Fagundes Varela (Luís Nicolau Fagundes Varela), poeta,
nasceu em Rio Claro, RJ, em 17 de agosto de 1841, e faleceu em Niterói, RJ, em
17 de fevereiro de 1875. É o patrono da Cadeira n. 11, da ABL, por escolha do fundador
Lúcio de Mendonça. Era filho do Dr. Emiliano Fagundes Varela e de Emília de
Andrade, ambos de famílias fluminenses bem situadas. Passou a infância na
fazenda natal e na vila de S. João Marcos, de que o pai era juiz. Depois,
residiu em vários locais. Primeiro em Catalão (Goiás), para onde o magistrado
fora transferido em 1851 e onde Fagundes Varela teria conhecido o juiz
municipal Bernardo Guimarães. De volta à terra natal, residiu em Angra dos Reis
e Petrópolis, onde fez os estudos do primário e secundário. Em 1859, foi
terminar os preparatórios em São Paulo. Só em 1862 matricula-se na Faculdade de
Direito, que nunca terminou, preferindo a literatura e dissipando-se na boêmia.
Em 1861, publicara o primeiro livro de poesias, Noturnas.
Contraiu matrimônio com a artista de circo Alice Guilhermina
Luande, de Sorocaba, que provocou escândalo na família e agravou-lhe a penúria
financeira. O primeiro filho, Emiliano, morto aos três meses de idade,
inspirou-lhe um dos mais belos poemas, Cântico do Calvário. A partir daí,
acentuam-se nele a tendência ambulatória e o alcoolismo, mas também a
inspiração criadora. Publicou Vozes da América em 1864 e a sua obra-prima
Cantos e fantasias, em 1865. Nesse ano, ou em 66, durante uma viagem prolongada
a Recife, faleceu-lhe a mulher, que não o acompanhara ao Norte. Ele voltou a
São Paulo, matriculando-se em 1867 no 4o ano do curso de Direito. Abandonou de
vez o curso e recolheu-se à casa paterna, na fazenda onde nascera, em Rio
Claro, onde permanece até 1870, poetando e vagando pelos campos. Deixou-se sempre
ficar na vida indefinível de boêmio, sem rumo, sem destino determinado.
Casou-se pela segunda vez com a prima Maria Belisária de Brito Lambert, com
quem teve duas filhas e um filho, este também falecido prematuramente. Em 1870,
mudou-se com o pai para Niterói, onde viveu até o fim da vida, com largas
estadas nas fazendas dos parentes e certa freqüência nas rodas da boêmia
intelectual do Rio.
Vivendo na última fase do Romantismo, a sua poesia revela
um hábil poeta do verso. Em “Arquétipo”, um dos primeiros poemas, faz profissão
de fé de tédio romântico, em versos brancos. Embora o preponderante em sua
poesia seja a angústia e o sofrimento, evidenciam-se outros aspectos
importantes: o patriótico, em O estandarte auriverde (1863) e Vozes da América
(1864); o amoroso, na fase lírica, dos poemas ligados à natureza, e, por fim, o
místico e religioso. O poeta não deixa de lado, também, os problemas sociais,
como o abolicionismo.
:: Fonte: ABL – Fagundes Varela
CRONOLOGIA
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Fagundes Varela |
1851 - Seu pai
é nomeado juiz de direito em Meia Ponte, atual Pirenópolis, Goiás, e decide morar
na vila de Catalão;
1852 - O pai é
transferido para Angra dos Reis, Rio de Janeiro, e o poeta conhece José Ferreira
de Menezes (1845 - 1881), escritor com quem desenvolve grande amizade;
1853 - Realiza
seus primeiros estudos com o professor José de Sousa Lima;
1854 - Mais
uma vez, a família muda-se e vai morar em Petrópolis, Rio de Janeiro. Estuda com
o professor Jacinto Augusto de Matos;
1858 - Muda-se
para Niterói e inicia os estudos preparatórios para os exames de admissão da
Faculdade de Direito de São Paulo;
1859 - Vai
para São Paulo para terminar os estudos preparatórios. Publica os poemas Ao Dia
7 de Setembro e Desvario de um Poeta no periódico O Publicador Paulistano;
1860 - Publica
o artigo O Drama Moderno na Revista Dramática, com a qual colabora;
1861 - Lança
seu primeiro livro de poemas, Noturnas. Conclui os estudos preparatórios para a
faculdade. Entre outros trabalhos, publica o folhetim As Ruínas da Glória, no
Correio Paulistano;
1862 - Matricula-se
na Faculdade de Direito de São Paulo. Casa-se com a artista circense Alice
Guilhermina Luande, filha do dono do circo Eqüestre Ginástico, e passa a acompanhá-los,
recitando seus poemas. Volta para São Paulo;
1863 - Nasce
seu primeiro filho, que morre no mesmo ano. Declama o poema A Visão de Colombo
(Predestinação) em sessão magna da Associação Culto à Ciência;
1864 - Em
memória do filho, publica, no livro Vozes da América, o poema Cântico do Calvário,
considerado uma de suas melhores composições. Passando por dificuldades financeiras,
decide retornar à fazenda onde nascera. Mais tarde, volta a São Paulo, a fim de
concluir os estudos. O Correio Paulistano anuncia uma peça teatral de sua
autoria, chamada 39 Pontos!, texto que desaparece;
1865 - Decide
continuar os estudos em Recife, para onde se muda, mas com a notícia da morte
de sua esposa retorna a São Paulo;
1866 - Volta a
estudar na faculdade de direito, mas logo abandona o curso e vai para Rio Claro
1875 - Morre
aos 33 anos, vítima de derrame cerebral, em Niterói, Rio de Janeiro, no dia 18 de
fevereiro.
Poesia
:: Noturnas.
São Paulo: São Paulo: Typ. Imparcial, de J. R. de A. Marques, 1861.
:: O estandarte auriverde: cantos sobre a
questão anglo-brasileira. São Paulo: Typ. Imparcial, de J. R. de
A. Marques, 1863.
:: Vozes d'América. São Paulo:
Typ. Imparcial de J. R. de Azevedo Marques, 1864.
:: Cantos e fantasias. São
Paulo: Garraux: De Lailhacar e Cia, 1865.
:: Cantos meridionais. Rio de
Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1869.
:: Cantos do ermo e da cidade.
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1869; 2ª ed., 1880.
:: Diário de Lázaro. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1880.
:: Anchieta ou o evangelho nas selvas.
Rio de Janeiro: Livraria Imperial de E. G. Possollo, 1875.
:: Cantos Religiosos. (Fagundes
Varela, com Ernestina Fagundes Varela).. [Organização Otaviano Hudson]. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique
Laemmert, 1878.
:: Diário de Lázaro. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1880.
Seleção e obra
reunida
![]() |
Livro "Poesias completas", Fagundes Varela |
:: Poesias Completas – Fagundes Varela.
[Organização, revisão e notas de Frederico José da Silva Ramos; introdução de
Edgard Cavalheiro]. São Paulo: Edição Saraiva, 1956.
:: Poesias Completas de L. N. Fagundes Varela.
[organização e apuração do texto Miécio Táti e E. Carrera Guerra]. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
:: Dispersos. (prosa e verso). . [coleção, apresentação e notas de
Vicente de Paulo Vicente de Azevedo]. São Paulo: Conselho estadual de cultura,
1970.
:: Poemas de Fagundes
Varela. (seleção, introdução e notas Péricles Eugênio da Silva
Ramos). São Paulo: Editora Cultrix, 1971.
:: Cantos e Fantasias e outros cantos de
Fagundes Varela. [organização, introdução e notas Orna Messer].
Coleção Poetas do Brasil. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1. 360p.
:: Os melhores poemas de Fagundes Varela.
[Organização, seleção e introdução Antonio Carlos Secchin]. São Paulo: Global
editora, 2005.Em antologias
:: Tênebra: narrativas brasileiras de horror, 1839-1899. [organização Júlio França e Oscar Nestarez]. Editora Fósforo, 2022. {autores presentes: Afonso Celso, Aluísio Azevedo, Américo Lobo, Antônio Joaquim da Rosa, Bernardo Guimarães, Bruno Seabra, Cícero Pontes, Corina Coaracy, Couto de Magalhães, Cruz e Sousa, Emanuel Karnero, Fagundes Varella, Francisco Bernardino de Souza, Franklin Távora, Inglês de Sousa, José Ferreira de Menezes, Joaquim Manuel de Macedo, Júlia Lopes de Almeida, Juvenal Galeno, Lima e Silva, Machado de Assis, Maciel da Costa, Manuel de Oliveira Paiva, Maria Benedita Bormann, Olavo Bilac, Rodolfo Teófilo}.
- Fagundes Varela - poeta
Fagundes Varela
Olha, ó poeta!
pelo ocidente
Que oceano
luminoso!...
Que painel
sedutor o sol poente
Esboça pelo
espaço vaporoso!...
E o sol é já
sumido além dos montes
Buscando outro
hemisfério,
E ainda nos
dourados horizontes
De seus
fulgores alardeia o império.
Em suntuosa
campa ei-lo deitado
Sobre imenso
coxim!...
Vasto sudário o
cobre recamado
De ouro e de
carmim;
E um anjo do
Senhor com mão oculta
Entre luzes e
flores o sepulta.
A selva, o rio,
a viração sonora
Lhe manda um
triste adeus;
O passarinho,
que o saudou na aurora,
Sagra-lhe agora
os ternos cantos seus,
E toda a terra,
cheia de saudade,
Lhe entoa o
hino da imortalidade.
***
Mas no zenith
que nuvem tormentosa
Seu brilho
escureceu...
E o despenhou
por senda tenebrosa
Na campa, que o
escondeu!?...
Quanto bulcão
sinistro e temeroso
O precedeu no
ocaso glorioso!?...
![]() |
Fagundes Varela |
De vil poeira e
sórdidos vapores
Espessos
turbilhões ao céu remontam;
E querendo
apagar-lhe os esplendores
Ao astro, que
descamba, a face afrontam;
Mas não
consegue tétrico negrume
Extinguir o
farol de eterno lume.
Ei-lo se
esconde belo e grandioso,
Qual foi em sua
aurora;
Com hino
alegre, ou canto suspiroso
A natureza o
rei da luz adora.
***
Tal foi, tal é,
poeta, o teu destino.
Sorriu-te o céu
pela manhã da vida,
E gorjeando o
arpejo matutino
Na selva
florescida
Cantaste o
amor, a glória, e a flor tão bela,
Que os sagrados
mistérios nos revela.
Depois, mais
alto erguendo o pensamento,
Buscaste a
solidão,
Para escutar os
místicos acentos
Das harpas de
Sião,
E na forma de
um hino encantador
Nos ensinaste o
Verbo do Senhor.
Pairou-te então
por certo sobre a fronte
A chama do
Sinai,
E te mostrando
a sacrossanta fonte
Dos hinos de
Adona
Na mente te
acendeu santo delírio,
Para cantar do
Gólgota o martírio.
Foi assim, que
na verde Galiléia,
Pela voz de
Jesus
Se propagou a
generosa idéia,
Que ele selou
com sangue em uma cruz;
E a voz, que
ouviram nazarenas relvas,
Ecoa agora nas
brasílias selvas.
Foi a tua manhã
serena e pura,
Foi teu zenith
brilhante;
Porém ao
declinar, tormenta escura
Pairou-te sobre
a mente, como ao Dante,
E te inspirou,
sublime anacoreta,
Esse imortal
poema, - o Anchieta
***
Mas já da noite
o véu silencioso
Se estende
sobre o mundo,
E mil estrelas
tremulas fulguram
Do céu no azul
profundo.
Volve ainda, ó
poeta, os olhos teus
Ao pálido
ocidente;
Por onde o sol
se foi, não vês surgindo
Estrela
refulgente?...
Que suave
clarão fagueira entorna
Por montes e
por vales!...
Gota a diríeis
de celeste orvalho
De flor azul a
cintilar no cálix.
E Vésper, que
lá mostra a meiga face
Qual cândida
açucena,
Por céus e
terra a frouxo derramando
Luz plácida e
serena.
O sol sumiu-se,
ardente e luminoso
Entre canções,
envolto em resplendores;
E ela sozinha
vem velar-lhe a campa
Com seus meigos
fulgores.
É assim a
glória, traz sempre na vida
Um travo de
amargura;
E só sobre o
silêncio dos jazigos
Resplende calma
e pura.
***
Varela, como o
sol tu te sumiste,
Envolto em
luzes no horizonte extremo:
Em um hino
imortal, formoso, imenso
Deste o clarão
supremo.
Hoje da glória
a lâmpada perene
Resplende sobre
tua humilde lousa,
Aos séculos
dizendo:
- O cantor de
Anchieta aqui repousa. -
- Bernardo Guimarães (Ouro Preto, maio de 1878), em
"Folhas de Outono", 1883.
- Fagundes Varela - poeta
FAGUNDES VARELA - POEMAS
ESCOLHIDOS
A cidade
[A meu predileto amigo o Sr. Dr. Betoldi]
A cidade ali
está com seus enganos,
Seu cortejo de
vícios e traições,
Seus vastos
templos, seus bazares amplos,
Seus ricos
paços, seus bordéis salões.
A cidade ali
está: sobre seus tetos
Paira dos
arsenais o fumo espesso,
Rolam nas ruas
da vaidade os coches
E ri-se o crime
à sombra do progresso.
A cidade ali
está: sob os alpendres
Dorme o mendigo
ao sol do meio-dia,
Chora a viúva
em úmido tugúrio,
Canta na
catedral a hipocrisia.
A cidade ali
está: com ela o erro,
A perfídia, a
mentira, a desventura...
Como é suave o
aroma das florestas!
Como é doce das
serras a frescura!
A cidade ali
está: cada passante
Que se envolve
das turbas no bulício
Tem a maldade
sobre a fronte escrita,
Tem na língua o
veneno e nalma o vício.
Não, não é na
cidade que se formam
Os fortes corações,
as crenças grandes,
Como também nos
charcos das planícies
Não é que
gera-se o condor dos Andes!
Não, não é na
cidade que as virtudes,
As vocações
eleitas resplandecem,
Flores de ar
livre, à sombra das muralhas
Pendem cedo a
cabeça e amarelecem.
Quanta cena
infernal sob essas telhas!
Quanto infantil
vagido de agonia!
Quanto
adultério! Quanto escuro incesto!
Quanta infâmia
escondida à luz do dia!
Quanta atroz
injustiça e quantos prantos!
Quanto drama
fatal! Quantos pesares!
Quanta fronte
celeste profanada!
Quanta virgem
vendida aos lupanares!
Quanto talento
desbotado e morto!
Quanto gênio
atirado a quem mais der!
Quanta afeição
cortada! Quanta dúvida!
Num carinho de
mãe ou de mulher!
Eis a cidade!
Ali a guerra, as trevas,
A lama, a
podridão, a iniqüidade;
Aqui o céu
azul, as selvas virgens,
O ar, a luz, a
vida, a liberdade!
