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Manoel de Barros - poemas

Manoel de Barros - foto: Acervo pessoal do autor

"Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um 
travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma 
folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória 
de brilhantes, um parafuso de veludo e um lado 
primaveril"
- Manoel de Barros, excerto "XII - Sábia com trevas", no livro "Arranjos para assobio" (1980), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.


BIOBIBLIOGRAFIA
:: Manoel de Barros - a natureza é sua fonte de inspiração, o pantanal é a sua poesia. Acesse AQUI.


"Tenho o privilégio de não saber quase tudo.
E isso explica 
o resto."
- Manoel de Barros, em "Menino do mato", na II parte: "Caderno de Aprendiz". São Paulo: Editora LeYa, 2010.


Manoel de Barros - arquivo da família
BREVE ANTOLOGIA POÉTICA DE MANOEL DE BARROS
Poemas selecionados das obras: Poemas concebidos sem pecado [1937] - Face imóvel [1942] - Poesias [1947] - Compêndio para uso dos pássaros [1960] - Gramática expositiva do chão [1966] - Matéria de poesia [1970] - Arranjos para assobio [1980] - Livro de pré-coisas [1985] - O guardador de águas [1989].

SEU MARGENS
Seu Zezinho-margens-plácidas, célebre fazedor de 
discursos patrióticos, agora aposentado, morava em seu 
sítio denominado A Abóbora Celeste, numa curva da estrada 
que procurava a Cacimba da Saúde. 
   Vendia passarinhos e demais produtos do sítio. 
   A gente negociava: 
   Seu Margens, dá duzentão de sabiá… 
   Vinham 3 sabiás: 2 de quiçaça e 1 de laranjeira.
- Manoel de Barros, do livro "Poemas concebidos sem pecado" (1937), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

SABASTIÃO
Todos eram iguais perante a lua 
Menos só Sabastião, mas era diz-que louco daí pra fora 
— Jacaré no seco anda? — preguntava.

Meu amigo Sabastião 
Um pouco louco 
Corria divinamente de jacaré. Tinha um 
Que era da sela dele somentes 
E estranhava as pessoas.

Naquele jacaré ele apostava corrida com qualquer peixe 
Que esse Sabastião era ordinário!
Desencostado da terra Sabastião 
Meu amigo Um pouco louco.
- Manoel de Barros, no livro "Poemas concebidos sem pecado" (1937), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

CACIMBA DA SAÚDE
 Descendo um trilheiro de pedras ladeado por cansanção 
 A gente dávamos na Cacimba 
 Na estrada à direita o casebre de Ignácio Rubafo, que 
 tinha esse nome porque se alimentava de lodo. 
 Aberta na grande pedra da cidade a Cacimba! 
 De águas milagrosas 
 Cheinhas de sapos. 
 Lá 
 A gente matávamos bentevi a soco.
- Manoel de Barros, no livro "Poemas concebidos sem pecado" (1937), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ
De tarde um homem tem esperanças. 
Está sozinho, possui um banco. 
De tarde um homem sorri. 
Se eu me sentasse a seu lado 
Saberia de seus mistérios 
Ouviria até sua respiração leve. 
Se eu me sentasse a seu lado 
Descobriria o sinistro 
Ou doce alento de vida 
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na 
praça, quieto.
- Manoel de Barros, do livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH
Hoje eu vi 
Soldados cantando por estradas de sangue 
Frescura de manhãs em olhos de crianças 
Mulheres mastigando as esperanças mortas

Hoje eu vi homens ao crepúsculo 
Recebendo o amor no peito. 
Hoje eu vi homens recebendo a guerra 
Recebendo o pranto como balas no peito.

E, como a dor me abaixasse a cabeça, 
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

AURORA NO FRONT
Das mãos caíam rezas como orvalho 
Caíam rezas das mãos curvas 
Sobre a aurora entrevista 
No fantástico andar dos gatos.
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

PAZ
Esta janela aberta 
As cadeiras em ordem por volta da mesa 
A luz da lâmpada na moringa 
Duas meninas que conversam longe…

Paz! 
O telefone que descansa 
As cortinas azuis que nem balançam

Mas sobre uma cadeira alguém está chorando. 
Paz!
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

O SOLITÁRIO
Os muros enflorados caminhavam ao lado de um 
homem solitário 
  Que olhava fixo para certa música estranha 
  Que um menino extraía do coração de um sapo.

  Naquela manhã dominical eu tinha vontade de sofrer 
  Mas sob as árvores as crianças eram tão comunicativas

  Que me faziam esquecer de tudo 
  Olhando os barcos sobre as ondas…

  No entanto o homem passava ladeado de muros! 
  E eu não pude descobrir em seu olhar de morto 
  O mais pequeno sinal de que estivesse esperando alguma dádiva!

