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Maria Manuela Margarido - a poesia e o grito de liberdade

Maria Manuela Margarido, por Christian Fischgold (2018)

© Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske
Por gentileza citar conforme consta no final desse trabalho.  
Página original AGOSTO/2016 | ** Publicação revisada, ampliada e atualizada SETE...


NOTA: Página em atualização. Grata!


Maria Manuela da Conceição Carvalho Margarido (escritora, diplomata e lutadora contra a ditadura fascista e o colonialismo) nasceu na Roça Olímpia, na ilha do Príncipe, a 11 de Setembro de 1925. O pai, David Guedes de Carvalho, era de uma família judia do Porto, de nome Pinto de Carvalho. A mãe era mestiça, filha de angolana e indiano. O avô materno era descendente de uma família Moniz, de Goa - «Trago bem marcada a fusão das minhas origens. Sinto-me como a última geração do que se convencionou ser o império português. Há no meu sangue uma mistura de continentes, nos meus afectos uma mistura de gentes, na minha formação a cultura portuguesa, na minha poesia o resumo do pulsar da minha ilha.»

Começou a viajar para Portugal muito nova. A primeira vez, apenas com três anos. A mãe morreu cedo. Um dos irmãos foi juiz na Madeira, Moçambique e Angola e da família restam alguns familiares nas Ilhas do Príncipe e em S. Tomé. 

Maria Manuela Margarido
Apesar de ter passado grande parte da infância em S. Tomé e Príncipe, não falava fluentemente o crioulo. Filha de professora e de juiz, havia na sua casa a pretensão de que os filhos fossem um exemplo no modo de se expressar em português. (O professor Lindley Cintra costumava gabar-lhe a correcção com que se expressava na língua portuguesa). 

Fez a escolaridade num Colégio de franciscanas em Valença do Minho e, depois, no Sagrado Coração de Maria, em Lisboa. Teve sempre boas notas, «e vinte valores em comportamento, em delicadeza, em pontualidade. Eram os frutos da mentalização inculcada pelo meu pai que nos dizia que, como judias e mestiças, deveríamos estar melhor preparadas do que as outras raparigas para vencer na vida. Foram palavras que me marcaram para sempre». 

Em 1953 levantou a voz contra o massacre de Batepá, perpetrado pela repressão colonial portuguesa. (1)

Voltou para África nas vésperas do início da guerra colonial. «Todos nós, africanos, voltámos para casa». Porém, iria ter de regressar de São Tomé, muito doente, indo para Valença do Minho repousar. Curou-se graças a cuidados especiais. Casou em Lisboa e por ali ficou muitos anos, sempre atenta aos anseios dos africanos que aí estudavam. Frequentava assiduamente a Casa dos Estudantes do Império (CEI), em Lisboa, onde participava em actividades culturais e convivia com residentes de todas as colónias e portugueses democratas. Manuela Margarido aparecia na CEI para conversar, falar de livros, da situação política nacional e internacional e, naturalmente, das suas terras. Eram seus companheiros de então Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Chissano, Fernando Mourão, Narana Cossoró, Rui Romano, Francisco Tenreiro, entre outros. (2)

Manuela Margarido atribuía a Francisco Tenreiro a consciência étnica que imprimia nas suas poesias: «Através dele seguimos de perto o pensamento e a obra de Senghor e de Aimé Césaire que, de certa forma, se tornaram nossos mentores do mesmo modo que foram referências históricas para a África negra. (...) Os meus poemas tornaram-se mais africanos». Em Alto como o Silêncio (Lisboa, 1957), a sua poesia é a saudade dos sons, cheiros, luz e, também das angústias, dos medos e sonhos da sua ilha. Fala dos homens, dos pássaros, dos cacaueiros, dos coqueiros e do mar, daquilo que a libertava e a oprimia.

Na década de sessenta começaram as perseguições aos nacionalistas africanos e os exílios. 
Alfredo Margarido
Em 1962 foi presa pela PIDE e levada para Caxias. «Nós queríamos tão somente a autonomia das colónias, inspirados no modelo francês. Ninguém nos ouviu. A minha poesia tornava-se num grito de liberdade. Em Vós que ocupais a nossa terra (1963), denuncio "a cobra preta que passeia fardada", a polícia e os soldados do continente, tema que foi recorrente na minha poesia de contestação. É um poema muito dorido e que reflecte o sentir da geração esclarecida das ilhas nessa época».

