Eugénio de Andrade, por José Viana |
É no ano de 1939 que, incitado por António Botto, publica uma plaqueta intitulada Narciso, o seu primeiro poema, ainda com o nome civil (José Fontinhas). Três anos depois é dado à estampa o primeiro livro, Adolescente (já com o pseudónimo), que, apesar de ter sido bem acolhido por algumas notas críticas na imprensa, seria posteriormente, por razões de ordem estética, renegado pelo autor. Esta posição estender-se-á ao seu segundo livro, Pureza, publicado em 1945. Bastante mais tarde, em 1977, numa edição de conjunto da sua obra, resgatará dez poemas daqueles dois livros, reunindo-os sob o título de Primeiros Poemas.
Eugénio de Andrade em 1998 - foto Alfredo Cunha |
Numa segunda fase, continuam a encontrar-se momentos tão diferentes como quando se confronta Véspera da Água (1973) com Limiar dos Pássaros, publicado em 1976. Este livro configura, no conjunto da produção poética de Eugénio de Andrade, uma espécie de nó onde se entrelaçam os principais núcleos de ressonância autobiográfica, texto denso do mais radical e perturbante olhar sobre esses núcleos. Outros livros apresentam assinaláveis marcas diferenciadoras dentro da continuidade estilística, podendo alguns deles ser aproximados por afinidades de diversa ordem, nomeadamente estruturais, caso de Memória doutro Rio (1978) e de Vertentes do Olhar (1987), onde ocorre uma comum matriz de narrativização dos poemas em prosa. Matéria Solar (1980) é um livro cujo metaforismo fulgurante se encontra próximo da equilibrada expressão de apaziguamento que irradia em Branco no Branco (1984). E se em O Peso da Sombra (1982) é onde mais notoriamente se manifesta a melancolia e a aguda consciência da passagem do tempo com seus efeitos sobre o corpo, a partir de O Outro Nome da Terra (1988) e Rente ao Dizer (1992) depara-se com um progressivo caminhar para o despojamento da expressão, aliado a uma atenção sábia às pequenas coisas da vida, às fulgurações da palavra, à cintilação das sílabas.
Eugénio de Andrade - foto: (...) |
Os últimos livros (Ofício de Paciência, 1994; O Sal da Língua, 1995; Pequeno Formato, 1997; Os Lugares do Lume, 1998; Os Sulcos da Sede, 2001) vêm confirmar a busca incessante de uma linguagem transparente face à pulsação do real quotidiano.
Em 1974, publicou Escrita da Terra e Outros Epitáfios, livro que foi sendo continuamente ampliado, ao longo dos anos, até ao seu desdobramento em volumes diferenciados (Escrita da Terra, 5ª edição, 1983; Homenagens e Outros Epitáfios, 8ª edição, 1993). A obra poética de Eugénio de Andrade encontra-se traduzida em diversas línguas (a seguir a Pessoa é o poeta português mais traduzido).
Eugénio de Andrade revela-se igualmente um notável prosador. Publicou três livros em prosa: Rosto Precário (1979), Os Afluentes do Silêncio (1968), À Sombra da Memória (1993). No primeiro, para além das poéticas explícitas, incorpora um conjunto de entrevistas apuradamente reescritas numa direção que, como afirma Vasco Graça Moura, permite “organizar uma matriz para os traços possíveis de um retrato do escritor, espécie de Narciso espelhando-se complacentemente na pose da sua própria arte poética e na sua oficina”. Nos outros dois livros, encontramos textos sobre poetas, prosadores, pintores, escultores, arquitetos, fotógrafos, músicos, sobre as cidades e regiões que conheceu bem. Todas as observações e leituras surgem impregnadas da vivência autobiográfica, e em praticamente todos esses textos encontramos traços que espelham a própria poética autoral.
Eugénio de Andrade - foto: (...) |
No domínio da tradução, a sua bibliografia inclui poemas e textos dramáticos de Lorca, uma tradução das Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado, uma edição de Poemas e Fragmentos de Safo, e um livro com o título: Trocar de Rosa, que reúne traduções de poetas contemporâneos.
O poeta organizou também diversas antologias, muitas delas de considerável êxito editorial, como foi o caso da Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, publicada em 1999; na fase final, organizou outra antologia panorâmica: Poemas Portugueses para a Juventude, publicada no ano de 2002. Assinalem-se também as recolhas de poemas de autores canónicos reunidos nos seguintes volumes: Versos e Alguma Prosa de Luís de Camões, 1972; Fernando Pessoa, Poesias Escolhidas, 1995; Sonetos de Luís de Camões, 2000. Em torno da poesia erótica portuguesa organizou: Variações sobre um Corpo (1972) e Eros de Passagem. Poesia Erótica Contemporânea (1982). Outro domínio de incidência dos volumes antológicos organizados por Eugénio de Andrade é o das recolhas de textos literários sobre cidades e regiões, como por exemplo: Daqui Houve Nome Portugal (1968), antologia consagrada ao Porto; Memórias de Alegria (1971), antologia que reúne textos sobre Coimbra; ou ainda Alentejo não tem Sombra: Antologia de Poesia Contemporânea sobre o Alentejo (1982). Para além destas recolhas, o poeta organizou algumas antologias com textos seus: Antologia Breve, 1972 (com sucessivas reedições atualizadas); A Cidade de Garrett, 1993; Chuva sobre o rosto, 1976; Coração Habitado, 1983; Com o Sol em cada Sílaba, 1991; Os Dóceis Animais, 2003.
