Florbela Espanca |
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também."
- Florbela Espanca, do poema "Poetas".
"O meu mundo não é como o dos
outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma
angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma
pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta,
atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades...sei lá
de quê!"
-
Florbela Espanca, em "Carta nº 147".
"Há uma primavera em cada vida
é preciso cantá-la assim florida."
- Florbela Espanca, em "Charneca em flor: sonetos".
Florbela Espanca (Vila Viçosa/Alentejo - Portugal, 8 de
Dezembro de 1894 — Matosinhos/Portugal, 8 de Dezembro de 1930). Florbela d'Alma da Conceição Espanca
tem hoje seus versos admirados em todos os cantos do mundo, diferentemente do
que aconteceu quando ainda viva, época em que foi praticamente ignorada pelos
apreciadores da poesia e pelos críticos de então. Os dois livros que publicou,
por sua conta, em vida, foram "O Livro das Mágoas" (1919) e
"Livro de "Sóror Saudade" (1923). Às vésperas da publicação de
seu livro "Charneca em Flor", em dezembro de 1930, Florbela pôs fim à
sua vida. Tal ato de desespero fez com que o público se interessasse pelo livro
e passasse a conhecer melhor a sua obra. Dizem os críticos que a polêmica e o
encantamento de seus versos é devida à carga romântica e juvenil de seus
poemas, que têm como interlocutor principal o universo masculino.
Florbela e o irmão Apeles Espanca (1904)
|
Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...
Sou aquela que passa a ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
OBRA DE FLORBELA
ESPANCA – PRIMEIRAS EDIÇÕES
Florbela Espanca |
A lista
que se segue indica, em ordem cronológica, as obras escritas por Florbela, na
sua primeira edição, bem como as cartas da poetisa vindas a público.
Posteriormente, ao longo dos anos, as suas obras foram reeditadas sob diversas
perspectivas, ora reunindo toda a sua obra poética, ora reunindo apenas os
sonetos, ora incluindo apenas os diversos contos que escreveu.
Livro de Mágoas. 1ª edição, s. l., Edição da
Autora, 1919
Livro de Soror Saudade. 1ª edição, Lisboa, Edição da
Autora, 1923.
Charneca em Flor: sonetos
de Florbela Espanca.
(edição póstuma), 1ª edição, Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931.
Juvenília: versos
inéditos de Florbela Espanca.
[precedidos dum estudo crítico de Guido Battelli], 1ª edição, Coimbra, Livraria
Gonçalves, 1931.
Cartas de Florbela
Espanca a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli. 1ª edição, Coimbra, Livraria
Gonçalves, 1931.
As Máscaras do Destino. [contos]. 1ª edição, Porto,
Editora Maranus, 1931
Cartas de Florbela
Espanca [e
evocação lírica de Florbela Espanca por Azinhal Abelho e José Emídio Amaro], 1ª
edição, Lisboa, Edição dos Autores, s.d.
Diário do Último Ano [seguido de um poema sem título],
1ª edição (edição fac-similada), Amadora, Bertrand Editora, 1981.
O Dominó Preto, contos. 1ª edição, Amadora, Bertrand
Editora, 1982.
POEMAS ESCOLHIDOS DE FLORBELA ESPANCA
O que tu és...
És Aquela que tudo te entristece
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada
merece.
Aquela que o sol claro entenebrece
A que nem sabe a estrada que ora
trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e
aquece!
Mar-Morto sem marés nem ondas
largas,
A rastejar no chão como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!
És ano que não teve Primavera...
Ah! Não seres como as outras
raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
[A A.G]
Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso
peito...
Abre-lhe as folhas devagar, com
jeito,
Como se fossem pétalas de flor.
Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais
perfeito
Não esfolhes os lírios com que é
feito
Que outros não tenho em meu jardim
de dor!
Livro de mais ninguém! Só meu! Só
teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos
sois!
Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta
gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os
dois!..."
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Fumo
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem
ninhos!
Meus olhos são dois velhos
pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces plenas de carinhos!
Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...
Invoco o nosso sonho! Estendo os
braços!
E ele é, ó meu amor pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus
dedos...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Caravelas
Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.
Tanto tenho aprendido e não sei
nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de
malfadada!
Se eu sempre fui assim este
Mar-Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram.
Caravelas doiradas a bailar...
Ai, quem me dera as que eu deitei ao
Mar!