Nos anos 60, com o marido, Alfredo Margarido (4), Edmundo Bettencourt, Cândido da Costa Pinto e Manuel de Castro, fazia parte de uma tertúlia que reunia aos fins de tarde no café Restauração da Rua 1º de Dezembro (Lisboa). 

O espartilho da censura e da opressão política empurrou-a para o exílio. Foi viver para Paris, onde ficou trinta anos e fez a sua formação académica. Diplomou-se em Ciências Religiosas na École Pratique des Hautes Études ( foi aluna de Roland Barthes). Licenciou-se em Letras (foi aluna de Francastel) e estudou Cinema. Foi secretária-bibliotecária do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, e secretária da Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular em Paris. 

Durante a década de 60 continuou a escrever sobre temas africanos e publicou Os Poetas e Contistas Africanos (S. Paulo, 1963); Poetas de S. Tomé e Príncipe, (Lisboa, 1963); Nova Soma de poesia do mundo negro "Présence Africaine nº 57" (Paris, 1966). (2)

Fez teatro em Paris, sob a direcção do pintor Benjamim Marques; e com encenação de Carlos César, fez a Barca de Gil Vicente. Colaborava em jornais e na revista Estudos Ultramarinos.
Depois da Revolução de Abril, iniciou com grande entusiasmo uma nova fase da sua vida, entregando-se à participação na construção da sua pátria recém-nascida, como Embaixadora de São Tomé e Príncipe. «Era a oportunidade de dar a conhecer aquelas ilhas que amo, pequenos pontos no Atlântico Sul para os grandes países da Europa, procurar dar a conhecer a cultura própria das suas gentes. Tenho orgulho em ter sido embaixadora de S. Tomé e Príncipe em dez países (dos quais Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega) e oito organizações, entre elas a UNESCO e a FAO».

Da sua vivência como embaixadora, destacou sempre com particular emoção os anos em que ocupou o lugar em Paris, por ter sido a cidade onde, no passado, adquirira a sua maior bagagem cultural e onde tinha deixado importantes relações de amizade.

Quando Mário Soares foi Presidente da República Portuguesa, ocupou o lugar de consultora para os assuntos africanos.

Desempenhou ainda outras funções, entre as quais, como membro do Conselho Consultivo da revista Atalaia, do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL).

Praia das Conchas - São Tomé e Príncipe
Uma vez terminada a sua militância de activa cidadania, pensou voltar à ilha do Príncipe onde continuava a ser proprietária da Roça Olímpia (uma grande extensão de coqueiros, cacaueiros e cafézeiros), mas «não tinha nem meios económicos, nem saúde para a explorar».

«Sempre tive consciência de que os valores portugueses nos tinham formado as raízes do pensamento, até no modo como reagimos à colonização. (...) Fez-se a descolonização e o meu país sentiu-se livre. Mas independência não foi nem é tudo. Há muito para fazer em toda a África, é necessário e urgente cuidar da língua portuguesa, para que se mantenha. Estou confiante de que outros virão para concretizar os sonhos da minha geração, talvez de outro modo porque os tempos exigem sempre desafios diferentes. A nossa utopia será substituída por outras utopias que darão sentido às lutas por um mundo melhor. Gosto de pensar que tantos anos de perseverança num ideal, que se concretizou ao longo da minha vida, é reconhecido aqui e lá no meu pequeno país»
Morreu aos 82 anos, a 10 de Março de 2007, em Lisboa, onde vivia, com um contínuo empenhamento na divulgação do nome e da cultura de seu país. As cerimónias fúnebres tiveram lugar na sede do Grande Oriente Lusitano (Maçonaria). 
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. notas
(1) Massacre de Batepá, campo de concentração de Fernão Dias ou massacre da trindade?. in: Téla Nón (acessado em 7.8.2016).
(2) A Associação C.E.I. foi fundada em 1943 e era a fusão de diversas Casas de Estudantes oriundos de todo o espaço do ultramar português. (...) Era uma iniciativa apadrinhada pelo regime. No chão de uma sala, havia um grande mapa com todas as colónias da autoria do Arquitecto Trofa Real, de Angola, que também frequentava a Casa dos Estudantes do Império. A Casa estava organizada por secções autónomas: de Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, e assim sucessivamente. Assegurava alojamento e tinha cantina própria. Era, também, lugar de convívio e de cultura: organizavam-se exposições, colóquios, recitais, bailes e actividades desportivas. As produções literárias dos associados eram publicadas na revista Mensagem, fundada por Carlos Ervedosa, Alfredo Margarido e Costa Andrade e constitui, hoje, uma obra de referência das primeiras produções de poetas e escritores da lusofonia. Em 1965, a PIDE/DGS selou as portas da Casa dos Estudantes do Império e o ficheiro foi apreendido para facilitar as identificações. Em 1993, a Câmara Municipal de Lisboa celebrou os cinquenta anos da fundação da Casa e publicou uma brochura alusiva ao acontecimento.
(3Manuela Margarido: uma poetisa lírica entre o cânone e a margem, por Inocência Mata. in: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 240-252, 2º sem. 2004. Disponível no link. (acessado em 7.8.2016).
(4) Biografia de Alfredo Margarido (acessado em 7.8.2016).
Obs.: mantemos a grafia original do português de Portugal.
:: Fonte: antifascistas da resistência (acessado em 7.8.2016).

