Antonio Carlos Jobim (Tom Jobim) - foto: (...) |
por Walter de Silva(*)
Desde a primeira semana de novembro eu estava aguardando
uma oportunidade para a entrevista com Tom Jobim. Ligações freqüentes para
Gilda Mattoso, no Rio, empresária e amiga pessoal dele e da família, e para o
Marquinhos Vinícius se sucederam. Como editor, seria prudente não me incumbir
pessoalmente da entrevista, exatamente para não me sobrecarregar na parte
executiva da editoração de todas as matérias da edição - um pouco a
contragosto, talvez. Havia pedido então ao amigo e jornalista Marcio Gaspar que
se incumbisse da honrosa missão. Nos dias de espera, conversávamos sobre o Tom
e o seu último e excelente álbum. Uma primeira data foi marcada para a
terça-feira do dia 22 de novembro, mas não houve nenhuma ratificação e assim a
entrevista não aconteceu. O silêncio de vários dias que se seguiram levou o
Marcio Gaspar a achar que a entrevista poderia não sair. Mas da minha parte me
recusava um pouco a contar com essa possibilidade. No dia 29 de novembro, me
encontrei com o Marcio na BMG-Ariola para uma entrevista com uma banda da
Austrália, Frente! Depois de discutirmos algumas alternativas para o assunto em
questão, o Marcio Gaspar foi embora e alguém me ligou na gravadora dizendo que
a entrevista com Tom estava marcada para o dia seguinte às 10h30 em sua casa no
Jardim Botânico. Era a última chance, pois, no outro dia, 01/12, Tom partiria
para Nova York. Rapidamente, depois do almoço, telefonei ao Marcio que me disse
que não poderia fazer a entrevista por compromissos profissionais no dia seguinte.
Admito que, no fundo, isso me deixou bastante feliz, pois, eu mesmo decidi
entrevistar Tom Jobim. O que fazer? O tempo era curto. Reuni todo o material de
imprensa que havia coletado nos últimos tempos, livros, biografias e muitos
discos. Passei na casa do Marcio que havia preparado algumas
perguntas. Eu sabia que teria que fazer uma pauta definitiva. O mais sensato me
pareceu mergulhar nos discos de Tom sem me preocupar em formular nenhuma
pergunta para a pauta da conversa. Em casa, deliciei-me re-escutando tudo o que pude madrugada adentro. Dormi um
pouco, acordei bem cedo e comecei a ler tudo o que tinha em mãos pensando na
entrevista. No táxi, no avião e no bar do Galeão, pautei o máximo de perguntas
possíveis, editando-as para um suposto direcionamento da entrevista.
Mas, quase chegando à casa de Tom, tive um pressentimento
muito forte de que eu deveria me prender o menos possível nas diversas perguntas
que tinha preparado. Já em sua casa, em nossa primeira conversa, antes da entrevista,
isso me pareceu à coisa certa a fazer.
Tom não era um homem que esperava perguntas. E acredito
que, no fundo, talvez ele nem gostasse delas. Ele não era uma pessoa que se entrevistasse,
mas sim alguém com quem se poderia ficar ali conversando ao sabor de seus
pensamentos de multidirecionalidade própria dos grandes pensadores, gênios e
mestres. Senti que muitas perguntas jamais sairiam ali das minhas anotações,
como de fato aconteceu. Muitas teriam de ser improvisadas. Era preciso a todo
custo deixar Tom completamente confortável em seu próprio timing, no aconchego
de seu lar, e fazer apenas pequenas intervenções que somente tentariam conduzir
de alguma forma a conversa para os caminhos que na verdade ele mesmo
escolhesse. Como de fato, felizmente aconteceu.
Sentado ali no sofá a seu lado, pude notar seus gestos largos
e vagarosamente generosos, como se estivesse a todo o momento abraçando tudo o
que estivesse a sua frente. As mãos eloquentes mantendo os braços sempre
abertos reforçavam o calor da hospitalidade dos agradáveis momentos em que passei
em sua companhia. Um anfitrião nobre. Um gentleman absoluto. Um homem em
estadão de pura iluminação. É importante que se diga aqui que, além de um dos
maiores compositores e maestros do Brasil, de todo o planeta e de todos os tempos,
Tom Jobim foi um dos maiores pensadores de seu país e de sua época. Tom
pertence ao sumo dos maiores e genuínos intelectuais do Brasil.
Nesta longa entrevista, talvez uma das maiores de sua
carreira (48 laudas ou 67.258 caracteres), ele faz um exercício profundo de
reflexão sobre o Brasil em todos os seus aspectos. Não apenas a conservação ecológica,
mas o trabalho da imprensa, o papel dos políticos, a função da crítica, a
preocupação com a dignidade e qualidade de vida do povo brasileiro, a paixão
pela música, pela palavra, pela poesia, pelos livros e dicionários, os amigos
queridos, a família adorada, o carinho pelos animais, e o amor supremo pela vida.
Tom é de uma universalidade complexa que transborda simplicidade, concisão e
transparência. Nos momentos de análise rigorosa e aguda, ele nos surpreende com
seu humor sutil, certeiro e maroto. Durante a entrevista, sentado a meu lado no
sofá, mudando-se de lugar, andando despreocupadamente pela sala, ou fumando com
fervor seus charutos, ele faz da fala o instrumento de seu espírito - o
delicado tom da voz, o tom grave e incisivo da voz, e as gostosas gargalhadas.Ao transcrever as duas fitas cassete gravadas durante a
entrevista para o papel, optei pela fidedignidade absoluta do fato histórico e
jornalístico. Preservo assim ipsis litteris todas as frases inconclusas de Tom,
e todos os deliciosos aneirismos de sua fala. Ficamos todos assim abençoados
por esse testamento verbal do "maestro soberano" da música e do
pensamento. Tom Jobim para todos. No comecinho da tarde, ao nos despedirmos,
Tom ainda gritou pra mim da copa onde almoçava com a família, enquanto eu
descia as escadas: "Walter, não se esqueça de colocar na tua matéria que
tudo isso é trabalho! Tudo isso é trabalho! Não se esqueça!" Claro, Tom,
tá aqui o teu pedido. Tudo isso é trabalho.
Tom Jobim em sua casa no Rio de Janeiro (1993 ) - foto: João Bittar |
A entrevista
Qualis - Fala um
pouco da sua história.
Tom Jobim -
Quando eu era garoto, eu passava as férias em Leme. Tinha aquela mata, aquele
jequitibá, aquele pau-de-abraço... E a terra roxa com café e tudo. Leme, ali
perto de Águas de Rio Claro, Pirassununga. Então, em 1932 a polícia pegou meu
avô, e eu era pequeno, né, eu tinha cinco anos... Pegou meu avô e levou pro fundo
da baía de Guanabara, onde tinha um velho navio, onde eles botaram os paulistas
todos no porão.
Qualis - O seu pai
era gaúcho?
Tom Jobim -
Meu pai era gaúcho de São Gabriel. E o meu avô era paulista. A minha mãe era
carioca. E eu nasci na Tijuca. Mas por acaso... Eu nasci na Tijuca por acaso
porque faltou grana na família. Eles se mudaram, porque eles moravam em
Copacabana, mas foram pra Tijuca pagar um aluguel mais barato, portanto eu nasci
lá. Mas no ano que eu nasci eu já fui pra Ipanema. E Ipanema tinha aquelas
dunas de areia, não tinha nada, tinha água limpa.
Qualis - Deveria
ser maravilhoso...
Tom Jobim -
Ipanema é um nome que vem de São Paulo. Isso pouca gente sabe porque o pessoal
aqui... Ipanema quer dizer água ruim... Porque tem certos rios que são ipanema,
como é que é? Eles têm, às vezes, água bonita, limpa e tudo, mas não têm
alimento, não têm comida, então fica aquele rio sem peixe. Então ele se chama
ipanema. Coisa que absolutamente não acontecia aqui. Aqui tinha peixe pra você jogar
fora. Essa lagoa (Rodrigo de Freitas) se chamava Sacopenapam, que quer dizer
uma parada de socós. Ipanema é o seguinte... O Barão de Ipanema, paulista da
nobreza rural... Existe também uma microrregião rural em Minas Gerais chamada Ipanema,
que deve ser por causa de um outro rio que não seja muito bom de peixe. Mas
então o Barão de Ipanema saiu lá de São Paulo, veio pra cá e comprou uma
fazenda aqui na beira da praia. E essa fazenda, por causa do Barão de Ipanema,
ficou sendo chamada de Ipanema. É por isso que tem tanto paulista dono de
apartamento em Ipanema. Aqueles apartamentos todos são de paulistas. E
paulistas ricos, né. Bom, não é só paulistas mas boa parte são dos paulistas.
Muitos apartamentos estão fechados, inclusive. O sujeito é rico e só vem quando
decide tomar banho de mar. Então é essa mais ou menos a história de Ipanema. E o barãozinho de Ipanema, que está vivo até
hoje, deve ser bisneto do
Barão de Ipanema, bisneto ou tataraneto, é o nosso amigo
que bebia lá no Veloso com a gente sempre. Que se tornou aquele bar
"Garota de Ipanema". Ele é o barãozinho: (recordando) 'Ô barãozinho,
vamos tomar chope, tomar Whisky ..' Ele é Barão de Ipanema e tem essa
ascendência em São Paulo. Como sempre, tudo vem de São Paulo, os automóveis, o café...
Qualis - Dizem que
você teria proferido uma frase que poucos sabem se você falou ou não, que
"a melhor saída do Brasil é o aeroporto do Galeão". (Tom se diverte e
dá uma gargalhada.) Depois disso você foi morar fora do país, voltou e chegou a
declarar uma certa decepção com o descaso com que a imprensa brasileira te
tratou...
Tom - Hoje eu
li no jornal O Globo que a Itália me escolheu pra ser homenageado em Roma...
(lendo o jornal) ' Tom Jobim será homenageado no Festival de Jazz de Perugia,
né, Itália, em julho de 95. A decisão foi tomada ontem em Roma...' Você leu,
né? (lendo) '... por Carlo Pagnota, realizador do evento, o maior do gênero
hoje na Europa. Tom tem sido elogiado pela crítica italiana, que considerou
"Fly me to the moon", faixa que ele canta com Sinatra, o melhor
trecho do novo Duets, o novo disco...'
Qualis - O que
você diz a respeito disso?
