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Pensamento social e político de José de Souza Marques

- análise e revelação dos múltiplos papéis de uma trajetória de vida como patrimônio imaterial, histórico e um bem ético-moral da nacionalidade brasileira **
por Paulo Baía* 

Jose de Souza Marques (jovem)
Estudar a dinâmica da vida social, política e cultural de uma personalidade quase anônima como José de Souza Marques teve por objetivo maior compreender a educação cidadã, o combate às intolerâncias, a cultura da paz, o republicanismo democrático e a ética do trabalho como uma virtude pessoal do empreendedor, estreitando o contato com comunidades múltiplas e diversificadas por meio de um discurso acadêmico que valoriza um fazer cotidiano que perde adeptos dia a dia; contribui para pensar outras questões pertinentes, como o papel das lideranças locais, educadores e militantes sociais nos processos de construção de identidades, memórias e representações coletivas de uma nacionalidade brasileira e o papel de instituições como escolas, igrejas não católicas, micro e pequenas empresas e a maçonaria como espelhos das múltiplas comunidades locais e loci de informação, instrução e construção de uma cidadania periférica aos padrões ibéricos brancos e excludentes, ao longo da história da sociedade e do Estado no Brasil dos séculos XIX a XXI.
Vereador no antigo Distrito Federal e depois Deputado Estadual no Estado da Guanabara, José de Souza Marques lutou desde seu primeiro mandato pela aprovação de um projeto de lei que assegurasse o financiamento a estudantes carentes em todos os níveis, em particular a alfabetização e o ensino básico e médio.
Como vereador do antigo Distrito Federal, Deputado Constituinte do Estado da Guanabara em 1960, principal aliado na campanha de Leonel Brizola para Deputado Federal em 1962 e um dos principais aliados do Deputado Federal Miro Teixeira a partir de 1969, José de Souza Marques foi um dos principais e mais eficientes construtores das institucionalidades cariocas e fluminenses dos anos 1940 até 1974, quando faleceu como Deputado Estadual do antigo Estado da Guanabara, já sob o signo da fusão com o Estado Federado do Rio de Janeiro.
Como político era um ativista convicto, que agia de maneira gentil, bondosa e conciliadora. Era considerado por seus pares um sábio e um magnífico conselheiro. Essa característica fez com que José de Souza Marques, sem ser contra a construção da estátua do Cristo Redentor na Floresta da Tijuca em área da União Federal, articulasse um pacto de tolerância e respeito ao estado laico e às demais religiões na cidade do Rio de Janeiro.
O Cristo Redentor foi inaugurado em 12 de outubro de 1931. Sua construção foi precedida de uma intensa controvérsia liderada por adeptos da Igreja Batista do Brasil, da Igreja Metodista do Brasil, de grupos de cidadãos sem religião definida e militares positivistas da ativa e da reserva que eram contrários à Igreja Católica Apostólica Romana, hegemônica e majoritária na época, e que até o início da República Federativa Brasileira em 1889 era a religião oficial do Brasil.
Apesar das controvérsias, o vereador do Distrito Federal José de Souza Marques, pastor da Igreja Batista Brasileira, liderou um acordo entre os diversos grupos de interesse e o Estado Nacional Brasileiro.
José de Souza Marques assegurou que o monumento ao Cristo Redentor fosse utilizado e administrado pela Igreja Católica Apostólica Romana, porém não fosse um santuário católico, mas um símbolo do humanismo cristão e universalista.
A engenharia política que teve José de Souza Marques como artífice perdurou até o Século XXI, quando por decreto papal e do Arcebispo do Rio de Janeiro de 12 de outubro de 2006 o monumento foi transformado em santuário.
Em 21 de novembro de 2007 o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio-ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – por intermédio de seu Superintendente Regional Rogério Rocco, ratifica o decreto papal e do Arcebispo do Rio de Janeiro de 12 de outubro de 2006, que é também referendado pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.  O monumento humanista e universalista representado pela imensa estátua de Jesus Cristo – um monumento à paz, à tolerância e ao humanismo laico da República tornou-se um santuário da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, referendando o decreto papal e do Arcebispo do Rio de Janeiro.
As propostas de Souza Marques são semelhantes as que foram adotadas pelo Presidente Lula ao implantar o PROUNI e os novos mecanismos do FIES. Paralelamente a isso, José de Souza Marques mantinha intensa relação política com Martin Luther King e demais líderes negros das religiões cristãs não católicas nos Estados Unidos, alinhando seu discurso no Brasil à luta por direitos de cidadania, como a reforma agrária, a educação em caráter permanente e pública, as liberdades individuais, coletivas e difusas e uma reforma urbana que democratizasse as formas de transporte coletivo e moradia, em um país que nos anos 1940 e 1950 já indicava uma tendência à urbanização acelerada – lembrando que o Brasil tinha um quase monopólio religioso da Igreja Cristã Católica Apostólica Romana.
Para Souza Marques, a ideia e o conceito de público estavam vinculados à tradição social e política dos Estados Unidos da América, onde público é tudo aquilo que interfere ou tem relação com a sociedade e/ou grupos sociais. Assim, para os americanos existem vários níveis do que é público, não havendo uma distinção entre as atividades de estado, governos, entidades não governamentais e instituições/empresas privadas. Existem atividades privativas de estado, como o controle e o monopólio das Forças Armadas e dos diversos sistemas de informação e contrainformação, com o objetivo de assegurar a soberania e ordem social, política e territorial pelo Estado. Exemplos desse tipo de atividade de estado são as agências como a CIA, o FBI, as agências reguladoras do meio-ambiente e outras similares.