As que eu lancei à vida, e não
voltaram!...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes
deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Um sol a apagar-se e outro a acender
Nas brumas dos atalhos por onde
ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai
surgindo,
Que há de partir também... nem eu
sei quando...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
A noite desce...
Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!
Assim mãos de bondade me beijassem!
Assim me adormecessem! Caridosas
Em braçados de lírios, de mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!
A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe embriagada, louca!
E a noite vai descendo, sempre calma...
Meu doce Amor tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!
- Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Manuscrito do poema "O nosso mundo", de Florbela Espanca (Acervo BN/Portugal) |
O nosso mundo
Ao meu homem querido
Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu amor eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos...
Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!
A vida, meu Amor, quer vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor?... As nossas bocas juntas!...
- Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Esfinge
Sou filha da charneca erma e
selvagem.
Os giestais, por entre os
rosmaninhos,
Abrindo os olhos d'oiro, p'los
caminhos,
Desta minh'alma ardente são a
imagem.
Embalo em mim um sonho vão, miragem:
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!
E à noite, à hora doce da ansiedade
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da saudade...
E à tua espera, enquanto o mundo
dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar...
Esfinge olhando a planície enorme...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Noturno
Amor! Anda o luar todo bondade,
Beijando a terra, a desfazer-se em
luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!
E eu ponho-me a pensar... Quanta
saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!
Minh'alma, que eu te dei, cheia de
mágoas,
E nesta noite o nenúfar dum lago
'Stendendo as asas brancas sobre as
águas!
Poisa as mãos nos meus olhos com
carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e
vago...
E deixa-me chorar devagarinho...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!
E deixa sobre as ruínas crescer
heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!
Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para
erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!
Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar...
Deixa-os tombar.
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
A vida
É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés
d'alguém
O mesmo é que lançar flores ao
vento!
Todos somos no mundo "Pedro
Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo donde vem!
A mais nobre ilusão morre...
desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...
Amar-te a vida inteira eu não
podia...
A gente esquece sempre o bem dum dia.
Que queres, ó meu Amor, se é isto a
Vida!...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Saudades
Saudades! Sim.. talvez.. e por que
não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah, como é
vão!
Que tudo isso, Amor, nos não
importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.
Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
"Refugia-te na Arte"
diz-me Alguém
"Eleva-te num vôo espiritual,
Esquece o teu amor, ri do teu mal,
Olhando-te a ti própria com desdém.
Só é grande e perfeito o que nos vem
Do que em nós é Divino e imortal!
Cega de luz e tonta de ideal
Busca em ti a Verdade e em mais
ninguém!"
No poente doirado como a chama
Estas palavras morrem... E n'Aquele
Que é triste, como eu, fico a
pensar...
O poente tem alma: sente e ama!
E, porque o sol é cor dos olhos
d'Ele,
Eu fico olhando o sol, a soluçar...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Suavidade
Pousa a tua cabeça dolorida
Tão cheia de quimeras, de ideal,
Sobre o regaço brando e maternal
Da tua doce Irmã compadecida.
Hás-de contar-me nessa voz tão qu’rida
A tua dor que julgas sem igual,
E eu, pra te consolar, direi o mal
Que à minha alma profunda fez a
Vida.
E hás-de adormecer nos meus joelhos...
E os meus dedos enrugados, velhos,
Hão-de fazer-se leves e suaves...
Hão-de pousar-se num fervor de crente,
Rosas brancas tombando docemente,
Sobre o teu rosto, como penas de aves...
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Fanatismo
Minh’alma, de sonhar-te, anda
perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha
vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa... ”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!
... ”
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem para dizer!
São talhados em mármore Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer!
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda.
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não fiz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
- Florbela Espanca, livro "Sonetos", Bertrand
Brasil - Rio de Janeiro, 2002, pág. 69.
Esquecimento
Esse de quem eu era e era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.
Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tateio sombras... que
ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!
Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...
E desse que era eu meu já me não
lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que
esquecemos...!
- Florbela Espanca, livro "Sonetos", Bertrand
Brasil - Rio de Janeiro, 2002, pág. 181.
Aos olhos dele
Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa;
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.
Fiquei então sem fé; e a toda a gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!
Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:
Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m'encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!
- Florbela Espanca, livro "Sonetos", Bertrand
Brasil - Rio de Janeiro, 2002, pág. 22.
Ser poeta
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem
beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de
cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
- Florbela Espanca, livro "Sonetos", Bertrand
Brasil - Rio de Janeiro, 2002, pág. 118.