  Seu corpo fazia uma curva diante das flores.
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

O MURO
Não possuía mais a pintura de outros tempos. 
Era um muro ancião e tinha alma de gente. 
Muito alto e firme, de uma mudez sombria.

Certas flores do chão subiam de suas bases 
Procurando deitar raízes no seu corpo entregue ao tempo. 
Nunca pude saber o que se escondia por detrás dele. 
Dos meus amigos de infância, um dizia ter violado tal 
segredo, 
E nos contava de um enorme pomar misterioso.

Mas eu, eu sempre acreditei que o terreno que ficava atrás 
do muro era um terreno abandonado!
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

SINGULAR, TÃO SINGULAR
Ó passar-se invisível pela alma da alameda de casas 
espaçosas 
Imaginando a feição ideal dentro de cada uma!

Ir recebendo um pouco de poesia no peito 
Sem lembranças do mundo, sem começo… 
Chegar ao fim sem saber que passou 
Tranquilo como as casas, 
Cheio de aroma como os jardins. 
Desaparecer. 
Não contar nada a ninguém. 
Não tentar um poema. 
Nem olhar o nome na placa. 
Esquecer. 
Invisível, deixar apenas que a emoção perdure
Fique na nossa vida fresca e incompreensível 
Um mistério suave alisando para sempre o coração.

Singular, tão singular…
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

INSTANTE ANUNCIADO
 Um chapéu velho!
 Eu não via seu rosto, que um velho chapéu,
 Esmaecido pelo sol, cobria.
 Mas sei que não chorava
 E nem tinha desejo de falar.
 Porque sabia que alguma coisa vinha chegando
 De manso, alguma coisa vinha chegando…
 Eu não via seu rosto,
 Seu rosto sombreado que um velho chapéu,
 Esmaecido pelo sol, cobria.
 Mas sei como ele amou aquele instante
 Mas sei com que prazer ele esperou
 Aquela que viria com os lábios úmidos para ele
 A que havia de vir passar as mãos
 Pelos seus joelhos feridos.
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

MANSIDÃO
As casas dormiam na hora surda do meio-dia. 
O corpo do homem penetrou sob árvores 
Na longa quietude estendida da rua. 
Tudo permaneceu sem um grito, 
Um pedido de socorro sequer. 
Ninguém soube se o coração vibrou. 
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou. 
Ninguém sabe nada. 
Não traz um lamento, 
Nem marca dos pés no chão vai ficar. 
Tão triste é a vida sem marca dos pés! 
Tudo permaneceu sem um grito, 
Um pedido de socorro sequer. 
Ele passou sem calúnias 
E é possível que sem corpos que o chamassem. 
Ninguém soube se o coração vibrou 
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro 
No estranho momento das coisas paradas.
- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

2 - FRAGMENTO DE CANÇÕES E POEMAS 
São mil coisas impressentidas 
Que me escutam:
O movimento das folhas 
O silêncio de onde acabas de voltar 
E a luz que divide o corpo do nascente

São mil coisas impressentidas 
Que me escutam: 
São os pássaros assustados, assustados, 
Tuas mãos que descobrem o convite da terra 
E os poemas como ilhas submersas…

São mil coisas impressentidas 
Que me escutam: 
Sou eu apreensivamente 
Solicitado pela inflorescência 
Redescoberto pelo bulir das folhas…
- Manoel de Barros, no livro "Poesia" (1947), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

8 - FRAGMENTO DE CANÇÕES E POEMAS 
A boca está aberta, seca e escura 
De raízes mortas… 
Encontro restos de orvalho 
No rosto da terra, e os bebo

Ao silêncio do enxofre que penetra 
Deito-me para germinar… 
Ouço fluir a seiva 
Ouço o caule crescer

Do ventre que gesta sob ramas… 
Uma flor de moliços depois 
Irá comendo o contorno dos lábios 
E as mãos sem despedidas.

Corpo em árvore feito 
Serei como talha de pedra 
Na terra, com molduras de fresco 
E hortênsias…

Ervas tolhiças crescerão 
Nos interstícios do ser 
E o que foi música e sede de sarças 

Há de ser pasto de águas…
- Manoel de Barros, no livro "Poesia" (1947), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

11 - FRAGMENTO DE CANÇÕES E POEMAS 
Aqui: ardo e maduro. 
Compreendo as azinheiras. 
Compreendo a terra podre e fermentada 
De raízes mortas.

Compreendo a presciência do fruto 
Na carne intocada.

E assisto crescerem 
Frescos, nessa carne, os teus dedos.