Em 1994, deixa a exígua morada na Rua Duque de Palmela, onde viveu durante décadas, e passa a viver numa casa, apoiada pela Câmara do Porto, onde funciona uma Fundação com o seu nome. Foi nesta casa, no Passeio Alegre, na Foz do Douro, que faleceu em 13 de junho de 2005.
Eugénio de Andrade - foto: (...) |
O poeta de Ostinato Rigore insere-se na tradição dos poetas artesãos, estatuto que para si mesmo reivindica. A recorrente insistência na afirmação do princípio orientador que o faz definir-se como poeta artesão tem óbvias implicações quanto ao rigor, observado no plano das micro-estruturas fónico-rítmicas e composicionais, mas também ao nível da conformação macro-estrutural de cada poema, de cada livro. Esta atitude traz consigo as mais fundas consequências face ao olhar vigilante exercido sobre a obra globalmente considerada, o que se torna cada vez mais notório nos últimos livros. Um núcleo restrito de obsessões configura o seu universo poético, recorrências que o poeta sintetiza nestas palavras: “fluir do tempo num jogo de luzes e de sombra; a ascensão e declínio de Eros, que não pode reduzir-se meramente à sexualidade; a descoberta do próprio rosto, entre os muitos que nos impõem; a dignificação do homem, num mundo mais empenhado em negar-lhe o corpo do que em negar-lhe a alma — preocupações maiores, ao que parece, da minha poesia, sem esquecer a face acolhedora e materna extensiva a tanta imagem de vida instintivamente feliz e aberta” (Rosto Precário). O que se observa na obra é a inter-relação destes valores que conformam a intrincada constelação de temas e motivos, de metáforas e imagens multiplicando-se incessantemente sob um efeito caleidoscópico.
:: Fonte: Eugénio de Andrade, por Carlos Mendes de Sousa. In: Instituto Camões/Centro Virtual Camões. Disponível no link. (acessado em 25.5.2015).
Vastos campos
Vou fazer-te uma confidência, talvez tenha já começado a envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta. Nunca precisei de frequentar curandeiros da alma para saber como são vastos os campos do delírio. Agora vou sentar-me no jardim, estou cansado, Setembro foi mês de venenosas claridades, mas esta noite, para minha alegria, a terra vai arder comigo. Até ao fim.
- Eugénio de Andrade, em "Memória doutro Rio". 1978.
Eugénio de Andrade - foto: José Rocha/Arquivo |
OBRA DE EUGÉNIO DE ANDRADE
Poesia
:: Adolescente. (obra renegada pelo autor). 1942.
:: Pureza. 1945.
:: As mãos e os frutos. 1948.
Eugénio de Andrade, por Carlos Carneiro 1946 |
:: As palavras interditas. 1951.
:: Até amanhã. [desenhos de Jean Cocteau]. Lisboa: Guimarães, 1956.
:: Coração do dia. 1958.
:: Mar de setembro. Porto: Imprensa Portuguesa, 1961.
:: Ostinato rigore. 1964.
:: Obscuro domínio. 1971.
:: Véspera de água. 1973.
:: Escrita da terra. 1974.
:: Homenagens e outros epitáfios. 1974; Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1993.
:: Limiar dos pássaros. Porto: Limiar, 1976.
:: Chuva sobre o rosto. 1976.
:: Primeiros poemas. 1977.
:: Memória doutro Rio. 1978.
:: Matéria solar. Porto: Limiar, 1980.
:: O peso da sombra. Porto: Limiar, 1982.
:: Coração habitado: poemas. [desenhos do escultor José Rodrigues]. Porto : O Oiro do Dia, 1983.
:: Branco no branco. 1984.
:: O outro nome da terra. 1988.
:: Corpo de amor. [ilustrações José Rodrigues]..(Coleção livro Cartas). Sintra: Colares Editora, 1992.
:: Poesia, terra de minha mãe. 1992.
:: Rente ao dizer. 1992.
:: Contra a obscuridade. 1992.
:: Ser dá trabalho. 1993.
:: Ofício de paciência. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1994.
:: O sal da língua. 1995.
:: Pequeno formato. 1997.
:: Os lugares do lume. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1998.
:: Os sulcos da sede. 1999.
Poesia reunida
:: Antologia: 1945-1961. 1961.
:: Poemas: 1945-1965. 1966.
:: Antologia breve. 1972; Porto: Limiar, 1985.
:: Poesia. (Poesia Reunida). 2000.
:: Sete Livros, Sete Retratos. (Poesia Reunida), 2002.
:: Poesia. 2ª ed., revista e acrescentada. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005.
Prosa
Eugénio de Andrade, por Carlos Carneiro 1953 |
:: Rosto precário. Porto: Limiar, 1979.
:: A Domingos Peres das Eiras, com umas violetas. 1986.
:: Vertentes do olhar. 1987.
:: À sombra da memória. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1993.
:: A cidade de Garrett. 1993.