Tom - Ah, eu
fico bastante satisfeito, né. Aliás, a imprensa estrangeira tem uma atitude
bastante positiva com relação a mim, né. Você vê os músicos de jazz vieram aqui
e fizeram uma bruta homenagem (referindo-se ao Free Jazz), depois nós fomos a
São Paulo. Isso inclusive está relatado no Le Monde que fala da apresentação lá
em São Paulo. (mostra a matéria) Isso foi um cidadão que mandou da França pra
mim, ele teve a gentileza de mandar da França pra mim.
Qualis - Você
falou dessa coisa da atitude da imprensa estrangeira que eles realmente fazem
um trabalho de cobertura. Como é que você vê o trabalho da imprensa hoje no
Brasil e fora daqui?
Tom - Essas
coisas que você me perguntou, que você me falou, da... (longa pausa). As
notícias parece que hoje em dia... Já me falaram isso várias vezes que uma
coisa inusitada vende mais jornal do que uma verdade, entende? Não adianta você
falar a verdade porque sai uma outra coisa, né. Então, por exemplo, o cara que
estava conversando comigo falou, ' se o cachorro morder o homem, não sai no
jornal porque é uma notícia muito boba. Agora se um homem morder um cachorro,
aí já fica muito melhor, né.' Então quer dizer, a imprensa tem usado muitas vezes
coisas que jamais se passou. Muitas vezes essas frases que dizem que é do Tom
Jobim, eu jamais disse isso, como “a saída para o músico brasileiro é o
Galeão". Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu acho que tem grandes
músicos vivendo muito bem aqui no Brasil,
cantores, cantoras, fazendo muito sucesso aqui no Brasil,
né. Você não precisa ir para o Galeão para... Não precisa sair do Brasil. Agora
muita coisa que se diz assim, 'o Tom disse', é invenção. O Tom disse, o Tom
fala mal do Brasil, vírgula, no exterior, isso além de ser uma maldade
incrível... Por que é que eu falaria mal do Brasil? Por que é que eles não
dizem que eu falo mal da Tchecoslováquia, da Lituânia, né? Porque eu falo mal
do Japão. Não, eles estão sempre interessados em botar o brasileiro contra o
Brasil. Pelo contrário, eu deveria ser criticado pelo fato de ter descrito em
minhas músicas um Brasil paradisíaco. Como diz o Sérgio Buarque de Hollanda, 'a
visão do paraíso'. Quer dizer, é essa visão que eu tenho nas músicas. Eu recebi
muita carta do exterior de gente que ia se suicidar e que disse 'olha, eu não
vou me suicidar porque escutei essa música sua e acho que a vida vale a pena', entende,
e coisas assim. Coisas muito positivas. Eu, por exemplo, não iria falar mal do
Brasil porque eu não creio que isso venda disco. Se eu falasse mal do Brasil o
estrangeiro ficaria embaraçado, ficaria perplexo. Você chega, você é brasileiro
(rindo), então vai pra Nova York... Isso de fato não se deu. E as coisas que
saíram no jornal eles foram torcendo, torcendo pra fabricar a calúnia sempre,
né.
Qualis - A que
você atribui esse tipo de distorção do trabalho da imprensa brasileira?
Tom - Isso é
sempre assim, olha... Eu não acho que isso seja nenhuma coisa especial comigo,
eles fizeram isso com o Villa-Lobos, com Oscar Niemeyer, Portinari, com Mario
de Andrade... Então se você fizer alguma coisa, as pessoas começam a ser
perseguidas. O Brasil persegue os homens de bem. Basta você fazer o seguinte,
basta você pegar a crítica estrangeira... O estrangeiro não tem motivo pra
ficar zangado comigo, ele acha a música ótima, se diverte, compra um disco e
fica feliz, claro. Agora, aqui vem um negócio do... Eu vou te dar um exemplo.
(levanta-se e pega na mesa um pesado tomo com matérias da imprensa brasileira) Quarenta
anos de Tom Jobim na imprensa. (Ri e balança na mão o pesado compêndio) Você
imagina pra carregar isso, né. Isso vai de 52 a 92. Você vê que o conteúdo do
negócio é todo negativo, entende?! É a negação do troço! Então o Antonio Carlos
Brasileiro de Almeida deles, eles vão dizer que o Antonio Carlos não é brasileiro,
eles vão colocar o brasileiro contra o Brasil. E vão sempre fazer o negócio de
cabeça pra baixo... Sempre. Então é o destino deles isso, né. Eu vou fazer uma coisa
que eu julgo positiva, que a minha música não é pra levar à droga, nem à
violência, nem à motocicleta, nem nada disso. A minha música é pra levar o
cidadão a Deus. Se você fizer um anúncio do chope da Brahma a imprensa
brasileira toda cai de pau. E depois a imprensa do Rio começa a falar mal,
depois a de São Paulo começa a falar mal, depois o Rio Grande do Sul, depois o
Brasil inteiro. São acordes, todos. (lendo o tomo da imprensa) Tem um sujeito
aqui que escreve (dando risada) que o 'Tom e o Vinícius fazendo o anúncio da
Brahma são duas jararacas menstruadas'.
Qualis - Que
tremenda grosseria.
Tom - É, e eu
não sei porquê. Em primeiro lugar eu acho que jararaca não menstrua. Em segundo
lugar eu não sei porque Vinícius e eu parecemos duas jararacas menstruadas.
Qualis - Isso me
parece muita leviandade.
Tom - Mas isso
tá cheio disso. Depois os plágios, os plágios de Tom Jobim. Tom Jobim plagiou
não sei o quê. Quer dizer, isso é uma coleção de mentiras que faz do Brasil,
esse país riquíssimo e tudo, faz inverter tudo sempre. Bota tudo sempre de
cabeça pra baixo. Então você trabalhou direito, é honesto, construiu uma família,
acorda às quatro horas da manhã pra escrever música, então todo mundo se volta
contra você como se aquilo... Então começa a te atribuir dinheiro, e não sei o
quê. A imprensa brasileira nunca conseguiu dizer que um homem rico é rico. Então
rica é a Maria Bethânia, o Chico Buarque... É uma brincadeira isso, eles são
uns pândegos. Os homens ricos todo mundo sabe quem são, são homens
importantíssimos, são preciso citar o nome deles. E eu acho ótimo que eles
sejam ricos. Eu sou a favor da riqueza. Eu não acho que a gente deva cultivar a
miséria. Como disse o Joãozinho Trinta, ' quem gosta de miséria é intelectual'.
Qualis - Isso tem
um fundo de verdade.
Tom - É, tem
um fundo grande. (pegando novamente o tomo da imprensa nas mãos) Você vê esse
troço aqui, veja o peso desse troço, não tem nada. Primeiro, sabe o que acontece?
Música é um negócio que já é difícil de você falar sobre. Falar sobre música é
difícil. Desde o Wagner é que eles estão falando se o robe de chambre do Wagner
é púrpura ou é roxo, não sei o quê. Umas conversas que não tem nada a ver com a
música. E depois o cara acaba falando mal do próprio compositor, diz que ele é
aquilo, aponta defeitos físicos. Ora, a vida de um compositor não é isso
absolutamente, né. Eles estão interessados em apontar defeitos e coisa e tal. E
dizer que isso é crítica musical. Nem por um instante eles falam de música,
nunca.
Qualis - Sobre a
forma de se trabalhar música, os temas...
Tom -
Inclusiva não conhecem música, né. Você pode fazer essa brincadeira, né. Tem um
sujeito que escreveu "A Crítica dos Críticos" e botou todas as
críticas que os críticos fizeram aos maiores gênios do mundo, Beethoven,
Debussy, Brahms, Ravel. Então todo mundo escrevendo aquelas besteiras. O que é
que eles iriam escrever? Eles não estavam entendendo nem aquilo que estava
sendo tocado.
Qualis - No começo
da sua carreira tinham uns críticos que te acusavam de falta de originalidade,
que você imitava os americanos, pelo fato do seu nome, Tom... E que a bossa
nova era uma coisa americanizada, e que não era brasileira...
Tom - (rindo)
Você imagina... Você imagina... Bossa nova, dois nomes tipicamente latinos,
tipicamente brasileiros - bossa e nova. Eles conseguiram inventar o contrário,
que isso seria uma coisa estrangeira. E que Tom, que hoje em dia é um nome até
comum no Brasil, tem muita gente chamada Tom... Isso é o seguinte, a minha irmã
não sabia dizer Antonio Carlos então ela me chamava de de 'tom tom'.
Qualis - Quantos
anos ela tinha na época?
Tom - Ela era
bem pequenininha, né, começando a falar, dois ou três anos de idade, 'tom tom'.
E havia uma música francesa que a minha mãe cantava pra ninar a gente, que
dizia: (cantarolando a canção) 'ma vie s' en va ton guerre, ton, ton,
ton..." Uma música francesa velha que pouca gente sabe. E ela escutava
'ton, ton, ton', e aí começou a me chamar de ton, ton. Chamar de ton, ton, ton,
ton, depois virou Tom. No colégio eles vão sempre abreviando o nome. Ninguém
vai chamar o sujeito de Felisberto Pereira da Silva de Moraes e Lima, é muito
comprido, né. Aí virou Tom, e eu queria ser Antonio Carlos, evidentemente.
Comecei a fazer aqueles arranjos, escrevia pra orquestra, e nunca botavam meu nome
no disco de 78 (rpm). Então eu fazia aqueles arranjos acompanhando Dalva de
Oliveira, Orlando Silva, cheguei a tocar com Vicente Celestino. E depois, mais
tarde, com gente tida como moderna como Dick Farney, Lucio Alves. E eu queria
que botasse Antonio Carlos Jobim, mas era muito comprido, entende, e o pessoal
começou a colocar Tom mesmo. Inclusive um som que não existe em inglês, Tom. Então
eles quiseram, numa forçação de barra, um esforço enorme, pra dizer que o Tom é
'Tan', 'Tan', 'Tan'.
Qualis - Que nem
Tom Cruise...
Tom - Tom
Cruise, é. Conseguiram essa besteira. Isso, realmente, nos Estados Unidos o Tom
se refere a Thomas, apelido de Thomas. Antonio é Tony. Então ficou essa extravagância
aí criada pela invenção constante. E depois esse tipo de coisa como a Veja faz,
né, eles acham isso muito criativo talvez. Você diz assim... 'Bom dia! Tom
Jobim' 'Bom dia', mentiu Tom Jobim. Vem tudo escrito assim: 'Chico Anysio, o humorismo
dá muito dinheiro no Brasil?' 'Nem tanto', disfarçou Chico Anysio. Então toda
frase que o artista disser... Primeiro que o artista não disse essa frase. Essa
entrevista é hipotética. Ela elide o entrevistado. Não tem entrevistado. Aquilo
foi criado lá na redação... In Veja, é criado In Veja. Aquele In latino, aquele
I maiúsculo. Então você diz todos os absurdos que você quer, e ainda eles põem
assim: 'E a mulher é bonita', justifica-se Oscar Niemeyer. ...disparou, fez não
sei o quê. Então toda a frase leva um adendo que destrói a própria frase. Ora,
os artistas são o sal da terra. Tem tanta gente boa e inteligente aí, Caetano
Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil... Tanta gente que você pode entrevistar,
Djavan, Edu Lobo, né, o Tom Jobim. Qual é a graça de você inventar uma porção de
frases detratórias? Que detratam as coisas, e sempre botam isso na boca do
artista.