Compreendo esse garfo na terra 
A germinar ferrugens 
Sob laranjais…

E o grão que semearam na pedra. 
E mais: os troncos rugosos 
Pendendo suas bocas para as águas.
- Manoel de Barros, no livro "Poesia" (1947), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

14 - FRAGMENTO DE CANÇÕES E POEMAS 
Seria homem ou pássaro? 
Não tinha mãos. 
Vestígios de sua boca iam para flor. 
Havia uns sonhos 
Dependurados como roupa. 
Uns podres ornamentos de pano e móbiles
Gâmbias dispersas, 
Cata-vento. Perto 
Havia um barco. 
Barco ou peixe? 
Não pude precisar. 
Vi o homem andando para semente 
E a semente no escuro remando para raiz.
- Manoel de Barros, no livro "Poesia" (1947), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

16 - FRAGMENTO DE CANÇÕES E POEMAS 
Ai, sossego de terras pisadas por mim… 
E os silêncios caídos como folhas 
Nos limites de uma tarde aberta… 
Que importa que a criatura se surpreenda 
Sem paisagem, e presa à sua carne? 
Se esta rosa pousada em tua boca 
Tão molhada de chuvas! se abandone 
Ao esquecimento. 
E se refaz em caule, 
Em beijo, em sono. 
Ou se corrompe 
Como um homem exposto numa mesa — 
Como um rio cria o seu lodo e o afoga.
- Manoel de Barros, no livro "Poesia" (1947), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

ZONA HERMÉTICA
De repente, intrometem-se uns nacos de sonhos; 
Uma remembrança de mil novecentos e onze; 
Um rosto de moça cuspido no capim de borco; 
Um cheiro de magnólias secas. O poeta 
Procura compor esse inconsútil jorro; 
Arrumá-lo num poema; e o faz. E ao cabo 
Reluz com a sua obra. Que aconteceu? Isto: 
O homem não se desvendou, nem foi atingido: 
Na zona onde repousa em limos 
Aquele rosto cuspido e aquele 
Seco perfume de magnólias, 
Fez-se um silêncio branco… E aquele 
Que não morou nunca em seus próprios abismos 
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas 
Não foi marcado. Não será marcado. Nunca será exposto 
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.
- Manoel de Barros, no livro "Poesia" (1947), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

O MENINO E O CÓRREGO
       (ao Pedro)


A água é madura. 
Com penas de garça. 
Na areia tem raiz 
de peixes e de árvores.

Meu córrego é de sofrer 
pedras Mas quem beijar seu corpo 
é brisas…

II 
O córrego tinha um cheiro 
de estrelas 
nos sarãs anoitecidos

O córrego tinha 
suas frondes 
distribuídas 
aos pássaros

O córrego ficava à beira 
de um menino…

III 
No chão da água 
luava um pássaro 
por sobre espumas 
de haver estrelas

A água escorria 
por entre as pedras 
um chão sabendo 
a aroma de ninhos.

IV 
Ai 
que transparente 
aos voos 
está o córrego! 
E usado 
de murmúrios…


Com a boca escorrendo chão 
o menino despetalava o córrego 
de manhã todo no seu corpo.

A água do lábio relvou entre pedras…

Árvores com o rosto arreiado 
de seus frutos 
ainda cheiravam a verão 
Durante borboletas com abril 
esse córrego escorreu só pássaros…
- Manoel de Barros, no livro "Compêndio para uso dos pássaros" (1960), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

CAMINHADA
Eu vinha aquela tarde pela terra 
fria de sapos… 
O azul das pedras tinha cauda e canto.

De um sarã espreitava meu rosto um passarinho. 
Caracóis passeavam com róseos casacos ao sol. 
As mãos cresciam crespas para a água da ilha.

Começaram de mim a abrir roseiras bravas. 
Com as crinas a fugir rodavam cavalos 
investindo os orvalhos ainda em carne.

De meu rosto viam ribeiros…

Limpando da casa-do-vento os limos 
no ar minha voz pisava…
- Manoel de Barros, no livro "Compêndio para uso dos pássaros" (1960), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

IV. A MÁQUINA DE CHILREAR E SEU USO DOMÉSTICO
O POETA (por trás de uma rua minada de seu rosto 
andar perdido nela) 
— Só quisera trazer pra meu canto o que pode ser 
carregado como papel pelo vento

A LUA (com a noite nos lábios) 
— Pelo nome do rosto se apostava que era cálido

O PÁSSARO (olhos enraizados de sol) 
— Ainda que seu corpo permanecesse ardendo, o 
amor o destruiria

O CÓRREGO (perdido de borboletas) 
— O dia todo ele vinha na pedra do rio escutar a 
terra com a boca e ficava impregnado de árvores

O PÁSSARO (em dia ramoso, roçando seu rosto na erva 
dos ventos) 
— Há réstias de dor em teus cantos, poeta, como um 
arbusto sobre ruínas tem mil gretas esperando chuvas…

O CÓRREGO (apertado entre dois vaga-lumes) 
— … como no fundo de um homem uma árvore não 
tem pássaros!

O MAR (encostado na rã) 
— Em cima das casas um menino avino assobia 
de sol!