:: Pequeno caderno do oriente. 2002.
Infanto-juvenil
:: História da égua branca. Porto: Edições Asa, 1976.
:: Aquela nuvem e outras.1986.
Ensaios e outros textos
:: Porto: os sulcos do olhar. [fotografia Dario Gonçalves; aquarelas Júlio Resende]. Lisboa: Edições O Jornal, 1988, 139p.
:: As mãos e os frutos para canto e piano – sobre poemas de Eugénio de Andrade. [Fernando Lopes Graça]. Lisboa: Musicoteca, 2000.
Antologias
:: Poesia e Prosa: 1940-1979. Vol. I. 1980.
:: Poesia em Verso e Prosa. 1980.
:: Poesia e Prosa. Vol. I. Lisboa: O Jornal; Limiar, 1990.
:: Poesia e Prosa. Vol. II. Lisboa: O Jornal; Limiar, 1990.
Antologias [seleção, organização e prefácio]
:: Daqui houve nome Portugal: antologia de verso e prosa sobre o Porto. [organização e prefácio de Eugénio de Andrade].3ª ed.,aumentada. Porto: O Oiro do Dia, 1968.
:: Variações sobre um corpo: antologia de poesia erótica contemporânea. [seleção e prefácio de Eugénio de Andrade; desenhos de José Rodrigues]. Porto: Inova, imp. 1973.
:: Alentejo não tem Sombra: Antologia de poesia contemporânea sobre o Alentejo. 1982.
:: Fernando Pessoa: poesias escolhidas. 1995.
:: Antologia pessoal da Poesia Portuguesa. 1999.
:: Sonetos de Luís de Camões. 2000.
:: Poemas Portugueses para a Juventude. 2002.
Traduções realizadas por Eugénio de Andrade
:: Poemas de Garcia Lorca.1946.
:: Cartas Portuguesas. [atribuídas a Mariana Alcoforado]. 1969.
:: Poemas e fragmentos de Safo. 1974.
:: Trocar de Rosa. 1980.
EUGÊNIO DE ANDRADE - OBRA PUBLICADA NO BRASIL
:: Poemas de Eugénio de Andrade. [seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
As nuvens
Hei-de aprender um ofício de que goste, há tão poucos, talvez carpinteiro, ou pedreiro. Construiria uma casa neste chão de areia com pedras húmidas, lisas, ou cheias de limos, frias, são tão bonitas, com seus veios cruzando-se, ou afastando-se de costas uns para os outros. Havia de meter-me por esses miúdos caminhos de chibas para ver, ao fim da tarde, chegar os saltimbancos em toda a sua glória, que me apontam as nuvens lentas, muito brancas, afastando-se.
- Eugénio de Andrade, em "Memória doutro Rio". 1978.
Eugénio de Andrade, o Poeta' - Biblioteca Municipal Eugénio de Andrade - Fundão, pintura de Isabel Nunes |
POEMAS ESCOLHIDOS DE EUGÉNIO DE ANDRADE
A figueira
Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
-me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de Agosto
apenas me roçava, e partia.
- Eugénio de Andrade, em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 559.
A ilha
Tanta palavra para chegar a ti,
tanta palavra,
sem nenhuma alcançar
entre as ruínas
do delírio a ilha,
sempre mudando
de forma, de lugar, estremecida
chama, preguiçosa
vaga fugidia
do mar de Ulisses cor de vinho.
- Eugénio de Andrade, em "O ofício de paciência". 1994.
A música
Eugénio de Andrade (estudo), por Durdil 1941 |
Álamos —
música
de matutina cal.
Doces vogais
de sombra e água
num verão de
fulvos
lentos animais.
Calhandra matinal
no ar
feliz de junho.
Acidulada
música de cardos.
Música do fogo
em redor dos
lábios.
Desatada
à roda da
cintura.
Entre as pernas,
junta.
Música
das primeiras
chuvas
sobre o feno.
Só aroma.
Abelha de água.
Regaço
onde o lume breve
de uma romã
brilha.
Música, levai-me:
Onde estão as
barcas?
Onde são as
ilhas?
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro Domínio",
1972.
A pedra
A pedra. Sou-lhe fiel pelo aroma.
Vim de longe para tocar o fogo
da sua geometria sem fronteiras.
Pedra viva. Ou melhor: acariciada.
Pedra profunda, chamada pelo sol,
num voo sem fim, sempre parada.
- Eugénio de Andrade, em "Pequeno formato". 1997.
Eugénio de Andrade, por Martins Correia 1959 |
A pequena pátria
A pequena pátria; a do pão;
a da água;
a da ternura, tanta vez
envergonhada;
a de nenhum orgulho nem humildade;
a que não cercava de muros
o jardim nem roubava
aos olhos o desajeitado voo
das cegonhas; a do cheiro quente
e acidulado da urina
dos cavalos; a dos amieiros
à sombra onde aprendi
que o sexo se compartilhava;
a pequena pátria da alma e do estrume
suculento morno mole;
a da flor múltipla e tão amada
do girassol.
- Eugénio de Andrade, em "Os lugares do lume". 1998.
Adágio
O Outono é isto –
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria
e sem sentido.
- Eugénio de Andrade, em "Primeiros poemas". 1977.