Qualis - Você não
acha que isso seria, talvez até inconscientemente, uma necessidade de auto-afirmação,
do sujeito que está trabalhando, de se posicionar?
Tom - Pois é,
ele prefere escrever isso da cabeça dele do que fazer uma entrevista como você
vê a entrevista no exterior, no Paris Match que vai mais alto entrevistando Von
Karajan, ou entrevistando André Previn. Quer dizer, é uma coisa boa pra
revista. Aqui não, nós fazemos questão de, como se diz, planificar o cara,
nivelar. Fica tudo aquela coisa sem dimensão. Eu dei uma entrevista pra Isto É,
e ele (o articulista) fala que eu fiz uma angioplastia em Nova York, fiz um
balãozinho em Nova York, né. Ele diz assim: 'Pois é, ele precisa comer menos.'
Ele começou a me dar conselhos culinários, conselhos de dieta! Você imagina se
alguém fica doente (rindo) e eu vou dizer 'Olha, você deve, sabe, evitar...'
Depois o negócio da Plataforma, eles inventaram que eu não pagava a Plataforma:
'Tom Jobim defende a Plataforma porque é o boca-livre dele.' Eu absolutamente
pago a Plataforma religiosamente. A churrascaria do meu amigo Alberico Campana
que eu não quero dar prejuízo a ele, absolutamente, né. Eu sou amigo dele, né.
E quando eu falei o negócio da Plataforma que é preciso fazer aqui no Leblon,
tombar, não esse tombamento clássico que eles fazem. É pelo gabarito, como já
disse Maria Eliza Costa, filha de Lucio Costa. Eu estou te dizendo aqui, essa zona
aqui do Tivoli Park, o Clube de Regatas Flamengo, o Jóquei Clube... Porque há
planos incríveis de fazer mal, aqueles supermercados imensos. Ou então erguer
mesmo novas selvas-de-pedra. Então o que devia ser tombado é o gabarito. A churrascaria,
você não tendo uma você vai em outra, né. Toda essa zona ali deveria realmente
segurar o gabarito, da Cobal, daquela praça ao lado da Cobal, do Clube de
Regata Flamengo, que aliás essas coisas já estão mais ou menos tombadas. E pra
informação de certas áreas aí desinformadas, o Alberico não quer que tombe a
Plataforma. E nem o proprietário do terreno da Plataforma não quer que tire o
Alberico de lá, pelo contrário, ele quer entrar como sócio do Alberico. E,
naturalmente, eu não tenho nada com isso. Eu acho ótimo. Eu só não acho ótimo
pegar aqui, por exemplo, o heliporto, o Tivoli park, tudo, e soltar o gabarito.
Porque aí você vai passar a não poder ver a Lagoa mais daqui (apontando para a
janela da sala), vai fazer um paredão novamente. O que se fez com uma cidade
linda como o Rio, uma cidade feita por Deus, essa topografia que nós temos, de floresta,
mar e montanha, aí nós vamos encher isso de espigões. Inclusive espigões em
lugares mais altos, quer dizer que cobrem ainda mais o perfil tão bonito, né,
do Rio de Janeiro.
Qualis - Essa
coisa de você, por exemplo, já nas tuas músicas, desde antigamente, exaltar as
belezas naturais do Rio de Janeiro, isso seria uma certa atitude ecológica tua
numa época em que nem se falava em ecologia?
Tom - Olha,
quando eu comecei as minhas atitudes ecológicas, eu não sabia nem que elas eram
ecológicas. Primeiro que eu não conhecia nem a palavra ecologia, ecólogo, eu não
conhecia. E depois eu vim a conhecer essa palavra em Nova York, aí fui lá olhar
no dicionário. Ecologia, será a ciência que estuda o eco?
Qualis - Isso foi
em que época?
Tom - Ah, isso
foi em 1966, 67, 1970. Um americano virou-se pra mim e disse: 'Você é um
ecólogo.' E eu fiquei a ver navios. Só que o eco, esse eco do som que você faz
'João!', e a pedra responde 'João!', esse eco é com c-h. E o eco da ecologia,
do grego, que quer dizer meio ambiente, quer dizer a casa, não tem 'h'. Nós, infelizmente,
aqui em português achatamos tudo e eco ficou e-c-o. Então nós aqui não sabemos
do que estamos falando, quando você fala eco, você não sabe se está se referindo
ao som que volta, ao eco suíço, ou se você está se referindo ao meio-ambiente.
O eco 'alô!, alô!', esse eco tem 'h'; em inglês tem 'h'. E o eco de ecologia
não tem 'h'. Então são duas palavras diferentes, significando coisas
diferentes. Então essa coisa de ecologia, essa preocupação, tudo o que eu vi no
Brasil o que é que é? Eles cortaram 95% da Mata Atlântica! Agora eu fiz parceria
num livro chamado Mata Atlântica, que está sendo escrito e fotografado (por Ana
Lontra Jobim, sua esposa). A Mata mais linda do mundo, com um clima tropical de
montanha, quer dizer, faz até frio no alto da floresta, com mil espécies e tudo.
Isso tudo foi arrasado! Quer dizer, sempre queimando o mato. Às vezes, nem
cortar as madeiras-de-lei eles cortaram, botaram fogo simplesmente. E com isso
desaparecem centenas de espécies vegetais e animais, destruído tudo, né. Uma
coisa lamentável essa coisa sempre de destruir tudo e plantar café, de plantar
cana, que é a história do Rio de Janeiro, a história de São Paulo, a história
do Paraná, a história da Mata Atlântica. Que pega essa coisa que Deus nos deu,
linda, e transforma num deserto. Quer dizer, você quando vem dos Estados Unidos
você olha pra baixo, a zona da Mata em Minas Gerais não tem mais mato nenhum.
Tá tudo destruído, você vê aquelas moçorocas, aquelas gretas, a terra toda
despencando, a serra despencando, não tem árvores.
Qualis - A
erosão...
Tom - A
erosão, está tudo erodido, pra não dizer... (ameaçando elegantemente sussurrar
um trocadilho) Então é assim, mais uma vez essa é uma tentativa de...
Qualis - Já partiu
de você uma idéia de fazer um tipo de movimento organizado pró-ecologia no
sentido de preservação dessas coisas todas?
Tom - Claro.
Olha, eu não tenho muito tempo pra me dedicar a isso. Agora, fiz tudo, aquele
ECO-92, eu fui lá tocar tudo, né. Fizemos aí programas no Carnegie Hall, em
Nova York, pra dar dinheiro para os índios, cobramos caro...
Qualis- Foi com o
Sting...
Tom - O Sting,
o Elton John, foi o Caetano Veloso, foi o Tom Jobim e a banda dele, foi o
Gilberto Gil. E todo dinheiro foi dado pra Rain Forest Foundation E o sujeito
escreveu aqui no jornal, evidentemente, dizendo 'o Tom Jobim é engraçado, ele
toca de graça para os americanos mas aqui ele cobra'. Quer dizer, você não pode
nem fazer a caridade para o Brasil que o sujeito novamente perverte e inverte a
notícia.
Qualis- É uma
visão provinciana essa, não?
Tom - E
maligna, né. É uma visão de cultura da negatividade, de fazer do Brasil que é
um país riquíssimo, fazer daqui um país de miseráveis, entende. Quer dizer,
sempre botando fogo no mato, sempre falando mal de quem trabalha, sempre
falando mal de São Paulo. Tudo que dá certo é perseguido, é apontado como uma
coisa indesejável. Isso daí, essa atitude tem que mudar. Eu espero agora que
com o nosso amigo Fernando Henrique na presidência isso vá mudar, entende.
Mudar! Mudar isso, isso não é possível, como é que é?! Aquela teoria do quanto
pior melhor, deu nisso. Deu nisso que deu no Rio de Janeiro. Você não pode andar
na rua, não pode andar de carro, não pode sair à noite. Você tem que ficar
pagando imposto. De um lado é o governo que quer o dinheiro, o executivo que
quer dinheiro, a companhia que quer o dinheiro. E as pessoas? Pra onde é que
vão? O que é que elas vão fazer?
Qualis - Muitos
associam o movimento da bossa nova com o cenário político e social que o Brasil
vivia naquela época, aquela coisa de mudança, turbulência, os anos JK, a indústria
automobilística, Brasília etc. Alguns acreditam que o Brasil pode viver um
período semelhante agora com a eleição do Fernando Henrique Cardoso, o Real,
queda da inflação, e outras coisas mais. Você que viveu intensamente e produziu
a cultura das duas épocas, daquela e de hoje, qual a relação que você vê entre
esses dois momentos?
Tom - Eu vejo
que há uma coisa positiva no governo do Fernando Henrique que lembra a coisa
positiva do JK, democracia, liberdade, não perseguir os artistas. E o povo,
acima de tudo o povo de uma maneira geral. Você vê que os artistas, com o autoritarismo,
foram perseguidos no Brasil. E nós fomos todos presos, (longa pausa) Antes de
falarem mal da gente nos prenderam, né. (dando risada) Depois começaram a falar
mal da gente. Aliás, essa época do autoritarismo com telefone gravado, isso
tornou o Brasil realmente irrespirável. E é talvez o responsável pelo exílio de
grandes artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, como Chico Buarque, Tom
Jobim. Eu fui embora, não porque tivessem me mandado embora.
Qualis - Foi um
auto-exílio...
Tom - Sim, porque
o ambiente estava insuportável. Você não podia fazer as músicas... Isso,
inclusive, não me tocava pessoalmente. Eu não estava escrevendo música de
protesto, nada disso. Mas, em solidariedade aos que estavam, nós nos recusamos
a entrar naquele Festival Internacional da Canção (o 6º e penúltimo, em 1971),
e foi isso que causou a nossa prisão em massa... Fomos doze ou quinze presos.