Ali medonhos,
sórdidos alcouces,
Antros de
perdição, covis escuros,
Onde ao clarão
de baços candeeiros
Passam da noite
os lêmures impuros;
E abalroam-se
as múmias coroadas,
Corpos de lepra
e de infecção cobertos,
Em cujos
membros mordem-se raivosos
Os vermes pelas
sedas encobertos!
Aqui verdes
campinas, altos montes,
Regatos de
cristal, matas viçosas,
Borboletas
azuis, loiras abelhas,
Hinos de amor,
canções melodiosas.
Ali a honra e o
mérito esquecidos,
Mortas as
crenças, mortos os afetos,
Os lares sem
legenda, a musa exposta
Aos dentes vis
de perros objetos!
Presa a virtude
ao cofre dos banqueiros,
A lei de Deus
entregue aos histriões!
Em cada rosto o
selo do egoísmo,
Em cada peito
um mundo de traições!
Depois o jogo,
a embriaguez, o roubo,
A febre nos
ladrilhos do prostíbulo,
O hospital, a
prisão... Por desenredo
A imagem
pavorosa do patíbulo!
Eis a
cidade!... Aqui a paz constante,
Serena a
consciência, alegre a vida,
Formoso o dia,
a noite sem remorsos,
Pródiga a
terra, nossa mãe querida!
Salve,
florestas virgens! Rudes serras!
Templos da
imorredoura liberdade!
Salve! Três
vezes salve! Em teus asilos
Sinto-me
grande, vejo a divindade!
- Fagundes Varela, "Cantos meridionais",
1869.
A criança
É menos bela a
aurora,
A neve é menos
pura
Que uma criança
loura
No berço
adormecida!
Seus lábios
inocentes,
Meu Deus, inda
respiram
Os lânguidos
aromas
Das flores de
outra vida!
O anjo de asas
brancas
Que lhe protege
o sono
Nem uma nódoa
enxerga
Naquela alma
divina!
Nunca sacode as
plumas
Para voltar às
nuvens,
Nem triste
afasta ao vê-la
A face
peregrina!
No seio da
criança
Não há serpes
ocultas,
Nem pérfido
veneno,
Nem devorantes
lumes.
Tudo é candura
e festas!
Sua sublime
essência
Parece um vaso
de ouro
Repleto de
perfumes!
E ela cresce,
os vícios
Os passos lhe
acompanham,
Seu anjo de
asas brancas
Pranteia ou
torna ao céu.
O cálice
brilhante
Transborda de
absinto,
E a vida corre
envolta
Num tenebroso
véu!
Depois ela
envelhece.
Fogem os róseos
sonhos,
O astro da
esperança
Do espaço azul
se escoa...
Pende-lhe ao
seio a fronte
Coberta de
geadas,
E a mão rugosa
e trêmula
Levanta-se e
abençoa!
Homens! O
infante e o velho
São dois
sagrados seres,
Um deixa o céu
apenas,
O outro ao céu
se volta,
Um cerra as
asas débeis
E adora a
divindade...
O outro a Deus
adora
E as asas
níveas solta!
Do querubim que
dorme
Na face alva e
rosada
O traço existe
ainda
Dos beijos dos
anjinhos,
Assim como na
fronte
Do velho brilha
e fulge
A luz que do
infinito
Aponta-lhe os
caminhos!
Nestas
infaustas eras,
Quando a
família humana
Quebra sem dó,
sem crenças,
O altar e o
ataúde,
Nos olhos da
criança
Creiamos na
inocência,
E nos cabelos
brancos
Saudemos a
virtude!
- Fagundes Varela, em "Cantos
meridionais", 1869.
A cruz
Estrellas
Singelas,
Luzeiros
Fagueiros
Esplendidos
orbes que o mundo aclarais,
Desertos e
mares, florestas vivazes,
Montanhas
audazes, que ao sol rastejas!
Campinas
Divinas!
Cavernas
Eternas!
Extensos,
Immensos
Espaços
Celestes!
Rochedos bravios!
Abysmos
sombrios!
Ergastulos
frios!
Internos
terrestres!
Sepulchros e
berços, mendigos e grandes!
Curvai-vos ao
vulto sublime da cruz!
Só ella nos
mostra da gloria o caminho,
Só ella nos
falla das Leis de Jesus!
- Fagundes Varela, em "Andorinha", ano 1,
n. 1, jun. 1929. (grafia original)
A despedida
I
Filha dos
cerros onde o sol se esconde,
Onde brame o
jaguar e a pomba chora,
São horas de
partir, desponta a aurora,
Deixa-me que te
abrace e que te beije.
Deixa-me que te
abrace e que te beije,
Que sobre o teu
meu coração palpite,
E dentro dalma
sinta que se agite
Quanto tenho de
teu impresso nela.
Quanto tenho de
teu impresso nela,
Risos ingênuos,
prantos de criança,
E esses tão
lindos planos de esperança
Que a sós na
solidão traçamos juntos.
Que a sós na
solidão traçamos juntos,
Sedentos de
emoções, ébrios de amores,
Idólatras da
luz e dos fulgores
De nossa mãe
sublime, a natureza!
De nossa mãe
sublime, a natureza,
Que nossas
almas numa só fundira,
E a inspiração
soprara-me na lira
Muda, arruinada
nos mundanos cantos.
Muda, arruinada
nos mundanos cantos,
Mas hoje bela e
rica de harmonias,
Banhada ao sol
de teus formosos dias,
Santificada à
luz de teus encantos!
II
Adeus! Adeus! A
estrela matutina
Pelos clarões
da aurora deslumbrada
Apaga-se no
espaço,
A névoa desce
sobre os campos úmidos,
Erguem-se as
flores trêmulas de orvalho
Dos vales no
regaço.
Adeus! Adeus!
Sorvendo a aragem fresca,
Meu ginete
relincha impaciente
E parece
chamar-me...
Transpondo em
breve o cimo deste monte,
Um gesto ainda,
e tudo é findo! O mundo
Depois pode
esmagar-me.
Não te queixes
de mim, não me crimines,
Eu depus a teus
pés meus sonhos todos,
Tudo o que era
sentir!
Os algozes da
crença e dos afetos
Em torno de um
cadáver de ora em diante
Hão de embalde
rugir.
Tu não mais ouvirás
os doces versos
Que nas várzeas
viçosas eu compunha,
Ou junto das
torrentes;
Nem teus
cabelos mais verás ornados,
Como a pagã
formosa, de grinaldas
De flores
rescendentes.
Verás tão cedo
ainda esvaecida,
A mais linda
visão de teus desejos,
Aos látegos da
sorte!
Mas eu terei de
Tântalo o suplício!
Eu pedirei
repouso de mãos postas,
E será surda a
morte!
Adeus! Adeus!
Não chores, que essas lágrimas
Coam-me ao
coração incandescentes,
Qual fundido
metal!
Duas vezes na
vida não se as vertem!
Enxuga-as,
pois; se a dor é necessária,
Cumpra-se a lei
fatal!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
A enchente
Era alta noite.
Caudaloso e tredo
Entre barrancos
espumava o rio,
Densos negrumes
pelo céu rolavam,
Rugia o vento
no palmar sombrio.
Triste, batido
pelas águas torvas
Girava o barco
na caudal corrente,
Lutava o
remador — e ao lado dele
Uma virgem
dizia tristemente:
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
E são jovens,
bem jovens! na cabana
Dormiam calmos
sem pensar na sorte;
A enchente
veio, e no agitar infrene
De um sono
meigo os conduziu à morte!
A f'licidade é
um sonho nebuloso,...
A vida neste
mundo é sempre assim,
Do gozo em meio
a veladora eterna
Nos arranca da
mesa do festim!
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
— Rema, rema,
barqueiro; olha — lá em baixo
À luz vermelha
do fuzil que passa,
Não ves o vulto
de um rochedo escuro
Que a
correnteza estrepitando abraça?
— Oh se o vejo,
senhora; eu bem o vejo!
Diz o barqueiro
com sinistra voz;
Pedi à Virgem
que os perigos vela
Que tenha ao
menos compaixão de nós!
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
Eis dentre as
vagas de caligem densa
Vem macilenta
se mostrando a lua,
Como à luz dela
a natureza é morta,
Como a planície
é devastada e nua!
Perto, tão
perto se levanta a margem
Onde fagueira a
salvação sorri,
E nós rolamos,
e rolamos sempre
E não podemos
aportar ali!
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
Duro, insofrido
o vendaval soergue
Da onda a face
em convulsão febril;
— Barqueiro,
alento! e chegando em terra,
Hei de
cobrir-te de riquezas mil.
Porém no dorso
do dragão das águas
Lutava o barco
— mas lutava em vão,
E a pobre moça
desvairada em prantos
Pedia à Virgem
que lhe desse a mão!
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
— Ouve,
barqueiro, que rugido é esse
Profundo e
surdo que lá em baixo soa?
Parece o ronco
de um trovão medonho
Que dos abismos
pelo seio ecoa! —
Oh!. 'stou
perdido ! ... abandonando os remos
Clama o infeliz
a delirar de medo,
Oh é a morte
que nos chama, horrível,
No fundo escuro
de feral rochedo!
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
Ia o batel. Ao
sorvedouro imenso
Era impossível
se esquivar então,
Dentro sentado
— o remador chorava,
E a donzela
dizia uma oração.
Já diante deles
entre véus de espuma
Treda — a
voragem com furor rugia,
E uma coluna de
ligeiro fumo
Do centro
escuro para o céu subia.
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
Súbito o barco
volteou rangendo,
Tremeu em ânsia
— se estorceu, recuou, —
Deu a virgem um
grito — outro o barqueiro
E o lenho na
voragem se afundou!
Tudo findou-se.
O vendaval sibila
Correndo
infrene na planície nua,
O rio espuma e
nas revoltas ondas
Descem dois
corpos ao clarão da lua.
Como ao rijo
soprar das ventanias
Os mortos bóiam
sobre as águas frias!
- Fagundes Varela (setembro/1861), em
"Noturnos", 1861.
A flor de
maracujá
Pelas rosas,
pelos lírios,
Pelas abelhas,
sinhá,
Pelas notas
mais chorosas
Do canto do
sabiá,
Pelo cálice de
angústias
Da flor do
maracujá!
Pelo jasmim,
pelo goivo,
Pelo agreste
manacá,
Pelas gotas de
sereno
Nas folhas do
gravatá,
Pela coroa de
espinhos
Da flor do
maracujá!
Pelas tranças
de mãe-dágua
Que junto da
fonte está,
Pelos colibris
que brincam
Nas alvas
plumas do ubá,
Pelos cravos
desenhados
Na flor do
maracujá!
Pelas azuis
borboletas
Que descem do
Panamá,
Pelos tesouros
ocultos
Nas minas do
Sincorá,
Pelas chagas
roxeadas
Da flor do
maracujá!
Pelo mar, pelo
deserto,
Pelas
montanhas, sinhá!
Pelas florestas
imensas,
Que falam de
Jeová!
Pela lança
ensangüentada
Da flor do
maracujá!
Por tudo o que
o céu revela,
Por tudo o que
a terra dá
Eu te juro que
minh’alma
De tua alma
escrava está!...
Guarda contigo
este emblema
Da flor do
maracujá!
Não se enojem
teus ouvidos
De tantas rimas
em - á -
Mas ouve meus
juramentos,
Meus cantos,
ouve, sinhá!
Te peço pelos
mistérios
Da flor do
maracujá!
- Fagundes Varela, em "Cantos
meridionais", 1869.
A roça
O balanço da
rede, o bom fogo
Sob um teto de
humilde sapé;
A palestra, os
lundus, a viola,
O cigarro, a
modinha, o café;
Um robusto
alazão, mais ligeiro
Do que o vento
que vem do sertão,
Negras crinas,
olhar de tormenta,
Pés que apenas
rastejam no chão;
E depois um
sorrir de roceira,
Meigos gestos,
requebros de amor,
Seios nus, braços
nus, tranças soltas,
Moles falas,
idade de flor;
Beijos dados
sem medo ao ar livre,
Risos francos,
alegres serões,
Mil brinquedos
no campo ao sol posto,
Ao surgir da
manhã mil canções:
Eis a vida nas
vastas planícies
Ou nos montes
da terra da Cruz:
Sobre o solo só
flores e glórias,
Sob o céu só
magia e só luz.
Belos ermos,
risonhos desertos,
Livres serras,
extensos marnéis,
Onde muge o
novilho anafado,
Onde nitrem
fogosos corcéis...
Onde a infância
passei descuidoso.
Onde tantos
idílios sonhei,
Onde ao som dos
pandeiros ruidosos
Tantas danças
da roça dancei...
Onde a viva e
gentil mocidade
Num contínuo
folgar consumi,
Como longe
avultais no passado!
Como longe vos
vejo daqui!
Se eu tivesse
por livro as florestas,
Se eu tivesse
por mestre a amplidão,
Por amigos as
plantas e as aves,
Uma flecha e um
cocar por brasão;
Não manchara
minh’alma inspirada,
Não gastara meu
próprio vigor,
Não cobrira de
lama e de escárnios
Meus lauréis de
poeta e cantor!
Voto horror às
grandezas do mundo,
Mar coberto de
horríveis parcéis,
Vejo as pompas
e galas da vida
De um cendal de
poeira através.
Ah! nem creio
na humana ciência,
Triste acervo
de enganos fatais,
O clarão do
saber verdadeiro
Não fulgura aos
olhares mortais!
Mas um gênio
impiedoso me arrasta,
Me arremessa do
vulgo ao vaivém,
E eu soluço nas
sombras olhando
Minhas serras
queridas além!
- Fagundes Varela, em "Cantos
meridionais", 1869.
A São Paulo
Terra da
liberdade!
Pátria de
heróis e berço de guerreiros,
Tu és o louro
mais brilhante e puro,
O mais belo florão
dos brasileiros!
Foi no teu
solo, em borbotões de sangue
Que a fronte
ergueram destemidos bravos,
Gritando
altivos ao quebrar dos ferros:
- Antes a morte
que um viver de escravos!
Foi nos teus
campos de mimosas flores,
À voz das aves,
ao soprar do norte,
Que um rei
potente às multidões curvada
Bradou soberbo:
- Independência ou morte!
Foi no teu seio
que surgiu, sublime,
Trindade eterna
de heroísmo e glória,
Cujas estátuas
cada vez mais belas,
Dormem nos
templos da brasília história!
Eu te saúdo,
oh! majestosa plaga,
Filha dileta, e
estrela da nação,
Que em brios
santos carregaste os cílios
À voz cruenta
de feroz Bretão!
Pejaste os ares
de sagrados cantos,
Ergueste os
braços e sorriste à guerra,
Mostrando
ousada ao murmurar das turbas,
Bandeira imensa
da cabrália terra!
Eia! caminha, o
Partenon da glória
Te guarda o
louro que premia os bravos!
Voa ao combate
repetindo a lenda:
- Morrer mil
vezes que viver escravos!