Antes de saber
Até onde os dedos tocam o quente
do barro a mão sabe
antes de saber.
É um saber mais vivo, um saber
de ave: águia cegonha falcão,
animais quase no fim
como o lume destes dias.
Testemunhar a favor do lince
é nossa obrigação.
Por ser azul.
- Eugénio de Andrade, em "Ofício de paciência". 1994.
Eugénio de Andrade, por Dordio Gomes 1960 |
Aos jacarandás de Lisboa
São eles que anunciam o verão.
Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente
às nuvens altas — irmão dos pássaros —,
perder-me no ar.
- Eugénio de Andrade, do livro "Os sulcos da sede (2001)"/em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 582.
Apenas um corpo
Respira. Um corpo
horizontal,
tangível,
respira.
Um corpo nu,
divino,
respira, ondula,
infatigável.
Amorosamente toco
o que resta dos deuses.
As mãos seguem a
inclinação
do peito e tremem,
pesadas de
desejo.
Um rio interior
aguarda.
Aguarda um
relâmpago,
um raio de sol,
outro corpo.
Se encosto o
ouvido à sua nudez,
uma música sobe,
ergue-se do
sangue,
prolonga outra
música.
Um novo corpo
nasce,
nasce dessa
música que não cessa,
desse bosque
rumoroso de luz,
debaixo do meu
corpo desvelado.
- Eugénio de Andrade, em "Até Amanhã",
1956.
Eugénio de Andrade, por Laureano Ribatua (mascara de barro 1962) |
Arrepio na tarde
Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de Março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
Árvores
Sem fadiga, as árvores regressam
ao poema. Primeiro as laranjeiras,
a seguir entram as tílias.
Sempre estiveram perto, incapazes
de se afastarem dos pequenos
olhos imensos.
À sombra dos cavalos
podia vê-las chegar carregadas
do seu aroma, dos seus frutos frios.
A tarde chegava ao fim
mas tive tempo ainda
de as sentir, com um sorriso, aproximar.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
As amoras
O meu país sabe às amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
- Eugénio de Andrade, em "O outro nome da terra". 1988.
Eugénio de Andrade, por Lagoa Henriques Fão 1965 |
As maças
Da alma só sei o que sabe o corpo:
onde a esperança e a graça
aspiram ao ardor
da chama é a morada do homem.
Vê como ardem as maçãs
na frágil luz de Inverno.
Uma casa devia ser
assim: brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maçãs por companhia.
Assim: limpa, madura.
- Eugénio de Andrade, em "Ofício de paciência". 1994.
As palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
- Eugénio de Andrade, em "Coração do dia". 1958.
As razões do mundo
Eugénio de Andrade, por Armando Alves 1970 |
As razões do mundo
não são exactamente as tuas razões.
Viver de mãos acesas não é fácil,
viver é iluminar
de luz rasante a espessura do corpo,
a cegueira do muro.
Esse gosto a sangue
que trazia a primavera, se primavera havia,
não conduz à coroa do lume.
Os negros lençóis da água,
o excremento dos corvos marinhos
fazem parte da tua agonia.
E um sabor a sémen
que sempre a maresia traz consigo.
- Eugénio de Andrade, em "Branco no branco". 1984.
Cada coisa
Cada coisa tem o seu fulgor,
a sua música.
Na laranja madura canta o sol,
na neve o melro azul.
Não só as coisas,
os próprios animais
brilham de uma luz acariciada;
quando o inverno
se aproxima dos seus olhos
a transparência das estrelas
torna-se fonte da sua respiração.
Só isso faz
com que durem ainda.
Assim o coração.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Canção breve
Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.
Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.
Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.
- Eugénio de Andrade, em "Os amantes sem dinheiro". 1950.
Cantas...
Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.
Eugénio de Andrade, por Julio Resende 1976 |
Chuva de março
A chuva detrás dos vidros,
a chuva de março,
acesa até aos lábios, dança.
Mas a maravilha
não é a primavera chegar assim
como se não fora nada,
a maravilha são os versos
de Williams
sobre a rasteira e amarela
flor da mostarda.
- Eugénio de Andrade,em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 459.
Coral
É um dos corais de Leipzig,
o quarto. Sem sabermos como, desceu
ao chão da alma. A música
é este abismo, esta queda
no escuro. Com o nosso corpo
tece a sua alegria,
faz a claridade
dos bosques com a nossa tristeza.
Pela sua mão conhecemos a sede,
o abandono, a morte. Mas também
o êxtase de estrela em estrela.
E a ressurreição.
- Eugénio de Andrade. em "Os lugares do lume". 1998.
Em Lisboa com Cesário Verde
Nesta cidade, onde agora me sinto
mais estrangeiro do que um gato persa;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também;
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.
- Eugénio de Andrade, do livro "Os sulcos da sede (2001)"/em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 249-250.
Eugénio de Andrade, por Gustavo Basto 1976 |
É assim, a música
A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.
- Eugénio de Andrade, em "Os lugares do lume". 1998.
Espera
Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
- Eugénio de Andrade, em “Corpo de Amor”. Sintra: Colares Editora, 1992.
Há dias
Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo nos cai
em cima. Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença da graça,
ou da alegria.
Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.