O SOL (sobre caules de passarinhos e pedras com 
rumores de rios antigos) 
— Iam caindo umas folhas de mar sobre as casas 
dos homens

A ESTRELA (sentada nos ombros de Ezequiel, o 
profeta, em Congonhas do Campo) 
— … e o silêncio escorava as casas!

O POETA (se usando em farrapos) 
— Meu corpo não serve mais nem para o amor nem 
para o canto

O CARAMUJO (olhos embaraçados de noite) 
— E a Máquina de Chilrear, Poeta?

A ÁRVORE (desinfluída de cantos) 
— É possessão de ouriços

A RÃ (de dentro de sua pedra) 
— … sua voz parece vir de um poço escuro

O PÁSSARO (cheiroso som de asas no ar) 
— Ela está enferrujada

A ÁRVORE (apoderada de estrelas) 
— Até o chão se enraíza de seu corpo!

O CÓRREGO (no alto de seus passarinhos) 
— Ervas e grilos crescem-lhe por cima

O PÁSSARO (submetido de árvores) 
— A Máquina de Chilrear está enferrujada e o limo 
apodreceu a voz do poeta

CHICO MIRANDA (na rua do Ouvidor) 
— O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, 
das pedras. Sua gramática se apoia em contaminações 
sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de 
árvores, de rãs

A ESTRELA (com ramificações de luar) 
— Muitos anos o poeta se empassarou de escuros, 
até ser atacado de árvore

O POETA (lesmas comendo seus cadernos relógios 
telefones) 
— Ai, meu lábio dormia no mar estragado!

O MAR (restos de crustáceos agarrados em suas pernas) 
— Parecia ter dado à praia como um pedaço de pau

A FORMIGA (carregando um homem na rua, de 
atravessado) 
— Eu vi o chão, era uma boca de gente comida de 
lodo!

O POETA (ventos o assumindo como roupas) 
— Os indícios de pessoas encontrados nos homens 
eram apenas uma tristeza nos olhos que empedravam

O CARAMUJO (se tirando de escuros, cheirando a 
seus frutos)
— Restos de pessoas saindo de dentro delas mesmas 
aos tropeços, aos esgotos, cheias de orelhas enormes 
como folhas de mamona

O CÓRREGO (mudando de passarinhos entardecentes) 
— Mas o que trinca está maduro, poeta

O POETA (ensinado de terra) 
— Amar é dar o rosto nas formigas

A PÁSSARA (nas frondes do mar) 
— Meus filhos também construíram suas casas com 
vigas de chuva

FRANCISCO (cumprimentando aos arbustos) 
— Olhai os cogumelos pondo as bocas!
- Manoel de Barros, no livro "Gramática expositiva do chão" (1966), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

O PALHAÇO
Gostava só de lixeiros crianças e árvores 
Arrastava na rua por uma corda uma estrela suja. 
Vinha pingando oceano! 
Todo estragado de azul.
- Manoel de Barros, no livro "Matéria de poesia" (1970), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

PÁSSARO
Rios e mariposas 
Emprenhados de sol 
Eis um dia de pássaro ganho
- Manoel de Barros, no livro "Matéria de poesia" (1970), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

A DESCOBERTA
Anos de estudo 
e pesquisas: 
Era no amanhecer 
Que as formigas escolhiam seus vestidos.
- Manoel de Barros, no livro "Matéria de poesia" (1970), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

I - SABIÁ COM TREVAS
Caminhoso em meu pântano, 
dou num taquaral de pássaros

Um homem que estudava formigas e tendia para 
pedras me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO 
CONHECIDO: Só me preocupo com as coisas inúteis

Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, 
com versos cobertos de hera e sarjetas que abriam 
asas sobre nós

O homem estava parado mil anos nesse lugar sem 
orelhas
- Manoel de Barros, no livro "Arranjos para assobio" (1980), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

II - SABIÁ COM TREVAS
Me abandonaram sobre as pedras infinitamente nu, 
e meu canto. 
Meu canto reboja. 
Não tem margens a palavra. 
Sapo é nuvem neste invento. 
Minha voz é úmida como restos de comida.
A hera veste meus princípios e meus óculos. 
Só sei por emanações por aderência por incrustações. 
O que sou de parede os caramujos sagram. 
A uma pedrada de mim é o limbo. 
Nos monturos do poema os urubus me farreiam. 
Estrela é que é meu penacho! 
Sou fuga para flauta e pedra doce. 
A poesia me desbrava. 
Com águas me alinhavo.
- Manoel de Barros, no livro "Arranjos para assobio" (1980), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