No Brasil, a instauração da República em 1889consagrou o conceito e a ideia de público como atividades de estado e governo muito amplas e quase universais, tanto que público no Brasil republicano é quase um sinônimo de governamental e/ou estatal. Contudo, com a Constituição de 5 de outubro de 1988 o conceito de público se diversificou, ampliando-se para quatro categorias: o público estatal, o governamental, o não governamental (ONGs) e o privado (as PPP, parcerias público-privadas). Esta reconceituação da ideia de público e sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro em outubro de 1988 é regulamentada pelas reformas do estado brasileiro realizadas no governo Fernando Henrique Cardoso, sob a égide e comando do cientista social Luiz Carlos Bresser Pereira como Ministro do MARE – Ministério da Administração e Reforma do Estado.
Assim, o Brasil do tempo presente tem sua estrutura e atividades assentadas em uma concepção de que existem um público estatal, um público governamental, um público não governamental e um público privado, como José de Souza Marques já compreendia, e lutava para que essa ideia fosse introduzida em todas as práticas, ações e atividades no Brasil, principalmente na educação. Essa noção de público ampliada também é encontrada em Anísio Teixeira e Victor Nunes Leal, interlocutores permanentes – principalmente o primeiro – de José de Souza Marques.
José de Souza Marques acreditava no potencial da educação e do trabalho como transformadores da sociedade, e vinculou sua militância político-partidária às teses lideradas no PTB – Partido Trabalhista Brasileiro – por Leonel Brizola e João Goulart.
Pode-se afirmar que, além do PROUNI e do FIES adotados pelo Presidente Lula, a ideia da Universidade da Integração Latino-Americana – UNILA, com sede em Foz do Iguaçu e com o objetivo de acolher estudantes de todas as Américas como forma de diminuir assimetrias e mediar conflitos e crises, encontra apoio nas ideias políticas e sociais de José de Souza Marques já formuladas a partir de 1940 até 1974, data de seu falecimento.
O programa de crédito educativo (PCE) foi criado em 23 de agosto de 1975 pelo então Presidente Ernesto Geisel, que não era católico, mas luterano. Este programa foi transformado, em 1999, pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso no Programa de Financiamento Estudantil – FIES – que, com adaptações, está em vigor até hoje como instrumento e mecanismo de governo complementar ao PROUNI.
Ernesto Geisel leu os projetos de José de Souza Marques, que lhe foram enviados pelo Senador Petrônio Portela e pelo Ministro da Justiça Armando Falcão.
O programa de crédito educativo do Presidente Geisel tem 40% de semelhança com o projeto de José de Souza Marques. Já o PROUNI e o FIES reestruturado do governo Lula são 100% semelhantes às propostas de José de Souza Marques, feitas desde os anos 1950 até 1974.
         O processo de construção social do perfil político, profissional e acadêmico de uma liderança local, como foi José de Souza Marques, passa necessariamente pela apropriação[1] e legitimação de uma idéia chave, como um patrimônio imaterial, histórico, político e ideológico. Passa igualmente pelo reconhecimento de que o ator social focado na análise exerceu, em um determinado tempo e espaço, uma autoridade propagadora de valores transcendentes a seu tempo histórico, e de que seus discursos, práticas, legado, memória social[2], se transformaram em instituições formais e/ou informais para um segmento da sociedade brasileira, assim como para o Estado Nacional no Brasil. A ênfase da presente reflexão é o pensamento social e político de uma liderança do atual Estado Federado do Rio de Janeiro no século XX, promovendo a identificação, descrição, análise e avaliação da trajetória de vida dessa liderança local e regional no antigo Distrito Federal, no antigo Estado da Guanabara e no atual Estado do Rio de Janeiro, procurando realçar o pensamento social e político de José de Souza Marques como uma liderança nacional e seu impacto na formação das subjetividades coletivas, das identidades sociais e o alcance político-estratégico de suas ações, atitudes e realizações no antigo Distrito Federal e no Estado Federado da Guanabara, assim como suas conexões com o Estado Nacional Brasileiro. De maneira focada, essa reflexão sobre as ações e o pensamento de José de Souza Marques tem como meta promover um olhar sociológico sobre José de Souza Marques, como afro-descendente pioneiro das ações afirmativas no Brasil do tempo presente, educador, humanista cristão não católico, jornalista, empresário, maçom, pastor batista e militante político parlamentar republicano trabalhista. José de Souza Marques era neto de escravos, filho de trabalhadores humildes - pai marceneiro e mãe lavadeira - nascido na Zona Norte da Cidade do Rio de Janeiro em 1893, e criado, dos dois aos dezessete anos, no distrito de Pinheiral, hoje município, que na época pertencia ao Município de Volta Redonda. Retornou ao Distrito Federal aos dezessete anos de idade, sem escolaridade, semi-analfabeto, e prático nas artes da marcenaria e carpintaria, que aprendera com o pai. Faleceu em 1974, como deputado estadual da Guanabara pelo MDB, e um dos pioneiros das políticas públicas focadas no combate à desigualdade social, no combate ao racismo e na promoção de ações pontuais do que se chama no tempo presente de políticas de ação afirmativa, que objetivavam criar mecanismos de inclusão e mobilidade social para jovens nascidos nos subúrbios periféricos e nas favelas, assim como para jovens pobres de ambos os sexos, com ênfase nos afrodescendentes da cidade do Rio de Janeiro.
As questões acima mencionadas tomaram forma a partir de minhas reflexões no campo dos estudos multi e interdisciplinares da ciência política e da sociologia metropolitana, tendo como âncora teórica as idéias de Carlo Ginzburg[3] e Maurice Halbwachs[4], para quem as lembranças sociais e as trajetórias de vida são construções sociológicas e históricas elaboradas no tempo presente; a história é pensada e descrita com novos significados ao se olhar do hoje, do tempo presente para o passado, a partir da interação entre os indivíduos – enquanto atores sociais de cenários territoriais, geográficos e sociais específicos por sua datação histórica – que, entretanto, procuram manter coesão e consenso não apenas no tempo histórico vivido, mas em suas re-inserções políticas, simbólicas e afetivas na contemporaneidade da vida do agora, do hoje.