Quer dizer, ninguém podia escrever nada por causa da censura mas na hora que
veio o internacional todo mundo tinha que ser bonitinho. Aliás, eu acho que foi
muito bom o fato do exército não ter matado a gente porque em outros países as
coisas foram muito mais graves, no Chile, na Argentina. Com todas as coisas
ruins que aconteceram eu ainda dou graças a Deus. Eu fui apenas detido, o que
não é o caso do Caetano, do Gil, que foram realmente presos. Eu fui detido e
tinha que voltar lá pra averiguações. Eu era intimado a comparecer. Agora você
vê se o Tom Jobim é um homem subversivo, eu sou um homem da ordem e do progresso.
Eu creio que as Forças Armadas não são sanguinárias assim no sentido de querer
matar todo mundo. É claro que houve gente que foi morta nessa coisa, né. Agora,
falei com o Chico, falei com outras pessoas que... (longa pausa) Em suma, essa
sua pergunta eu acho que é a chance hoje em dia, por exemplo, porque o Fernando
Henrique está com muita gente a favor dele, o povo a favor dele, nós a favor
dele, os artistas estão querendo que ele... Votaram nele, né?
Qualis - O clima,
a atmosfera pode ser propício para um tipo de fortalecimento da música
brasileira?
Tom - Claro, o
fortalecimento da música, da arte, de tudo. O Fernando Henrique me parece um
democrata. Inclusive, já foi preso como subversivo. Eu conheci o Fernando Henrique
em São Paulo, naquele tempo em que ele se candidatou a vereador, alguma coisa
assim, deputado, não sei. Já me dava com ele. Já estava apoiando Fernando Henrique.
Agora também, por exemplo, você vê, o nosso presidente Itamar tem a grandeza de
fazer os troços direito. E agora ele está sendo acusado de namorar, de ir ao
cinema com a namorada ,... que bota em risco a vida do povo, podem querer matá-lo
e atingir algumas pessoas inocentes, né. (dando risada) O Itamar tem a grandeza
de ser um homem comum, né. A grandeza de fazer os troços que tem que fazer.
Qualis - Agora,
interessante... Essa tua observação me remete àquela outra que você fez sobre o
trabalho da imprensa mesmo. Pra mim parece que esse trabalho de cobertura é
absolutamente supérfluo e não tem nada a ver com a realidade do país...
Tom - Essa
imprensa é a imprensa que não transmite os fatos. Por exemplo, agora eu lancei
um disco novo chamado Antonio Brasileiro. A imprensa foi magnífica comigo, não
tenho a menor queixa da imprensa, os críticos escreveram sobre o disco, e tudo
mais tá ótimo. Quer dizer, não é toda a imprensa que faz isso não, é um certo
tipo de imprensa. Eu não posso acusar a imprensa de uma maneira geral de
deturpar os fatos. Agora, que aparece essas frasezinhas tal que ninguém disse e
que depois são atribuídas a outras pessoas, isso aparece. Aparece esse tipo de
fofoca, diz que eu me separei, que não sei o quê. Não dizem só de mim isso não,
dizem de muitas pessoas. Tem um tipo de imprensa dedicada a isso. Agora, você
pega a imprensa estrangeira, que me chega às mãos, a imprensa que normalmente
eu não leio, então cidadãos que moram fora do Brasil me mandam essa imprensa. E
você vê, eles têm uma atitude muito mais positiva em relação à arte, gostam da
música, acham a música bonita, têm vontade de conhecer o Brasil. Esse Brasil
que o Tom Jobim pintou como uma coisa melhor do mundo, e que certo tipo de
imprensa quer trocar ao contrário, me bota no jornal morto. É um negócio... Eles
devem achar isso bonito, NE.
Qualis - É como
você disse, isso é o que vende.
Tom - E ao
mesmo tempo eles nunca falam mal dos poderosos, evidentemente. Quer dizer,
quando eles desafiam a pessoa, eles vão desafiar uma pessoa, um sujeito fraco e
doente, eles vão desafiar, eles vão chamar pra brigar. Eles não vão chamar o
atleta pra brigar porque eles vão se dar mal, não vão chamar o lutador. Aí depois,
quando for o concurso da música, eles vão chamar o atleta pra competir com ele
na música. Mas na hora de bater, vão chamar um velhinho. Fica muito interessante,
muito conveniente. É a intelligentsia, que nós costumamos chamar de burritsia
brasileira. (risadas) Essa do João Ubaldo, eu tô te dando o copyright. Aquele
que escreve pensando que é a intelligentsia mas de fato é a burritsia.
Qualis - Eu queria
conversar um pouquinho, agora que a gente já passou...
Tom - Tá
ficando muito séria a entrevista. Talvez não seja o caso de fazer uma
entrevista tão séria assim.
Antonio Carlos Jobim - foto: (...) |
Qualis - Vamos
falar um pouco sobre música propriamente dita.
Tom - (indo ao
piano acender mais um charuto) Pois é, que é um assunto no qual ninguém fala.
(Tom interrompe a entrevista para escolher umas camisas para as fotos, e volta
falando sobre a natureza) Há sessenta anos que eu vejo o mico sagui pulando aí
do galho... Essa floresta é muito cosmopolita, tem jaqueira índica, mangífera índica, mangueira,
árvores da Índia, árvores e eucaliptos da Austrália. Ela não tem só plantas
brasileiras.
Qualis - Você está
praticamente no coração dela aqui.
Tom -
(indicando a floresta ao lado do quintal) Bom, você entra aqui e essa floresta
vai até o Grajaú. Tem bicho, tem paca, tem tatu, tem muito gavião, tem inhamu,
tem uruta, capoeira, tem saracura, tem preguiça, tem esquilo, tem muito bicho,
tem muito periquito, tem muito desses papagaínhos tipo maracanã... A minha
paixão pelos pássaros é um pouco distante, entende, (rindo) eu não gosto de
pássaro no colo. Os pássaros são bons soltos, voando, cantando, né, assim é que
eles me divertem mais. Pássaro preso tire um pouco a... Um pouco triste...
Qualis - Você
disse que tem seus ídolos confessos como Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Guerra-Peixe.
Enquanto compositor, arranjador e orquestrador, será que hoje depois de tantas
décadas você já se coloca no mesmo nível deles?
Tom - Bom,
eles foram ficando moços e eu fui ficando velho, você sabe, né. É como o
retrato do meu pai em cima do piano. O meu pai era o meu velho, e hoje em dia
eu estou muito mais velho que o meu pai. Meu pai morreu aos 46 anos, de modo
que eu já posso ser pai do meu pai, né. É isso mesmo, a gente vai tendo nossos
ídolos. Radamés Gnatalli, um homem generoso que ajudou todo mundo. Villa-Lobos,
um gênio incrível. O Guerra-Peixe era um orquestrador, compositor, nascido aqui
em Petrópolis, morreu agora recentemente, muito amigo nosso. Ele trabalhou
muitos anos em São Paulo também. Fazia orquestrações. Mas, sem dúvida, o
Villa-Lobos é um vulto... Ele é um gigante... Ele ficou muito alto, ficou
muito... Ficou um pouco sozinho na época dele. No meu caso não, eu estou
cercado de grandes compositores, de muita gente com música popular. Quando eu
comecei, a música popular era toda escrita e composta por pessoas que não
sabiam nada de música. O compositor popular era praticamente analfabeto, alguns
sabiam escrever as letras. Música ninguém sabia escrever.
Qualis - Você teve
uma formação erudita...
Tom - Um
bocado.
Qualis - Você teve
também aquela professora, a Lúcia...
Tom - Lúcia
Branco, que foi professora de Nelson Freire, professora do Jacques Klein,
professora do Arthur Moreira Lima, minha professora, né. Você sabe, o Mário de
Andrade disse, 'se você for um gênio faça música brasileira'. Porque em
Hollywood já tem milhares e milhares de compositores, orquestradores, você não
precisa ir pra lá.
Qualis - E quanto
às suas atividades no exterior?
Tom - Eu não
estou muito preocupado com isso. Não.
Qualis -
Atualmente como estão as coisas, pois amanhã (01/12) você está indo pra Nova
York.
Tom - É, eu
tenho grandes convites, pra fazer grandes coisas em Nova York. Agora, a
Kathleen Battle, a grande cantora, a grande soprano negra, ela parece que quer
gravar umas músicas minhas. Eu também tenho vontade de conhecer a Barbara Hendrix,
que canta o Villa-Lobos. Essa Battle é soprano do Metropolitan Opera. Depois a
Sony internacional quer que eu faça um disco com músicas minhas, tratadas assim
com um pouco mais de orquestra, um pouco mais sinfônicas. O Jonh Hendrix tá
querendo gravar comigo também, um grande saxofonista de jazz muito bom. John
Hendrix, ele esteve aqui na homenagem que fizeram aqui, muito simpático, né. Em
suma, o mundo tá cheio de coisas. Agora, por exemplo, sair do Brasil pra fazer
a América e tal, como... Ah, isso já não dá.
Qualis - Ainda
falando sobre Villa-Lobos, ele sintetiza de uma certa forma a alma brasileira,
assim como George Gershwin, Irving Berlin para os Estados Unidos. Você é um
compositor que retratou a alma brasileira...
Tom - Muito!
Muito! Aliás, o Villa-Lobos tem uma música chamada "Alma Brasileira".
Porque o Brasil teve que ser inventado, entende. Não existia o Brasil. Tudo
aqui é importado, tudo, o relógio, o gravador. E quando não importado, é
copiado do original que vem de fora. E o resto mais é importado, o café é
importado, a cana de açúcar é importada, o eucalipto é importado, os carros são
importados, nós somos importados... Os índios são importados, vieram da
Polinésia, né, com os zigomas salientes (ossos temporais), aplica mongólica
(dobras ou rugas faciais), a zarabatana. Então, a Ilha Brasil, talvez, é uma
grande ilha com as espécies muito diferentes do resto do mundo. Aqui você não
tem animais do presépio de Jesus Cristo, não tem. Você não tem vaquinha,
boizinho, galinha, ovelhinha, nada disso existe aqui. Tudo isso é importado.
Aqui tem tamanduá-bandeira, tem gambá, tem preguiça, peixe-boi, entende, são
animais realmente diferentes.
Qualis - Essa tua
admiração, por exemplo, por Villa-Lobos é uma identificação dessa busca
incessante pela alma brasileira?