X - SABIÁ COM TREVAS
Borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra. 
O sapo é muito equilibrado pelas árvores. 
Dorme perante polens e floresce nos detritos. 
Apalpa bulbos com os seus dourados olhos. 
Come ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vaga-lume para as margaridas. 
Precisa muito de sempre Passear no chão. 
Aprende antro e estrelas. 
(Tem dia o sapo anda estrelamente!) 
Moscas são muito predominadas por ele. 
Em seu couro a manhã é sanguínea. 
Espera as falenas escorado em caules de pedra. 
Limboso é seu entardecer. 
Tem cios verdejantes em sua estagnação.
 No rosto a memória de um peixe. 
De lama cria raízes e engole fiapos de sol.
- Manoel de Barros, no livro "Arranjos para assobio" (1980), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
OFERTA
Arcado ser — 
eu sou o apogeu do chão. Deixa passar o meu 
estorvo o meu trevo a minha corcova 
Senhor! 
(este assobio vai para todas as pessoas pertencidas 
pelos antros)
- Manoel de Barros, no livro "Arranjos para assobio" (1980), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
O PULO
Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo 
sapo ficou teso de flor! 
e pulou o silêncio
- Manoel de Barros, no livro "Arranjos para assobio" (1980), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
SERVIÇOS
Catar um por um os espinhos da água 
restaurar nos homens uma telha de menos 
respeitar e amar o puro traste em flor
- Manoel de Barros, no livro "Arranjos para assobio" (1980), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

O PERSONAGEM
6. RETRATO DE IRMÃO
Era um ente irresolvido entre vergôntea e lagarto. 
Tordos que externam desterro sentavam nele. Sua voz era 
curva pela forma escura da boca. (Voz de sótão com 
baratas luminosas.) Dava sempre a impressão que 
estivesse saindo de um bueiro cheio de estátuas. 
— Conforme o viver de um homem, seu ermo cede — ensinava. 
Era a cara de um lepidóptero de pedra. E tinha um 
modo de lua entrar em casa. 
Deixou-nos um TRATADO DE METAMORFOSES 
cuja Parte XIX, Livro de pré-coisas, transcrevemos.

LIVRO DE PRÉ-COISAS
Tudo, pois, que rasteja partilha da terra. 
            HERÁCLITO

Andava atrás das casas, como um corgo urbano, entre latas 
podres e rãs.
• 
Sorna lagarta curta recorta a roupa de um osso.
• 
Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem.
• 
Se no tranco do vento a lesma treme, 
no que sou de parede a mesma prega; 
se no fundo da concha a lesma freme, 
aos refolhos da carne ela se agrega; 
se nas abas da noite a lesma treva, 
no que em mim jaz de escuro ela se trava; 
se no meio da náusea a lesma gosma, 
no que sofro de musgo a cuja lasma; 
se no vinco da folha a lesma escuma, 
nas calçadas do poema a vaca empluma!

Vaga-lumes driblam a treva.
• 
Esse jarro aromal e seus vermes cor de vinho! 
(A avidez do obscuro é que me estorva.)
• 
Os rios começam a dormir pela orla.
• 
Pois o que disse Joyce foi que o arame farpado 
quem inventou foi uma freira, para amarrar na 
cintura dela quando viesse a tentação.
• 
Essa abulia vegetal sapal pedral — não será de
ele ter sido ontem árvore?
• 
Um canteiro de larvas estrábicas, o brejo.
• 
Baratas glabras se fedem nas dobras.
• 
Restolho tem mais força do que o tronco. Isso é 
uma desteoria que ele usava. Depois: Viva a 
ascensão do restolho! (Palavras de Chico Miranda.)
• 
Sapo nu tem voz de arauto.

O peixe-cachorro
Era um peixe esquisito pra cachorro: 
Cruza de lobisomem com tapera? 
Filho de jacaré com cobra-d’água? Ou 
Simplesmente cachorro de indumentos?

Era muito esquisito para peixe 
E pra cachorro lhe faltava andaime. 
Uma feição com boca de curimba 
E o traseiro arrumado para entrega.

Se peixe, o rabo empresta ao liso campo 
Um andar de moreia atravancada. 
Sendo cachorro não arranca a espada?

Difícil de aceitar esse estrupício 
Como um peixe; ainda que nade. 
Pra cachorro não cabe no possível.
• 
Flores engordadas nos detritos até falam!
• 
Sapos com rio atrás de casa atraem borboletas 
amarelas.

— Eu briguei naquele menino com uma pedra… 
Crianças desescrevem a língua. Arrombam 
as gramáticas. (Como um cálice lilás de beco!)

Os grilos de olhos sujos se criam nos armazéns.
• 
Bicho acostumado na toca encega com estrela.
• 
Eu havia de pedir desculpas sobre a esperança. 
Olhares que pesavam malvas. Esterco fumegante. 
O sangue escuro como um corte ácido no 
vaso de uma rês. Tudo me perturbava. E mais 
abaixo, sobre o estrado da cama, aquele cheiro 
de sol na boca atormentada de uma fêmea.
• 
Ovo de lobisomem não tem gema.
• 
Lagarto apressado atravessa o terreiro. Olho de angu.
• 
No garfo da árvore seca uma casa de amassabarro! 
Ele edifica com lama. A gula do podre 
influi em seus traços. Porém. No que edifica o 
sol tem raios túrgidos.
• 
No lodo, apura o estilo, o sapo.
• 
Ermo se toca em sanfona.