Todavia, minha experiência como pesquisador social em campo revelou que as constantes invenções de tradições e reconstruções do passado se faz a partir de processos seletivos que, na maior parte das vezes, indicam e revelam o estabelecimento de um campo de disputas pelo capital afetivo, político, ideológico e simbólico, contextualização das lembranças e memórias sociais reconstruídas, negociações dos silêncios, omissões e dominações de determinados segmentos sociais, micro e macro, sobre outros que, por sua vez, mantêm em estado latente suas histórias. As leituras de Pierre Bourdieu[5], Eric Hobsbawn[6], Michel Pollak[7], Gizlene Neder[8], Carlo Ginsburg[9] e Maria Luiza Penna[10], dentre outros, possibilitaram ampliar o meu entendimento sobre o contexto territorial, cultural, ideológico e político que se me apresenta no empirismo do trabalho de pesquisa social em campo; enfim, dar conta das particularidades do cenário e do ator social analisado, destacando que junto ao analista estão também o aluno, amigo e admirador de José de Souza Marques.
Uma vez que a subjetividade, o imaginário, as lembranças e memórias individuais e coletivas são elementos essenciais na constituição de identidades e representações coletivas, estudar a dinâmica desse processo de socialização e construção social cotidiana torna-se fundamental para a compreensão do objeto de pesquisa e reflexão sobre José de Souza Marques. Acredito ser relevante contextualizar tal processo, isto é, compreender o momento da sociedade carioca, fluminense e brasileira dos dias de hoje, momento este de caracterização espaço-temporal, onde é possível construir e reconstruir constantemente identidades coletivas e onde as questões da experiência, da vivência, do conhecimento passado são determinantes relativizados nessa dinâmica histórica do tempo passado. E, igualmente aos processos da história individual e coletiva, essa reconstrução se dá em um espaço de disputas, negociações, exclusões e dominações. Pensar tal questão a partir de Stuart Hall[11] possibilita a referida contextualização e permite compreender a lógica das ações, tensões e intenções da trajetória de vida de José de Souza Marques.
Um elemento que contribui para analisar os processos de constituição das dinâmicas sociais - micro e macro - coletivas e identidades é a reunião de relatos, fatos, documentação e objetos que configuram quase que um "romance", uma coleção. O processo de seleção dos documentos, fatos, relatos e objetos – e construção de um discurso político, social e ideológico a partir deles – se revela um elemento importante na consolidação de identidades – individuais e coletivas – e na construção e legitimação da história de vida de José de Souza Marques, especialmente no caso de grupos e indivíduos comprometidos com um projeto de reconhecimento, valorização, demanda por direitos e preservação da história de vida de José de Souza Marques como um patrimônio imaterial e um bem ético-moral da nacionalidade brasileira. A sociologia política histórica e identidade social e nacional, enquanto construções, serão, portanto, representadas, reconstruídas e preservadas como patrimônio imaterial, intelectual, político e ideológico dos legados institucionais, pessoais, políticos e afetivos do personagem focado nessa análise e reflexão.
Vale ressaltar que tanto a constituição de uma trajetória de vida particular quanto a apropriação de um contexto social, territorial e político são processos que revelam uma função mediadora entre o visível e o invisível, resultado do deslocamento espacial – do econômico e utilitário para o espaço dos desejos, interesses de natureza política e ideológica – e de ressignificações[12]. Além disso, são também o conjunto de práticas sociais e culturais por meio das quais se constituirão e se transformarão[13].
 Compreendo o discurso da cultura política da tradição e da ideologia como um vestígio, um sinal, um indício, enquanto reconfiguração da tradição inventada pelo Estado moderno no Brasil do tempo presente, levando em consideração sua tendência à formalização e a ritualização[14] – através de práticas e políticas públicas e seus instrumentos específicos, como as políticas de ações afirmativas e inclusão social, de 1983 até os dias atuais – e a maior probabilidade de negociação por parte de atores sociais e políticos envolvidos[15]. As demandas por direito e reconhecimento social[16], quaisquer que sejam as suas categorias – históricas, sociais, culturais, ideológicas e políticas – têm como função tentar integrar e também representar a nação brasileira, mesmo que de forma fragmentada e estigmatizada; seriam, portanto, uma alegoria[17] da nação, composta de fragmentos, de vestígios, de ruínas no sentido que lhe é atribuído por Walter Benjamin[18].
O discurso sobre a trajetória de uma vida e as discussões sobre seu valor e sobre a importância de sua preservação e projeção para o futuro surgem dentro de um contexto de destruição, de perda. Novos líderes, nova ordem democrática necessitam, então, de legitimação e de referência em um passado reinventado, ressemantizado e recontextualizado historicamente. As demandas por reconhecimento social e por direitos no Brasil do tempo presente, promovidas por pobres urbanos, estabelecem um momento privilegiado e uma dinâmica sociopolítica de reestruturação, de consolidação de nacionalismos pontuais e regionais, de disputas mais acirradas pelo capital simbólico, material, econômico, político, ideológico e afetivo de lutas, fatos, eventos, personagens e conflitos. Momento novo, que necessita de signos referenciais para assegurar um sentimento de pertencimento e que sejam, por sua vez, reapropriados e ressemantizados por diversos movimentos sociais, segmentos populares e militantes políticos em disputa por micro e macro hegemonias no território nacional brasileiro. 