- Eugénio de Andrade, em "Os lugares do lume". 1998.
Eugénio de Andrade, por Jorge Martins (Paris 1978) |
Introdução ao canto
Ergue-te de mim,
substância pura do meu canto.
Luz terrestre, fragância.
Ergue-te, jasmim.
Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, amanhece.
Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva.
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde.
- Eugénio de Andrade, em "Coração do dia". 1958.
Língua dos versos
Língua;
língua da fala;
língua recebida lábio
a lábio; beijo
ou sílaba;
clara, leve, limpa;
língua
da água, da terra, da cal;
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.
- Eugénio de Andrade, em "Rente ao dizer". 1992.
Madrigal
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
- Eugênio de Andrade, em "As mãos e os frutos. 1948.
Música mirabilis
Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo
– e desperte o lume.
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Eugénio de Andrade, por Mario Botas 1980 |
Na luz a prumo
Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
da água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
Nada
Nada, nem sequer o verão
está completo. Menos ainda o colar
de sílabas que, desvelado,
te ponho à roda da cintura.
Nunca me pediste mais, nunca
te dei outra coisa.
Quando juntamos as mãos esquecemos
que somos culpados da nossa inocência.
E sorrimos, alheios
ao sol que declina, à estrela
do norte que sabemos no fim.
O privilégio da vida é este
silêncio musical que do teu olhar
cai nos meus olhos
e regressa a ti acrescentado
pela luz da manhã varrendo o mar.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Nas palavras
Respiro a terra
nas palavras,
no dorso das
palavras
respiro
a pedra fresca da
cal;
respiro um veio
de água
que se perde
entre as espáduas
ou as nádegas;
respiro um sol
recente
e raso
nas palavras,
com lentidão de
animal.
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro Domínio",
1972.
No lume no gume
Eugénio de Andrade, por Carlos Amado 1984 |
Vê como a nudez cresce.
Seria fácil pousar agora
no lume
ou no gume do silêncio
se houvesse vento:
mas quem se lembra do branco
aroma da alegria?
Reconheço no vagaroso
andar da chuva o corpo do amor:
vem ferido: nas suas mãos
como dormir?
Como enxotar a morte: esse animal
sonâmbulo dos pátios da memória?
Bago a bago podes colher
a noite: está madura:
podes levar à boca
a preguiçosa espuma
das palavras.
E crescer para a água.
- Eugénio de Andrade, em "Véspera da água". 1973.
No meu desejo
Tem dó de quem não dorme,
de quem passa a noite à espera
que desperte o silêncio.
O vento devia cantar nos plátanos
com a lua nova, ser mais uma folha
feliz nos ombros do outono.
Mas o vento parecia ter endoidecido:
de leste a oeste varria
a rua, varria a noite: o vento
alegremente
varria o mundo ? em turbilhão
arrastava o lixo mil vezes imundo.
E o sono chegava.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Eugénio de Andrade, por Graça Martins 1987 |
Nocturno a duas vozes
- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?
- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação…
- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.
- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que os meus dedos têm
para colher na noite.
- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento…
- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.
- Cala-te as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
á mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.
- Eugénio de Andrade, em "Ostinato Rigore". 1964.
Eugénio de Andrade, por Fernando Lanhas 1987 |
Noite transfigurada
Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
– chegaste,
nem eu sei de que horizontes.
Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
– ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.
Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
– ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.
Nos teus dedos...
Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.
Numa fotografia
Não sejas como a névoa, nem quimera.
Demora-te, demora-te assim:
faz do olhar
tempo sem tempo, espaço
limpo – do deserto ou do mar.
- Eugénio de Andrade, em "O outro nome da terra". 1988.
O amor
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.
A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.
A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma.
Assim é o amor: mortal e navegável.
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro domínio". 1972.
Eugénio de Andrade, por Emerenciano 1988 |
O caminho das dunas
Há um barco
há um homem nas areias.
Obscuramente aprende
a morrer onde as águas são mais duras.
Sei que é verão pelo hálito da loucura
o brilho em declínio das giestas
a caminho das dunas.
O homem adormecido
e a noite do poema eram de vidro.
- Eugénio de Andrade, em "Escrita da terra." 1974.
O lugar mais perto
O corpo nunca é triste;
o corpo é o lugar
mais perto onde o lume canta.
É na alma que a morte faz a casa.
- Eugénio de Andrade, em "Ofício de paciência". 1994.
O olhar
Eu sentia os seus olhos beber os meus;
longamente bebiam, bebiam;
bebiam
até não me restar nas órbitas nenhuma
luz, nenhuma água,
nem sequer o sinal de neles ter chovido
naquele inverno.
- Eugénio de Andrade, em "Rente ao dizer". 1992.
O pequeno sismo
Há um pequeno sismo em qualquer parte
ao dizeres o meu nome.
Elevas-me à altura da tua boca
lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera!
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
O peso da sombra
A noite já devia ter caído, a pele do rio escurecera. Vozes felizes afastavam-se luminosas, desciam as escadas de mansinho, enquanto as lágrimas não tardariam a rebentar no escuro.
Eles não sabiam que o lobo conseguira fugir e o caçador adormecera de cansaço debaixo da grande árvore vermelha. Sem o menor ruído a porta começara a abrir-se primeiro foram só uns olhos de lume, depois o animal todo entrou no quarto.