Velhinha
Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
"Já ela é velha! Como o tempo
passa"!..."
Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio de oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!
Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente...
Já murmuro orações... falo sozinha...
E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Vaidade
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e
insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
E não sou nada!...
- Florbela Espanca, livro "Sonetos", Bertrand
Brasil - Rio de Janeiro, 2002, pág. 06.
Exaltação
viver! Beber o vento e o sol! Erguer
Ao céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!
A chama, sempre rubra, ao alto a arder!
Asas sempre perdidas a pairar!
Mais alto até estrelas desprender!
A glória! A fama! Orgulho de criar!
Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos estáticos, pagãos!
Trago na boca o coração dos cravos!
Boêmios, vagabundos, e poetas,
Com eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Florbela Espanca |
Horas Rubras
Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens
desmaiadas...
Oiço as olaias rindo
desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las
estradas...
Os meus lábios são brancos como
lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve branca e
misteriosa...
e sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!
-
Florbela Espanca, in O livro de Sóror Saudade (1923).
Lágrimas Ocultas
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra
vida...
E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das
primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida de um lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma,
Ninguém as vê cair dentro de mim!
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
A minha dor
À você
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal ...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias ...
A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve ... ninguém vê ...
ninguém ...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Impossível
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe ...
O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?! ...”
Quando se sofre, o que se diz é vão ...
Meu coração, tudo, calado, ouviste ...
Os meus males ninguém os adivinha ...
A minha Dor não fala, anda sozinha ...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera! ...
Os males de Anto toda a gente os sabe!
Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera! ...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe ...
O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?! ...”
Quando se sofre, o que se diz é vão ...
Meu coração, tudo, calado, ouviste ...
Os meus males ninguém os adivinha ...
A minha Dor não fala, anda sozinha ...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera! ...
Os males de Anto toda a gente os sabe!
Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera! ...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Hora sagrada dum entardecer
De Outono, à beira-mar, cor de safira,
Soa no ar uma invisível lira ...
O sol é um doente a enlanguescer ...
A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!
O sol morreu ... e veste luto o mar ...
E eu vejo a urna de oiro, a balouçar,
À flor das ondas, num lençol de espuma.
As minhas Ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna de oiro,
No mar da Vida, assim ... uma por uma
...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Pequenina
À Maria Helena Falcão Risques
És pequenina e ris ... A boca breve
É um pequeno idílio cor-de-rosa ...
Haste de lírio frágil e mimosa!
Cofre de beijos feito sonho e neve!
Doce quimera que a nossa alma deve
Ao Céu que assim te faz tão graciosa!
Que nesta vida amarga e tormentosa
Te fez nascer como um perfume leve!
O ver o teu olhar faz bem à gente ...
E cheira e sabe, a nossa boca, a flores
Quando o teu nome diz, suavemente ...
Pequenina que a Mãe de Deus sonhou,
Que ela afaste de ti aquelas dores
Que fizeram de mim isto que sou!
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
A flor do sonho
A Flor do Sonho, alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.
Pende em meu seio a haste branda e fina
E não posso entender como é que,
enfim,
Essa tão rara flor abriu assim! ...
Milagre ... fantasia ... ou, talvez,
sina ...
Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!
...
Desde que em mim nasceste em noite
calma,
Voou ao longe a asa da minha’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi ...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Noite de saudade
A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura
...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura ...
Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura ...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!
Por que és assim tão escura, assim tão
triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma Saudade igual à que eu contenho!
Saudade que eu sei donde me vem ...
Talvez de ti, ó Noite! ... Ou de
ninguém! ...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que
tenho!!
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Florbela Espanca |
Ao vento
O vento passa a rir, torna a passar,
Em gargalhadas ásperas de demente;
E esta minh’alma trágica e doente
Não sabe se há-de rir, se há-de chorar!
Vento de voz tristonha, voz plangente,
Vento que ris de mim sempre a troçar,
Vento que ris do mundo e do amor,
A tua voz tortura toda a gente! ...
Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!
Desabafa essa dor a sós comigo,
E não rias assim ! ... Ó vento, chora!
Que eu bem conheço, amigo, esse fadário
Do nosso peito ser como um Calvário,
e a gente andar a rir pla vida fora!!
...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Em busca do amor
O meu Destino disse-me a chorar:
“Pela estrada da Vida vai andando,
E, aos que vires passar, interrogando
Acerca do Amor, que hás-de encontrar.”