Raiz de caracol, no lodo, dilui-se.
• 
Se tem pacu no rio, de manhã desventa.
• 
Cortázar conta que quando alguma expressão 
lhe queria sujar, ele a camuflava. Assim: espectador
ativo virou Hespectador Hativo. Com essas 
vestimentas de HH, aquele lugar-comum não 
lhe sujava mais.
• 
Marandovás me ensinam, com seu corpo de 
sanfona, a andar em telhas.
• 
Formiga de bunda principal em pé de fedegoso 
anda entortada.
• 
De tarde, iminente de lodo, ia sentar-se no 
banco do jardim. (Diminuíram o seu jardim 
de 40 roseiras e uns vermes.) 
Lesmava debaixo dos bancos. O homem 
sentia-se em ruínas: um lanho em vez de torso 
era sua metáfora. 
As ruínas só serviam para guardar civilizações 
e bosta de sapo. 
Amava caracóis pregados em palavras.
• 
Um rio tomado banho pelos tordos depura-se.
- Manoel de Barros, no livro "Livro de pré-coisas" (1985), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§
PEQUENA HISTÓRIA NATURAL
7. A NOSSA GARÇA
Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras. 
São viúvas de Xaraés? Alguma coisa em azul e 
profundidade lhes foi arrancada. Há uma sombra de dor 
em seus voos. Assim, quando vão de regresso aos seus 
ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens. 
Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu 
sei. É a de não ser ela uma ave canora. Pois que só 
grasna — como quem rasga uma palavra. 
De cantos portanto não é que se faz a beleza desses 
pássaros. Mas de cores e movimentos. Lembram 
Modigliani. Produzem no céu iluminuras. E propõem 
esculturas no ar. 
A Elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu? 
Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos. 
Insetos de camalotes florejam de suas rêmiges. 
E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos. 
Aqui seu voo adquire raízes de brejo. Sua arte de 
ver caracóis nos escuros da lama é um dom de brancura. 
À força de brancuras a garça se escora em versos 
com lodo? 
(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas 
garças. Insinuando contrastes — ou conciliações? 
— entre o puro e o impuro etc. etc. Não estarei 
impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus 
os livre!)
- Manoel de Barros, no livro "Livro de pré-coisas" (1985), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

III - O GUARDADOR DE ÁGUAS
Nascimento da palavra:
Teve a semente que atravessar panos podres, criames
de insetos, couros, gravetos, pedras, ossarais de peixes,
cacos de vidro etc. — antes de irromper.

Agora está aberto no meio do monturo um grelo pálido.

Não sabemos até onde os podres o ajudaram nessa
obstinação de ver o sol.

Ó absconsos ardores!

É atro o canto com reentrâncias que sai das escórias
de um ser.
Os nascidos de trapo têm mil encolhas…


P.S. No achamento do chão também foram descobertas as origens do voo.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

V - O GUARDADOR DE ÁGUAS
Eles enverdam jia nas auroras.
São viventes de ermo. Sujeitos
Que magnificam moscas — e que oram
Devante uma procissão de formigas… 

São vezeiros de brenhas e gravanhas. 

São donos de nadifúndios. 

(Nadifúndio é lugar em que nadas 
Lugar em que osso de ovo 
E em que latas com vermes emprenhados na boca. 
Porém. 
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor 
de ninguém. 
Nem ao Néant de Sartre. 
E nem mesmo ao que dizem os dicionários: coisa que 
não existe. 
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com letra minúscula.) 
Se trata de um trastal. 
Aqui pardais descascam larvas. 
Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro. 
E uma concha com olho de osso que chora. 
Aqui, o luar desova… 
Insetos umedecem couros 
E sapos batem palmas compridas… 
Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

X - O GUARDADOR DE ÁGUAS
É o mais engenhoso estafermo. 
Sem mexer com a boca ele tira ardor de pétalas! 
Atrás de sua casa trabalha um tordo cego 
E um rio emprenhado de rãs até os joelhos. 
De manhã ouve frases do tordo. 
Prende aragens de manga nos cabelos. 
O lodo aceso das moscas — 
Guarda em vasos de pedra. 
Ave, pedras! 
Um roxo a vegetal encorpa em seu casaco — o 
mesmo roxo enfermo das violetas desmolhadas… 
Sabe coisas por concha e água. 
Cigarras lhe sonetam sobre outubro. 
Esse homem 
Teria, sim 
O que um poeta falta para árvore.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