Se tivesse de morrer seria agora, o peso da sombra sobre o coração, empurrando-me para as águas, cada vez mais próximas e desertas.
- Eugénio de Andrade, em "Memória doutro Rio". 1978.
Eugéneio de Andrade, por Alvaro Siza 1995 |
O sal da terra
Eram o sal da terra, as abelhas,
no ar leve
e verde das tílias.
Iam e vinham ligeiras como se a fadiga
lhes fosse alheia: algumas
regressavam à colina
onde tecem a seda da sombra;
outras caem a prumo,
embriagadas com a violenta
fragância das tímidas flores
quase apagadas.
Basta estar atento
à luz oblíqua para descobrir
como a perfeição é completa deste lado
do mundo. Mas só eu agora
de olhos fechados sigo o seu rumor.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
O silêncio
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
ainda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro domínio". 1972.
O sorriso
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.
- Eugénio de Andrade, em "O outro nome da terra". 1988.
Obscuro domínio
Eugénio de Andrade, por Alfredo Luz 1996 |
Amar-te assim desvelado
entre barro fresco e ardor.
Sorver entre lábios fendidos
o ardor da luz orvalhada.
Deslizar pela vertente
da garganta, ser música
onde o silêncio flui
e se concentra.
Irreprimível queimadura
ou vertigem desdobrada
beijo a beijo,
brancura dilacerada.
Penetrar na doçura da areia
ou do lume,
na luz queimada
da pupila mais azul,
no oiro anoitecido
entre pétalas cerradas,
no alto e navegável
golfo do desejo,
onde o furor habita
crispado de agulhas,
onde faça sangrar
as tuas águas nuas.
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro domínio". 1972.
Ocultas águas
Um sopro quase,
Esses lábios.
Lábios? Disse lábios,
areias?
Lábios. Com sede
ainda de outros lábios.
Sede de cal.
Quase lume.
Lume
quase de orvalho.
Lábios:
ocultas águas.
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Eugénio de Andrade, por Jose Rodrigues 1998 |
Oiço falar
Oiço falar da minha vocação
mendicante e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara e doiravam
o chão. A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria á minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.
- Eugénio de Andrade, em "O sal da língua". 1995.
Onde me levas, rio que cantei...
Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me levas?, que me custa tanto.
Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa,
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.
Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos,
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.
Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra face na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.
Os frutos
Assim eu queria o poema:
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.
- Eugénio de Andrade, em "Ostinato Rigore". 1964.
Os livros
Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
(Num exemplar das Geórgicas)
- Eugénio de Andrade, em "Ofício de paciência". 1994.
Ostinato
Ao desejo,
à sombra aguda
do desejo,
eu me abandono.
Meu ramo de coral,
meu areal,
meu barco de oiro,
eu me abandono.
Minha pedra de orvalho,
meu amor,
meu punhal,
eu me abandono.
Minha luz queimada,
violada,
colhe-me, recolhe-me:
eu me abandono.
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Ouço correr a noite...
Ouço correr a noite pelos sulcos
Eugénio de Andrade, por Ana Paula Lopes |
que subitamente me acaricia,
a mim, que nem sequer sei ainda
como juntar as sílabas do silêncio
e sobre elas adormecer.
- Eugénio de Andrade, em "O peso da sombra". 1982.
Outono
O Outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.
- Eugénio de Andrade, em "O outro nome da terra". 1988.
Pequena elegia de Setembro
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
- Eugénio de Andrade, do livro "Coração do dia (1958)", em "Poesia e Prosa", Vol. I, «O Jornal» / Limiar, Lisboa, 1990, p.79-80.
Também a poesia é filha
da necessidade —
esta que me chega um pouco já
fora do tempo
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida a fresca
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que no inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.
- Eugénio de Andrade, do livro "Rente ao dizer (1992)"/em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 475-476.
Procuro-te
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre – procuro-te.
- Eugénio de Andrade, em "As palavras interditas". 1951.
Que diremos ainda?
Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta a fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.
Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras, este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?
Palavras, não. Quem as sabia?
Foi apenas lembrança de outra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Sempre a água
Sempre a água me cantou nas telhas.
Habito onde as suas bicas,
as suas bocas jorram.
As palavras que no cântaro
a noite recolhe e bebe
com agrado
sabem a terra por serem minhas.
Não sou daqui e não vos devo
nada, ninguém
poderá negar a evidência
de ser chama ou água,
fluir em lugar de ser pedra.
Perdoai-me a transparência.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Serenata
Venho ao teu encontro a procurar
bondade, um céu de camponeses,
altas árvores onde o sol e a chuva
adormecem na mesma folha.
Não posso amar-te mais,
luz madura, espaço aberto.
Não posso dar-te mais do que te dou:
sangue, insónias, telegramas, dedos.
Aqui estou, fronte pura, rodeado
de sombra, de soluços, de perguntas.
Aceita esta ternura surda,
este jasmim aprisionado.
Nos meus lábios, melhor: no fogo,
talvez no pão, talvez na água,
para lá dos suplícios e do medo,
tu continuas: matinalmente.