Daí por diante, serão tempos de estabelecimento dos paradigmas sempre renovados das ciências humanas modernas, dos seus campos específicos, de interseção disciplinar e limites epistemológicos-cognitivos. Épocas de aceleração do tempo, encurtamento das distâncias, novos olhares, novas tecnologias. As crises, oportunidades, prazeres e desencantos sociais e individuais decorrentes da crescente e vertiginosa mundialização em tempo real dos conhecimentos produzem influência sobre a construção de um ou múltiplos novos olhares, ressemantizações de representações, muitas vezes com formatos e sentidos paradoxais. A experiência, a vida vivida, disputa lugar com a informação, a versão verossímil e os boatos, via imprensa[19]. Informa-se e não vive-se[20]. Comunidades procuram ressemantizar os discursos, as falas, resgatar e manter suas lembranças reconfiguradas, para não perdê-las. As pedras são restauradas nos sentimentos, nas paixões, nos afetos para reconstruírem cenários, enredos e dramas de memórias, em perigo pelo processo de homogeneização cultural manufaturada midiaticamente pela sociedade do espetáculo[21] – que já se vislumbrava no século XVIII com as celebrações – e pela reestruturação contínua do espaço físico da cidade do Rio de Janeiro em espaços europeus, espaços quilombolas[22], segundas cidades e não cidades.
A cidade do Rio de Janeiro é um território múltiplo, fragmentado, um território que é a um só tempo uma totalidade e múltiplas cidades em disputa ou em complementaridade. Ou seja, existem muitos Rios de Janeiro no mesmo espaço e tempo. Assim, utilizo os conceitos de Gizlene Neder de cidade europeia que vai se americanizando e cidade quilombada para dar visibilidade aos invisíveis da história, como muitas favelas e bairros populares periféricos.
A cidade quilombada, segundo Gizlene Neder, não é um território que foi no passado um quilombo, mas espaços sociais e territoriais onde os arranjos sociais, políticos e afetivos são bastante diferentes dos padrões da cidade europeia que vai se americanizando, e é a referência dominante na definição do que é o Rio de Janeiro. Para Gizlene Neder a cidade quilombada tem suas regras, seus arranjos sociopolíticos e territoriais em contraponto aos padrões dominantes da cidade europeia que se americaniza.
Estes contrapontos são múltiplos e podem representar conflitos ou complementaridades subalternas. Os habitantes de uma favela e/ou de um bairro popular periférico possuem uma dupla hermenêutica, pois tem que circular em seu território de moradia e ao mesmo tempo, como trabalhador e/ou desocupado, circulam na cidade europeia que se americaniza. Para tal constroem para si mesmos ‘personas’ diferentes, uma para sua performance na cidade europeia/americana e outra para os territórios quilombados.
Os habitantes da cidade europeia/americana formatam suas ‘personas’ para os cenários europeus/americanos dominantes. Esses habitantes não necessitam criar papéis sociais para circular nos bairros populares periféricos e/ou favelas, pois estes espaços estão fora de suas existências. Já os favelados e os habitantes dos bairros populares periféricos pertencem aos dois territórios, o que exige deles a construção de personagens diferenciados em função do território em que estão circulando.
Como pesquisador, incorporo a análise de Gizlene Neder nesse estudo, porém também denomino as favelas e bairros periféricos de segunda cidade e a cidade europeia/americana como primeira cidade, pois essa é a cidade definida como Rio de Janeiro, enquanto que os demais territórios são estigmatizados pelas invisibilidades ou pela retórica de que são locais de vândalos e bandidos.
Assim, defino o território da cidade do Rio de Janeiro como múltiplo, hierarquizado e fragmentado, já que para os moradores desses espaços existem de fato duas cidades, em particular para os favelados e moradores das periferias. Existem atitudes e comportamentos distintos para cada totalidade da cidade do Rio de Janeiro, o que cria tensões e gera habilidades  performáticas de favelados e periféricos extremamente complexas e criativas, pois estes atores sociais devem ser europeus/americanos ao mesmo tempo que são favelados e periféricos, com arranjos sociais, políticos e afetivos em contraponto perene em suas vidas cotidianas. Incluo ainda os não locais, que chamo de não cidades; são territórios dos totalmente desvalidos e miseráveis como os lixões, várzeas de rios  e as periferias das periferias. Os moradores dos lixões são um exemplo emblemático da não cidade.
José de Souza Marques foi um artífice de pontes, incentivando e formando cidadãos com livre trânsito em todas as cidades do território da cidade do Rio de Janeiro.
Os guardiões da memória ou estão mortos ou não têm quem lhes ouça; são todos andarilhos nas cidades europeia, quilombola e segundas cidades da Região Metropolitana Fluminense. A memória não seria mais vivida; não há ninguém para ouvir as últimas palavras e a experiência de um moribundo nas frias e impessoais avenidas e rotas cibernéticas, televisivas, cinematográficas e visuais do aqui e agora.
É nesse contexto que Gizlene Neder[23] e Pierre Nora[24] identificam o surgimento dos lugares de memória – espaços físicos e simbólicos, como locais, arquivos, bibliotecas, livros, fotos, objetos, instituições e celebrações – que garantem ativamente a sobrevida de fragmentos, vestígios, ruínas do tecido social que são a lembrança restaurada como reconstruída, uma tentativa de assegurar não só o sentimento de reconhecimento e pertencimento, mas de continuidade de um passado afetivo, político, ideológico e cultural de tradições reconfiguradas também. A criação e preservação desses lugares da memória irão refletir na formatação de uma lógica de lutas políticas por reconhecimento social, demanda por direitos, ressignificação e ressemantização dos falares e discursos. Assim é com José de Souza Marques na Igreja Batista, na maçonaria, nas associações comerciais e industriais da Zona Norte e da Zona Oeste pobre da cidade do Rio de Janeiro no tempo presente.
Vale abrir um parêntese e ressaltar que a construção de um discurso sobre uma trajetória de vida, que caracterize o pensamento social e político de José de Souza Marques, representa a mensagem de um patrimônio imaterial, histórico e ideológico, que pode ser apropriado por múltiplos e diversos movimentos sociais, resultando no surgimento de diversos lugares sociais de memória – onde será possível observar um processo de negociação para a construção de novos discursos[25] silenciados pelas hegemonias políticas do tempo passado, muito embora diversos elementos dessas narrativas sejam coercitivos – que vão procurar atender às demandas sociais de cada época. Tal discurso constitui-se a partir de algumas noções, como autenticidade, heroísmo, excepcionalidade e tradição na formação de subjetividades, imaginários e ideais de nacionalidade brasileira.