- Fagundes Varella, em "Noturnas", 1861.
A sombra
Longe, longe
das águas-marinhas,
Sobre vastas
campinas pousada,
Sempre aos
raios de um sol resplendente,
Se ostentava
risonha morada.
Nas planícies
que a vista não vence
Espalhadas
pastavam cem reses,
Ora junto das
fontes tranqüilas,
Escondidas no
mato outras vezes...
Ao portão, de manhã,
reunidas,
Meio ocultas no
véu da neblina,
O senhor
esperar pareciam
Sempre amigo da
luz matutina.
E, depois que
seu vulto bondoso
Da janela
sorrindo as olhava,
Se afastavam
contentes, pulando
Sobre a grama
que o orvalho banhava.
Quando além das
montanhas o dia
Apagava seu
raio final,
Acudindo do amo
aos clamores
Todo o gado se
achava no val.
E em torno dele
um círculo formando
Humildes e
silentes,
Cada qual por
sua vez se adiantando,
Vinham lamber o
sal que apresentavam
As mãos
benevolentes,
As mãos
benevolentes que adoravam.
E o manso gado
as falas lhe entendia
E os tenros
bezerrinhos
Saltitavam
trementes de alegria
A seus meigos
carinhos...
Talvez sondasse
nesses pobres brutos,
Sob esses pêlos
ríspidos, hirsutos,
Um oculto
clarão,
Raio de encarcerada
inteligência,
Que a doida,
pobre e mísera ciência,
Trucidando sem
pena a criação,
Procura sempre,
mas procura em vão.
Passaram
tempos, e o vaqueiro é morto...
Da velha
habitação só muros restam,
E às já
despidas, murchas laranjeiras
Espinheiros
entestam.
Sobre montões
de pedra as lagartixas
Leves se
arrastam sobre o musgo vil.
Traidoras
vespas nos esteios podres
Formaram seu
covil.
O sol, que
outrora derramava em torno
Raios de luz,
torrentes de alegria,
Hoje atira do
espaço ao lar deserto
Um riso de
ironia.
Não mais
perfumes pelos ares giram,
Não mais os
ventos suspirando passam,
Somente impuro
odor, silvo de serpes
No ambiente
perpassam.
Parece que ao
pairar nesses lugares
Todo o seu ódio
o estrago sacudira,
E o espírito do
mal no chão gretado
A saliva
cuspira.
Viajor, viajor,
não te aproximes
Do ermo sítio
que o terror marcou,
A mão de Deus
talvez ardendo em iras
Pesada ali
tocou.
Porém quando no
ocidente
Vai baixando o
orbe imortal,
As reses sempre
constantes
Se ajuntam
todas no val.
E nessa mesma
paragem,
Onde as chamava
o senhor,
Talvez do
defunto à sombra
Reúnem-se ao
derredor.
E mugem, mugem
debalde,
Tristonhas
cavando o chão,
Fitando doridos
olhos
No astro rei da
amplidão.
Mas o sol não
as escuta,
Mas o sol
caindo vai,
Imagem de um
deus cruento,
Cruenta imagem
de pai.
E o caminheiro,
que ao longe
Das serras
descendo vem,
Não passa perto
das ruínas,
Procura outra
senda além.
- Fagundes Varella, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
À volta
A casa era
pequenina...
Não era? Mas
tão bonita
Que teu seio
inda palpita
Lembrando dela,
não é?
Queres voltar?
Eu te sigo;
Eu amo o ermo
profundo...
A paz que foge
do mundo
Preza os tetos
de sapê.
*
* *
Bem vejo que
tens saudades...
Não tens? Pobre
passarinho!
De teu
venturoso ninho
Passaste à dura
prisão!
*
* *
Vamos, as matas
e os campos
Estão cobertos
de flores,
Tecem mimosos
cantores
Hinos à bela
estação.
*
* *
E tu mais bela
que as flores...
Não cores...
aos almos cantos
Ajuntarás os
encantos
De teu gorjeio
infantil.
Escuta, filha,
a estas horas,
Que a sombra
deixa as alturas,
Lá cantam as
saracuras
Junto aos lagos
cor de anil...
*
* *
Os vaga-lumes
em bando
Correm sobre a
relva fria,
Enquanto o
vento cicia
Na sombra dos
taquarais...
E os gênios que
ali vagueiam,
Mirando a casa
deserta,
Repetem de boca
aberta:
Acaso não virão
mais?
*
* *
Mas, nós
iremos, tu queres,
Não é assim?
Nós iremos;
Mais belos
reviveremos
Os belos sonhos
de então.
E, à noite,
fechada a porta,
Tecendo planos
de glórias,
Contaremos mil
histórias,
Sentados junto
ao fogão.
- Fagundes Varella, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
Ao Rio de
Janeiro
Adeus! Adeus!
Nas cerrações perdida
Vejo-te apenas,
Guanabara altiva,
Mole,
indolente, à beira-mar sentada,
Sorrindo às
ondas em nudez lasciva.
Mimo das águas,
flor do Novo Mundo,
Terra dos
sonhos meus,
Recebe azinha
no passar dos ventos
Meu derradeiro
adeus!
A noite desce,
os boqueirões de espuma
Rugem pejados
de ferventes lumes,
E os loiros
filhos do marinho império
Brotam do
abismo em festivais cardumes.
Sinistra voz
envia-me aos ouvidos
Um cântico
fatal!
Permita o fado
que a teu seio eu volte,
Oh! meu torrão
natal!
Já no horizonte
as plagas se confundem,
O céu e a terra
abraçam-se discretos,
Leves os vultos
das palmeiras tremem
Como as antenas
de sutis insetos.
Agora o espaço,
as sombras, a saudade,
O pranto e a
reflexão...
A alma entregue
a si, Deus nas alturas...
Nos lábios a
oração!
Tristes idéias,
pensamentos fundos
Nublam-me a
fronte descaída e fria,
Como esses
flocos de neblina errante
Que os cerros
vendam quando morre o dia.
Amanhã, que
verei? Talvez o porto,
Talvez o sol...
não sei!
Brinco do fado,
a dor é minha essência,
O acaso minha
lei!...
Que importa! A
pátria do poeta o segue
Por toda a
parte onde o conduz a sorte,
No mar, nos
ermos, do ideal nos braços,
Respeita o selo
imperial da morte!
Oceano
profundo! Augusto emblema
Da vida
universal!
Leva um adeus
ainda às alvas praias
De meu torrão
natal.
- Fagundes Varela, em "Cantos
meridionais", 1869.
Arquétipo
Ele era belo;
na espaçosa fronte
O dedo do
Senhor gravado havia
O sigilo do
gênio; em seu caminho
O hino da manhã
soava ainda,
E os pássaros
da selva gorjeando
Saudavam-lhe a
passagem neste mundo.
Sim, era uma
criança, e no entanto
Friez de morte
lhe coava n'alma!
O seu riso era
triste como o inverno,
E dos olhos
cansados, nem um raio
Nem um clarão,
nem pálido lampejo
Da mocidade o
fogo revelavam!
Era-lhe a vida
uma comédia insípida,
Estúpida e sem
graça, — ele a passava
Com a fria
indiferença do marujo
Que fuma o seu
cachimbo reclinado
Na proa do
navio olhando as vagas,
— Vivia por
viver.... porque vivia.
Em nada
acreditava; há muito tempo
Que a idéia de
Deus soprara d'alma
Como das botas
a poeira incômoda.
O Evangelho era
um livro de anedotas,
Beethoven
torturava-lhe os ouvidos,
A Poesia
provocava o sono.
Muita donzela
suspirou por ele,
Muita beleza
lhe dormiu nos braços,
Mas frio como o
gênio da descrença,
Após um'hora de
gozar maldito,
Saciado as
deixou, como o conviva,
A mesa do
festim, — farto e cansado. —
Era mais
caprichoso, — mais bizarro
Do que um filho
de Álbion, mais volúvel
Que um profundo
político; uma tarde
Após haver
jantado, recordou-se
Que ainda era
solteiro; pelo Papa!
— É preciso
tentar, disse consigo.
Quatro dias
depois tinha casado.
Escolhera uma
noiva descuidoso,
Como um brinco
chinês — um livro in-fólio,
Ao altar
conduziu-a, distraído,
E as juras
divinais do casamento
Repetiu
bocejando ao sacerdote.
Como tudo na
vida, o matrimônio
Bem cedo o
aborreceu; após três meses
Disse Adeus à
mulher que pranteava,
E acendendo um
cigarro, a passos lentos
Dirigiu-se ao
teatro onde assistiu
Um drama de
Feuillet, — quase dormindo. —
Por fim de
contas, uma noite bela,
Depois de ter
ceado entre dous padres,
Em casa de
morena Cidalisa,
Pegou numa
pistola e entre as fumaças
De saboroso —
Havana — à eternidade
Foi ver si
divertia-se um momento.
- Fagundes Varela, em "Noturnas", 1861.
![]() |
Fagundes Varela |
Aurora
Antes de
erguer-se de seu leito de ouro,
O rei dos
astros o Oriente inunda
De sublime
clarão;
Antes de as
asas desprender no espaço,
A tempestade
agita-se e fustiga
O turbilhão dos
euros.
As torrentes de
idéias que se cruzam,
O pensamento
eterno que se move
No levante da
vida,
São auras
santas, arrebóis esplêndidos,
Que precedem à
vinda triunfante
De um sol
imorredouro.
O murmurar
profundo, enrouquecido,
Que do seio dos
povos se levanta,
Anuncia a
tormenta;
Essa tormenta
salutar e grande
Que o manto
roçará, prenhe de fogo,
Na face das
nações.
Preparai-vos, ó
turbas! Preparai-vos,
Rebatei vossos
ferros e cadeias,
Algozes e
tiranos!
A hora se
aproxima pouco a pouco,
E o dedo do
Senhor já volve a folha
Do livro do
destino!
Grande há de
ser o drama, a ação gigante,
Majestosa a
lição! luzes e trevas
Lutarão sobre
os orbes!
O abismo
soltará seus tredos roncos,
E o frêmito dos
mares agitados
Se unirá aos
das turbas.
Os reis
convulsarão nos tronos frágeis,
Buscando
embalde sustentar nas frontes
As úmidas
coroas...
Debalde!... o
vendaval na fúria insana
Os levará com
elas, envolvidos
Num turbilhão
de pó!
Vis, abatidos,
o fidalgo e o rico
Sairão de seus
paços vacilantes
Nos podres
alicerces...
E errantes
sobre a terra irão chorando,
Mendigar um
farrapo ao vagabundo,
E um pedaço de
pão!
Estranho povo
surgirá da sombra
Terrível e
feroz cobrindo os campos
De cruentos
horrores!
O palácio e a
prisão irão por terra,
E um segundo
dilúvio, então de sangue,
O mundo lavará!
O sábio em seu
retiro, estupefato,
Verá tombar a
imagem da ciência,
Fria estátua de
argila,
E um pálido
clarão dirá que é perto
O astro divinal
que às turbas míseras
Conduz a
redenção!
Como aos dias
primeiros do universo,
O globo se
erguerá banhado em luzes,
Reflexos de
Deus;
E a raça humana
sob um céu mais puro
Um hino insigne
enviará, prostrada
Aos pés do
Onipotente!
Irmãos todos
serão; todos felizes;
Iguais e belos,
sem senhor nem peias,
Nem tiranos e
ferros!
O amor os unirá
num laço estreito,
E o trânsito da
vida uma romagem
Se tornará
celeste!
A hora se
aproxima pouco a pouco;
O dedo do Senhor
já volve a folha
Do livro do
destino!...
Ergue-se a tela
do teatro imenso,
E o mistério
infinito se desvenda
Do drama do
Calvário!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Ave! Maria!
A noite desce -
lentas e tristes
Cobrem as
sombras a serrania,
Calam-se as
aves, choram os ventos,
Dizem os
gênios: - Ave! Maria!
Na torre
estreita de pobre templo
Ressoa o sino
da freguesia,
Abrem-se as
flores, Vesper desponta,
Cantam os
anjos: - Ave! Maria!
No tosco
alvergue de seus maiores,
Onde só reinam
paz e alegria,
Entre os
filhinhos o bom colono
Repete as
vozes: - Ave! Maria!
E, longe,
longe, na velha estrada,
Pára e saudades
à pátria envia
Romeiro exausto
que o céu contempla,
E fala aos
ermos: - Ave! Maria!
Incerto nauta
por feios mares,
Onde se estende
névoa sombria,
Se encosta ao
mastro, descobre a fronte,
Reza baixinho:
- Ave! Maria!
Nas soledades,
sem pão nem água,
Sem pouso e
tenda, sem luz nem guia,
Triste mendigo,
que as praças busca,
Curva-se e
clama: - Ave! Maria!
Só nas alcovas,
nas salas dúbias,
Nas longas
mesas de longa orgia
Não diz o
ímpio, não diz o avaro,
Não diz o
ingrato: - Ave! Maria!
Ave! Maria! -
No céu, na terra!
Luz da aliança!
Doce harmonia!
Hora divina!
Sublime estância!
Bendita sejas!
- Ave! Maria!
- Fagundes Varela, em "Cantos
religiosos", 1878.
Cântico do
Calvário
[À memória de meu filho
Morto a 11 de dezembro de 1863].
Eras na vida a
pomba predileta
Que sobre um
mar de angústias conduzia
O ramo da
esperança. — Eras a estrela
Que entre as
névoas do inverno cintilava
Apontando o
caminho ao pegureiro.
Eras a messe de
um dourado estio.
Eras o idílio
de um amor sublime.
Eras a glória,
— a inspiração, — a pátria,
O porvir de teu
pai! — Ah! no entanto,
Pomba, —
varou-te a flecha do destino!
Astro, —
engoliu-te o temporal do norte!
Teto, caíste! —
Crença, já não vives!
Correi, correi,
oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo
da ventura extinta,
Dúbios archotes
que a tremer clareiam
A lousa fria de
um sonhar que é morto!
Correi! Um dia
vos verei mais belas
Que os
diamantes de Ofir e de Golgonda
Fulgurar na
coroa de martírios
Que me circunda
a fronte cismadora!
São mortos para
mim da noite os fachos,
Mas Deus vos
faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz
caminharei nos ermos!
Estrelas do
sofrer, — gotas de mágoa,
Brando orvalho
do céu! — Sede benditas!
Oh! filho de
minh'alma! Última rosa
Que neste solo
ingrato vicejava!
Minha esperança
amargamente doce!
Quando as
garças vierem do ocidente
Buscando um
novo clima onde pousarem,
Não mais te
embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus
olhos no cerúleo brilho
Acharei um
consolo a meus tormentos!
Não mais
invocarei a musa errante
Nesses retiros
onde cada folha
Era um polido
espelho de esmeralda
Que refletia os
fugitivos quadros
Dos suspirados
tempos que se foram!