Tom - Isso foi
em outros tempos naturalmente, por que você tá aqui, o rádio toca música
norte-americana. Você tem que ter alguma coisa que você ame, que você se
identifique com a sua alma, com o fato de você ser brasileiro, com o fato de
você nascer aqui nesse pindorama, terra das palmeiras debruçadas assim acima do
Atlântico. Cheio de peixes, cheio de pássaros, de bichos, de índios, de tudo,
né. Se eu tivesse nascido, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos,
certamente teria tido uma educação musical, supondo-se que eu fosse músico, uma
educação musical mais refinada, mais profunda, ou qualquer coisa. Mas eu não
iria escrever música brasileira por que eu não seria brasileiro. Aí eu iria
escrever valsas, mazurcas, escrever foxtrote, talvez eu estivesse escrevendo
heavy metal.
Qualis - Você que
compôs mais de quatrocentas músicas...
Tom - Dizem,
dizem... Pelo menos umas cem se perderam. Que eu saiba, aí no arquivo talvez só
tenha umas trezentas. Você vai perdendo no avião, vai perdendo...
Qualis - Falando
ainda sobre essa identidade brasileira...
Tom - É
possível que isso acabe, essa identidade. Com a mídia hoje em dia que bota todo
mundo vendo, nós estamos vendo tudo ao mesmo tempo, né.
Qualis - A
simultaneidade...
Tom - Pois é,
a guerra na Bósnia, a guerra no Irã, o Iraque, os problemas dos Estados Unidos,
o Oriente Médio, o problema do tráfico de drogas, o Brasil envolvido nisso com
a passagem das drogas ao Brasil, né.
Tom Jobim - foto: Marcos Issa |
Tom - Vai
ficando cada vez mais difícil. Esse é um negócio que eu cheguei a conversar com
o Vinícius, vai ficando cada vez mais difícil. Por que você destrói a Mata
Atlântica toda, você destrói a floresta amazônica, quando chegar no poema do
Villa-Lobos, você não vai entender porque não tem a Amazônia. Por exemplo, eu
vejo no meu filho de 15 anos, como é que ele pode conhecer as qualidades de
passarinhos? Ele não conhece. Ele não conhece os bichos, ele não conhece as
árvores. Porque essas pessoas que aí estão nunca viram esse Brasil, esse Brasil
eles não conhecem, eles conhecem o Brasil asfaltado, com o sinal vermelho, o
guarda, a violência, a metralhadora, isso eles conhecem. Agora eles não
conhecem a jacutinga, não sabem quando o murici floresce lá no alto da serra
(árvores e arbustos que dão frutos), não sabem quando a jacutinga vai lá comer
o coco da juçara. Eles não sabem o que é juçara, nem se a juçara dá coco, nem
coisa nenhuma. Enquanto isso o pessoal, quando o outro fala de ecologia, começa
a cortar mais depressa antes que apareça o fiscal, ou qualquer coisa que impeça
a destruição. Porque toda arte é ligada ao seu tempo. A arte de Debussy é
ligada ao tempo dele, a arte de Charlie Parker... A arte de Gershwin, aliás
Gershwin falou isso 'o que eu escrevo é uma coisa ligada ao agora de Nova
York'.
Qualis - Por isso
a música dele tem essa coisa viva de uma época.
Tom -
Exatamente, da Broadway, dos shows.
Qualis - A tua
música tem uma coisa muito viva de uma época do Brasil também.
Tom - Ah,
espero que sim. E como ficou chato ser moderno, né, 'agora serei eterno', diz o
Drummond ao perceber a mudança das letras (dando risada).
Qualis - Só pra
gente encerrar a passagem do Villa-Lobos aqui na nossa conversa, como é que
você vê o trabalho do Egberto Gismonti, ele é um outro cara que faz um trabalho
orquestral, sinfônico, e ele tem uma inspiração muito profunda no trabalho do
Villa-Lobos.
Tom - Bom,
isso eu não sei porque eu não conheço tanto o trabalho dele. Eu acho que ele
fala na floresta também, nos índios.
Qualis - Você é um
compositor, um cantor, e o Gismonti é basicamente um instrumentista. Eu vejo
dois músicos brasileiros que trabalham com uma mesma inspiração.
Tom - Eu gosto
muito do Gismonti e acho que a inspiração que possa vir do Villa-Lobos acho
muito boa, muito válida, entende. É isso mesmo, nós temos que falar do Brasil.
Porque pra fotografar o Pólo Norte tá cheio de gente lá. Então é isso mesmo. Eu
conheço o Gismonti desde que ele chegou ao Rio de Janeiro, ele é um grande
músico, um talento formidável.
Qualis - Falando
sobre música instrumental. O Brasil que tem essa tradição muito criativa e
popular como Pixinguinha, Severino Araújo e a Orquestra Tabajara, e muitos
outros. Existe uma coisa no Brasil de se valorizar a música cantada, mas até quando
você acha que os nossos músicos servirão de fonte de inspiração para os
artistas internacionais, enquanto aqui a preferência parece ser pelo que vem de
fora?
Tom - Houve um
tempo no Brasil em que os maiores sucessos na rádio eram instrumentais como o
Waldyr de Azevedo com o "Brasileirinho". Tocava o
"Brasileirinho", que tocava no mundo inteiro.
Qualis - O Jacob
do Bandolim...
Tom - O Jacob
do Bandolim mais o Radamés... Mas, um ambiente um pouco mais erudito, né. O
Waldyr de Azevedo era o delicado. Sendo que o "Delicado" dominou o
mundo inteiro, tocou em tudo quanto era lugar. Quer dizer, sempre houve essa
coisa da música instrumental e da música vocal. A música vocal tem isso, tem a
bela cantora, que é bonita, que tem a voz bonita, a Gal Costa, e as letras
bonitas. Porque muita gente gosta de ouvir por causa da letra. Agora, por
exemplo, se você pegar o disco Antonio Brasileiro, tem instrumentais lá. O
"Meu Amigo Radamés" é todo instrumental. O "Radamés Y Pelé"
são duas homenagens que eu faço ao maestro Radamés e ao nosso incrível Pelé.
Tom Jobim e Radamés Gnatalli - foto: Acervo Funarte |
Qualis - Como é
que surgiu a ideia de fazer essas instrumentais em homenagem ao Radamés
Gnatalli?
Tom - O
Radamés é uma coisa formidável, a generosidade... O Radamés orquestrou a música
brasileira toda. Fez muita música erudita, muito boa.
Qualis - Você o
consideraria o maior ou um dos maiores arranjadores?
Tom - Bom, eu
não gosto muito dessa coisa de "o maior", eu acho que o raciocínio
comparativo é falso. Frank Sinatra com Pavarotti, o Brasil com os Estados
Unidos. Eu acho que as coisas são incomparáveis, entende. Eu vejo o Radamés
como um homem que além de tudo... Porque é muito difícil você viver de música
erudita, de música instrumental, se você não tem orquestra sinfônica. Como é
que você vai fazer? Não dá pra fazer.
Qualis - Uma
tradição, uma estrutura no próprio país de desenvolvimento disso...
Tom - Você vê
a nossa orquestra aí, por exemplo, tá a perigo. Não tem verba. Parece que um
certo pedaço do país se desenvolveu para um lado e por outro lado esqueceu. O
problema das orquestras sinfônicas é que muitas orquestras sinfônicas fecharam
no mundo por falta de verbas. Eu conheci gente que tocava na sinfônica e que
saiu. Em suma, isso realmente é um problema. O governo tem que cuidar disso; o ministro
da Cultura. O que é que eu posso dizer? Agora, a música instrumental aparece.
Aparece nesse grande músico Egberto Gismonti. A música instrumental, por
exemplo, lá fora leva uma grande vantagem. Ela não precisa da tradução da
letra, das versões que geralmente são trabalho de terceira classe. Versão é
negócio horroroso. A não ser quando é uma coisa bem feita. É tradutore e
traditore, quer dizer tradutores traidores. Eles sempre traem o que eles
traduzem, então eles contam uma outra história. E quando fica bom o som, perde
o sentido. E quando o sentido fica bom, o som não fica bom. Então vira um
xadrez... Então é muito melhor quando você pode ouvir a obra como ela foi
feita. Como é a música americana, como a coisa que o Sinatra canta, a coisa que
os Beatles cantam em inglês. Agora, imagina você traduzir tudo aquilo para o
português. É uma tarefa ingrata.
Qualis - Falando
sobre música instrumental, você fez a trilha sonora do filme do Paulo César
Saraceni, o Porto das Caixas...
Tom -
Instrumental, ganhei até um prêmio, uma estátua lá, de prata, não sei o quê,
uma coruja de ouro, alguma coisa assim.
Qualis - Como foi
essa experiência de fazer trilhas sonoras?
Tom - Eu
sempre fiz muita trilha sonora de filmes brasileiros que nunca ninguém viu e
nunca ninguém ouviu. Eu fiz O Porto das Caixas (1963), e fiz A Crônica da Casa
Assassinada (1971), essa deu mais prêmios. É bonito e ficou bonita a trilha. Já
passaram tantos anos que eu já posso dizer que é bonita a trilha. Eu gravei aquela
trilha nos Estados Unidos com a Sinfônica de Nova York. O Paulo César Saraceni
era o diretor do filme, quem escreveu A Crônica da Casa Assassinada foi o Lúcio
Cardoso. Depois disso fiz muita trilha sonora e recentemente fiz a trilha para
aquele filme da Ana Maria Magalhães, como é que chama o filme? (perguntando a
Gilda Matoso na sala)
Gilda - O filme
chama Erotique, mas o episódio dela é baseado na Clarice Lispector, são três ou
quatro diretoras.
Tom - Eu
sempre tenho feito música para o cinema. Eu fiz o Gabriela, Cravo e Canela, do
romance de Jorge Amado, feito pelo Bruno Barreto, que tinha a Sônia Braga e o
Marcello Mastroianni... A gente vai fazendo.
Qualis - Você tem
um método de escrever as composições para trilhas sonoras?
Tom - Vendo o
filme, né. Às vezes, por exemplo, o sujeito já tem o script pronto e você já
pode trabalhar antes mesmo de ver o filme. Você trabalha antes, durante e
depois, fazendo os acertos, as minutagens, aquilo tem que ser uma coisa
precisa.
Qualis - Mudando
um pouco o rumo do nosso papo, faz um bom tempo que você vem denunciando e
reclamando do absurdo do sistema de recolhimento dos direitos autorais no
Brasil...
Tom - Isso daí
é um assunto que tem mil anos. Desde que eu me entendo, as pessoas estão...