Finalmente, vale ressaltar que a construção de um discurso acadêmico-sociológico da trajetória de vida de José de Souza Marques, assim como de outros líderes locais e regionais, desvelando seus pensamentos sociais e políticos, representa uma estratégia da qual fazem parte intelectuais e militantes políticos sociais comprometidos com um projeto coletivo[26] de uma República democrática que visa construir uma nova representação social e política da nacionalidade brasileira. As considerações de Halbwachs, Gizlene Neder, Gisálio Cerqueira, Eli Napoleão, Carlo Ginzburg e Lívia Buxbaum acerca das representações sociais e memórias políticas construídas em um quadro social determinado pelo silêncio e pela invisibilidade promovidos pelo Estado ibérico e branco no Brasil podem lançar luzes à análise das especificidades desse processo de construção de uma nova nacionalidade brasileira[27], que efetivamente seja multiétnica e pluricultural, ao trazer como protagonistas os silenciados e invisíveis da memória nacional, bem como das categorias constituidoras do discurso acadêmico e político hegemônico que construiu e deu visibilidade à idéia, ao imaginário, à memória e às lembranças fabricadas de uma nação mansa, ordeira, pacífica, não violenta, legalista, onde o racismo, a discriminação e o preconceito não existem, com coesão e o consenso de uma população de milhões de brasileiros "iguais".
A escolha do objeto para desenvolver a temática proposta partiu de algumas de suas características: a percepção da influência de José de Souza Marques em minhas escolhas profissionais, políticas e ideológicas; sua identificação como um guardião da memória de afro-descendentes que ascenderam socialmente no Brasil e, por um período determinado, obteve a colaboração da comunidade local; as Zonas Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro, o Colégio Souza Marques, a Faculdade Souza Marques, a maçonaria, templos da Igreja Batista, associações comerciais e industriais da Zona Norte e Zona Oeste, o Parlamento como lugares de memória, assim como centenas de micro e pequenas empresas que existem e se nutrem das ideias de empreendedorismo, prosperidade e sucesso da ética de trabalho protagonizada por José de Souza Marques como empresário, pastor batista, educador e líder político local, ao mesmo tempo universal.
Sendo assim, é objetivo geral deste estudo analisar a trajetória de vida de José de Souza Marques, suas propostas políticas e práticas de construção de uma cidadania dirigida para pobres, suburbanos e afro-descendentes, a dinâmica de apropriação do republicanismo trabalhista via Igreja Batista, maçonaria e ideia religiosa norte-americana. Como objetivos específicos, a reflexão procurou analisar as relações entre indivíduo, sociedade e instituições de cultura política e ensino nos caminhos da trajetória de José de Souza Marques; identificar os valores, ideologias, desejos, interesses e projetos, assim como os significados atribuídos a José de Souza Marques ao longo de sua vida; investigar sobre as ações de memória produzidas por José de Souza Marques – uma auto-biografia e um livro intitulado 'Pensamentos para você pensar'; e ao estudar depoimentos, fatos, versões e eventos, analisar a relação da comunidade local com os espaços, procurando identificar se o Colégio e a Faculdade Souza Marques são loci de práticas de construção e consolidação de um sentimento de reconhecimento político e social de José de Souza Marques e para pobres e afro-descendentes; analisar o conjunto de representações que compõe o discurso múltiplo de José de Souza Marques; compreender o processo de institucionalização de um acervo particular consorciado com arquivos privados como a Maçonaria e públicos de estado e governo, como os da ALERJ, da Biblioteca Nacional, Arquivos Públicos Nacional, Estadual e Municipal, ao compor um panorama da preservação de sua trajetória de vida como um patrimônio imaterial e histórico do Rio de Janeiro e do Brasil.
Procuro compreender a trajetória de vida de José de Souza Marques a partir de alguns pressupostos, a saber:
1 – a construção e os sentidos do discurso humanista, cristão não católico, político, ideológico e social configura um processo de invenção de uma nova tradição, pautada na busca pelo consenso sobre algumas questões, como a importância da mobilidade social, a luta contra o racismo, a educação como valor republicano, a proteção social de pobres e  afro-descendentes como valores patrimoniais afetivos e simbólicos relacionados às elites – e a sua capacidade de representar, de simbolizar a nação como uma totalidade;
2 – os usos, apropriações e valorizações da trajetória de vida de José de Souza Marques revelam relações de poder, e conflitos aparentes envolvendo distintos segmentos sociais na cidade do Rio de Janeiro como capital da República e no Estado da Guanabara;
3 – os distintos segmentos sociais envolvidos no processo revelam um conflito entre interesses, de ordem ideológica, política, cultural, econômica, simbólica e afetiva;
4 – como militante político, religioso, educador e líder local envolvido com um processo civilizador e pedagógico, tem um controle maior sobre os sentimentos e, por isso, pode determinar estrategicamente os usos políticos e ideológicos na sociedade carioca e fluminense a que tem acesso e influência;
5 – as transformações ocorridas no discurso político e social na atualidade seriam decorrentes de ações do tempo passado de lógica política e ideológica intencional e prospectiva, isto é, para legitimar a aquisição de poder e prestígio de determinada parcela da população carioca, fluminense e brasileira composta por pobres, suburbanos e afro-descendentes;
6 – o passado é resultado do acúmulo de experiências, onde há espaço para ação, coerção e negociação, partindo da noção de estruturas estruturadas e estruturantes[28];
7 – para compreender as possibilidades e práticas de apropriação e ressignificação das trajetórias de vida por parte da sociedade e do Estado no Brasil do tempo presente, procuro orientação a partir dos trabalhos de Gizlene Neder, Gisálio Cerqueira, Lívia Buxbaum, Maria Luiza Penna, Eli Napoleão, José Reginaldo Gonçalves, Márcia Contins, Carlos Alberto Medeiros, Miro Teixeira, Abdias do Nascimento, Jorge da Silva, Joel Rufino, entre outros.