Não mais
perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao
pôr do sol, nas serras,
Vibrar a trompa
sonorosa e leda
Do caçador que
aos lares se recolhe!
Não mais! A
areia tem corrido, e o livro
De minha
infanda história está completo!
Pouco tenho de
anciar! Um passo ainda
E o fruto de
meus dias, negro, podre,
Do galho eivado
rolará por terra!
Ainda um treno,
e o vendaval sem freio
Ao soprar
quebrará a última fibra
Da lira
infausta que nas mãos sustento!
Tornei-me o eco
das tristezas todas
Que entre os
homens achei! O lago escuro
Onde ao clarão
dos fogos da tormenta
Miram-se as
larvas fúnebres do estrago!
Por toda a
parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço
fundo de agonias! ...
Oh! quantas
horas não gastei, sentado
Sobre as costas
bravias do Oceano,
Esperando que a
vida se esvaísse
Como um floco
de espuma, ou como o friso
Que deixa
n'água o lenho do barqueiro!
Quantos
momentos de loucura e febre
Não consumi
perdido nos desertos,
Escutando os
rumores das florestas,
E procurando
nessas vozes torvas
Distinguir o meu
cântico de morte!
Quantas noites
de angústias e delírios
Não velei,
entre as sombras espreitando
A passagem
veloz do gênio horrendo
Que o mundo
abate ao galopar infrene
Do selvagem
corcel? ... E tudo embalde!
A vida parecia
ardente e douda
Agarrar-se a
meu ser! ... E tu tão jovem,
Tão puro ainda,
ainda n'alvorada,
Ave banhada em
mares de esperança,
Rosa em botão,
crisálida entre luzes,
Foste o
escolhido na tremenda ceifa!
Ah! quando a
vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu
hálito suave;
Quando em meus
braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o
coração divino ainda;
Quando fitei
teus olhos sossegados,
Abismos de
inocência e de candura,
E baixo e a
medo murmurei: meu filho!
Meu filho!
frase imensa, inexplicável,
Grata como o
chorar de Madalena
Aos pés do
Redentor ... ah! pelas fibras
Senti rugir o
vento incendiado
Desse amor
infinito que eterniza
O consórcio dos
orbes que se enredam
Dos mistérios
do ser na teia augusta!
Que prende o
céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande
em torrentes inefáveis
Do seio
imaculado de Maria!
Cegou-me tanta
luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a
punição cruenta
Na mesma glória
que elevou-me aos astros,
Chorando aos
pés da cruz, hoje padeço!
O som da
orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida
de rafeiros bardos,
Torpe alegria
que circunda os berços
Quando a
opulência doura-lhes as bordas,
Não te saudaram
ao sorrir primeiro,
Clícía mimosa
rebentada à sombra!
Mas ah! se
pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais
que os príncipes da terra!
Templos,
altares de afeição sem termos!
Mundos de
sentimento e de magia!
Cantos ditados
pelo próprio Deus!
Oh! quantos
reis que a humanidade aviltam,
E o gênio
esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a
púrpura romana
Por um verso,
uma nota, um som apenas
Dos fecundos
poemas que inspiraste!
Que belos
sonhos! Que ilusões benditas!
Do cantor
infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de
amor! Luz da aliança,
Calma e
fulgente em meio da tormenta!
Do exílio
escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo
e às virações errantes
Lançou dilúvios
de harmonias! — O gozo
Ao pranto
sucedeu. As férreas horas
Em desejos
alados se mudaram.
Noites fugiam,
madrugadas vinham,
Mas sepultado
num prazer profundo
Não te deixava
o berço descuidoso,
Nem de teu
rosto meu olhar tirava,
Nem de outros
sonhos que dos teus vivia!
Como eras
lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o
tépido vestígio
Dos beijos
divinais, — nos olhos langues
Brilhava o
brando raio que acendera
A bênção do
Senhor quando o deixaste!
Sobre o teu
corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter
e da luz, voavam,
Riam-se
alegres, das caçoilas níveas
Celeste aroma
te vertendo ao corpo!
E eu dizia
comigo: — teu destino
Será mais belo
que o cantar das fadas
Que dançam no
arrebol, — mais triunfante
Que o sol
nascente derribando ao nada
Muralhas de
negrume! ... Irás tão alto
Como o
pássaro-rei do Novo Mundo!
Ai! doudo
sonho! ... Uma estação passou-se,
E tantas
glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se
em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu
facho ensangüentado
Meus soberbos
castelos. A desgraça
Sentou-se em
meu solar, e a soberana
Dos sinistros
impérios de além-mundo
Com seu dedo
real selou-te a fronte!
Inda te vejo
pelas noites minhas,
Em meus dias
sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo,
e morto te pranteio! ...
Ouço o tanger
monótono dos sinos,
E cada vibração
contar parece
As ilusões que
murcham-se contigo!
Escuto em meio
de confusas vozes,
Cheias de
frases pueris, estultas,
O linho
mortuário que retalham
Para envolver
teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e
perpétuas, — sinto o aroma
Do incenso das
igrejas, — ouço os cantos
Dos ministros
de Deus que me repetem
Que não és mais
da terra!... E choro embalde.
Mas não! Tu
dormes no infinito seio
Do Criador dos
seres! Tu me falas
Na voz dos
ventos, no chorar das aves,
Talvez das
ondas no respiro flébil!
Tu me
contemplas lá do céu, quem sabe,
No vulto
solitário de uma estrela,
E são teus
raios que meu estro aquecem!
Pois bem!
Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e
fulgura no azulado manto,
Mas não te
arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas
nebulosas do ocidente!
Brilha e
fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim
sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó
serão teus raios
Por onde asinha
subirá minh'alma.
- Fagundes Varella, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Canto do
sertanejo
Salve, oh!
florestas sombrias,
Salve, oh!
broncas penedias,
Onde as rijas
ventanias
Murmuram fera
canção,
Nas sombras
deste deserto
Do norte ao
rude concerto,
Sentado de Deus
tão perto
Quem é que teme
o Bretão?
Cobre-se a
selva de flores,
Brincam
voláteis cantores
Bebendo os
langues odores
Que passam na
viração,
Rugem cavernas
frementes,
Silvam medonhas
serpentes,
Bradam raivosas
torrentes,
Quem é que teme
o Bretão?
Ah! correi
filhos das matas,
Através das
cataratas,
Entre suaves
cantatas
Ao gênio da
solidão,
Cuspi nos dias
escassos,
Rompei os
imigos laços...
Não tendes dois
fortes braços?
Quem é que teme
o Bretão?
Loucos! nas
fundas clareiras,
Aos urros das
cachoeiras
Nas brenhas das
cordilheiras,
Feia morte encontrarão!
Quem tem do
ermo as grandezas,
As serras por
fortalezas
Não teme as
loucas bravezas
Do temerário
Bretão!
Daqui decide-se
a sorte,
Daqui
troveja-se a morte,
Daqui se
extingue a coorte
Que insulta a
brava nação!...
Gritos das
selvas, dos montes,
Dos matagais e
das fontes
Retumbam nos
horizontes...
Quem é que teme
o Bretão?
Salve, oh!
florestas sombrias,
Salve, oh!
broncas penedias,
Onde as rijas
ventanias
Perpassam
varrendo o chão,
Neste profundo
deserto
De negros
antros coberto
Sentado de Deus
tão perto
Quem é que teme
o Bretão?
- Fagundes Varela, em "Noturnas", 1861.
Cismas à noite
Doce brisa da
noite, aura mais frouxa
Que o débil
sopro de adormido infante,
Tu és, quem
sabe? a perfumada aragem
Das asas de
ouro algum gênio errante.
Tu és, quem
sabe? a gemedora endecha
De um ente
amigo que afastado chora,
E ao som das
fibras do saltério ebúrneo
Conta-me as
dores que padece agora!
Ai! não te
arredes, viração tardia,
Zéfiro pleno da
estival fragrância!
Sinto a teus
beijos ressurgir-me nalma
O drama inteiro
da rosada infância!
Bem com a
aurora faz brotar as clícias,
Chama das
selvas os festivais cantores,
Assim dos
tempos na penumbra elevas
Todos os
quadros da estação das flores.
Sim, vejo ao
longe os matagais extensos,
O lago azul, os
palmeirais airosos,
A grei sem
conta de ovelhinhas brancas
Balindo alegre
nos sarçais viçosos;
Diviso a choça
paternal no outeiro,
Alva, gentil,
dos laranjais no seio,
Como a gaivota
descuidosa e calma
Das verdes
ondas a boiar no meio;
Sinto o perfume
das roçadas frescas,
Ouço a canção
do lenhador sombrio,
Sigo o
barqueiro que tranqüilo fende
A lisa face do
profundo rio...
Oh! minhas
noites de ilusões celestes!
Visões
brilhantes da primeira idade!
Como de novo
reviveis tão lindas
Por entre as
balsas da nativa herdade!
Como no espaço
derramais, suaves,
Tão langue
aroma, vibração tão grata!
Como das
sombras do passado, mesmo,
Tantas
promessas o porvir desata!
Exalte embora o
insensato as trevas,
Chame o
descrido a solidão e a morte,
Não quero ainda
fenecer, é cedo!
Creio na sina,
tenho fé na sorte!
Creio que as
dores que suporto alcancem
Um prêmio ainda
da justiça eterna!
Oh! Basta um
sonho!... o respirar de um silfo,
O amor duma
alma compassiva e terna!
Basta uma noite
de luar nos campos,
O brando
eflúvio dos vergéis do sul,
Dois olhos
belos, como a crença belos,
Fitos do espaço
no fulgente azul!
Ah! não te
afastes, viração amiga!
Além não passes
com teu mole adejo!
Tens nas
delícias que as torrentes vertes
Toda a doçura
de um materno beijo!
Fala-me ainda
desses tempos idos,
Rasga-me a tela
da sazão que vem,
Foge depois, e
mais sutil, mais tênue,
Vai meus
suspiros repetir além.
- Fagundes Varela, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Conforto
Deixo aos mais
homens a tarefa ingrata
De maldizer teu
nome desditoso;
Por mim nunca o
farei:
Como a estrela
no céu vejo tu’alma,
E como a
estrela que o vulcão não tolda,
Pura sempre a
encontrei.
Dos juízos
mortais toda a miséria
Nos curtos
passos de uma curta vida
Também, também
sofri,
Mas contente no
mundo de mim mesmo,
Menos grande
que tu, porém mais forte,
Das calúnias me
ri.
A turba vil de
escândalos faminta,
Que das dores
alheias se alimenta
E folga sobre o
pó,
Há de soltar um
grito de triunfo,
Se vir de leve
te brilhar nos olhos
Uma lágrima só.
Oh! Não chores
jamais! A sede imunda,
Prantos
divinos, prantos de martírio,
Não devem
saciar...
O orgulho é
nobre quando a dor o ampara,
E se lágrima
verte é funda e vasta,
Tão vasta como
o mar.
É duro de
sofrer, eu sei, o escárnio
Dos seres mais
nojentos que se arrastam
Ganindo sobre o
chão,
Mas a dor
majestosa que incendeia
Dos eleitos a
fronte os vis deslumbra
Com seu vivo
clarão.
Curve-se o ente
imbele que, despido
De crenças e
firmeza, implora humilde
O arrimo de um
senhor,
O espírito que
há visto a claridade
Rejeita todo o
auxílio, rasga as sombras,
Sublime em seu
valor.
Deixa passar a
doida caravana,
Fica no teu
retiro, dorme sem medo,
Da consciência
à luz;
Livres do mundo
um dia nos veremos,
Tem confiança
em mim, conheço a senda
Que ao repouso
conduz.
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
Deixa-me!
Quando cansado
da vigília insana
Declino a
fronte num dormir profundo,
Por que teu
nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o
tempo que passei no mundo?
Por que teu
vulto se levanta airoso,
Tremente em
ânsias de volúpia infinda?
E as formas
nuas, e ofegante o seio,
No meu retiro
vens tentar-me ainda?
Por que me
falas de venturas longas,
Por que me
apontas um porvir de amores?
E o lume pedes
à fogueira extinta,
Doces perfumes
a polutas flores?
Não basta ainda
essa existência escura,
Página treda
que a teus pés compus?
Nem essas
fundas, perenais angústias,
Dias sem
crenças e serões sem luz?
Não basta o
quadro de meus verdes anos
Manchado e
roto, abandonado ao pó?
Nem este
exílio, do rumor no centro,
Onde pranteio
desprezado e só?
Ah! não me
lembres do passado as cenas,
Nem essa jura
desprendida a esmo!
Guardaste a
tua? a quantos outros, dize,
A quantos
outros não fizeste o mesmo?
A quantos
outros, inda os lábios quentes
De ardentes
beijos que eu te dera então,
Não apertaste
no vazio seio
Entre promessas
de eternal paixão?
Oh! fui um
doido que segui teus passos,
Que dei-te em
versos de beleza a palma;
Mas tudo
foi-se, e esse passado negro
Por que sem
pena me despertas n’alma?
Deixa-me agora
repousar tranqüilo,
Deixa-me agora
dormitar em paz,
E com teus
risos de infernal encanto
Em meu retiro
não me tentes mais!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Desengano
Oh! não me
fales da glória,
Não me fales da
esperança!
Eu bem sei que
são mentiras
Que se dissipam,
criança!
Assim como a
luz profliga
As sombras da
imensidade,
O tempo desfaz
em cinzas
Os sonhos da
mocidade.
Tudo descora e
se apaga:
É esta do mundo
a lei,
Desde a choça
do mendigo
Até aos paços
do rei!
A poesia é um
sopro,
A ciência uma
ilusão,
Ambas tateiam
nas trevas
A luz
procurando em vão.
Caminham
doidas, sem rumo,
Na senda que à
dor conduz,
E vão cair
soluçando
Aos pés de
sangrenta cruz.
Oh! Não me
fales da glória,
Não me fales da
esperança!
Eu bem sei que
são mentiras
Que se
dissipam, criança!
Que me importa
um nome impresso
No templo da
humanidade,
E as coroas de
poeta,
E o selo da
eternidade,
Se para
escrever os cantos
Que a multidão
admira
É mister
quebrar as penas
De minh’alma
que suspira?
Se nos desertos
da vida,
Romeiro da
maldição,
Tenho de andar
sem descanso
Como o Hebreu
da tradição?...
Buscar das
selvas o abrigo,
A sombra que a
paz aninha,
E ouvir a selva
bradar-me:
Ergue-te,
doido, e caminha!
Caminha!
dizer-me o mante!
Caminha!
dizer-me o prado.
Oh! Mais não
posso! - Caminha!
Responder-me o
descampado?...
Ah! não me
fales da glória,
Não me fales da
esperança!
Eu bem sei que
são mentiras
Que se
dissipam, criança!
- Fagundes Varela, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Elegia
A noite era
bela - dormente no espaço
A lua soltava
seus pálidos lumes;
Das flores
fugindo, corria lasciva
A brisa
embebida de moles perfumes.