Quando você vê artistas, Dorival Caymmi com oitenta anos fazer show é porque ele
está precisando de dinheiro. Quando eu faço show é que eu tô precisando de
dinheiro. Ary Barroso fazendo show é porque ele não podia se manter com os
direitos autorais, não podia ficar em casa tomando whisky. Não dá, não dá. Esse
negócio de direito autoral, você precisa ter muita música, e também serem muito
editadas. Os editores carregam 80% dos direitos, aí não dá.
Qualis - Você já
se envolveu num movimento mais direto e engajado?
Tom - Eu não
sou muito de andar. Já fiz passeata e essas coisas. Lá em casa todo mundo era
socialista, mêu avô, meu padrasto, minha mãe. Lá em casa aquelas estantes de
livros é tudo Engels, Marx e Lenin, né. Eu fui crescendo, eu fui ler aquele
negócio, fui tentar entender aquilo. Essa geração minha, era toda uma geração
de esquerda. Essa coisa do Brasil, 'ordem e progresso' misturado com o
positivismo de Augusto Comte, e a crença que o comunismo e o socialismo seria a
melhor solução para o Terceiro Mundo. Parece que a coisa não deu certo, não. O
Villa-Lobos disse um pouco antes de morrer que 'a solução evidentemente para o
Brasil, é o socialismo e o comunismo, mas infelizmente no momento eu não posso
perder um mercado como os Estados Unidos da América do Norte' ele falou isso na
televisão. Isso é muito engraçado porque ele não tinha mercado nenhum nos
Estados Unidos (rindo). Isso é causado pela imprensa, aquele negócio do dinheiro,
do dinheiro, porque quando o Villa-Lobos mais ou menos se mudou de Paris pra
Nova York, aí os comunistas acharam ruim. Do berço da civilização vai pra Nova
York pra ser capitalista. E ele então, grande gozador, disse 'infelizmente no
momento eu não posso perder um mercado como o dos Estados Unidos'. O mercado,
coitado, do Villa-Lobos era apenas a "Bachiana n° 5", a cantilena da
"Bachiana n° 5" (cantarolando a música). Com isso ele iria morrer de
fome. Hoje gravaram lá no exterior mais alguma coisinha. Só não tem Villa-Lobos
gravado aqui.
Qualis - Falando
sobre a bossa nova, um assunto inevitável, o que é que você guarda desse
período? Os longos papos com Vinícius, algum porre específico, a sensação de
ser cortejado por lindas mulheres, a loucura do João, ou alguma música especial
que sintetize aqueles momentos?
Tom - Ah, eu
sei lá. É tanta coisa boa. Eu acho que é tudo isso aí que você disse. (rindo)
Mas de porre a gente não se lembra quase de nada, né, tá tudo meio apagado.
(estalando os dedos) A bossa nova, o jeito, o suingue, o balanço, a malandragem...
Nova é a palavra mais usada na imprensa do mundo todo. Nova Gillette, a
nouvelle vague, a new wave... E naturalmente aqui nós tentamos provar que a
bossa nova não tinha bossa e que era velha. (rindo) É justamente o contrário da
bossa nova. E também muita coisa sem ser bossa nova foi chamada de bossa nova.
A geladeira bossa nova, o presidente bossa nova, o presidente Juscelino Kubitscheck,
a era bossa nova.
Qualis - A bossa
nova funcionava como uma espécie de trilha sonora para os acontecimentos da
época.
Tom - Exato.
Essa palavra bossa já era usada pelo Noel Rosa, 'são bossas nossas' ele falava
nisso.
Qualis - Bossa na
época era quase como uma gíria...
Tom - A bossa
é o seguinte, a bossa são as bossas cranianas. O crânio tem convexidades que
correspondem a concavidades onde se encontra a massa cinzenta. Então o sujeito
tinha a "pelota para o lado de cá", então dizia 'você tem bossa pra
isso, tem bossa pra tênis, tem bossa pra cultura, tem bossa pra criminoso...'
Aliás, essa palavra existe em inglês, a palavra boss, no sentido de
protuberância. Não no sentido de chefe, de bass, do holandês. Boss no sentido
de calombo, de bossu (francês), de Bossu de Notre Dame. É a bossa nova, bossu é
o calombo.
Qualis - Como uma
proeminência?
Tom - Exatamente.
Uma coisa profunda é a bossa. Eu cheguei a pensar que a bossa vinha daquele boi
que tem a bossa assim, que fica balançando. Mas a bossa é realmente as qualidades
físicas, intelectuais, poéticas do cidadão que tem uma coisa como Noel Rosa
tinha, uma bossa danada, suingue, uma ginga. Nos Estados Unidos eu vi em várias
enciclopédias americanas, eles têm a palavra bossa nova lá... Aquelas conversas,
um tipo de dança, um tipo de samba related to jazz, não sei o quê e tal. Porque
a mentalidade americana é aquisitiva, quer dizer, lá toca a canção japonesa,
como toca a canção mexicana, como toca a canção brasileira. Então quando o
americano diz Cuban jazz, ele está se referindo a música cubana. Aí ele tá botando
o jazz lá. Aí o crítico brasileiro pensa que o samba é jazz também porque o
americano vai escrever Brazilian jazz. Aí o Tinhorão vai dizer 'aí, tá vendo,
eu não te disse, é americano, é Brazilian jazz'.
Qualis - Da mesma
forma como baladas do Djavan, da Elis Regina ou do Ivan Lins, eles consideram
como Brazilian blues.
Tom -
Brazilian blues, exatamente. Então isso vai causar uma barafunda (mistura
desordenada de coisas) no crítico brasileiro, sobretudo nos que forem mais
puristas, né. Aí o sujeito vai dizer que 'piano não é um instrumento
brasileiro, saxofone não é'. Eu vejo aí classificados, têm músicos, têm
eruditos aí que tratam a música do Radamés a música de jazz, eles chamam de
música de jazz. Porque eles usam o jazzband, usam o trombone, o trompete, o
saxofone. Então é orquestra de jazz. Eles causam uma confusão que tudo vira
jazz. Eu diria que o jazz vem do verbo francês jaser ( falar desmedidamente,
com indiscrição . All that jazz, é tudo aquilo que jazz, ou seja, tudo aquilo
que fornica.
Qualis - Você é
considerado por muitos como a própria personificação da bossa nova...
Tom - Eu sei
lá. Você sabe, eu não cuido desses assuntos. A bossa nova é a bossa dos campos
de arroz. O músico bossa nova, ele chega cansado, suado na festa pra tocar. Ele
se arruma todo e vai tocar, daqui a pouco ele tá sequinho e não está mais suado,
tá bonito, tocando tudo certinho. Agora, já o outro músico que já não é da
bossa nova, ele chega na festa todo arrumado, todo careta, e vai tocar, se
despenteia todo e sua. É um processo completamente inverso. Um chega arrumado
na festa e acaba desarrumado. O outro chega desarrumado e acaba arrumadíssimo -
é a bossa nova. A bossa nova influenciou o mundo todo, todo mundo resolveu
escrever bossa nova nos Estados Unidos. E os latinos lá resolveram escrever a
bossa nova. Como se ela fosse uma dança, como se ela fosse uma conga, um mambo,
uma rumba, entende.
Qualis - E a
impressão que dá é que a cada ano que passa a bossa nova, pelo menos nos
Estados Unidos e Europa, é uma coisa cada vez mais moderna.
Tom - É, a
bossa nova é...
Gilda Matoso - Olha, tá
aqui hoje no Jornal do Brasil, a quantidade de discos, falando exatamente sobre
isso, que no Japão o último grito da moda é a bossa nova.
Tom - Eu disse
para um cara da imprensa, só pra sacanear, por que é que os japoneses gostam
tanto da bossa nova? Ele me disse 'é porque eles tem bom gosto' (rindo). E o
Caetano disse o seguinte, que eu achei muito engraçado, 'o Brasil precisa merecer
a bossa nova, merecer pra poder ir à praia e casar com uma mulher bonita, fazer
a casa, andar de barco. Tem que merecer a bossa nova, ele não pode só ficar
gostando de coisas tristes, daqueles boleros chamados suicídios, não pode.’
Qualis - Você acha
que a bossa nova seria um tipo de antítese da dor de cotovelo da música da década
de quarenta?
Tom - Eu não
digo antítese porque senão ficamos sempre nesse maniqueísmo. Eu acho que a
bossa nova é bem mais positiva.
Qualis - A bossa
nova fala da dor de cotovelo e desses problemas como em "Lígia", por
exemplo.
Tom - É bossa
nova "Lígia"?! Mas a "Lígia" não é bossa nova! As músicas
que eu gravo o pessoal chama de bossa nova, não é característica. Tem inclusive
bossa nova nesse disco (Antônio Brasileiro), tem o "Surfboard" com
ritmo bossa nova, com uma introdução bossa nova, mas, por exemplo, "Meu
amigo Radamés" não tem nada de bossa nova. É uma música que tem bossa e
que é nova. Se não me engano são oito inéditas no disco de quinze faixas. Mas alguns
encontraram menos músicas inéditas. Porque nós só conhecemos as músicas
editadas, as músicas inéditas nós não conhecemos. Eu conheço Beethoven, Ravel,
Bach, Charlie Parker, George Gershwin, mas são músicas editadas, né. E às vezes
eles estão esperando que seja tudo inédito. Perguntaram ao Baden Powell:
'Escuta, o seu novo CD tem músicas inéditas.' Ele disse: 'São dezesseis
inéditas de sucesso.' Bem, aqui também você faz a música um ano atrás, dois anos
atrás, três, dez anos atrás, e (dizem) 'Música velha!' 'Ih, essa
música tava na novela do ano passado
("Querida"), é uma coisa antiquíssima.' É uma música de uma ano, quer
dizer, é um neném. Eu toco música aí nesse piano de trezentos anos.
Qualis - Como é
que você designaria a paternidade da bossa nova?
Tom - (rindo) Eu
acho que a bossa nova estourou lá fora com o negócio do João Gilberto. Quem
mais? João Gilberto.
Qualis - E a Nara,
o Ronaldo Bôscoli e a turma da zona sul?
Tom - Vieram
depois. Eles eram inclusive mais jovens.
Qualis - Então o
João Gilberto foi o porta-bandeira da bossa nova?