O estudo pretende contribuir com dados e reflexões para o enriquecimento das discussões acerca da temática da intolerância, desigualdade social, pobreza, mobilidade social, republicanismo, educação, empreendedorismo, relações interétnicas, racismo e políticas de ações afirmativas no Brasil do tempo presente. Analisei cuidadosamente o modo e as condições como uma estratégia de vida contribuiu para que diferentes setores da sociedade carioca, fluminense e nacional interagissem como agentes de mudanças pontuais nos governos federal, estadual e municipal, na educação, no mundo do trabalho, nas políticas públicas, nas comunidades locais, dentre outros. Esse estudo, mesmo limitado nos paradigmas da linha de pesquisa, estabeleceu conexões interpretativas que buscaram revelar os múltiplos papéis de uma trajetória de vida como patrimônio imaterial, político e histórico, gerador de apropriações e ressemantizações por parte de múltiplos grupos envolvidos, uma vez que partiu de uma perspectiva compreensiva em que se priorizou a análise dos conflitos, disputas, hierarquizações e exclusões que fazem parte dos processos de constituição e legitimação de pobres, suburbanos e afro-descendentes, em uma sociedade e Estado altamente hierarquizados e excludentes. Compreendo o desenvolvimento do tema a partir de uma perspectiva sociológica e política preocupada em caracterizar e analisar as relações entre os distintos segmentos sociais envolvidos no contexto estudado, a trajetória de vida de José de Souza Marques.
Parto da perspectiva de Clifford Geertz, antropólogo de orientação culturalista, para quem a compreensão das construções coletivas, transmitidas historicamente, só pode ser feita a partir da malha de significados que a sociedade produziu[29]. Procurei em tempo contínuo interpretar o processo de construção e apropriação de um determinado sistema de concepções.
A partir da análise que efetuei, indico que estudar a dinâmica da vida social, política e cultural de uma personalidade como José de Souza Marques, teve por objetivo maior desenvolver tanto a educação cidadã quanto o republicanismo democrático, além de estreitar o contato com comunidades múltiplas e diversificadas por meio de um discurso acadêmico que valoriza um fazer cotidiano que perde adeptos dia a dia, mas que contribui para pensar outras questões pertinentes, como o papel das lideranças locais, educadores e militantes sociais nos processos de construção de identidades, memórias e representações coletivas de uma nacionalidade brasileira e o papel de instituições como escolas, igrejas não católicas, a maçonaria, associações comerciais e industriais da Zona Norte e da Zona Oeste pobre da cidade do Rio de Janeiro, assim como uma rede de micro e pequenas empresas tocadas pela coragem de empreendedores individuais e/ou familiares tendo a ética do trabalho como eixo motivador para o sucesso, a prosperidade e o reconhecimento social como espelhos das múltiplas comunidades locais e loci de informação, instrução e construção de uma cidadania periférica aos padrões ibéricos brancos e excludentes, ao longo da história da sociedade e do Estado no Brasil dos séculos XIX a XXI[30].
No governo Luiz Inácio Lula da Silva um conjunto de incentivos foram dados às empresas individuais, às micro e pequenas empresas, via financiamentos do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, bem como implementaram-se modelos de simplificação no pagamento de impostos e regularização de empresas. No governo Lula as ideias de José de Souza Marques sobre empreendedorismo e ética do trabalho também ganham formato e inúmeras atividades por intermédio do SEBRAE.   
A perspectiva do trabalho foi compreender o sentido atribuído a algumas categorias, a saber: trajetória de vida como patrimônio imaterial e histórico, memória nacional brasileira, memória local, memória histórica de invisíveis[31], anônimos e silenciosos, espaço urbano, território, Estado, sociedade e comunidades, dentre outras, para dar conta da caracterização e análise das reapropriações e ressemantizações das referidas categorias por parte dos diversos segmentos sociais que participam da trajetória de vida, reconhecimento e preservação da memória de José de Souza Marques como um bem de valor histórico para a nação brasileira no tempo presente.
Parto do pressuposto de que a trajetória de vida como patrimônio imaterial, político, ideológico e histórico é preservada não somente por algumas políticas públicas. O patrimônio e o legado de uma vida vivida é construído e preservado através de relações entre os distintos segmentos sociais que, dependendo do valor que atribuem a ele, dos seus interesses em relação a ele e dos sentimentos de afeto e pertencimento que ele lhes desperta, vão facilitar ou dificultar sua preservação. Como anteriormente mencionado, nessas relações é possível observar a construção de um campo de disputas, negociações, omissões, distorções, silêncio, boatos e exclusões, considerando os diversos interesses em jogo.
Sendo assim, quando observei e analisei as relações de sociabilidade, conflitos e negociações entre guardiões das memórias, militantes sociais, comunidades locais e de interesses e os lugares da memória foi uma tarefa, uma missão político-ideológica, que ultrapassou o campo do concreto, do dado material, escrito e documentado. Foi necessário buscar e identificar dados e informações que se encontram no campo da subjetividade, do imaginário, dos desejos e das escolhas, revelados pelos aspectos simbólicos das relações de sociabilidades entre os atores envolvidos nas disputas políticas, ideológicas, culturais, econômicas, simbólicas e afetivas. Nesse sentido, procurei, orientado pelas idéias de Clifford Geertz, Gizlene Neder, Gisálio Cerqueira Filho, Guerreiro Ramos e outros, interpretar os conjuntos de símbolos inseridos no contexto social e psicológico.
As entrevistas abertas foram realizadas por estudantes de ciências sociais e psicologia da UFRJ, supervisionadas pela jornalista e socióloga Lívia Buxbaum, com contemporâneos políticos, religiosos, com a maçonaria e com maçons que conheceram e trabalharam com José de Souza Marques, parentes e ex-alunos.