Do ermo os
insetos zumbiam na relva,
As plantas
tremiam de orvalho banhadas,
E aos bandos
voavam ligeiras falenas
Nas folhas
batendo com as asas douradas.
O túrbido manto
das névoas errantes
Pairava
indolente no topo da serra;
E aos astros -
e às nuvens perfumes - sussurros,
Suspiros e
cantos partiam da terra.
Nós éramos
jovens - ardentes e sós,
Ao lado um do
outro no vasto salão;
E as brisas e a
noite nos vinham no ouvido
Cantar os
mistérios de infinda paixão!
Nós éramos
jovens - e a luz de seus olhos
Brilhava
incendida de eternos desejos,
E a sombra
indiscreta do níveo corpinho
Sulcava-lhe os
seios em brandos arquejos!
Nós éramos
jovens - e as balsas floridas
O espaço inundavam
- de quentes perfumes,
E o vento
chorava nas tílias do parque,
E a lua soltava
seus tépidos lumes!...
Ah! mísero
aquele que as sendas do mundo
Trilhou sem o
aroma de pálida flor,
E à tumba
declina, na aurora dos sonhos,
O lábio inda
virgem dos beijos de amor!
Não são dos
invernos as frias geadas,
Nem longas
jornadas que os anos apontam.
O tempo descora
nos risos e prantos,
E os dias do
homem por gozos se contam.
Assim nessa
noite de mudas venturas,
De louros
eternos minh’alma enastrei;
Que importa-me
agora martírios e dores,
Se outrora dos
sonhos a taça esgotei?
Ah! lembra-me
ainda! - nem um candelabro
Lançava ao
recinto seu brando clarão,
Apenas os raios
da pálida lua
Transpondo as
janelas batiam no chão.
Vestida de
branco - nas cismas perdida,
Seu mórbido
rosto pousava em meu seio,
E o aroma
celeste das negras madeixas
Minh’alma
inundava de férvido anseio.
Nem uma palavra
seus lábios queridos
Nos doces
espasmos diziam-me então:
Que valem
palavras, quando ouve-se o peito
E as vidas se
fundem no ardor da paixão?
Oh! céus! eram
mundos... ai! mais do que mundos
Que a mente
invadiam de etéreo fulgor!
Poemas divinos
- por Deus inspirados,
E a furto
contados em beijos de amor!
No fim do seu
giro, da noite a princesa
Deixou-nos
unidos em brando sonhar;
Correram as
horas - e a luz da alvorada
Em juras
infindas nos veio encontrar!
Não são dos
invernos as frias geadas,
Nem longas
jornadas que os anos apontam...
O tempo descora
nos risos e prantos,
E os dias do
homem por dores se contam!
Ligeira... essa
noite de infindas venturas
Somente em
minh’alma lembranças deixou...
Três meses
passaram, e o sino do templo
À reza dos
mortos os homens chamou!
Três meses
passaram - e um lívido corpo
Jazia dos
círios à luz funeral,
E, à sombra dos
mirtos, o rude coveiro
Abria cantando
seu leito afinal!...
Nós éramos
jovens, e a senda terrestre
Trilhávamos
juntos, de amor a sorrir,
E as flores e
os ventos nos vinham no ouvido
Contar os
arcanos de um longo porvir!
Nós éramos
jovens, e as vidas e os seios,
O afeto prendera
num cândido nó!
Foi ela a
primeira que o laço quebrando
Caiu soluçando
das campas no pó!
Não são dos
invernos as frias geadas,
Nem longas
jornadas que os anos apontam,
O tempo descora
nos risos e prantos,
E os dias do
homem por dores se contam!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Em toda a parte
Quando alta
noite as florestas,
Tenebrosas
agonias
Traem nas vozes
funestas,
Quando as
torrentes bravejam,
Quando os
coriscos rastejam
Na espuma dos
escarcéus...
Então a passos
incertos
Procuro os
amplos desertos
Para
escutar-te, meu Deus!
Quando na face
dos mares
Espelha-se o
rei dos astros,
Cobrindo de
ardentes rastros
Os cerúleos
alcançares;
E a luz domina
os espaços
Partindo da
névoa os laços,
Rasgando da
sombra os véus...
Então resoluto,
ufano,
Corro às praias
do oceano
Para mirar-te,
meu Deus!
Quando às
bafagens do estio
Tremem os pomos
dourados,
Sobre os galhos
pendurados
Do pomar fresco
e sombrio;
Quando à flor
d’água os peixinhos
Saltitam, e os
passarinhos
Se cruzam no
azul dos céus,
Então procuro
as savanas,
Me atiro entre
as verdes canas
Para sentir-te,
meu Deus!
Quando a
tristeza desdobra
Seu manto
escuro em minh’alma,
E vejo que nem
a calma
Desfruto que
aos outros sobra,
E do passado no
templo
Letra por letra
contemplo
A nênia dos
sonhos meus...
Então me afundo
na essência
De minha
própria existência
Para
entender-te, meu Deus!
- Fagundes Varela, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Em viagem
A vida na
cidades me enfastia,
Enoja-me o
tropel das multidões,
O sopro do egoísmo
e do interesse
Mata-me nalma a
flor das ilusões.
Mata-me nalma a
flor das ilusões
Tanta mentira,
tão fingido rir,
E cheio e farto
de tristeza e tédio
Rejeito as
glórias de falaz porvir!
Rejeito as
glórias de falaz porvir,
Galas e festas,
o prazer talvez,
E busco altivo
as solidões profundas
Que dormem
quedas do Senhor aos pés.
Que dormem
quedas do Senhor aos pés,
Ao doce brilho
dos clarões astrais,
Ricas de gozos
que não tem o mundo,
Pródigas sempre
de beleza e paz!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
Enojo
Vem despontando
a aurora, a noite morre,
Desperta a mata
virgem seus cantores,
Medroso o vento
no arraial das flores
Mil beijos
furta e suspirando corre.
Estende a névoa
o manto e o val percorre,
Cruzam-se as
borboletas de mil cores,
E as mansas
rolas choram seus amores
Nas verdes
balsas onde o orvalho escorre.
E pouco a pouco
se esvaece a bruma,
Tudo se alegra
à luz do céu risonho
E ao flóreo
bafo que o sertão perfuma.
Porém minh’alma
triste e sem um sonho
Murmura,
olhando o prado, o rio, a espuma:
- Como isto é
pobre, insípido, enfadonho!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
Estâncias
Quando à
tardinha rumorejam brisas
Roubando o
aroma das agrestes flores,
E doce e grave,
nas viçosas matas,
Mais triste
canto o sabiá desata,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de
ti, por que tu’alma
É o sol de
minh’alma e de meu gênio;
E neste exílio
que infernal me cerca,
Mísera planta,
desfaleço e morro
Ao frio toque
de hibernal geada!
* * *
Quando das
franjas do Ocidente róseo
Um raio ainda
me clareia o cárcere,
E um tom suave
de tristeza e luzes
Mistura o dia à
palidez da noite,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de
ti, porque teu seio
Guarda um
tesouro de piedade santa,
E nesse instante
que o pesar duplica
Faltam-me as
vozes de teus lábios meigos
E o doce
orvalho de amorosos olhos!
* * *
Quando nas
bordas de meu leito escuro
Fatais
espectros de pavor se cruzam,
E exausto, e
lívido, eu procuro embalde
O grato sono
que meus olhos deixa,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de
ti, porque saudosa
Sonho-te a
imagem soluçando ao longe,
E a fronte
curva, e umedecidas pálpebras,
Meu nome dizes
ao tufão que passa,
À brisa doida
que te morde as tranças!
* * *
Quando meu
corpo se debate em febre,
E a lava
ardente nas artérias corre...
Quando cruenta,
de funéreos risos,
Pressinto a
morte levantar-se perto,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de
ti que és minha vida,
Último alívio
neste mundo insano,
Anjo da guarda
que à minh’alma aflita
Pudera as
trevas espancar com as asas,
Lavar-lhe as
manchas num Jordão de lágrimas!
* * *
Ai! tudo os
homens entre nós quebraram:
A paz, o riso,
as esperanças áureas;
Mas de teu
peito me arrancar não podem,
Nem a minh’alma
desprender da tua!...
Eu lembro-me de ti!...
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Estâncias (II)
O que eu adoro
em ti não são teus olhos,
Teus lindos
olhos cheios de mistério,
Por cujo brilho
os homens deixariam
Da terra
inteira o mais soberbo império.
O que eu adoro
em ti não são teus lábios,
Onde perpétua
juventude mora,
E encerram mais
perfumes do que os vales
Por entre as
pompas festivais da aurora.
O que eu adoro
em ti não é teu rosto
Perante o qual
o marmor descorara,
E ao contemplar
a esplêndida harmonia
Fídias, o
mestre, seu cinzel quebrara.
O que eu adoro
em ti não é teu colo,
Mais belo que o
da esposa israelita,
Torre de
graças, encantado asilo,
Aonde o gênio
das paixões habita.
O que eu adoro
em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas
que dormindo gemem,
E do indiscreto
vôo duma abelha
Cheias de medo
em seu abrigo tremem.
O que eu adoro
em ti, ouve, é tu’alma,
Pura como o
sorrir de uma criança,
Alheia ao
mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de
crenças, rica de esperança.
São as palavras
de bondade infinda
Que sabes
murmurar aos que padecem,
Os carinhos
ingênuos de teus olhos
Onde celestes
gozos transparecem!...
Um não sei quê
de grande, imaculado,
Que faz-me
estremecer quando tu falas,
E eleva-me o
pensar além dos mundos
Quando,
abaixando as pálpebras, te calas.
E por isso em
meus sonhos sempre vi-te
Entre nuvens de
incenso em aras santas,
E das turbas
solícitas no meio
Também contrito
hei-te beijado as plantas.
E como és linda
assim! Chamas divinas
Cercam-te as
faces plácidas e belas,
Um longo manto
pende-te dos ombros
Salpicado de
nítidas estrelas!
Na doida pira
de um amor terrestre
Pensei
sagrar-te o coração demente...
Mas ao mirar-te
deslumbrou-me o raio...
Tinhas nos
olhos o perdão somente!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
Eu amo a noite
Eu amo a noite
quando deixa os montes,
Bela, mas bela
de um horror sublime,
E sobre a face
dos desertos quedos
Seu régio selo
de mistério imprime.
Amo o sinistro
ramalhar dos cedros
Ao rijo sopro
da tormenta infrene,
Quando
antevendo a inevitável queda
Mandam aos
ermos um adeus solene.
Amo os penedos
escarpados onde
Desprende o
abutre o prolongado pio,
E a voz medonha
do caimã disforme
Por entre os
juncos de lodoso rio.
Amo os lampejos
verde-azuis, funéreos,
Que às horas
mortas erguem-se da terra
E enchem de
susto o viajante incauto
No cemitério de
sombria serra.
Amo o silêncio,
os areais extensos,
Os vastos
brejos e os sertões sem dia,
Porque meu seio
como a sombra é triste,
Porque
minh’alma é de ilusões vazia.
Amo o furor do
vendaval que ruge,
Das asas densas
sacudindo o estrago,
Silvos de
balas, turbilhões de fumo,
Tribos de
corvos em sangrento lago.
Amo as
torrentes que da chuva túmidas
Lançam aos ares
um rumor profundo,
Depois
raivosas, carcomendo as margens,
Vão dos abismos
pernoitar no fundo.
Amo o pavor das
soledades, quando
Rolam as rochas
da montanha erguida,
E o fulvo raio
que flameja e tomba
Lascando a cruz
da solitária ermida.
Amo as
perpétuas que os sepulcros ornam,
As rosas
brancas desbrochando à lua,
Porque na vida
não terei mais sonhos,
Porque
minh’alma é de esperanças nua.
Tenho um desejo
de descanso, infindo,
Negam-me os
homens; onde irei achá-lo?
A única fibra
que ao prazer ligava-me
Senti partir-se
ao derradeiro abalo!...
Como a criança,
do viver nas veigas,
Gastei meus
dias namorando as flores,
Finos espinhos
os meus pés rasgaram,
Pisei-os ébrio
de ilusões e amores.
Cendal espesso
me vendava os olhos,
Doce veneno lhe
molhava o nó...
Ai! minha
estrela de passadas eras,
Por que tão
cedo me deixaste só?
Sem ti, procuro
a solidão e as sombras
De um céu
toldado de feral caligem,
E gasto as
horas traduzindo as queixas
Que à noite
partem da floresta virgem.
Amo a tristeza
dos profundos mares,
As águas torvas
de ignotos rios,
E as negras
rochas que nos plainos zombam
Da insana fúria
dos tufões bravios.
Tenho um
deserto de amarguras nalma,
Mas nunca a
fronte curvarei por terra!...
Ah! tremo às
vezes ao tocar nas chagas,
Nas vivas
chagas que meu peito encerra!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da Cidade",
1869.
Expiação
Quando cansada
da vigília insana
Declino a
fronte num dormir profundo,
Por que teu
nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o
tempo que passei no mundo?
Por que teu
vulto se levanta airoso,
Ébrio de
almejos de volúpia infinda?
E as formas
nuas, e ofegante o peito,
No meu retiro
vens tentar-me ainda?
Por que me
falas de venturas longas?
Por que me
apontas um porvir de amores?
E o lume pedes
à fogueira extinta?
Doces perfumes
a polutas flores?
Não basta ainda
essa ignóbil farsa,
Páginas negras
que a teus pés compus?
Nem estas
fundas, perenais angústias,
Dias sem
crenças e serões sem luz?
Não basta o
quadro de meus verdes anos,
Manchado, roto,
abandonado ao pó?
Nem este
exílio, do rumor no centro,
Onde pranteio
desprezado e só?
Ah! Não me
lembres do passado as cenas!
Nem essa jura
desprendida a esmo!
Guardaste a
tua? A quantos outros, dize,
A quantos
outros não fizeste o mesmo?
A quantos
outros, inda os lábios quentes
De ardentes
beijos que eu te dera então,
Não apertaste
no vazio peito
Entre promessas
de eternal paixão?
Oh! Fui um
doido que segui teus passos!
Que dei-te, em
versos, da beleza a palma!
Mas tudo
foi-se! e esse passado negro
Por que sem
pena me despertas nalma?
Deixa-me agora
repousar tranqüilo!
Deixa-me agora
descansar em paz!...
Ai! com teus
risos de infernal encanto
Em meu retiro
não me tentes mais!
- Fagundes Varela, em "Cantos
meridionais", 1869.
Ilusão
Sinistro como
um fúnebre segredo
Passa o vento
do Norte murmurando
Nos densos
pinheirais;
A noite é fria
e triste; solitário
Atravesso a
cavalo a selva escura
Entre sombras
fatais.
À medida que
avanço, os pensamentos
Borbulham-me no
cérebro, ferventes,
Como as ondas
do mar,
E me arrastam
consigo, alucinado,
À casa da
formosa criatura
De meu doido
cismar.
