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Borges: “Sou um anarquista conservador”
Em 1982, por conta de um trabalho escolar, um menino de 15 anos pediu um encontro com o escritor, que, para sua surpresa, aceitou o convite
por Claudio Pérez Míguez (*) - El País | Madri, 14 junho 2016.
Quando eu cursava o terceiro ano do ensino secundário, em Don Bosco, distrito de Quilmes, na província de Buenos Aires, com quinze anos de idade, a professora de literatura, uma espanhola radicada desde pequena na Argentina e grande admiradora da obra de García Lorca, Josefa Iglesias de Fanelli, deu como trabalho prático que escolhêssemos alguém para entrevistar.
A literatura e a figura de Borges, tão polêmica naqueles anos, já tinham chamado a minha atenção, por isso tive a ideia de fazer a reportagem com ele. Nem eu nem as pessoas com quem eu convivia tínhamos contatos no meio literário, daí a ideia de ver se encontrava o número dele na lista telefônica. Procurando por Borges, vi que o telefone ainda estava em nome da mãe dele, Leonor Acevedo de Borges, que já era falecida. Lembro-me do número até hoje: 42-2801. Liguei imediatamente e fui atendido por Fanny Úbeda, a mulher que cuidava da casa, que me disse que Borges estava em viagem.
Como havia um prazo para entregar o trabalho, tentamos outras pessoas para cumprir a tarefa, mas, quando faltavam dois dias, ocorreu-me a ideia de tentar novamente. Fui de novo atendido pela senhora Fanny, e quando já esperava falar com alguma outra pessoa para explicar minha ideia para que esta então a transmitisse para Borges, ela passou o aparelho diretamente para ele, que, depois de ouvir a minha solicitação, disse: “Venha amanhã ou depois de amanhã, entre 10 e 10 e meia”. Naquela mesma noite, preparei as perguntas. Mostrei-as ao meu pai, para que me desse a sua opinião sobre o questionário, e ele me sugeriu que eu, em vez de tentar fazer uma entrevista imitando as que eram feitas pelos jornalistas em busca de uma declaração bombástica para dar um bom título, tentasse encará-la do meu ponto de vista, focando naquilo que poderia ser do meu interesse, com a idade que eu tinha. Pareceu-me um bom conselho, e procurei mudar as perguntas nesse sentido.
Como se tratava de um trabalho em grupo, convidei meus colegas e vários deles me acompanhavam quando cheguei à casa de Borges, é claro, às 10 horas da manhã do dia seguinte.
Esse encontro possibilitou que eu passasse a visita-lo com frequência na sua casa, levando-o a falar com os alunos na minha escola, a visita a minha casa, em um grande número de encontros que certamente moldaram o meu gosto pelos livros e pelo universo da literatura. Mas isso já outra história. Voltando ao que nos diz respeito: a entrevista foi feita no apartamento de Borges, na rua Maipú, 994, em Buenos Aires, no dia 29 de julho de 1982, mais de um ano antes da volta da democracia à Argentina. O resultado é este que transcrevemos a seguir e que permanecia inédito até agora. “Para mim, nem parece” que já se passaram mais de três décadas desde a sua morte. “O tempo que os mármores desgasta” muda muitas coisas, outras não. Suas palavras continuam a iluminar o meu caminho.
Poderia nos contar como era formada a sua família?
Sim. Minha mãe era descendente de europeus, católica, mas católica da maneira argentina, ou seja, mais por uma questão social do que teológica. Minha avó inglesa era de tradição protestante, de pastores metodistas. Sabia a Bíblia de cor. Você recitava um versículo qualquer, e ela dizia, sim, Livro de Jó, capítulo tal, versículo tal, e assim em diante. Entre os protestantes, tem muita gente que conhece a Bíblia de cor. Nos hotéis, por exemplo, na Inglaterra, na Escócia e também em Nova York, tem sempre uma Bíblia na gaveta do criado-mudo. Além, disso, as citações bíblicas, que podem soar pedantes em castelhano, são muito comuns em inglês. As pessoas estão sempre fazendo citações de versículos da Bíblia ou de frases bíblicas, e não soa nada pedante. Em contrapartida, nos países católicos, pareceria uma coisa forçada. De forma que minha avó era muito religiosa, metodista.
A família de minha mãe era católica, como eu dizia, à maneira dos países latinos, de uma forma superficial. Meu pai era agnóstico, quer dizer, um livre pensador, e todos nos dávamos muito bem; isso jamais foi motivo de discórdia.