Fui pela estrada a rir e a cantar,
As contas do meu sonho desfilando ...
E noite e dia, à chuva e ao luar,
Fui sempre caminhando e perguntando ...
Mesmo a um velho eu perguntei:
“Velhinho,
Viste o Amor acaso em teu caminho?”
E o velho estremeceu ... olhou ... e riu
...
Agora pela estrada, já cansados,
Voltam todos pra trás desanimados ...
E eu paro a murmurar: “Ninguém o viu!
...”
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Para quê?!
Tudo é vaidade neste mundo vão ...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão! ...
Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes
vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!
...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
A um livro
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.
Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!
Leio-o, e folheio, assim, toda a
minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto! ...
Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! ... Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto! ...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
Eu queria ser o Sol, a luz imensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até a morte!
Mas o Mar também chora de tristeza ...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um
crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim de um
dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras ... essas ... pisa-as toda a
gente! ...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Castelã da tristeza
Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor ...
E nunca em meu castelo entrou alguém!
Castelã da Tristeza, vês? ... A quem?
...
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do
sol-pôr ...
Chora o silêncio ... nada ... ninguém
vem ...
Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de
horas,
À sombra rendilhada dos vitrais? ...
À noite, debruçada, plas ameias,
Porque rezas baixinho? ... Porque
anseias? ...
Que sonho afagam tuas mãos reais? ...
- Florbela Espanca, do livro de Mágoas, - in Sonetos. Amadora, Portugal: Bertrand, 1978.
Os meus versos
Leste os meus versos? Leste? E adivinhaste
O encanto supremo que os ditou?
Acaso, quando os leste, imaginaste
Que era o teu esse olhar que os
inspirou?
Adivinhaste? Eu não posso acreditar
Que adivinhasses, vês? E até, sorrindo.
Tu disseste para ti: "Por um olhar
Somente, embora fosse assim tão lindo,
Ficar amando um homem!... Que
loucura!"
- Pois foi o teu olhar; a noite escura,
- (Eu só a ti digo, e muito a medo...)
Que inspirou esses versos! Teu olhar
Que eu trago dentro d'alma a soluçar!
..........................................................
Aí não descubras nunca o meu segredo!
- Florbela, in “O livro D'ele” (1915-1917).
Sonhando
É noite pura e linda. Abro a minha
janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa
bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é
teu!
D'olhos fechados sonho. A noite é uma
elegia
Cantando brandamente um sonho todo
d'alma
E enquanto a lua branca o linho bom
desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e
calma.
Lá vem a tua agora... Numa carreira
louca
Tão perto que passou, tão perto à minha
boca
Nessa carreira doida, estranha e
caprichosa
Que a minh'alma cativa estremece,
esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija... e a tua
alma passa!...
- Florbela, in “O livro D'ele” (1915-1917).
O teu segredo
O mundo diz-te alegre porque o riso
Desabrocha em tua boca, docemente
Como uma flor de luz! Meigo sorriso
Que na tua boca poisa alegremente!
Chama-te o mundo alegre. Ai, meu amor,
Só eu inda li bem nessa alegria!...
Também parece alegre a triste cor
Do sol, à tarde, ao despedir-se o
dia!...
És triste; eu sei. Toda suavidade
Tão roxa, como é roxa uma saudade
É a tua alma, amor, cheia de mágoa.
Eu sei que és triste, sei. O meu olhar
Descobriu o segredo, que a cantar
Repoisa nos teus olhos rasos d'água!
- Florbela, in “O livro D'ele” (1915-1917).
Carta para longe
Florbela Espanca |
O tempo vai um encanto,
A Primavera 'stá linda,
Voltaram as andorinhas...
E tu não voltaste ainda!...
Porque me fazes sofrer?
Porque te demoras tanto?
A Primavera 'stá linda...
O tempo vai um encanto...
Tu não sabes, meu amor,
Que, quem 'spera, desespera?
O tempo está um encanto...
E, vai linda a Primavera...
Há imensas andorinhas;
Cobrem a terra e o céu!
Elas voltaram aos ninhos...
Volta também para o teu!...
Adeus. Saudades do sol,
Da madressilva e da hera;
Respeitosos cumprimentos
Do tempo e da Primavera.
Mil beijos da tua q'rida,
Que é tua por toda a vida.
- Florbela Espanca, in “O livro D'ele” (1915-1917).