Tom - O João
Gilberto, o Tom Jobim e aquele pessoal que estava lá no Carnegie Hall. E teve
aquelas gravações, estourou o "Desafinado", estourou "Garota de
Ipanema", estourou "Meditação", e tudo isso foi pra parada de
sucesso. E depois foi gravada toda aquela bossa nova do Ronaldo Bôscoli com o Roberto
Menescal, o Carlinhos Lyra, todo mundo e muita gente boa ali. Aquele que andava
com o Sérgio Mendes, o Durval Ferreira... Gravou-se muita bossa nova. Eu acho
que foi isso que deu consistência ao movimento. Inclusive esse negócio de chamar
a bossa nova de jazz, isso tudo era um pouco revoltante pra mim. Eu acho que
foi bom porque senão teria desaparecido. O americano aí escreveu tudo, botou na
Library (biblioteca) do Congresso, aquele negócio. Eu digo, segura os arquivos
implacáveis. Então tá lá, bossa nova. E você tem a música escrita, tem alguma
coisa. Por que aqui fica esse negócio, era e agora não é. Se você pegar aqui esse
livro que eu te mostrei, aí tem escrito o fiasco da bossa nova nos Estados
Unidos. Fiasco, uma vergonha no Carnegie Hall, falta de organização. Mas não
adiantou eles escreverem nada disso porque a bossa nova já tava gravada. O
pessoal do cool jazz, o pessoal da West Coast (Costa Oeste americana) já tinha gravado
a bossa nova. Tá tudo escrito aí, uma coisa pavorosa. Quer dizer, o inimigo do
brasileiro parece que é o brasileiro mesmo, né. Não tem outro. O inimigo do
brasileiro não foi o imperialismo americano... (rindo) Não é nada disso não.
Qualis - Você
ratifica aquela famosa frase de que "o Brasil não conhece o Brasil"?
Tom - É. Isso
é um samba do Aldir Blanc com o Maurício Tapajós. (cantarolando o samba) Sabe
como é que eu vejo o Brasil? Esse Brasil que eu não vejo aqui na televisão,
embora eu tenha vinte canais aqui? Eu vejo o Brasil nos Estados Unidos... Aparecem
os índios, aparece eles caçando, eles comendo macaco, aparece tudo. O Brasil aí
na fronteira com a Venezuela, na fronteira com a Colômbia, as pessoas andando
no mato com flecha envenenada, com zarabatana. Aqui eu não vejo isso. Aqui não
tem índio.
Qualis - A CNN
mostra uns pedaços do Brasil que é impressionante.
Tom - É, pois
é, exatamente. Mostra as queimadas, o fabrico do carvão, a situação da
Amazônia. Coisas que a gente não vê porque eu tô aqui vendo outras coisas,
passa a novela da Globo... Aí você vê muita coisa que tá acontecendo mesmo,
aqueles pobres índios, você imagina, andando no mato e carregando filho nas
costas, sem agricultura de espécie nenhuma. Quem é que conhece esse tipo de
coisa? Ele vive da caça, do palmito, da fruta e da pesca, andando pelo mato.
Lugares maiores.
Qualis - Como é
hoje o teu relacionamento com o João Gilberto? Ficou algum ressentimento?
Tom - Não. Eu
não sei porque sai na imprensa sempre... Olha, aí nesse livro grosso onde se
cria ressentimento... Eu não conheço nenhum ressentimento do João. Acho que
pelo contrário, o meu trabalho com o João foi um trabalho muito positivo e que rendeu
frutos maravilhosos pra música brasileira. (um pouco indignado) Não vejo nada
disso. Mas você só encontra aí (apontando para o tomo de imprensa) o
ressentimento, a mágoa, eu não sei do que é que eles estão falando. Mas isso tá
cheio disso aí 'vamos ver se é possível juntar os dois', o negócio do concerto da
Brahma. Eu não sei o que é isso não. Realmente a história passou pra imprensa,
não sei o que eles querem dizer com isso. Eu acho que o meu trabalho com o João
Gilberto é uma coisa que deu frutos, entende, foi uma coisa fecunda e muito
gravada, muitos discos. Mesmo o que nós gravamos aqui, os discos foram todos
editados nos Estados Unidos. Coisa que raramente acontece, você fazer um disco
aqui e ele ser editado lá nos Estados Unidos. O que acontece é outra coisa, lá
eles gravam os discos deles e consomem os discos deles. Os discos brasileiros
são discos brasileiros que chegam lá, conforme foram gravados aqui. Do Caetano,
do Chico Buarque... Mas são discos made in Brasil. Não é como no caso do João
Gilberto, o disco made in Brasil foi feito nos Estados Unidos. Aquilo não é uma
música gravada nos Estados Unidos, é uma música que foi gravada aqui e foi
reeditada na América (do Norte). Então eu só vejo motivo para o João gostar
desse nosso trabalho, só vejo motivo para o Tom gostar desse trabalho, né. Não
vejo motivo nenhum para ressentimentos, nem mágoas.
Qualis - Isso é um
ruído de comunicação?
Tom - A
comunicação faz muito ruído e não se comunica. As máquinas estão cada vez mais
velozes, e a informação não tem porque o sujeito... Aparece essa porção de
invenções. É o jornalismo criativo. O jornalismo formador de opinião. Eles vão
formar a opinião e dizer que o artista é rico, que não sei o quê. Mas isso é a vontade
do cara que escreve de ficar rico. O artista, ele tem vontade de outras coisas
que não tá saindo na reportagem. Eu não posso falar sobre João Gilberto, pois,
há anos que eu não tô com o João Gilberto. O João Gilberto outro dia esteve
aqui em casa. O João Gilberto é um homem de hábitos monásticos, é um homem
recluso, um homem do claustro. O João Gilberto não sai, não vai no restaurante.
A vida de João Gilberto é diferente.
Qualis - Ele é uma
pessoa introspectiva.
Tom -
Bastante.
Qualis - Você é
uma pessoa extrovertida, né?
Tom - Talvez,
por força das circunstâncias. Porque eu quando era garoto, eu gostava de subir
numa árvore e ficar quieto lá em cima. Gostava de subir no telhado... Tinha um pouco
um caráter meditativo. E hoje em dia naturalmente tudo isso foi bagunçado pela
constante... E hoje em dia inclusive tá difícil de trabalhar porque é
entrevista o tempo todo, né. É o preço da glória. Preço da Glória, do Flamengo,
do Botafogo, Copacabana, de Ipanema, Leblon. O sujeito me perguntou lá no avião
'qual é o preço da glória'. Eu disse 'deve estar semelhante ao preço do Flamengo'.
Qualis - Você
falou dessa coisa de falta de tempo, do trabalho todo...
Tom - É você
vai ficando muito aperreado disso tudo.
Qualis - Você está
num momento da tua vida bastante produtivo ainda, e você já produziu muita
coisa e escreveu a história da música popular brasileira...
Tom - Exato,
eu acho que já posso parar, né?
Qualis - O que
você espera da tua vida e qual o teu plano para o futuro?
Tom -
Descansar, comprar uma bengala, uns óculos novos (rindo) pra poder ver as moças
de uma distância oficial.
Qualis - O que
move um veterano como você a gravar, lançar novos discos, viajar pelo mundo e
atender jornalistas como eu que fazem sempre as mesmas perguntas?
Tom - Não, as
tuas perguntas estão um pouco diferentes. Mas certamente o que move é que têm
essas músicas bonitas, né, que foram feitas e foram movidas pelo amor. Ninguém
pensou em dinheiro e nada disso. A gente era pobre mesmo e fez essas músicas,
porque eu gostava de uma garota, ou porque achava que o mar tava bonito, o céu.
Então nós tínhamos outras razões pra viver. E depois, naturalmente que essa
coisa foi tomada pelo povo brasileiro. Essas músicas também são músicas que nós
acreditávamos locais. Quer dizer, quando eu fiz essas músicas eu achei que não
ia sair de Ipanema, achei que isso ia chegar em Copacabana.
Qualis - Vocês não
tinham pretensão de 'vamos atingir São Paulo e as outras capitais'?
Tom - Não,
nada disso. 'Vamos atingir São Paulo', essa conversa já me dá uma preguiça.
'Vamos fazer os Estados Unidos', 'made in America', 'to make America', isso me
dá um cansaço invencível. Eu nunca teria ido aos Estados Unidos se o Itamaraty
não tivesse me obrigado a ir aos Estados Unidos. E eu nunca teria tentado ir a
América, uma coisa dificílima. Sair daqui depois de grande, sem falar inglês,
tentar a vida, tentar o quê? Ser o quê? Sapateiro, pianista... As profissões
são poucas, ditador, carteiro, soldado. O sábio declarou ao jornal que ainda
falta muito para o mundo adquirir um nível razoável de cultura. Até lá
felizmente estarei morto. Aí vai ter muito mais fumaça e tudo, né. De que
adianta você pagar milhões de impostos e morar numa cidade que você não pode
respirar? Que imposto é esse que você tá pagando? São as grandes cidades, né?
Qualis - No
movimento espontâneo da bossa nova vocês não tinham nenhuma pretensão...
Tom - Uma
música como "Desafinado" é uma música que nenhum cantor quer cantar.
Porque ele vai ser chamado de desafinado.
Qualis - Isso era
um atestado da desafinação?
Tom - E o
sujeito escreveu na imprensa, 'João Gilberto é desafinado mas tem uma voz muito
bonitinha'. (risadas) Agora, acontece que o João Gilberto não é desafinado.
Qualis - Assim
como estranhavam o violão dele também...
Tom - Que
nada! O violão do João é uma coisa clássica. Porque a grande coisa do
revolucionário do moderno é que ele vira clássico. Como Debussy virou um
clássico. O Stravinsky foi dar uma conferência em Harvard, ele já estava meio
velho, e ele chegou lá, tinham aqueles alunos jovens. (Um deles disse)
'Maestro, o senhor fez uma revolução completa na música'. Ele pega um objeto na
mesa (Tom pega um objeto na mesa) e disse: Ólha, meu filho, uma revolução
completa é isso. (girando o objeto em 360 graus) Porque se você fizer meia
revolução, aí fica tudo de cabeça pra baixo, é o pau-de-arara. A revolução
completa são 360 graus, volta tudo para o mesmo lugar! O cara vai pensar que
vai revolucionar botando de ponta-cabeça. Aí fica tudo ao contrário.
Qualis - O Dorival
Caymmi falou que a maior ambição dele seria compor um tipo de música que ficasse
na memória do povo, e que passado o tempo todos esqueceriam o nome do
compositor, mas não a música. Como o folclore. Você acha que é preciso estudar
muita música e conhecer a alma do povo pra alcançar uma simplicidade absoluta?
Como fica a intuição e a técnica?
Tom - É claro
que tem pessoas intuitivas que nunca estudaram nada e que fazem canções lindas.