XII - O GUARDADOR DE ÁGUAS
Ele tem pertinências para árvore. 
O pé vai se alargando, via de calangos, até ser 
raizame. Esse ente fala com águas. 
É rengo de voz e pernas. 
Se esconde atrás das palavras como um perro. 
Formigas se mantimentam nas nódoas de seu casaco. 
De um turvo cheiro órfico os caracóis o escurecem. 
Um Livro o ensinou a não saber nada — agora já sabe. 
Estrela encosta quase em sua boca descalça.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

II - MURMÚRIOS O RECITAM SOBRE A TARDE
Em suas ruínas 
Homizia sapos 
Formigas carregam suas latas 
Devaneiam palavras
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

V - PEDRAS APRENDEM SILÊNCIO NELE
Sonham os musgos 
De o revestir. 
É referente de conchas 
A lua elide os véus pra ele.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

4 - SEIS OU TREZE COISAS 
QUE EU APRENDI SOZINHO
Tem quatro teorias de árvore que eu conheço. 
Primeira: que arbusto de monturo aguenta mais formiga. 
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra 
     um poder mais lúbrico de antros. 
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior 
de horizontes.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

5 - SEIS OU TREZE COISAS 
QUE EU APRENDI SOZINHO
A água passa por uma frase e por mim. 
Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos. 
A boca desarruma os vocábulos na hora de falar 
E os deixa em lanhos na beira da voz.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

7 - SEIS OU TREZE COISAS 
QUE EU APRENDI SOZINHO
O rio atravessou um besouro pelo meio — e uma falena. 
Era um besouro de âmbar, hosco 
E uma falena de Ocaso. O besouro 
Enfiou na falena seu aguilhão 
E a trouxe para seu esconderijo. 
Depois esplendorou-a toda antes de comê-la.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

8 - SEIS OU TREZE COISAS
QUE EU APRENDI SOZINHO 
Uma chuva é íntima 
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas; 
Se aparecem besouros nas folhagens; 
Se as lagartixas se fixam nos espelhos; 
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores; 
E o escuro se umedeça em nosso corpo.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

10 - SEIS OU TREZE COISAS 
QUE EU APRENDI SOZINHO
Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, 
    a lesma deixa risquinhos líquidos… 
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as 
   palavras
Neste coito com letras! 
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se 
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma 
    escorre… 
Ela fode a pedra. 
Ela precisa desse deserto para viver.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

12 - SEIS OU TREZE COISAS 
QUE EU APRENDI SOZINHO
Que a palavra parede não seja símbolo 
de obstáculos à liberdade 
nem de desejos reprimidos nem de proibições na infância 
etc. (essas coisas que acham 
os reveladores de arcanos mentais) 
Não. 
Parede que me seduz é de tijolo, adobe 
preposto ao abdômen de uma casa. 
Eu tenho um gosto rasteiro de 
ir por reentrâncias 
baixar em rachaduras de paredes 
por frinchas, por gretas — com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego. 
Tal um verme que iluminasse.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

I - RETRATO QUASE APAGADO EM QUE 
SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA
Não tenho bens de acontecimentos. 
O que não sei fazer desconto nas palavras. 
Entesouro frases. Por exemplo: 
— Imagens são palavras que nos faltaram. 
— Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem. 
— Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser. 
Ai frases de pensar! 
Pensar é uma pedreira. Estou sendo. 
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo). Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos. 
Outras de palavras. 
Poetas e tontos se compõem com palavras.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

III - RETRATO QUASE APAGADO EM QUE 
SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA
Chove torto no vão das árvores. 
Chove nos pássaros e nas pedras. 
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros. 
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados. 
Crianças fugindo das águas 
Se esconderam na casa. 
Baratas passeiam nas fôrmas de bolo… 
A casa tem um dono em letras. 
Agora ele está pensando — 
        no silêncio líquido 
        com que as águas escurecem as pedras… 
Um tordo avisou que é março.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

IV - RETRATO QUASE APAGADO EM QUE 
SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos. 
Ela pode ser o germe de uma apagada existência. 
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la. 
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil, 
ao ouro que trazem da boca do chão. 
Andei nas negras pedras de Alfama. 
Errante e preso por uma fonte recôndita. 
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

VI - RETRATO QUASE APAGADO EM QUE 
SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA
No que o homem se torne coisal — corrompem-se nele 
      os veios comuns do entendimento. 
Um subtexto se aloja. 
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que 
     empoema o sentido das palavras. 
Aflora uma linguagem de defloramentos, um 
     inauguramento de falas. 
Coisa tão velha como andar a pé 
Esses vareios do dizer.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.

§

IX - RETRATO QUASE APAGADO EM QUE 
SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA
Eu sou o medo da lucidez. 
Choveu na palavra onde eu estava. 
Eu via a natureza como quem a veste. 
Eu me fechava com espumas. 
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas. 
Peguei umas ideias com as mãos — como a peixes. 
Nem era muito que eu me arrumasse por versos. 
Aquele arame do horizonte que separava o morro do céu 
    estava rubro. 
Um rengo estacionou entre duas frases. 
Um descor 
Quase uma ilação do branco. 
Tinha um palor atormentado a hora. 
O pato dejetava liquidamente ali.
- Manoel de Barros, no livro "O guardador de águas" (1989), em 'Poesia completa: Manoel de Barros'. São Paulo: Editora Leya, 2010.