O que mais posso dizer sobre a minha família? Meu pai era professor de Psicologia no Colégio de Línguas Vivas, e lembro muito bem o quanto ele ganhava, era também advogado, assessor cível. Tinha de dar duas aulas de Psicologia por semana no Colégio e lhe pagavam 100 pesos por mês. Cem pesos por mês era um bom dinheiro na época, sendo que hoje em dia diz mais respeito à literatura fantástica. Hoje, 100 pesos não significam nada. Naquele tempo sim; tudo era muito mais barato do que agora. Lembro que o dólar valia 2 pesos e cinquenta centavos. Acho que hoje o valor dele subiu bastante, não? Acho que a nossa moeda é a mais barata do mundo.
Do lado do meu pai e minha mãe, era uma família militar. Meu avô, o Coronel Francisco Borges, morreu, realmente, na batalha de La Verde, que aconteceu perto do vilarejo de 25 de Maio, na província de Buenos Aires. Meus avós participaram da campanha pela independência, depois das guerras civis, da guerra com o Brasil, tudo isso.
Agora, do lado da minha avó inglesa, não. Eram pastores e professores.
Quais estudos o senhor fez?
Poucos. Estudei no Collège de Genebra, estudei e tenho o meu diploma. Ali havia duas matérias principais, que eram o francês e o latim. Eu logo percebi que, se estudasse bastante o francês e o latim, poderia prescindir das outras matérias, o que fez com que me tornasse uma pessoa extremamente ignorante, pois tive aulas de física, botânica, mineralogia, zoologia, música, ginástica, química, e não sei absolutamente nada sobre esses assuntos. História, sim, disso eu gosto. Mas, na Suíça, a aula de história não era obrigatória, e sim opcional. Se quiser, você pode estudar História suíça, se não quiser, não estuda. Eu tinha muito interesse em conhecer a história da Suíça, pois vivia ali, , por isso estudei. São obrigatórias a história antiga, a moderna etc; mas a suíça, não.
Esse é o único diploma que eu tenho. Todos os outros são títulos Honoris Causa, que são apenas fruto de generosidades. Sou Doutor Honoris Causa de Tucumán, de Nova York, de universidades italianas, colombianas, mexicanas, também de Harvard, de Oxford, da Sorbonne, mas acredito que posso ser chamada do doutor, já que esses títulos de Honoris Causa são um favor que outorgam a algumas pessoas, e é claro que agradeço a eles, pois é uma honra, embora eu não saiba se realmente a mereço.
Pessoalmente, posso dizer apenas que sou formado no Collège de Calvino de Genebra.
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Eu não sei. Não me lembro de uma época em que não lesse ou escrevesse. Eu sempre estava lendo e escrevendo. Mas meu pai me disse para só ler aquilo que me interessasse, que não lesse um livro pelo sentimento de dever, porque era famoso. Que eu lesse apenas quando me interessasse, e que só escrevesse quando tivesse necessidade de fazê-lo. Que eu escrevesse muito, que descansasse muito e que não me apressasse para publicar, já que publicar não é parte necessária do destino de um escritor.
Como conseguiu publicar seu primeiro livro?
Meu primeiro livro foi publicado tardiamente. Eu tinha 24 anos. Chamava-se Fervor de Buenos Aires e foi publicado aqui, em Buenos Aires. Meu pai me deu 300 pesos, que me permitiram imprimir 300 exemplares. Não foi colocado à venda. Reparti entre meus amigos. Me agradava muito. Mas, na realidade, era o quarto livro que eu escrevi. Tinha escrito três antes que, curiosamente, destruí. Talvez devesse ter destruído esse também.
Como surgem suas obras? O senhor se senta para escrever sistematicamente ou o faz quando sente a necessidade?
Isso é muito complexo. Eu sinto que há algo que quer que eu escreva sobre ele, e eu tento dissuadi-lo. Mas se há um assunto que volte, um argumento de um conto ou um poema, então escrevo. Me parece um erro procurar assuntos. É preciso deixar que os assuntos procurem e encontrem alguém. Senão saem livros fabricados.
Creio que todo o mundo escreve assim, ainda que os jornalistas, não. Eles procuram assuntos. E, por exemplo, um escritor que admiro muito, Capdevila, escreveu um livro sobre as 14 províncias argentinas. É muito estranho que todas tenham lhe interessado e que tenham lhe interessado de maneira favorável. Isso é fabricar um livro. Eu, por exemplo, escrevi um poema em homenagem à água, mas não me ocorreu escrever para o fogo, a terra e o ar. Seria uma coisa mecânica. Escrevi um poema para a água porque me interessava. De modo que procurar assuntos é um erro. Há escritores que se propõem a escrever sobre a vida dos camponeses de tal lugar, e assim saem os livros.
Qual de seus livros é o seu favorito e por que?
Bem, a maioria não me agrada. Me conformo com eles. Aproveitei as chamadas obras completas para omitir dois livros. Para mim, meu melhor livro é o que se chama El Libro de Arena. É de fácil leitura, um livro curto, não uso nenhuma palavra que solicite o uso do dicionário. É um livro de contos, e outro livro de contos de que gosto é El Informe de Brodie. El Libro de Arena é o único com o qual estou satisfeito. Talvez o tempo também julgue o mesmo e apague os demais, que são realmente rascunhos apagáveis.