- Eugénio de Andrade, em "Até amanhã". 1956.
Somos folhas breves...
Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
Cada ave se transforma noutro ser.
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.
Sulcos
De que lado viste chegar
o Outono? Por que janela
o deixaste entrar? És tu quem
canta em surdina, ou a luz
espessa das suas folhas?
Em que rio te despes para sonhar?
É comigo que voltas
a ter quinze anos e corres
contra o vento até te perderes
na curva da estrada?
A quem dás a mão e confias
um segredo? Diz-me,
diz-me, para que possa habitar
um a um os meus dias.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
Talvez
Talvez nem tenha nome.
Anunciado só pelo frémito
da folhagem.
O riso invisível, o grito
de um pássaro, o escuro
da voz. Certa doçura,
certa violência.
O espesso, volúvel
tecido da noite agora a roçar
o corpo da água. E por fim
a muito lenta paixão
do fogo, sufocada.
Era o verão.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Tempo em que se morre
Agora é verão, eu sei.
Tempo de facas, tempo
em que se perdem os anéis
as cobras à míngua de água.
Tempo em que se morre
de tanto olhar os barcos.
É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.
Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.
Pousas as mãos sobre o meu rosto,
e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.
E devagar, sem te voltares,
pelos espelhos entras na noite.
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro domínio". 1972.
Três ou quatro sílabas
Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.
É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.
Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.
- Eugénio de Andrade, em "Véspera da água". 1973.
Tu estás onde o olhar começa...
Tu estás onde o olhar começa
a doer, reconheço o preguiçoso
rumor de agosto, o carmim do mar.
Fala-me das cigarras, desse estilo
de areia, os pés descalços,
o grão do ar
- Eugénio de Andrade, em "Matéria solar". 1980.
Um amigo é às vezes o deserto...
Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre
um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;
é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
O real é a palavra.
- Eugénio de Andrade, em "Branco no branco". 1984.
Um nome
Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,
pela luz
onde me deito;
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte;
pelo mar
azul,
azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece;
di-lo-ei pelo sangue
violado
e limpo e inocente;
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Um rio te espera
Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque;
sombra pura
nos grandes dias de verão.
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
- Eugénio de Andrade, em "Coração do dia". 1958.
Um simples pensamento
É a música, este romper do escuro.
Vem de longe, certamente doutros dias,
doutros lugares. Talvez tenha sido
a semente de um choupo, o riso
de uma criança, o pulo de um pardal.
Qualquer coisa em que ninguém
sequer reparou, que deixou de ser
para se tornar melodia. Trazida
por um vento pequeno, um sopro,
ou pouco mais, para tua alegria.
E agora demora-se, este sol materno,
fica comigo o resto dos dias.
Como o lume, ao chegar o inverno.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre – procuro-te.
- Eugénio de Andrade, em "As palavras interditas". 1951.
Eugénio de Andrade, por José Rodrigues |
Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta a fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.
Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras, este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?
Palavras, não. Quem as sabia?
Foi apenas lembrança de outra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Sempre a água
Sempre a água me cantou nas telhas.
Habito onde as suas bicas,
as suas bocas jorram.
As palavras que no cântaro
a noite recolhe e bebe
com agrado
sabem a terra por serem minhas.
Não sou daqui e não vos devo
nada, ninguém
poderá negar a evidência
de ser chama ou água,
fluir em lugar de ser pedra.
Perdoai-me a transparência.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Serenata
Venho ao teu encontro a procurar
bondade, um céu de camponeses,
altas árvores onde o sol e a chuva
adormecem na mesma folha.
Não posso amar-te mais,
luz madura, espaço aberto.
Não posso dar-te mais do que te dou:
sangue, insónias, telegramas, dedos.
Aqui estou, fronte pura, rodeado
de sombra, de soluços, de perguntas.
Aceita esta ternura surda,
este jasmim aprisionado.
Nos meus lábios, melhor: no fogo,
talvez no pão, talvez na água,
para lá dos suplícios e do medo,
tu continuas: matinalmente.
- Eugénio de Andrade, em "Até amanhã". 1956.
Somos folhas breves...
Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
Cada ave se transforma noutro ser.
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.
Eugénio de Andrade, por Júlio Resende |
De que lado viste chegar
o Outono? Por que janela
o deixaste entrar? És tu quem
canta em surdina, ou a luz
espessa das suas folhas?
Em que rio te despes para sonhar?
É comigo que voltas
a ter quinze anos e corres
contra o vento até te perderes
na curva da estrada?
A quem dás a mão e confias
um segredo? Diz-me,
diz-me, para que possa habitar
um a um os meus dias.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
Talvez
Talvez nem tenha nome.
Anunciado só pelo frémito
da folhagem.
O riso invisível, o grito
de um pássaro, o escuro
da voz. Certa doçura,
certa violência.
O espesso, volúvel
tecido da noite agora a roçar
o corpo da água. E por fim
a muito lenta paixão
do fogo, sufocada.
Era o verão.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Tempo em que se morre
Agora é verão, eu sei.
Tempo de facas, tempo
em que se perdem os anéis
as cobras à míngua de água.
Tempo em que se morre
de tanto olhar os barcos.
É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.
Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.
Pousas as mãos sobre o meu rosto,
e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.