Existem pessoas que não estudam e nascem sabendo fazer música, sabendo
desenhar, sabendo qualquer coisa. Sem dúvida. Agora, é evidente que se você entrar
no mundo da música, no mundo do cinema, você vai ter que ter lápis e papel pra
poder escrever uma coisa pra você se situar. Eu acho também que certos músicos
intuitivos, eles nunca quiseram estudar música com medo de perder a bossa.
Iriam ficar assim muito quadrados, muito rígidos. Ficaram sempre de olho no
balanço, na ginga.
Qualis - Como é
que você solucionou isso o tempo inteiro?
Tom - Ah, eu
sou um mestiço de popular com erudito. Sou um eruditinho, né. Eu sempre falei
mal de mim, mas com moderação. O pessoal aproveitou pra exagerar um pouco.
(risadas)
Qualis - Você
definiria uma linha entre o erudito e popular?
Tom - Não, eu
não defino linhas de fronteira entre a música popular e a música erudita.
Inclusive Chopin, Villa-Lobos, está cheio de temas populares dentro da música
erudita. Essa divisão é falsa, não leva a nada também. Certas pessoas gostam de
dar nome às coisas. E dar nome às coisas impede a compreensão. Eu chamo Maria
de Maria e aí penso que conheço Maria. Mas Maria é uma outra coisa. É essa
coisa de fazer enciclopédia, botar todos os nomezinhos lá. Quando aparecer um nome
novo, fazer mais um volume pra completar a teoria. Catalogar, né. O que
acontece na realidade, Walter, é o seguinte, é que a bossa nova ficou tão famosa
que agora tudo que eu faço eles chamam de bossa nova. Mas não é bossa nova. Ou
então é bossa nova, mas não é aquele sambinha bossa nova do João Gilberto. Não
é isso. É uma coisa que tem bossa e é nova. Só que não é a bossa nova. A bossa
nova, vamos dizer, é uma coisa que ficou rotulada mesmo. (cantarolando) 'Dia de
sol / festa de luz / e um barquinho a navegar'. Então ficou o barquinho, o
barquinho é a bossa nova. O "Desafinado" é bossa nova. "Garota
de Ipanema" é bossa nova. Agora, você pega esse disco Antonio Brasileiro,
o "Samba de Maria Luiza" não é bossa nova, o "Meu Amigo Radamés"
não é bossa nova, "Radamés Y Pelé" não é bossa nova. Mas eles chamam
de bossa nova. Americano vai chegar lá e dizer 'the bossa nova, não sei o quê'.
O papa da bossa nova... Vai chamar o João Gilberto de papa da bossa nova. Mesmo
que João Gilberto grave Gershwin, como já gravou, né. (cantarolando) 'It's
wonderful...' Eles vão dizer que é bossa nova. É por causa da força e repetição
das palavras. Aí, ficam repetindo, repetindo, repetindo... E falaram que a
minha banda era nepotista, que havia o nepotismo e a inadimplência. Até hoje estão
falando isso. Nepotismo é um sujeito que é funcionário do governo, e bota pra
trabalhar os sobrinhos, os netos, os parentes... Não é nada disso. Na minha
banda eu contrato quem eu quiser. Contrato o cachorro que estiver passando na rua,
eu contrato ele pra gravar comigo. Não tem nada de nepotismo. Mas aí fica
repetindo, nepotismo, nepotismo, nepotismo... Aí o sujeito vai falar 'olha, a
banda do Tom Jobim, é nepotista'. E quanto às famílias que estão lá não é só a
família Jobim, é a família Caymmi, a família Morelenbaum. Estão esquecendo-se
das outras porque tudo leva a uma ideia, só que cria aquele nazismo, aquele
troço inflexível.
Qualis - O fato de
você trabalhar com a tua e as outra famílias significa uma facilidade de
trabalho?
Tom - É,
claro. Eles estão mais perto. O pessoal da minha família tá aqui em casa, então
eu não preciso ir lá no Meyer. O Tião Neto, por exemplo, o contrabaixista, é de
Niterói. O Paulinho Braga é mineiro de uma cidade chamada Guarani, ali perto de
Juiz de Fora. Então, eles vêm de mil cantos do país. O Danilo Caymmi é filho de
uma mineira de Piqueri, o Dorival Caymmi que é baiano. Você tem um espectro
amplo.
Qualis - É a
amizade entre as pessoas...
Tom - Claro,
claro. O Danilo, por exemplo... Esse pessoal todo da banda. Essa banda é uma
banda didática. Eu aprendo muito com eles, e eles aprendem comigo. Eu vi o
Danilo nascer, né. Todo esse pessoal, eles eram criancinhas. Esse pessoal da
banda são grandes músicos evidentemente. E as garotas também. As garotas têm
sofrido mil críticas.
Qualis - Você já
tinha usado um naipe de vocais femininos em Passarim...
Tom - Eu não
gosto, por exemplo, de ficar sozinho, cantando sozinho. Não gosto de ficar em
pé num palco com vinte mil pessoas me olhando. Acho essa situação muito
desagradável. O vocal nas vozes é justamente o que cria a harmonia, que cria
tudo. O coral é uma coisa sinfônica. Mas eu acho que o pessoal fala negócio de
mulher, não sei o quê, é por outros motivos. (rindo) Eles estão com a cabeça em
outras coisas.
Qualis - Motivos
menos musicais.
Tom - É,
motivos menos musicais. Essa leitura é estranha, né. E você vê, a Paulinha Morelenbaum
canta muito bem, já gravou o disco dela. A Maucha canta muito bem. Esse disco
você vai ver no exterior como eles vão elogiar as garotas.
Qualis - E tem
essa coisa do Quarteto em Cy que é fantástico...
Tom - Eu
gravei recentemente com elas. É porque esse negócio de dizer que o Tom Jobim
não grava há sete anos, tô todo dia gravando com o Edu, com o Chico Buarque,
com o Quarteto em Cy, Frank Sinatra. Mas só que isso não é muito mencionado
porque eles querem saber do disco, como é o disco... Músicas inéditas, ou você
não faz mais nada. 'Acabou, acabou, agora felizmente acabou'. Eu encontrei um
sujeito na rua que falou assim: 'O Vinícius, ele não faz mais nada', e ele tava
contente.
Qualis - É como
dizem do Dorival Caymmi, que ele é um cara que não sai da rede, que não compõe
mais nada...
Tom - Não sai
da Rede Globo. (risadas) O Dorival... Você acha que um sujeito aos oitenta anos
tem que compor? Perguntou ao Villa-Lobos uma moça que era mal paga, estudava na
PUC jornalismo, perguntou ao Villa-Lobos que tava morrendo: 'Maestro, o que o
senhor está compondo agora?' Ele disse: 'Agora eu estou decompondo'
(gargalhadas). Mas porque essa obrigação de compor sempre? Eu nunca entendi
isso bem. E as músicas inéditas, eu vou mantê-las inéditas pra que ninguém
possa saber. Ninguém possa achar nada. Senão eles acabam pondo as músicas
obscenas, os hinos do clube de futebol, acabam botando tudo, fazendo disco,
você sabe. Os poemas eróticos do Drummond, por exemplo, eu não sei se ele
gostaria... Não sei, duvido. E depois só se vê bem com o coração. O que
acontece é que fica esse negócio de 'Olha lá ele! Tá com uma barriga! A
roupa... O chapéu tem uma aba curta!' Não adianta. O robe de chambre do Wagner se
era púrpura ou se era roxo. Fica exatamente o que não é, o que não interessa.
Fotos e Imagens
:: Internet e acervo pessoal
TOM JOBIM ENTREVISTADO POR CLARICE LISPECTOR:
:: Antônio Carlos Jobim (Tom Jobim) - entrevistado por Clarice Lispector
OUTRAS ENTREVISTAS PUBLICADAS NO SITE: Veja aqui!
TOM JOBIM ENTREVISTADO POR CLARICE LISPECTOR:
:: Antônio Carlos Jobim (Tom Jobim) - entrevistado por Clarice Lispector
OUTRAS ENTREVISTAS PUBLICADAS NO SITE: Veja aqui!
...é sempre um prazer poder desfrutar das palavras de um mestre do quilate do saudoso e insubstituível Tom Jobim, em entrevista elaborada com tanta sensibilidade por Walter Silva. Tom Jobim, gênio da raça brasilis, músico e ser humano de altíssima dimensão...Que saudade, que não chega...Parabéns pela publicação histórica!!
ResponderExcluirJosé Mauro
Olá Mauro, que bom que gostastes!
ExcluirTom é um mestre!
É gratificante compartilhar esta entrevista com todos, visto que, é mais uma maneira de o conhecermos, para além de suas músicas.
Abraços e volte sempre!
A entevista mais linda que já li , vou colocar em meus arqivos para que nunca se perca , espero que meus netos leiam e de o devido valor;muito obrigada pelo presente ,
ResponderExcluirOlá,
Excluirque bom que gostastes, assim como você, também esperamos que as futuras gerações deem o devido valor a este grande mestre e também a outros que fazem parte do repertório brasileiro, da nossa cultura.
Abraços e volte sempre!
Viva Tom Jobim, maestro soberano do Brasil!
ResponderExcluirObrigada pela visita, volte sempre!
ExcluirAbraços
Adorei!!! As pessoas tendem a criar os mitos e esquecer o humano. Essa entrevista nos desperta para a humanidade do grande Tom e das contradições da mídia que destroem tantas personalidades, tentando enquadrá-las. Há muito que passei a admirar justamente aqueles que não se enquadram e que se recusam a ser apenas uma mercadoria de consumo.
ResponderExcluirObrigada pela oportunidade!
Um abraço,
Juliana
Olá Juliana,
Excluirque bom que gostaste da entrevista! Há nesse blog outras entrevistas de outras personalidades, se tiver interesse, dê uma conferida.
Abraços, volte sempre!
Percebe-se na entrevista uma amargura com o provincianismo brasileiro. Talvez o seu enfarte tenha sudo consequência dessa desilusão. O mestre Tom merecia um endeusamento pela sua obra e não algumas críticas negativas que só quiseram vender notícias. Acho que nenhum artista foi tão completo musicalmente, humanista e ambientalista como ele. Salve o poeta soberano !
ResponderExcluirPercebe-se na entrevista uma amargura com o provincianismo brasileiro. Talvez o seu enfarte tenha sudo consequência dessa desilusão. O mestre Tom merecia um endeusamento pela sua obra e não algumas críticas negativas que só quiseram vender notícias. Acho que nenhum artista foi tão completo musicalmente, humanista e ambientalista como ele. Salve o poeta soberano !
ResponderExcluirMaravilhoso!
ResponderExcluir