Tive longas conversas com o Deputado Federal Miro Teixeira, que foi amigo de José de Souza Marques, com suas filhas e neta. Também conversei com lideranças maçons e com Leonel de Moura Brizola.
O historiador Peter Burke[32], sobre a obra de Norbert Elias, destaca que a noção do cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece. É quando a inerente subjetividade das fontes – sejam de natureza oral ou escrita – se nos apresenta. Todavia, como toda construção é uma interpretação variável, considerando seus pontos de partida, enfoques e questões mais ou menos relevantes, uma das metas a alcançar através da metodologia escolhida é colher as informações ditas, bem como as não ditas. Na pesquisa empírica com as fontes orais, procurarei observar aquilo que o narrador diz com palavras, com silêncios, com hesitações, com gestos mais ou menos marcantes, com o olhar – que a sabedoria popular nos indica ser o reflexo da alma – com o corpo, para captar algo que suas palavras não exprimiram.
Com efeito, para que a utilização das entrevistas abertas feitas pelos estudantes de ciências sociais e psicologia da UFRJ como método de pesquisa empírica neste trabalho obtivessem os resultados desejados nos objetivos da pesquisa, o método de observação participante foi fundamental. Isso foi feito por mim e acarretou em visitas constantes e permanências ao bairro de Cascadura, onde se localizam o Colégio Souza Marques, a Fundação Técnica Educacional Souza Marques e todo o acervo pessoal de José de Souza Marques, além de suas filhas, netas, netos e muitos amigos antigos. Miro Teixeira e Estela Souza Marques foram as principais âncoras de minhas entrevistas em profundidade e das conversas mais abrangentes e pormenorizadas.
 Além das referidas visitas ao bairro de Cascadura, ao longo da pesquisa tive conversas profissionais com religiosos da Igreja Batista do Engenho Novo, igreja que foi construída por José de Souza Marques e frequentada, até o tempo presente, por toda sua família. Também foram necessárias visitas frequentes ao Palácio Maçom da Rua do Lavradio, onde existe um "espaço de memória", um auditório denominado Salão Nobre Pastor José de Souza Marques e um retrato pintado a óleo de José de Souza Marques, que foi presidente do Superior Tribunal Maçom por décadas.
Realizei visitas, conversas, entrevistas e consultas no Colégio Batista da Tijuca, onde José de Souza Marques se alfabetizou, trabalhou como faxineiro, inspetor de alunos, professor e vice-diretor. Consultei os arquivos da antiga Assembléia Legislativa do Estado Federado da Guanabara, hoje localizados na ALERJ; aos arquivos públicos do Município do Rio de Janeiro e ao Arquivo Nacional, sobre o período do Rio de Janeiro como Distrito Federal, e aos arquivos do Conselho Estadual de Educação e do Ministério da Educação; aos arquivos do Tribunal Superior Eleitoral e da Igreja Batista do Engenho Novo; a coleção de objetos, documentos, jornais e revistas, fotos em poder da família Souza Marques; aos arquivos do Colégio Batista da Tijuca.
A pesquisa foi realizada de março de 2009 até novembro de 2011.
Acredito que a técnica da observação participante e das conversas em profundidade foram fundamentais para a reunião de um conjunto de dados que me permitiu uma compreensão – com profundidade – acerca do universo da pesquisa e reflexão sobre a trajetória de vida de José de Souza Marques. Somente através do trabalho de campo foi possível identificar as transformações dos espaços geográficos físico e simbólico da cidade do Rio de Janeiro devido à reestruturação do espaço urbano onde José de Souza Marques viveu e agiu, e como tal processo afetou as relações entre os múltiplos segmentos sociais em que José de Souza Marques circulou e interveio.
Para responder às questões norteadoras do estudo, foi necessário coletar – nas entrevistas temáticas e de vida, bem como durante a observação participante e as conversas profissionais em profundidade – dados acerca da vida, das ações, dos projetos e das práticas sociais, políticas, culturais, de lazer e outras de José de Souza Marques.
            Para que a pesquisa obtivesse um corpo teórico que sustente as argumentações aqui discutidas, foi necessário um consistente estudo bibliográfico acerca da relação entre história de vida, história oral, observação e pesquisa documental nos processos de constituição de representações e identidades sociais; construção de discursos políticos, de educação, de nacionalidade, de políticas sociais e demandas por direitos, ideologias e relações sociais enquanto atores sociais em disputas e tensões. Para realizar esta etapa da pesquisa, fiz um levantamento bibliográfico e documental sobre a temática em questão que revelou as relações estabelecidas entre os guardiões da memória e a trajetória de vida de José de Souza Marques.
Vale ressaltar que, para eleger as bases de um quadro referencial teórico capaz de desenvolver e responder às questões norteadores da pesquisa, foi necessário lançar-se a campo e recolher alguns dados acerca do objeto que me permitiram constituir um perfil preliminar. Sendo assim, para o estudo dos processos e práticas de constituição de uma trajetória de vida como um patrimônio imaterial, político, ideológico, cultural e histórico tive a perspectiva de dialogar com a tradição sociológica, antropológica e histórica dos estudos de memória, dinâmicas políticas, ideologia e análise de discursos, lançando mão dos discursos de Maurice Halbwachs, Gizlene Neder, Gisálio Cerqueira Filho, Carlo Ginsburg e Pierre Nora, uma vez que os autores nos apresentam a discussão da operação da memória enquanto reconstrução do tempo presente e fruto das relações sociais, sendo a memória, ao mesmo tempo, um processo constituído e constituidor. Esse processo lançou luzes para compreender e analisar os enquadramentos de memória e as memórias subterrâneas daqueles que perderam a disputa pelo espaço ou pelo capital simbólico; para compreender o contexto atual de valorização da memória e as práticas de patrimonialização imaterial cada vez mais presentes no país; para analisar a construção dos discursos sociológicos sobre memória – Malinowski; para compreender o discurso do patrimônio imaterial, intelectual e histórico enquanto construção sem, a princípio, conflitos e questionamentos aparentes – Joel Candau, Ecléa Bosi, Stuart Hall, Gilberto Velho, Luis César Baía, Olívia Galvão, Carlos Alberto Medeiros, Lívia Buxbaum –, no sentido de articular especialmente as noções de memória, identidade, nação e trajetória de vida.