Latem os cães;
as portas se franqueiam
Rangendo sobre
os quícios; os criados
Acordem
pressurosos;
Subo ligeiro a
longa escadaria,
Fazendo retinir
minhas esporas
Sobre os
degraus lustrosos.
No seu vasto
salão iluminado,
Suavemente
repousando o seio
Entre sedas e flores,
Toda de branco,
engrinaldada a fronte,
Ela me espera,
a linda soberana
De meus santos
amores.
Corro a seus
braços trêmulo, incendido
De febre e de
paixão... A noite é negra,
Ruge o vento no
mato;
Os pinheiros se
inclinam, murmurando:
- Onde vai este
pobre cavaleiro
Com seu sonho
insensato?...
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Não te esqueças
de mim!
Não te esqueças
de mim, quando erradia
Perde-se a lua
no sidéreo manto;
Quando a brisa
estival roçar-te a fronte,
Não te esqueças
de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças
de mim, quando escutares
Gemer a rola na
floresta escura,
E a saudosa
viola do tropeiro
Desfazer-se em
gemido de tristura.
Quando a flor
do sertão, aberta a medo,
Pejar os ermos
de suave encanto,
Lembre-te os
dias que passei contigo,
Não te esqueças
de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças
de mim, quando à tardinha
Se cobrirem de
névoa as serranias,
E na torre
alvejante o sacro bronze
Docemente soar
nas freguesias!
Quando de
noite, nos serões de inverno,
A voz soltares
modulando um canto,
Lembre-te os
versos que inspiraste ao bardo,
Não te esqueças
de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças
de mim, quando meus olhos
Do sudário no
gelo se apagarem,
Quando as roxas
perpétuas do finado
Junto à cruz de
meu leito se embalarem.
Quando os anos
de dor passado houverem,
E o frio tempo
consumir-te o pranto,
Guarda ainda
uma idéia a teu poeta,
Não te esqueças
de mim, que te amo tanto.
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Névoas
Nas horas
tardias que a noite desmaia,
Que rolam na
praia mil vagas azuis,
E a lua cercada
de pálida chama
Nos mares
derrama seu pranto de luz.
Eu vi entre os
flocos de névoas imensas,
Que em grutas
extensas se elevam no ar,
Um corpo de
fada, serena dormindo,
Tranqüila
sorrindo num brando sonhar.
Na forma de
neve, puríssima e nua,
Um raio da lua
de manso batia,
E assim
reclinada no túrbido leito
Seu pálido
peito de amores tremia.
Oh! filha das
névoas! das veigas viçosas,
Das verdes,
cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste
tão bela dormindo,
E dormes,
sorrindo, das nuvens no véu?
O orvalho das
noites congela-te a fronte,
As orlas do
monte se escondem nas brumas,
E queda
repousas num mar de neblina,
Qual pérola
fina no leito de espumas!
Nas nuas
espáduas, dos astros dormentes,
Tão frio não
sentes o pranto filtrar?
E as asas de
prata do gênio das noites
Em tíbios
açoites a trança agitar?
Ai! vem, que
nas nuvens te mata o desejo
De um férvido
beijo gozares em vão!...
Os astros sem
alma se cansam de olhar-te,
Não podem
amar-te, nem dizem paixão!
E as auras
passavam, e as névoas tremiam,
E os gênios
corriam no espaço a cantar,
Mas ela dormia
tão pura e divina
Qual pálida
ondina nas águas do mar!
Imagem formosa
das nuvens da Ilíria,
Brilhante
Valquíria das brumas do norte,
Não ouves ao
menos do bardo os clamores,
Envolta em
vapores mais fria que a morte!
Oh! vem! vem,
minh’alma! teu rosto gelado,
Teu seio
molhado de orvalho brilhante,
Eu quero
aquecê-los ao peito incendido,
Contar-te ao
ouvido paixão delirante!...
Assim eu
clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o
gemido da onda na praia,
Na hora em que
fogem as névoas sombrias,
Nas horas
tardias que a noite desmaia.
E as brisas da
aurora ligeiras corriam,
No leito batiam
da fada divina...
Sumiram-se as
brumas do vento à bafagem
E a pálida imagem
desfez-se em neblina!
- Fagundes Varela, em "Noturnas", 1861.
No ermo
Salve! erguidas
cordilheiras,
Brenhas, rochas
altaneiras,
Donde as alvas
cachoeiras
Se arrojam
troando os ares!
Folhas que
rangem caindo,
Feras que
passam rugindo,
Gênios que
dormem sorrindo
No fresco chão
dos palmares!
Salve!
florestas sombrias,
Onde as rijas
ventanias
Acordam mil
harmonias
Na doce quadra
estival!
Rolas gentis
que suspiram,
Louras abelhas
que giram
Sobre as flores
que transpiram
No seio do
taquaral!
Salve! esplêndida
espessura,
Mares de sombra
e verdura
Donde a brisa
etérea e pura
Faz brotar a
inspiração,
Quando à luz
dos vaga-lumes,
Da mariposa aos
cardumes
Se casam moles
queixumes
Dos filhos da
solidão!
Ah! que eu não
possa me afastar das turbas,
Curar a febre que
meu ser consome,
E entre
alegrias me atirar cantando
Nas secas
folhas do sertão sem nome...
Ah! que eu não
possa desprender aos ermos
O fogo ardente
que meu crânio encerra,
Gastar os dias
entre Deus e os gênios
Nas matas
virgens da cabrália terra!
Eu não detesto
nem maldigo a vida,
Nem do despeito
me remorde a chaga;
Mas ai! sou
pobre, pequenino e débil,
E sobre a
estrada o viajor me esmaga!
Fere-me os
olhos o clarão do mundo,
Rasgam-me o
seio prematuras dores,
E à mágoa
insana que me enluta as noites
Declino à campa
na estação das flores!
E há tanto
encanto nos desertos vastos,
Tanta beleza do
sertão na sombra,
Tanta harmonia
no correr do rio,
Tanta doçura na
campestre alfombra,
Que inda pudera
se alentar de novo
E entre
delícias flutuar minh’alma,
Fanada planta
que mendiga apenas
O orvalho, a
noite, a viração e a calma!
Abre-me os
braços, ó fada,
Fada do ermo
profundo,
Onde o bulício
do mundo
Não ousa sequer
bater!
Oh! quero tudo
esquecer,
Tudo o que aos
homens seduz,
Beber uma nova
vida
E a fronte
elevar ungida
De santas
crenças à luz!
Glória,
futuro... o que valem
Futuro e
glórias de pó...
Sem gratos
sonhos que embalem
O triste
descrido e só?
De que serve o
ouro, a fama,
Um nome -
pálida chama!
Quando à noite
junto à cama
Só há martírios
e dores?
Quando a aurora
é sem belezas,
Cheias de
espinhos as devesas,
E a tarde só
tem tristezas
Em vez de
cantos e flores!
- Fagundes Varela, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Noturno
Minh’alma é
como um deserto
Por onde
romeiro incerto
Procura uma
sombra em vão;
É como a ilha
maldita
Que sobre as
vagas palpita
Queimada por um
vulcão!
Minh’alma é
como a serpente
Que se torce
ébria e demente
De vivas chamas
no meio;
É como a doida
que dança
Sem mesmo
guardar lembrança
Do cancro que
rói-lhe o seio!
Minh’alma é como
o rochedo
Donde o abutre
e o corvo tredo
Motejam dos
vendavais;
Coberto de
atros matizes,
Lavrado das
cicatrizes
Do raio, nos
temporais!
Nem uma luz de
esperança,
Nem um sopro de
bonança
Na fronte sinto
passar!
Os invernos me
despiram,
E as ilusões que
fugiram
Nunca mais hão
de voltar!
Tombam as
selvas frondosas,
Cantam as aves
mimosas
As nênias da
viuvez;
Tudo, tudo, vai
finando,
Mas eu pergunto
chorando:
Quando será
minha vez?
No véu etéreo
os planetas,
No casulo as
borboletas
Gozam da calma
final;
Porém meus
olhos cansados
São, a mirar,
condenados
Dos seres o
funeral!
Quero morrer!
Este mundo
Com seu
sarcasmo profundo
Manchou-me de
lodo e fel!
Minha esperança
esvaiu-se,
Meu talento
consumiu-se
Dos martírios
ao tropel!
Quero morrer!
Não é crime
O fardo que me
comprime
Dos ombros
lançá-lo ao chão;
Do pó
desprender-me rindo
E, as asas
brancas abrindo,
Perder-me pela
amplidão!
Vem, oh! morte!
A turba imunda
Em sua ilusão
profunda
Te odeia, te
calunia,
Pobre noiva tão
formosa
Que nos espera
amorosa
No termo da
romaria!
Virgens, anjos
e crianças,
Coroadas de
esperanças,
Dobram a fronte
a teus pés!
Os vivos vão
repousando!
E tu me deixas
chorando!
Quando virá
minha vez?
Minh’alma é
como um deserto
Por onde o
romeiro incerto
Procura uma
sombra em vão;
É como a ilha
maldita
Que sobre as
vagas palpita
Queimada por um
vulcão!
- Fagundes Varela, em "Cantos
meridionais", 1869.
O canto dos
sabiás
Serão de mortos
anjinhos
O cantar de
errantes almas,
Dos coqueirais
florescentes
A brincar nas
verdes palmas,
Estas notas
maviosas
Que me fazem
suspirar?
São os sabiás
que cantam
Nas mangueiras
do pomar.
Serão os gênios
da tarde
Que passam
sobre as campinas,
Cingido o colo
de opalas
E a cabeça de
neblinas,
E fogem, nas
harpas de ouro
Mansamente a
dedilhar?
São os sabiás
que cantam...
Não vês o sol
declinar?
Ou serão talvez
as preces
De algum
sonhador proscrito,
Que vagueia nos
desertos,
Alma cheia do
infinito,
Pedindo a Deus
um consolo
Que o mundo não
pode dar?
São os sabiás
que cantam...
Como está
sereno o mar!
Ou, quem sabe?
As tristes sombras
De quanto amei
neste mundo,
Que se elevam
lacrimosas
De seu túmulo
profundo,
E vêm os salmos
da morte
No meu desterro
entoar?
São os sabiás
que cantam...
Não gostas de
os escutar?
Serás tu, minha
saudade?
Tu, meu tesouro
de amor?
Tu que às
tormentas murchaste
Da mocidade na
flor?
Serás tu? Vem,
sê bem-vinda
Quero-te ainda
escutar!
São os sabiás
que cantam
Antes da noite
baixar.
Mas ah! delírio
insensato!
Não és tu,
sombra adorada!
Não são
cânticos de anjinhos,
Nem de falange
encantada,
Passando sobre
as campinas
Nas harpas a
dedilhar!
São os sabiás
que cantam
Nas mangueiras
do pomar!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
O exilado
O exilado está só por toda a parte!
Passei
tristonho dos salões no meio,
Atravessei as
turbulentas praças
Curvado ao peso
de uma sina escura;
As turbas
contemplaram-me sorrindo,
Mas ninguém
divisou a dor sem termos
Que as fibras
de meu peito espedaçava.
O exilado está
só por toda a parte!
Quando, à
tardinha, dos floridos vales
Eu via o fumo
se elevar tardio
Por entre o
colmo de tranqüilo albergue,
Murmurava a
chorar: - Feliz aquele
Que à luz amiga
do fogão doméstico,
Rodeado dos
seus, à noite, senta-se.
O exilado está
só por toda a parte!
Onde vão estes
flocos de neblina
Que o euro
arrasta nas geladas asas?
Onde vão essas
tribos forasteiras
Que à
tempestade se esquivar procuram?
Ah! que me
importa?... também eu doidejo,
E onde irei,
Deus o sabe, Deus somente.
O exilado está
só por toda a parte!
Desta campina
as árvores são belas,
São belas estas
flores que se vergam
Das auras
estivais ao débil sopro;
Mas nem a
sombra que no chão se alonga,
Nem o perfume
que o ambiente inunda
São dessa gleba
divinal que adoro.
O exilado está
só por toda a parte!
Mole e lascivo
no tapiz da selva
Serpeia o
arroio, e o deslizar queixoso
Peja de amor as
solidões dormentes;
Mas nunca o
rosto refletiu-me um dia,
Nem foi seu
burburinho enlanguescido
Que embalou
minha infância a descuidosa.
O exilado está
só por toda a parte!
- Por que chorais?
me perguntou o mundo;
Contai-nos
vossa dor, talvez possamos
Saná-la às
gotas de elixir suave;
Mas, quando eu
suspendi a lousa escura
Que o túmulo
cobria-me da vida,
Riram-se pasmos
sem sondar-lhe o fundo.
O exilado está
só por toda a parte!
Vi o ancião da
prole rodeado
Sorrir-se calmo
e bendizer a Deus,
Vi junto à
porta da nativa choça
As crianças
beijarem-se abraçadas;
Mas de filho ou
de irmão o santo nome
Ninguém me deu,
e eu fui passando triste.
O exilado está
só por toda a parte!
Quando verei
essas montanhas altas
Que o sol
dourava nas manhãs de agosto?
Quando, junto à
lareira, as folhas lívidas
Deslembrarei de
meu sombrio drama?
Doida
esperança! as estações sucedem-se
E sem um gozo
vou descendo à campa.
O exilado está
só por toda a parte!
Brandas
aragens, que roçais fagueiras
Das maravilhas
nas cheirosas frontes,
Aves sem
pátria, que cortais os ares,
Irmãs na sorte
do infeliz romeiro,
Ah! levai um
suspiro à pátria amada,
Último alento
de cansado peito.
O exilado está
só por toda a parte!
Quando nas
folhas de lustrosos plátanos
Novos luares
descansarem gratos,
Já sobre a
estrada de meus pés os traços
O pegureiro não
verá, que passa!
Mísero! ao
leito de final descanso
Ninguém meu
sono velará chorando.
O exilado está
só por toda a parte!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
O mar
Oh! profundo
oceano! Ergue-as altivas
Com seus
frígios barretes! Em vão tentam
Lutar contigo
temerárias frotas,
Traçar-te raias
a vaidade humana!
Tu és eterno e
vasto como o espaço,
Livre como a
vontade onipotente.
Régio manto do
globo! povo infindo
De soberbos
Titães! gênio da força,
Salve três
vezes!... Das espáduas amplas
Derribas todo o
jugo que te oprime,
Tragas gigantes
de carvalho e cedro,
E a fronte
erguendo majestosa e bela
Diademas de
pérolas atiras
Às estrelas do
céu, e ao mundo cospes
A férvida
saliva em desafio!
Quantos
impérios celebrados, fortes
Não floresceram
de teu trono às bases
Sublime
potestade! e onde estão eles?
O que é feito
de Roma, Assíria e Grécia,
Cartago, a
valorosa? As vagas tuas
Lambiam-lhes os
muros, quer nos tempos
De paz e de
bonança, quer na quadra
Em que chuvas
de setas se cruzavam
À face torva
das hostis falanges!