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Um comentário:

  1. POEMAS EM FORMA DE CISCO

    I
    Meu fazer é solitário e estercorário
    Onde entram harpas, sapos , trolhas
    E o ovo do sol.
    Paisagens comem no meu olho.
    Só bato continência para árvore, pedra
    e cisco.
    Meninos ramificados de rios me chamam.
    Sei de conchas em mim ouvindo hinos.

    II
    Dou para moer lírios com o olho tem dia.
    Aproveito do chão assonâncias e ritmos.
    Vou pondo num caderno tudo que habita
    À minha beira:

    Estafermos com indícios de árvore
    Vespas com olho de lã
    Pessoas afetadas de inúteis e limos
    Resíduos arcaicos pregados na língua
    Guardadores de terisco (mistura de teréns com cisco)
    O osso de uma fala minada de harpas
    Lama gemente e ávida
    Um útero em lanhos brancos
    Um canteiro de vermes estrábicos
    O próprio viveiro de ínfimos.

    No meu caderno, a lua encosta uma casa no
    Morro – e a dorme.
    E uma palavra amanhece entre aves.
    Para mim,
    Ardentes são as coisas desimportantes;

    III
    Há um silêncio parado banhando as moscas
    Quando Bernardo aparece.
    As coisas da terra lhe dão gala.
    Ele aduba os escuros do chão
    Conversa pelo olho
    E escuta pelas pernas como os grilos.
    Bernardo tem fé quase assim de molusco.
    Agora ele está perdendo o contorno das folhas.
    Outro dia me disse que encontrou canoas
    encalhadas em avestruzes
    Achei uma nódoa de osga em seu casaco.
    Ele benzeu a osga.
    Admito que ele seja uma mistura de avena e urgo.
    Ele é o que falta para árvore ser gente.

    IV
    Ele era incorrido em conchas.
    E via bem as albas nelas.
    E ensinava os meninos que o seguiam
    Que bastava encostar o rosto na terra
    Que a gente escutava os cantos.
    Porque todo chão é concha.
    E tudo que vem do fundo de uma concha,
    Quando nada, é Alba.
    Porém o que a gente escutava.
    Eram formas enfermas do escuro.

    V.
    Esse ermo cria motucas.
    Por aqui não existem ruínas de civilização
    Ferragens destripadas de deserto
    Essas coisas que aparecem nos relentos da Europa.
    Aqui é brejo, boi e cerrado.
    E anta que assobia sem barba e sem banheiro.
    O homem se completa com os bichos,
    Com os seus marandovás
    E com suas águas. (*)

    ------
    (*) Águas são fêmeas de chão. E ambos, água e chão,
    Merecem o gosto de se entrarem. Também árvores têm
    Atração por rios e por gente. Merecem o gosto de se darem.
    Abre-se uma pedra para que o verde lha entre ao dentro.
    O erotismo do chão se enraíza na boca.
    Meu olho entra nas águas sem roupa.

    VI.
    Perto do rio tenho 7 anos.
    Acho vestígios de uma voz de pássaro nas águas.
    Há pela tarde uma dissipação de aves.
    Afundo um pouco o rio com o meu sapato.
    Desperto um som de raízes com isso.
    A altura do som é quase azul.
    Chegam as andorinhas com vestígios de chuvas.
    (Meus ocasos mudaram de aves?)
    Vejo um incêndio de girassóis na alma de uma lesma.
    Os morros se andorinham longemente...
    Andar perante corgos abre arpejos.

    VII
    Parou bem de frente
    pra tarde
    um tordo torto.

    (Ali até se enfecavam patos.
    Esse chão de poleiro perturba a ordem
    gramatical e o entendimento
    entre os homens.)

    VIII
    Se a arte é o homem acrescentado à Natureza,
    Como queria Van Gogh,
    Eu preciso de desreinar também.
    Preciso ser de outros reinos.
    O da água o da pedra o do sapo.
    Eu sofro preferência para pedras.
    Fui convidado pelas aves para ser árvore.
    Limos cingem meu exílio.
    Me desejam
    Tentam enverdar meus pés.
    Em suas pedras moram meus indícios.

    IX
    Tive o cheiro de nascer entre árvores.
    O som de um lodo em êxtase me persegue.
    De que gosto mais é de fazer frase ao dente.
    Eu ouço o rumor das palavras.
    Tudo isso bota névoa nos meus cadernos.
    Meus cadernos começam a criar nódoas, cabelos.
    As ervas sobem neles.
    Às três horas da madrugada saio
    me arrastando nos meus ruídos de relva

    (1991) - livro inédito

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