Para tratar da categoria lugar da memória – e compreender suas transformações e ressignificações – lancei mão das reflexões de Mary Douglas, Tereza Scheiner, Mathilde Bellaigue, Neil Postman, Gizlene Neder, Edgar Morin, Zygmunt Baumann, Pierre Bourdieu, Norbert Elias e Roberto Cardoso de Oliveira.
As categorias coleções e objetos foram pensadas com base em Marcel Mauss, Krysztof Pomian, Eli Napoleão, James Clifford, George Simmel, Walter Benjamin e Luiz Roberto Cardoso de Oliveira.
Sociedade e comunidade foram categorias desenvolvidas a partir das considerações de Florestan Fernandes, Oraci Nogueira, Gisálio Cerqueira Filho, Guerreiro Ramos, Zygmunt Baumann, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Contardo Caligaris, Lavoisier Zizek, Darcy Ribeiro, Gilberto Freire, José Murilo de Carvalho e Antônio Cândido, para os quais o indivíduo, constituído pelo campus, irá disputar pelo capital simbólico e afetivo.
Finalmente, espaços e territórios, enquanto loci geográficos de hierarquizações, disputas e negociações, foram categorias desenvolvidas e amparadas nas considerações de Milton Santos, Bernard Bachelet, Michel de Certeau, Henri Lefebvre, Luiz César Queiroz, Paul Singer, Manuel Castells e Benício Vieira Schmidt.

NOTAS 


[1] Compreendo a ação “apropriação” enquanto atitude de poder e controle sobre o objeto apropriado, que implica em um processo de identificação. GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. A retórica da perda. Rio de Janeiro: Rio de janeiro: Editora UFRJ/IPHAN, 2002.
[2] GONÇALVES, ib, ibidem.
[3] GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais – morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
[4] HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora, 1990.
[5] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
[6] HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições Rio de Janeiro: Paz e terra, 1984.
[7] POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, v.2, nº3, Rio de Janeiro: Associação de Pesquisa e Documentação Histórica, 1989, p.3-15.
[8] NEDER, Gizlene. “Cidade, Identidade e exclusão social”. In: Tempo. Vol 2, nº 3. pp. 106‑134. Rio de Janeiro, 1997.
[9] GINZBURG, Carlo.  Mitos, emblemas, sinais – morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
[10] PENNA, Maria Luiza. Luiz Camillo: perfil intelectual. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
[11] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
[12] POMIAN, Krzyzstof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1, Memória e História. Edição Portuguesa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1997, p. 51-86.
[13] GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. Coleções, museus e teorias antropológicas reflexões sobre o conhecimento etnográfico e visualidade. In: Cadernos de antropologia e Imagem, nº8, Rio de Janeiro, 1999, p.21-34.
[14] HOBSBAWM, Eric, op. cit.
[16] HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
[17] GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. A retórica da perda. Rio de Janeiro: Rio de janeiro: Editora UFRJ/IPHAN, 2002.
[18] BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
[19] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
[20] WOLTON, Dominique. Pensar a comunicação. Brasília: UNB, 2004.
[21] DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
[22] NEDER, Gizlene. “Cidade, Identidade e exclusão social”. In: Tempo. Vol 2, nº 3. pp. 106‑134. Rio de Janeiro, 1997.
[23] NEDER, Gizlene, ib., ibidem.
[24] NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Revista História, nº 10,  São Paulo: PUC, 1993, p.7-28.
[25] Compreendidos aqui a partir de sua relação estreita com os grupos dominantes, de valores como civilização e cultura e da intenção de representação de uma totalidade. GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. “Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como gênero de discurso”. In: Cidade: História e Desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
[26] GUERREIRO RAMOS. Introdução crítica à sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
[27] DOMINGUES, José Maurício. Criatividade social, subjetividade coletiva e a modernidade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999.
[28] BOURDIEU, Pierre, op. Cit.
[29] GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1978.
[31] PERROT, M. Os excluídos da história – operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
[32] BURKE, Peter. Variedades da história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.


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Nota biográfica
Paulo Baía, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (2001) e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2006). Atualmente é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do Núcleo de Sociologia do Poder e Assuntos Estratégicos, pesquisador associado sênior do Laboratório Cidade e Poder da UFF, do Laboratório de Estudos de Gênero do IFCS/UFRJ e do Núcleo de Inclusão Social (NIS) - UFRJ. Tem experiência nas áreas de Sociologia e Ciência Política, com ênfase em sociologia política, atuando principalmente nos seguintes temas: pensamento social brasileiro, estudos estratégicos, teoria política, cultura política, pensamento social, defesa nacional, segurança pública, desigualdades sociais, cidadania, violência, direitos humanos, eleições, estudos urbanos, sistemas de informação/contra-informação/inteligência e boato. (CV Lattes). E-mail: paulorsbaia - e - paulorsbaia-ifcs.


** Artigo originalmente publicado 
BAIA, Paulo Rogério dos Santos. Pensamento Social e Político de José de Souza Marques: análise da trajetória de vida de um afro-descendente pioneiro das ações afirmativas no Brasil. Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, v. 5, p. 102-125, 2013. Disponível no link. (acessado em 8.11.2013).
- Núcleo de Inclusão Social – IFCS/UFRJ
- Laboratório Cidade e Poder - UFF 

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** Página atualizada em 18.1.2016.



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