Versos
Versos! Versos! Sei lá o que são
versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz. cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma.
Versos!... Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!
Meus versos!... Sei eu lá também que
são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...
Versos! Versos! Sei lá o que são
versos..
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!...
- Florbela Espanca, in “O livro D'ele” (1915-1917).
O teu olhar
Quando fito o teu olhar,
Duma tristeza fatal,
Dum tão íntimo sonhar,
Penso logo no luar
Bendito de Portugal!
O mesmo tom de tristeza,
O mesmo vago sonhar,
Que me traz a alma presa
Às festas da Natureza
E à doce luz desse olhar!
Se algum dia, por meu mal,
A doce luz me faltar
Desse teu olhar ideal,
Não se esqueça Portugal
De dizer ao seu luar
Que à noite, me vá depor
Na campa em que eu dormitar,
Essa tristeza, essa dor,
Essa amargura, esse amor,
Que eu lia no teu olhar!
- Florbela Espanca, in “O livro D'ele” (1915-1917).
Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.
Amo a hera que entende a voz do muro,
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.
Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...
- Florbela Espanca, in “Reliquiae”, [publicado como apêndice,
nas 2ª e 3ª ed. “Charneca em flor"].
Sonho vago
Um sonho alado que nasceu num instante,
Erguido ao alto em horas de demência...
Gotas de água que tombam em cadência
Na minh’alma tristíssima, distante...
Onde está ele o Desejado? O Infante?
O que há de vir e amar-me em doida
ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O
Amante?
E neste sonho eu já nem sei quem sou...
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou...
Um fogo-fátuo rútilo, talvez...
E eu ando a procurar-te e já te vejo!...
E tu já me encontraste e não me vês!...
- Florbela Espanca, in “Reliquiae”, [publicado como apêndice,
nas 2ª e 3ª ed. “Charneca em flor"].
O meu soneto
Em atitudes e em ritmos fleumáticos,
Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
Todos os brocados fúlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos...
E os meus olhos serenos, enigmáticos,
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
São letras de poemas nunca lidos...
As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d’amor trazem de rastos...
E a minha boca, a rútila manhã,
Na Via Láctea, lírica, pagã,
A rir desfolha as pétalas dos astros!...
- Florbela Espanca, in “Reliquiae”, [publicado como apêndice,
nas 2ª e 3ª ed. “Charneca em flor"].
Tarde de Música
Só Schumann, meu Amor! Serenidade...
Não assustes os sonhos... Ah!, não
varras
As quimeras... Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade...
Liszt, agora, o brilhante; o piano
arde...
Beijos alados... ecos de fanfarras...
Pétalas dos teus dedos feito garras...
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!
Eu olhava para ti... “É lindo! Ideal!”
Gemeram nossas vozes confundidas.
- Havia rosas cor-de-rosa aos molhos –
Falavas de Liszt e eu... da musical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cílios sobre os
olhos...
- Florbela Espanca, in “Reliquiae”, [publicado como apêndice,
nas 2ª e 3ª ed. “Charneca em flor"].
Não se acende hoje a luz... Todo o luar
Fique lá fora. Bem aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!
Entram falenas meio entontecidas...
Lusco-fusco... Um morcego, a palpitar,
Passa... torna a passar... torna a
passar...
As coisas têm o ar de adormecidas...
Mansinho... Roça os dedos p’lo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!
E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira,
Vem para mim da escuridão da sala...
- Florbela Espanca, in “Reliquiae”, [publicado como apêndice,
nas 2ª e 3ª ed. “Charneca em flor"].
Charneca em flor
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Realidade
Em ti o meu olhar fez-se alvorada,
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho,
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho.
Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada,
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho.
Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...
Tens sido vida fora o meu desejo,
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei, se te perdi...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Passeio ao campo
Meu Amor! meu Amante! Meu amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!
Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
- Vamos correr e rir por entre o trigo! –
Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...
E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!...
- Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"
A tarde é de oiro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,
Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que
incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!
Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...
E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Se tu viesses ver-me
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus
abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de
desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.
Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende
Murmúrios por caminhos desolados.
Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas...
Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Alvorecer
A noite empalidece. Alvorecer...
Ouve-se mais o gargalhar da fonte...
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.
Há andorinhas prontas a dizer
A missa d'alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.
Passos ao longe... um vulto que se
esvai...
Em cada sombra Colombina trai...
Anda o silêncio em volta a q'rer
falar...