E devagar, sem te voltares,
pelos espelhos entras na noite.
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro domínio". 1972.
Eugénio de Andrade, por Artur Bual 1990 |
Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.
É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.
Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.
- Eugénio de Andrade, em "Véspera da água". 1973.
Tu estás onde o olhar começa...
Tu estás onde o olhar começa
a doer, reconheço o preguiçoso
rumor de agosto, o carmim do mar.
Fala-me das cigarras, desse estilo
de areia, os pés descalços,
o grão do ar
- Eugénio de Andrade, em "Matéria solar". 1980.
Um amigo é às vezes o deserto...
Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre
um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;
é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
O real é a palavra.
- Eugénio de Andrade, em "Branco no branco". 1984.
Eugénio de Andrade, por Jorge Ulisses 1980 |
Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,
pela luz
onde me deito;
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte;
pelo mar
azul,
azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece;
di-lo-ei pelo sangue
violado
e limpo e inocente;
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Um rio te espera
Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque;
sombra pura
nos grandes dias de verão.
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
- Eugénio de Andrade, em "Coração do dia". 1958.
Eugénio de Andrade, por Cristina valadas 2004 |
É a música, este romper do escuro.
Vem de longe, certamente doutros dias,
doutros lugares. Talvez tenha sido
a semente de um choupo, o riso
de uma criança, o pulo de um pardal.
Qualquer coisa em que ninguém
sequer reparou, que deixou de ser
para se tornar melodia. Trazida
por um vento pequeno, um sopro,
ou pouco mais, para tua alegria.
E agora demora-se, este sol materno,
fica comigo o resto dos dias.
Como o lume, ao chegar o inverno.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
Urgentemente
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
- Eugénio de Andrade, em "Até amanhã". 1956.
Variações em tom menor
Para jardim te queria.
Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.
Para a boca te queria.
Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
Te queria para ser
canção breve, chama pura.
- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.
Eugénio de Andrade - foto: (...) |
Vêm da infância, essas mulheres.
Caladas, discretas, sem pressa
de existir. Esplêndidas mulheres essas,
penteadas com a risca ao meio,
as orelhas descobertas pelo cabelo
de sombra clara.
No seu coração o mundo
não era tão pequeno e o que faziam
não lhes parecia humilhação.
Sabiam envelhecer com a vagarosa
luz das crianças
e dos animais da casa.
A par da rosa.
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.
Ver claro
Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.
MANUSCRITO POEMA "O SAL DA LÍNGUA", DE EUGÉNIO DE ANDRADE
Adicionar legenda |
Eugénio de Andrade, por Emerenciano 1988 |
O sal da língua
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
- Eugénio de Andrade, em "O sal da língua". 1995.
VÍDEO POEMAS
O sorriso, de Eugénio de Andrade recitado por ele mesmo
Os jacarandás
Em meados de Junho os jacarandás de Lisboa estão em flor, a sua luz fende a pupila, acaricia o dorso da sombra. É então que – sei lá se pela última vez – a inocência volta a entrar na minha vida. Olhos, mãos, alma, tudo é novo – recomeço a prodigalizar alegria, uma alegria que não procura palavras porque o seu reino não é o da expressão. Digamos que esta nova experiência, a que não quero dar nome, não se preocupa em interrogar, talvez por já não ser tempo de dúvidas, ou então por não lhe dizerem respeito essas verdades últimas, cegas como facas.
Não é um poema de obediência o que me proponho nestas linhas; trata-se de outra coisa: levar à boca fresca do ar o ardor das areias queimadas. Mas sem palavras, sem palavras.
- Eugénio de Andrade, em "Vertentes do olhar". 1987.
ESPÓLIO DO POETA EUGÉNIO DE ANDRADE
Sala de Colecções Especiais Eugénio de Andrade, instalada na Biblioteca Pública Municipal do Porto (BPMP).
Site Oficial: BPMP.
Sala de Colecções Especiais Eugénio de Andrade |
As gaivotas
Eugénio de Andrade, por Jose Rodrigues 1977 |
Nenhuma palavra acorre hoje para me ajudar a carregar com o dia. Contemplo longamente (ver é agora a minha única paixão) a ave que desenhaste no meu caderno, ferida em pleno voo – quem terá forças para impedi-la de morrer? Outras gaivotas passam quase rente à janela, vai chover. Troco este céu impassível pelas dunas de Fão, agora só na memória. Também aí as gaivotas anunciavam que a luz mudara de direcção, e algumas aproximavam-se tanto do meu rosto que eu chegava a recear que me bicassem os olhos. Elas vêm e vão, o céu está agora mais claro, já não as vejo. Talvez não caia mais que um dedalzinho de água, ou nem isso sequer.
- Eugénio de Andrade, em "Vertentes do olhar". 1987.
Fortuna crítica
RODRIGUEIRO, Amanda Aparecida. A poética de Eugênio de Andrade: Figurações do espaço. (Tese Doutorado em Letras). Universidade Estadual de Maringá, 2017. Disponível no link. (acessado em 9.1.2019)
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© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske
Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Eugénio de Andrade - poemas. Templo Cultural Delfos, maio/2015. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Eugénio de Andrade - poemas. Templo Cultural Delfos, maio/2015. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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