Mas há muita gente que admira toda a sua obra...
Sim, mas não me encontro entre eles. Isso é um erro, e eu não sei se agradeço, porque não sei se podemos agradecer aos erros.
Como o senhor definiria a si mesmo?
Se eu tivesse que me definir diria um escritor, ainda que talvez fosse melhor dizer um leitor, já que creio que sou melhor leitor do que escritor.
Como é um dia na vida de Jorge Luis Borges?
Bom, de manhã, se tenho sorte, recebo a visita de jornalistas de Quilmes. Mas geralmente meus dias não são tão favoráveis, portanto faço uma sesta e escrevo algo.
O que é a amizade para o senhor?
Quando Eduardo Mallea publicou o livro História de Una Passión Argentina, eu pensei: deve ser sobre a amizade, já que a amizade é a paixão argentina, talvez a única. Eu tenho essa impressão de que a amizade é muito importante para nós, o que está bem, não?
Como definiria Buenos Aires?
Eu tenho um poema, no meu último livro, que se chama La Cifra. Vou citar o primeiro verso, que é uma definição: “Nasci em outra cidade que também se chamava Buenos Aires”. Ou seja, que mudou tanto que é outra. É que uma pessoa não chega aos 83 anos impunemente. Aos 83 anos, quase todos os meus amigos estão na Recoleta. A cidade mudou totalmente. Eu nasci no centro de Buenos Aires, na rua Tucumán, entre Esmeralda e Suipacha. Todo o quarteirão, salvo o armazém que ficava na esquina, era de casas baixas, com terraços, pátios e cisternas. Havia algumas casas altas construídas depois, na rua 25 de Maio ou na Reconquista.
O que o senhor diria aos jovens que começam a se interessar pelos problemas do país?
Eu não sei. Há tantos problemas. Na melhor das hipóteses este país consegue se salvar, apesar de eu não ver como. A situação é ruim. Não só aqui como no mundo inteiro. Talvez todos os momentos sejam terríveis e estejamos sentindo mais este porque está mais próximo. Não vejo salvação possível e talvez caminhemos para a terceira guerra, que pode ser a última. O que está acontecendo no Líbano, o que aconteceu aqui, o que está acontecendo no Iraque e no Irã. Esperemos que não, porque seria um suicídio da humanidade.
O senhor acredita que os jovens devem se interessar pela política?
Não sei. Eu nunca me interessei por política. Me interesso mais pela ética. Creio que se cada pessoa age de maneira ética, isso pode ter um efeito político muito grande.
Que forma de governo o senhor prefere?
Eu gostaria de ter um governo mínimo, mas lamentavelmente os governos – até os maus governos – ainda são necessários. Como a polícia, que evidentemente é necessária. Se fôssemos eticamente perfeitos, os governos não seriam necessários. Eles são um perigo, sem dúvida. Mas eu não posso opinar em matéria de política. Sou um anarquista conservador. Meu pai era anarquista. Uma vez fomos a Montevidéu e meu pai me disse para prestar atenção nas bandeiras, nos postos alfandegários, nos uniformes, nas igrejas, nas delegacias, porque tudo isso iria desaparecer. Nós, quando fomos à Europa em 1914, viajamos sem passaporte. Não existia passaporte. Você passava de um país a outro como de uma sala a outra. Em seguida veio a Primeira Guerra Mundial, a desconfiança, a espionagem, e agora tudo mudou, não se pode dar um passo sem se identificar. É muito triste. Espero que em Quilmes as coisas estejam melhores do que em Buenos Aires.
Como o senhor imagina o futuro da Argentina?
Quero pensar que já terei morrido, mas acredito que vamos ladeira abaixo. Eu já não tenho esperança. Vocês são jovens, talvez tenham esperanças. Eu já não tenho nenhuma.
Claudio Pérez Míguez e Jorge Luis Borges em 1982 em Buenos Aires. |
Claro que não! Quem pensa isso não me conhece em nada.
Para terminar, o senhor gostaria de nos deixar algum conselho ou mensagem?
Eu não soube administrar minha vida, então não posso dirigir a vida dos outros. Minha vida foi uma série de equívocos. Não posso dar conselhos. Ando um pouco à deriva. Quando penso no meu passado, sinto vergonha. Eu não transmito mensagens, os políticos transmitem mensagens.
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(*) Claudio Pérez Míguez coordenador do Centro de Arte Moderno de Madri e diretor do Centro Editores.
:: Publicado originalmente em 'brasil.elpais', 14 de junho de 2016. (acessado em 14.6.2016).
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