusão sombria,
vida sem gosto, corpo sem rosto, amor sem fruto,
imagem sempre morta ao dealbar da aurora
e do abrir dos olhos, do sentir memória, do pensar
[na vida,
fuga perpétua, demorado espasmo, distracção no auge,
cansaço e caridade pelo desejo alheio,
raiva contida, ódio sem sexo, unhas e dentes,
despedaçar, rasgar, tocar na dor ignota,
hesitação, vertigem, pressa arrependida,
insuportável triturar, deslize amargo,
tremor, ranger,
arcos, soluços, palpitar e queda.
Distantemente uma alegria foi,
imensa, já tranquila, apascentando orvalhos,
de contacto a contacto, ansiosamente serenando.
obscuro sexo ã flor da pele... amor... amor...
ah tu senhor da sombra e da ilusão sombria...
rei destronado, deus lembrado, homem cumprido.
Distantemente, irónico, esquecido.
- Jorge de Sena, em "Pedra filosofal". 1950.
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
- Mia Couto, em "Raiz de orvalho e outros poemas". Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
Passeio ao campo
Louveciennes (detail of lovers), by Camille Pissarro |
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!
Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
- Vamos correr e rir por entre o trigo! –
Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...
E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!...
- Florbela Espanca, em "Charneca em Flor". Coimbra: Livraria Gonçalves, 1931.
Soneto da Conciliação
Que o amor não me iluda, como a bruma
que esconde uma imprevista segurança.
Antes, sustente o chão em que descansa
o que se irá, perdido como a espuma.
Veja que eu me elegi, mas sem nenhuma
razão de assim fazer, e sem lembrança
de aproveitar apenas a esquivança
de que o amor não prescinde em parte alguma.
Que também não se alheie ao que esclarece
o motivo real, de uma oferta,
reunir o acessório e o imprescindível.
Antes, atente a tudo o que se tece
distante do seu dia inconsumível
que dá certeza à noite mais incerta.
- Lêdo Ivo, em "Acontecimento do soneto". 1948.
Soneto do amor total
Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade
Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
- Vinicius de Moraes, em "Poesia completa e prosa". [organização Afrânio Coutinho]. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1981.
Lovers' Tryst, by Richard Borrmeister |
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.
- Carlos Drummond de Andrade, em "As impurezas do branco". 1973.
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
- Vinicius de Moraes, em "Poesia completa e prosa". [organização Afrânio Coutinho]. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1981.
Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.
Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho
Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho
Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.Todas as cartas de amor são ridículas...
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
- Álvaro de Campos [Heterônimo de Fernando Pessoa]. em "Poesia". [edição Teresa Rita Lopes]. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002.
Para quem o deseja e quem o ama
um corpo é sempre belo no seu esplendor
e tudo nele é belo porque é sagrado
e, mesmo na mais plena posse, inviolável.
Um corpo que se ama é uma nascente viva
que de cada poro irrompe irreprimível
e toda a sua violência é a energia ardente
que gerou o universo e a fantasia dos deuses.
Tudo num corpo que se ama é adorável
na integridade viva de um mistério
na evidência assombrosa da beleza
que se nos oferece inteiramente nua.
Não há visão mais lucida do que a do desejo
e só para ela a nudez é sagrada
como uma torrente vertiginosa ou uma oferenda solar.
Esse olhar vê-o inteiro na perfeição terrestre.
- António Ramos Rosa, em "Rosa intacta". Editora Labirinto, 2007.Viajo no teu corpo
Viajo no teu corpo. Só teu corpo?
Mas quão breve seria essa viagem
Se no limite dela a alma nua
Não me desse do teu corpo a certa imagem.
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
Sempre há duas solidões que se aguardam.
Por isso quero estar junto e viver-te
como a sede vive a fonte.
Atenta ao ruído que anoitece (e adentra)
do catavento sobre nenhuma presença
para dar-nos ternura,
nós que tanta ternura presumimos dar.
Sempre há duas solidões que se aguardam.
Por isso quero estar junto
como raiz e tronco
em todas as noites de insuficiência.
Daremos adornos e crepúsculos
aos rostos que nos espiam.
E para tornar-nos serenos
frente ao encontro
esmagaremos corações com nossos corações.
Sempre há duas solidões que se aguardam.
Por isso quero estar junto
como pedra em pedra
ser a sentinela do tempo em sua redoma,
olhar através da redoma os peixes
que plantam luas nas alpondras
e suprem-nos de tanta glória
numa ternura daninha de querer.
Sempre há duas solidões que se aguardam.
prestes a pousar sobre o breve corpo.
- Lindolf Bell, em "Incorporação"/Doze anos de poesia 1962 a 1973. São Paulo: Quíron, 1974.
Afternoon memories, by Hessam Abrishami |
ALGUNS AFORISMOS SOBRE O AMOR
"Sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando, mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois."
- João Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: Veredas".Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
"Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. De alguma forma a gota da chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressurreição. Na dialética do amor, a própria dialética divina. Quem não pode suportar a dor da separação não esta preparado para o amor. Porque amor é algo que não se tem nunca. É o vento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro."
“Andávamos sem nos procurar, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar.”
- Julio Cortázar em "O jogo da amarelinha" (Rayuela). São Paulo: Abril Cultural, 1985. — v. 1, p. 19.
Romantic moment, by Leonid Afremov
|
Canção do amor sereno
Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua, e permitiram
Que o mel de teus olhos me invadisse.
Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.
Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.
Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.
- Lya Luft, em "Secreta mirada". 1997.
Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.
ALGUMAS REFERÊNCIAS
:: Leonid Afremov
:: Pierside gallery - Hessam Abrishami
© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske
© Direitos reservados ao autor/e ou ao seus herdeiros
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