E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a
gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra
cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me
encontrar...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Espera
Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!
Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus
braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!
Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!
Espera... espera... ó minha sombra
amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste
mundo!...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Ser poeta
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem
beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de
cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Interrogação
A Guido Batelli
Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim
canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.
Ó alma de charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize pra onde vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!
Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!
Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra...
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Na vida nada tenho e nada sou;
Eu ando a mendigar pelas estradas...
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!
Tinha o manto do sol... quem mo roubou?!
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!
Agora vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...
Ah, quem me dera ser como os chacais
Uivando os brados, rouquejando os gritos
Na solidão dos ermos matagais!...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Volúpia
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Nervos d'Oiro
Meus nervos, guizos de oiro a tilintar
Cantam-me n'alma a estranha sinfonia
Da volúpia, da mágoa e da alegria,
Que me faz rir e que me faz chorar!
Em meu corpo fremente, sem cessar,
Agito os guizos de oiro da folia!
A Quimera, a Loucura, a Fantasia,
Num rubro turbilhão sinto-As passar!
O coração, numa imperial oferta.
Ergo-o ao alto! E, sobre a minha mão,
É uma rosa de púrpura, entreaberta!
E em mim, dentro de mim, vibram
dispersos,
Meus nervos de oiro, esplêndidos, que
são
Toda a Arte suprema dos meus versos!
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis. minhas rendas, meus
brocados.
Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!
Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas..
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais
eternas...
Berço vinde do céu à minha porta...
Ó meu leite de núpcias irreais!...
Meu sumptuoso túmulo de morta!...
- Florbela Espanca, in: “Charneca em flor” (1931)
Cravos vermelhos
Bocas rubras de chama a palpitar,
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!
Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas
Doidas de luz, ó almas feitas risos!
Donde vem essa cor, ó desvairadas,
Lindas flores d´esculturais sorrisos?!
...Bem sei vosso segredo...Um rouxinol
Que vos viu nascer, ó flores do mal
Disse-me agora: "Uma manhã, o sol,
O sol vermelho e quente como estriga
De fogo, o sol do céu de Portugal
Beijou a boca a uma rapariga..."
- Florbela Espanca, "A mensageira das violetas"
[antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco]. Porto Alegre: L&PM, 1999.
À minha Júlia
Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não ´stendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...
- Florbela Espanca, "A mensageira das violetas"
[antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco]. Porto Alegre: L&PM, 1999.
Errante
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...
Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...
Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!
- Florbela Espanca, "A mensageira das violetas"
[antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco]. Porto Alegre: L&PM, 1999.
Frêmito do meu corpo a procurar-te
Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a
mel,
Doído anseio dos meus braços a
abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a
parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a
farte!
E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me
amas...
E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...
- Florbela Espanca, "A mensageira das violetas"
[antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco]. Porto Alegre: L&PM, 1999.
Florbela Espanca |
OBRAS DIGITALIZADAS DE FLORBELA ESPANCA PARA BAIXAR
Florbela Espanca - Sonetos completos. Coimbra: Livr. Gonçalves, 1934.
Florbela Espanca - Mensageira das Violetas
Florbela Espanca - Charneca em flor
Florbela Espanca - Livro de Magoas
Florbela Espanca - Livro de Sóror Saudade
Florbela Espanca - O livro D'ele
Florbela Espanca - Poemas Selecionados
Florbela Espanca - Reliquiae
Colecção Florbela Espanca - Biblioteca Nacional de Portugal - Link.
REFERÊNCIAS E FONTES DE PESQUISA
Florbela Espanca - [Bibliografia ativa e passiva] Universidade
Evora/Portugal - Link.
Colecção Florbela Espanca - Biblioteca Nacional de Portugal - Link.
Florbela Espanca - Biblioteca Nacional de Portugal, Link.
Florbela Espanca - Portal Domínio Público, Link.
Deixai entrar a morte
A que vem para mim, pra me levar,
Abri todas as portas par em par
Como asas a bater em revoada.
Que sou eu neste mundo? A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,
E que, ao abri-las não encontrou nada!
Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?...pra que eu tivesse sido
Somente o fruto das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...
© A obra de Florbela Espanca é de domínio público
© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske
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Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Florbela Espanca - a vida e a alma de uma poeta. Templo Cultural Delfos, fevereiro/2013. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Florbela Espanca - a vida e a alma de uma poeta. Templo Cultural Delfos, fevereiro/2013. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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