Tudo
esb’roou-se, se desfez em cinzas,
Sumiu-se como
os traços que o romeiro
Deixa de Núbia
na revolta areia!
Só tu, oh! mar,
sem termos, imutável
Como o
quadrante lúgubre do tempo,
Ruges, palpitas
sem grilhões nem peias!
Nunca na face
desse azul sombrio,
Onde
tranqüilas, ao chorar das brisas,
Poesias do céu,
flores do éter,
As estrelas se
miram namoradas...
Nunca o fogo e
a lava, a guerra e a morte,
A armada dos
tiranos há deixado
Um vestígio
sequer de seus destroços!
Tal como à
tarde do primeiro dia
Que ao orbe
clareou, hoje te ostentas
Na tua
majestade horrenda e bela!
Espelho glorioso
onde entre fogos
Se mostra
onipotente, nas tormentas
A face do
Senhor! Monstro sublime
Cujas garras de
ferro o globo abraçam...
Até que um dia,
quem o sabe? exausto
Lance o último
alento! ah! no teu seio
Talvez tremendo
espírito se agite,
Misto sombrio
de paixões sem freios,
Cuja expressão
vislumbra-te no rosto,
Ora hediondo de
compressos músculos,
Ora suave como
o louro infante
Sobre o seio
materno, ora cruento
Gotejando suor,
escuma e raiva!
Níobe eterna!
de teu ventre túmido
Os monstros dos
abismos rebentaram,
Em cujo dorso
de argentadas conchas
Os raios das
estrelas resvalavam:
De teu lodo
fecundo, inextinguível,
Brotaram
continentes cujas grimpas
Iam bater na
abóbada cerúlea;
Teus paços de
coral e de esmeraldas
Encerravam
princesas vaporosas,
Louras ondinas,
encantados gênios,
Soberbas
divindades! Entretanto
Viste tudo
cair! riscada a Atlântida
Da face do
universo, os brônzeos deuses
Desterrados pra
sempre, e só restou-te
Uma voz
gemedora que chorava:
- Já não vive o
Deus Pã! oh! Pã é morto!
Oceano sem
fundo! vagas túmidas
Abismo de
mistério, ah! desde a infância
Preso na teia
da atração divina
Eu vos busquei
sedento! sobre as praias,
Curvas como os
alfanjes dos eunucos,
Eu me perdia
nos dourados dias
Da santa
primavera, ouvindo os brados
Dos marinhos
corcéis, molhando as plantas
Na gaze
salitrosa que envolvia
A areia
cintilante! após mais tarde
Sentava-me no
cimo dos rochedos,
Suspirando de
amor aos verdes olhos,
Aos moles
braços que do salso leito
Erguiam-se tão
meigos e adorados!...
Amo-te ainda,
oh! mar! amo-te muito,
Mas não
tranqüilo umedecendo a proa
Da gôndola
lasciva, nem chorando
às carícias da
lua! Amo-te horrível,
Arrogante e
soberbo, repelindo
Os furacões que
roçam-te nas crinas,
Quebrando a asa
de fogo que das nuvens
Procura te domar,
batendo a terra
Com teus
flancos robustos, levantando
Triunfante e
feroz no tredo espaço
A cabeça
estrelada de ardentias!
Amo-te assim,
oh! mar, porque minh’alma
Vê-te imenso e
potente, desdenhoso
Rindo às
quimeras da cobiça humana!
Amo-te assim!
ditoso no teu seio
Zombo do mundo
que meu ser esmaga,
Sou livre como
as vagas que me cercam
E só a
tempestade e a Deus respeito.
Salve, oceano
onipotente e eterno!
Santo espelho
de Deus, três vezes salve!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
O mesmo
Desde a quadra
mais antiga
De que rezam
pergaminhos,
Cantam a mesma
cantiga
Na floresta os
passarinhos.
Têm o mesmo
aroma as flores,
Mesma verdura
as campinas,
A brisa os
mesmos rumores,
Mesma leveza as
neblinas.
Tem o sol as
mesmas luzes,
Tem o mar as
mesmas vagas,
O deserto as
mesmas urzes,
A mesma dureza
as fragas.
Os mesmos tolos
o mundo,
A mulher o
mesmo riso,
O sepulcro o
mesmo fundo,
Os homens o
mesmo siso.
E neste
insípido giro,
Neste vôo
sempre a esmo,
Vale a pena, em
seu retiro,
Cantar o poeta,
mesmo?
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
O resplendor do
trono
Que vale a
pompa e o resplendor do trono!
Triste vaidade!
O alvergue de um colono
Mais encantos
encerra e mais doçuras!
De calma
consciência à sombra amiga
Floresce o riso
e o júbilo se abriga,
Livre de
enganos e visões escuras.
Quem não aspira
da grandeza aos combros
Tem segura a
cabeça sobre os ombros,
E a vereda
conhece onde caminha;
Dorme sem medo,
acorda sem pesares,
E vê, feliz, a
prole junto aos lares
Vigorosa
estender-se como a vinha.
Sob os dosséis
dos sólios a mentira
Boceja e o
corpo sensual estira
No tapete macio
dos degraus...
São sempre
incertos do reinante os passos!
Ame embora a
verdade, ocultos laços
Prendem-o cego
aos cálculos dos maus!
Oh! Ditoso mil
vezes o operário!
Ama o trabalho,
e o módico salário
De prantos nem
de sangue está manchado!
Combates não
planeja em vasta liça!
Nem das vítimas
ouve da injustiça
A queixa amarga
e o clamoroso brado!
Não desperta
alta noite em sobressalto!
Nem dos cuidados
ao cruento assalto
Sobre o ouro e
o cetim geme e delira!
Qual manso
arroio sobre a terra corre,
E no meio dos
seus tranqüilo morre
Como a nota de
um canto em branda lira!
Não invejeis as
pompas das alturas!
O raio deixa os
vales e as planuras,
A tempestade
preza as serranias!...
Quereis saber
da majestade a glória?
Lede nos régios
túmulos a história
Dos soberanos
de passados dias!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
O Sabiá
(Cançoneta)
Oh! meu sabiá
formoso,
Sonoroso,
Já desponta a
madrugada,
Desabrocha a
linda rosa
Donairosa,
Sobre a campina
orvalhada.
Manso o regato
murmura
Na verdura
Descrevendo
giros mil,
Some-se a
estrela brilhante,
Vacilante,
No horizonte
cor de anil.
Ergue-te, oh!
meu passarinho,
De teu ninho,
Vem gozar da
madrugada...
Modula teu
terno canto,
Doce encanto
De minh’alma
amargurada.
Vem junto à
minha janela,
Sobre a bela
Verdejante
laranjeira,
Beber o eflúvio
das flores,
Teus amores,
Nas asas de
aura fagueira.
Desprende a voz
adorada,
Namorada,
Poeta da
solidão,
Ah! vem lançar
com encanto
Mais um canto,
No livro da
criação!
Oh! meu sabiá
formoso,
Sonoroso,
Já desponta a
madrugada...
Deixa teu ninho
altaneiro,
Vem ligeiro
Saudar a luz da
alvorada.
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
O vizir
- Não derribes
meus cedros! murmurava
O gênio da
floresta aparecendo
Adiante de um
vizir, senão eu juro
Punir-te
rijamente! E no entanto
O vizir
derribou a santa selva!
Alguns anos
depois foi condenado
Ao cutelo do
algoz. Quando encostava
A cabeça febril
no duro cepo,
Recuou
aterrado: - “Eternos deuses!
Este cepo é de
cedro!” E sobre a terra
A cabeça rolou
banhada em sangue!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Queixas de
poeta
Ao cedro
majestoso que o firmamento espana
Ligou a mão de
Deus a úmida liana,
Às amplas
soledades arroios amorosos,
Às selvas
passarinhos de cantos sonorosos,
Neblinas às
montanhas, aos mares virações,
Ao céu mundos e
mundos de fúlgidos clarões,
Mas presa de
uma dor tantálica e secreta
Sozinho fez
brotar o gênio do poeta!...
A aurora tem
cantigas e a mocidade rosas,
O sono do
opulento visões deliciosas,
Nas ondas
cristalinas espelham-se as estrelas,
E as noites
desta terra têm seduções tão belas,
Que as plantas,
os rochedos e os homens eletrizam,
E os mais
dourados sonhos na vida realizam.
Mas triste, do
martírio ferido pela seta,
Soluça no
silêncio o mísero poeta!...
As auras do
verão, nas regiões formosas
Do mundo
americano, as virações cheirosas
Parecem
confundidas rolar por sobre as flores
Que exalam da
corola balsâmicos odores;
As leves
borboletas em bandos esvoaçam,
Os reptis na
sombra às árvores se enlaçam;
Mas só, sem o
consolo de uma alma predileta,
Descora no
desterro a fronte do poeta!...
O viajor que à
tarde sobre os outeiros passa
Divisa junto às
selvas um fio de fumaça
Erguer-se
preguiçoso da choça hospitaleira
Pousada
alegremente de um ribeirão à beira;
Ali junto dos
seus descansa o lavrador,
Dos homens
afastado e longe do rumor;
Mas no recinto
escuro que o desalento infecta
Sucumbe
lentamente o gênio do poeta!...
No rio
caudaloso que a solidão retalha,
Da funda
correnteza na límpida toalha,
Deslizam
mansamente as garças alvejantes;
Nos trêmulos
cipós de orvalho gotejantes
Embalam-se
avezinhas de penas multicores
Pejando a mata
virgem de cânticos de amores;
Mas presa de
uma dor tantálica e secreta
De dia em dia
murcha o louro do poeta!...
- Fagundes Varela, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Resignação
Sozinho no
descampado,
Sozinho sem
companheiro,
Sou como o
cedro altaneiro
Pela tormenta
açoitado.
Rugi, tufão
desabrido!
Passai,
temporais de pó!
Deixai o cedro
esquecido,
Deixai o cedro
estar só!
Em meu orgulho
embuçado,
Do tempo zombo
da lei...
Oh! venha o
raio abrasado,
- Sem me
vergar... tombarei!
Gigante da
soledade,
Tenho na vida
um consolo:
Se enterro as
plantas no solo,
Chego a fronte
à imensidade!
Nada a meu fado
se prende,
Nada enxergo
junto a mim;
Só o deserto se
estende
A meus pés,
fiel mastim.
À dor o orgulho
sagrado
Deus ligou num
grande nó...
Quero viver
isolado,
Quero viver
sempre só!
E quando o raio
incendido
Roçar-me, então
cairei
Em meu orgulho
envolvido,
Como em um
manto de rei.
- Fagundes Varela, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Salmo I
Ditoso o justo
que afastado vive
Do concílio dos
maus e do caminho
Trilhado por
perversos pecadores!
E que nunca
ensinou, bem como o ímpio,
Do negro vício
as máximas corruptas!
Ditoso o homem
que fiel concentra
De seu Deus
criador na lei divina
Todo o seu
pensamento e seu afeto,
E nela só
medita noite e dia!
Ele será qual
árvore frondosa,
Banhada por
arroios cristalinos,
Que bons frutos
produz na quadra própria,
E nunca perde o
viço e a louçania.
Quanto a sorte
do ímpio é diferente!
Brinco do
acaso, das paixões joguete,
Assemelha-se ao
pó que o vento agita
E sobre a terra
desdenhoso espalha.
No dia, pois,
do santo julgamento
Perante o Deus
severo, confundido,
Fulminado será,
deixando ao justo,
O prêmio
prometido: a glória eterna!
- Fagundes Varela, em "Cantos
religiosos", 1878.
Sextilhas
Amo o cantor
solitário
Que chora no
campanário
Do mosteiro
abandonado,
E a trepadeira
espinhosa
Que se abraça
caprichosa
À forca do
condenado.
Amo os noturnos
lampírios
Que giram,
errantes círios,
Sobre o chão
dos cemitérios,
E ao clarão de
tredas luzes
Fazem destacar
as cruzes
De seu fundo de
mistérios.
Amo as tímidas
aranhas
Que, lacerando
as entranhas,
Fabricam
dourados fios,
E com seus
leves tecidos
Dos tugúrios
esquecidos
Cobrem os muros
sombrios.
Amo a lagarta
que dorme,
Nojenta,
lânguida, informe,
Por entre as
ervas rasteiras,
E as rãs que os
pauis habitam,
E os moluscos
que palpitam
Sob as vagas
altaneiras!
Amo-os, porque
todo o mundo
Lhes vota um
ódio profundo,
Despreza-os sem
compaixão!
Porque todos
desconhecem
As dores que
eles padecem
No meio da
criação!
- Fagundes Varela, em "Cantos e
Fantasias", 1865.
Soneto (I)
Desponta a
estrela d’alva, a noite morre.
Pulam no mato
alígeros cantores,
E doce a brisa
no arraial das flores
Lânguidas
queixas murmurando corre.
Volúvel tribo a
solidão percorre
Das borboletas
de brilhantes cores;
Soluça o
arroio; diz a rola amores
Nas verdes
balsas donde o orvalho escorre.
Tudo é luz e
esplendor; tudo se esfuma
Às carícias da
aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo
que o sertão perfuma!
Porém minh’alma
triste e sem um sonho
Repete olhando
o prado, o rio, a espuma:
- Oh! mundo
encantador, tu és medonho!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Soneto (II)
Eu passava na
vida errante e vago
Como o nauta
perdido em noite escura,
Mas tu te
ergueste peregrina e pura
Como o cisne
inspirado em manso lago.
Beijava a onda
num soluço mago
Das moles
plumas a brilhante alvura,
E a voz ungida
de eternal doçura
Roçava as
nuvens em divino afago.
Vi-te; e nas
chamas de fervor profundo
A teus pés
afoguei a mocidade
Esquecido de
mim, de Deus, do mundo!
Mas ai! cedo
fugiste!... da soidade,
Hoje te imploro
desse amor tão fundo
Uma idéia, uma
queixa, uma saudade!
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Tristeza
Eu amo a noite
com seu manto escuro
De tristes
goivos coroada a fronte
Amo a neblina
que pairando ondeia
Sobre o
fastígio de elevado monte.
Amo nas
plantas, que na tumba crescem,
De errante
brisa o funeral cicio:
Porque
minh’alma, como a sombra, é triste,
Porque meu seio
é de ilusões vazio.
Amo a desoras
sob um céu de chumbo,
No cemitério de
sombria serra,
O fogo-fátuo
que a tremer doideja
Das sepulturas
na revolta terra.
Amo ao silêncio
do ervaçal partido
De ave noturna
o funerário pio,
Porque
minh’alma, como a noite, é triste,
Porque meu seio
é de ilusões vazio.
Amo do templo,
nas soberbas naves,
De tristes
salmos o troar profundo;
Amo a torrente
que na rocha espuma
E vai do abismo
repousar no fundo.
Amo a tormenta,
o perpassar dos ventos,
A voz da morte
no fatal parcel,
Porque
minh’alma só traduz tristeza,
Porque meu seio
se abrevou de fel.
Amo o corisco que
deixando a nuvem
O cedro parte
da montanha, erguido,
Amo do sino,
que por morto soa,
O triste dobre
na amplidão perdido.
Amo na vida de
miséria e lodo,
Das desventuras
o maldito seio,
Porque
minh’alma se manchou de escárnios,
Porque meu seio
se cobriu de gelo.
Amo o furor do
vendaval que ruge,
Das asas negras
sacudindo o estrago;
Amo as
metralhas, o bulcão de fumo,
De corvo as
tribos em sangrento lago.
Amo do nauta o
doloroso grito
Em frágil
prancha sobre mar de horrores,
Porque meu seio
se tornou de pedra,
Porque
minha’alma descorou de dores.
O céu de anil,
a viração fagueira,
O lago azul que
os passarinhos beijam,
A pobre choça
do pastor no vale,
Chorosas flores
que ao sertão vicejam,
A paz, o amor,
a quietação e o riso
A meus olhares
não têm mais encanto,
Porque
minh’alma se despiu de crenças,
E do sarcasmo
se embuçou no manto.
- Fagundes Varela, em "Vozes da América",
1864.
Tristeza (II)
Minh’alma é
como o deserto
De dúbia areia
coberto,
Batido pelo
tufão;
É como a rocha
isolada,
Pelas espumas
banhada,
Dos mares na
solidão.
Nem uma luz de
esperança,
Nem um sopro de
bonança
Na fronte sinto
passar!
Os invernos me
despiram
E as ilusões
que fugiram
Nunca mais hão
de voltar!
Roem-me atrozes
idéias,
A febre me
queima as veias;
A vertigem me
tortura!...
Oh! por Deus!
quero dormir,
Deixem-me os
braços abrir
Ao sono da
sepultura!
Despem-se as
matas frondosas,
Caem as flores
mimosas
Da morte na
palidez,
Tudo, tudo vai
passando...
Mas eu pergunto
chorando:
Quando virá
minha vez?
Vem, oh virgem
descorada,
Com a fronte
pálida ornada
De cipreste
funerário,
Vem! oh! quero
nos meus braços
Cerrar-te em
meigos abraços
Sobre o leito
mortuário!
Vem, oh morte!
a turba imunda
Em sua miséria
profunda
Te odeia, te
calunia...
- Pobre noiva
tão formosa
Que nos espera
amorosa
No termo da
romaria.
Quero morrer,
que este mundo
Com seu
sarcasmo profundo
Manchou-me de
lodo e fel,
Porque meu seio
gastou-se,
Meu talento
evaporou-se
Dos martírios
ao tropel!
Quero morrer:
não é crime
O fardo que me
comprime
Dos ombros
lançar ao chão,
Do pó
desprender-me rindo
E as asas
brancas abrindo
Lançar-me pela
amplidão!
Oh! quantas
louras crianças
Coroadas de
esperanças
Descem da campa
à friez!...
Os vivos vão
repousando;
Mas eu pergunto
chorando:
- Quando virá
minha vez?
Minh’alma é triste,
pendida,
Como a palmeira
batida
Pela fúria do
tufão.
É como a praia
que alveja,
Como a planta
que viceja
Nos muros de
uma prisão!
- Fagundes Varela, em "Noturnas", 1861.
Vida de flor
Por que
vergas-me a fronte sobre a terra?
Diz a flor da
colina ao manso vento,
Se apenas às
manhãs o doce orvalho
Hei gozado um
momento?
Tímida ainda,
nas folhagens verdes
Abro a corola à
quietação das noites,
Ergo-me bela,
me rebaixas triste
Com teus feros
açoites!
Oh! deixa-me
crescer, lançar perfumes,
Vicejar das
estrelas à magia,
Que minha vida
pálida se encerra
No espaço de um
só dia!
Mas o vento
agitava sem piedade
A fronte virgem
da cheirosa flor,
Que pouco a
pouco se tingia, triste,
De mórbido
palor.
Não vês, oh
brisa? lacerada, murcha,
Tão cedo ainda
vou pendendo ao chão,
E em breve
tempo esfolharei já morta
Sem chegar ao
verão?
Tem piedade de
mim! deixa-me ao menos
Desfrutar um
momento de prazer,
Pois que é meu
fado despontar na aurora
E ao
crepúsc’ulo morrer!...
Brutal amante
não lhe ouviu as queixas,
Nem às suas
dores atenção prestou,
E a flor
mimosa, retraindo as pétalas,
Na tige se
inclinou.
Surgiu na
aurora, não chegou à tarde,
Teve um momento
de existência só!
A noite veio,
procurou por ela,
Mas a encontrou
no pó.
Ouviste, oh
virgem, a legenda triste
Da flor do
outeiro e seu funesto fim?
Irmã das flores
à mulher, às vezes
Também sucede
assim.
- Fagundes Varela, em "Noturnas", 1861.
Visões da noite
Passai, tristes
fantasmas! O que é feito
Das mulheres
que amei, gentis e puras?
Umas devoram
negras amarguras,
Repousam outras
em marmóreo leito!
Outras no
encalço de fatal proveito
Buscam à noite
as saturnais escuras,
Onde,
empenhando as murchas formosuras,
Ao demônio do
ouro rendem preito!
Todas sem mais
amor! sem mais paixões!
Mais uma fibra
trêmula e sentida!
Mais um leve
calor nos corações!
Pálidas sombras
de ilusão perdida,
Minh’alma está
deserta de emoções,
Passai, passai,
não me poupeis a vida!
- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da
Cidade", 1869.
Voz do poeta
Perdão, Senhor
meu Deus! Busco-te embalde
Na natureza
inteira! O dia, a noite,
O tempo, as
estações mudos sucedem-se,
Mas eu sinto-te
o sopro dentro dalma!
Da consciência
ao fundo te contemplo!
E movo-me por
ti, por ti respiro,
Ouço-te a voz
que o cérebro me anima,
E em ti me
alegro, e canto, e penso!
Da natureza
inteira que aviventas
Todos os elos a
teu ser se prendem,
Tudo parte de
ti e a ti se volta;
Presente em
toda a parte, e em parte alguma,
Íntima fibra,
espírito infinito,
Moves potente a
criação inteira!
Dás a vida e a
morte, o olvido e a glória!
Se não posso
adorar-te face a face,
Oh! basta-me
sentir-te sempre, e sempre!
Eu creio em ti!
eu sofro, e o sofrimento
Como ligeira
nuvem se esvaece
Quando murmuro
teu sagrado nome!
Eu creio em ti!
e vejo além dos mundos,
Minha essência
imortal brilhante e livre,
Longe dos
erros, perto da verdade,
Branca dessa
brancura imaculada
Que os gênios
inspirados nesta vida
Em vão tentaram
descobrir no mármore!
- Fagundes Varela, em "Cantos religiosos", 1878.
- Fagundes Varela, em "Cantos religiosos", 1878.
- Fagundes Varela - poeta
FORTUNA CRÍTICA DE FAGUNDES VARELA
[Estudos acadêmicos: livros, teses, dissertações, monografias, ensaios, artigos; e artigos jornalísticos]
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VILALVA,
Mario. Fagundes Varela: sua vida, sua
obra, sua glória. Rio de Janeiro: Empreza Graphica Editora, 1931.
- Fagundes Varela - poeta
PRIMEIRAS
ESDIÇÕES DA OBRA DE FAGUNDES VARELA DISPONÍVEL ONLINE
:: Vozes d'Africa. Navio negreiro. Cântico do calvário. Castro Alves e Fagundes Varela. Rio de Janeiro: Livraria Academica de J.G. de Azevedo, [s.d.].
:: O estandarte auri-verde: cantos sobre aquestão anglo-brazileira. Fagundes Varela. São Paulo: Typ.
Imparcial, de J.R. de A. Marques, 1863.
:: Cantos meridionaes. Fagundes
Varela. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1869.
:: Vozes d'America: poesias.
Fagundes Varela. São Paulo: Typ. Imparcial de J.R. de Azevedo Marques, 1864.
:: Cantos e phantasias. Fagundes
Varela. São Paulo: Garraux, de Lailhacar e Cia. livreiros-editores, 1865.
:: Anchieta ou o Evangelho nas selvas.
Fagundes Varela. Rio de Janeiro: Livraria Imperial, 1875.
:: Cantos do ermo e da cidade.
Fagundes Varela. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1880.
:: Diário de Lazaro: poemeto. Fagundes Varela. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1880
Obras completas
:: Obras completas de L. N. Fagundes Varella
(Volume 1). Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1892.
:: Obras completas de L. N. Fagundes Varella
(Volume 2). Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1892.
Outros
:: Cantos religiosos. Fagundes Varela e Ernestina Fagundes Varela. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1878
Antologia
:: Grandes poetas românticos do Brasil: esparsos completos. [organização e edição Pôrto Alegre e Maciel Monteiro]. São Paulo: LEP, 1952. {autores presentes: Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Fagundes Varela e Castro Alves}.
___
* Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin(Fagundes Varela, 1841-1875" - Poesia: Séc. XIX - Brasil) -- (acessado em 7.4.2023).
FAGUNDES VARELA
POR MACHADO DE ASSIS
Fagundes Varela
[RJ., 19 ( ? )
ago. 1875]
Meu prezado colega. — Ainda não é tarde para falar de
Varela. Não o é nunca
para as homenagens póstumas, se aquele a quem são feitas as
merece por seus
talentos e ações. Varela não é desses mortos comuns cuja
memória está sujeita à
condição da oportunidade; não passou pela vida, como a ave
no ar, sem deixar
vestígio; talhou para si uma larga página nos anais
literários do Brasil.
É vulgar a queixa de que a plena justiça só começa depois
da morte; de que haja
muita vez um abismo entre o desdém dos contemporâneos e a
admiração da
posteridade. A enxerga de Camões é cediça na prosa e no
verso do nosso tempo;
e por via de regra a geração presente condena as injúrias
do passado para com os
talentos, que ela admira e lastima. A condenação é justa, a
lástima é descabida,
porquanto, digno de inveja é aquele que, transpondo o
limite da vida, deixa
alguma coisa de si na memória e no coração dos homens,
fugindo assim ao
comum olvido das gerações humanas.
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Fagundes Varela, por (...) |
não correram serenos, retos e felizes. Mas a morte, que lhe
levou a forma
perecível, não apagou dos livros a parte substancial do seu
ser; e esta admiração
que lhe votamos é certamente prêmio, e do melhor.
Poeta de larga inspiração, original e viçosa, modulando
seus versos pela toada do
sentimento nacional, foi ele o querido da mocidade do seu
tempo. Conheci-o em
1860, quando a sua reputação, feita nos bancos acadêmicos,
ia passando dali aos
outros círculos literários do país. Seus companheiros de
estudo pareciam adorá-
lo; tinham-lhe de cor os magníficos versos com que ele
traduzia os sonhos de sua
imaginação vivaz e fecunda. Havia mais fervor naquele
tempo, ou eu falo com as
impressões de uma idade que passou?
Parece-me que a primeira hipótese é a verdadeira. Vivia-se
de imaginação e
poesia; cada produção literária era um acontecimento.
Ninguém mais do que
Varela gozou essa exuberância juvenil; o que ele cantava
imprimia-se no coração
dos moços.
Se fizesse agora a análise dos escritos que nos deixou o
poeta das Vozes da
América, mostraria as belezas de que estão cheios,
apontaria os senões que
porventura lhe escaparam. Mas que adiantaria isto à
compreensão pública? A
crítica seria um intermediário supérfluo. O "Cântico
do Calvário", por exemplo, e a
"Mimosa", não precisam comentários, nem análises;
lêem-se, sentem-se, admiram-se, independente de observações críticas.
"Mimosa", que acabo de citar, traz o cunho e
revela perfeitamente as tendências
da inspiração do nosso poeta. É um conto da roça, cuja vida
ele estudou sem
esforço nem preparação, porque a viveu e amou. A natureza e
a vida do interior
eram em geral, as melhores fontes da inspiração de Varela;
ele sabia pintá-los
com fidelidade e viveza raras, com uma ingenuidade de
expressão toda sua. Tinha
para esse efeito a poesia de primeira mão, a genuína,
tirada de si mesmo e
diretamente aplicada às cenas que o cercavam e à vida que
vivia.
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Fagundes Varela |
Adiantando-se o tempo, e dadas as primeiras flores do
talento em livros que todos conhecemos, planeou o poeta um poema, que deixou
pronto, embora sem as íntimas correções,
segundo se diz.
Ouvi um canto do Evangelho nas Selvas, e imagino por ele o
que serão os outros.
O assunto era vasto, elevado, poético; tinha muito por onde
seduzir a imaginação
do autor das Vozes da América. A figura de Anchieta, a
Paixão de Jesus, a vida
selvagem e a natureza brasileira, tais eram os elementos
com que ele tinha de
lutar e que devia forçosamente vencer, porque iam todos com
a feição do seu
talento, com a poética ternura de seu coração. Ele soube
escolher o assunto, ou
antes o assunto impôs-se-lhe com todos os seus atrativos.
O Evangelho nas Selvas será certamente a obra capital de
Varela; virá colocar-se
entre outros filhos da mesma família, o Uruguai e Os
Timbiras, entre os Tamoios e
o Caramuru.
A literatura brasileira é uma realidade e os talentos como
o do nosso poeta o irão
mostrando a cada geração nova, servindo ao mesmo tempo de
estímulo e
exemplo. A mocidade atual, tão cheia de talento e legítima
ambição, deve pôr os
olhos nos modelos que nos vão deixando os eleitos da
glória, como aquele era, —
da glória e do infortúnio, tanta vez unidos na mesma
cabeça. A herança que lhe
cabe é grande, e grave a responsabilidade. Acresce que a
poesia brasileira parece
dormitar presentemente; uns mergulharam na noite perpétua;
outros
emudeceram, ao menos por instantes; outros enfim como
Magalhães, Porto
Alegre, prestam à pátria serviços de diferente natureza. A
poesia dorme, e é
mister acordá-la; cumpre cingi-la das nossas flores
rústicas e próprias, qual as
colheram Dias, Azevedo e Varela, para só falar dos mortos.
- Machado de Assis, em "Obra Completa de
Machado de Assis". Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994.
- Caricatura dos escritores no traço de Lula Palomanes | Autores: Aluísio Azevedo, Humberto de Campos, Bernardo Guimarães, Afonso Arinos, Coelho Neto, Afonso Celso, Machado de Assis, Medeiros de Albuquerque, Álvares de Azevedo, Júlia lopes de Almeida, Inglês de Sousa, Fagundes Varela e João do Rio
ALGUMAS REFERÊNCIAS E OUTRAS FONTES DE PESQUISA
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Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção, edição e organização). Fagundes Varela - o poeta andarilho. Templo Cultural Delfos, outubro/2022. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção, edição e organização). Fagundes Varela - o poeta andarilho. Templo Cultural Delfos, outubro/2022. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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** Página atualizada em 24.10.2022.
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