Paira sobre mim a presença
de uma mão partida
e sempre uma ave parte:
nunca sei para onde.
- Maria Manuela Margarido, poema "XVI". no livro "Alto como o silêncio".
Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.


Maria Manuela Margarido - escritora e diplomata de São Tomé e Príncipe

OBRA POÉTICA DE MARIA MANUELA MARGARIDO

:: Alto como o silêncioMaria Manuela Margarido. Coleção Cancioneiro geral, vol. 20. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.
:: Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geraçãoMaria Manuela Margarido. [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.

Ensaio/antologia
:: Costa Alegre e Francisco José Tendeiro: um percurso poético santomense. Maria Manuela Margarido. Lisboa: Edição do Autor, 1963, 212p.

Antologia poética e biográfica (participação)
:: Poesia negra de expressão portuguesa. [organização José Francisco Tenreiro e Mário Pinto de Andrade; prefácio Manuel Ferreira]. Linda-a-Velha: África Editora, 1982. (1953).
:: Poetas de São Tomé e Príncipe. [organização e prefácio Alfredo Margarido]. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1963.
:: Presença do arquipélago de S. Tomé e Príncipe na moderna cultura portuguesa. [org. Amândio César]. São Tomé: Câmara Municipal, 1968.
:: No reino de Caliban II: Angola e São Tomé e Príncipe. [organização Manuel Ferreira]. Lisboa: Seara Nova, 1976; 2ª ed., Lisboa: Plátano Editora, 1988.
:: Antologias de Poesia da Casa do estudantes do Império (1951-1963): Angola – São Tomé e Príncipe. I volume, Lisboa: Edição ACEI (Associação Casa dos Estudantes do Império), 1994.
:: Antologia da poesia feminina dos PALOP (países africanos de língua oficial Portuguesa).. [organização e tradução Xosé Lois García]. Bilíngue Português/espanhol. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 1998. {autoras presentes por paísAngola: Alda Lara, Ermelinda Pereira Xavier, Amélia Veiga, Eugénia Neto, Maria Eugénia Lima, Manuela Abreu, Deolinda Rodrigues, Maria Celestina Fernandes, Paula Tavares, Lisa Castel, Maria Alexandre Dáskalos, Dorina, Isabel Ferreira, Ana de Santana, Maria Amélia Dalomba, Ana Branco | Cabo Verde: Dina Salústio, Arcília Barreto, Ana Júlia, Vera Duarte, Alzira Cabral, Lara Araujo, Paula Martins | Guiné-Bissau: Eunice Borges, Domingas Samy, Mariana Ribeiro, Maria Odete da Costa Semedo |  Moćambique: Glória de Sant'Ana, Clotilde Silva, Noémia de Sousa, Maria Manuela de Sousa Lobo, Josina Machel, Joana Nachaque, Maria Emília Roby, Rosalia Tembe | São Tomé e Príncipe: Maria Manuela Margarido, Alda do Espírito Santo, Ana Maria Deus Lima, Conceição Lima}.
:: Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau. [coordenação Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco].  Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.
:: Bendenxa: 25 Poemas de São Tomé e Príncipe para os 25 anos de Independência. [organização Inocência Mata]. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.
:: Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração. [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra, e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.
:: Polifonias insulares: Polifonias insulares: cultura e literatura de São Tomé e Príncipe. [organização Inocência Mata]. Lisboa: Edições Colibri, 2010.
:: Literaturas Insulares: Leituras e Escritas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe [edição e organização Margarida Calafate Ribeiro e Silvio Renato Jorge]. Série Textos, 92. Porto: Afrontamento, 2011.
:: Caderno de poesia negra de expressão portuguesa. [org. Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro; introd. Luís Kandjimbo].  Ed. facsimilada de Lisboa (1953). Lisboa: Silver Designers, imp. 2012. 
:: O feminino nas literaturas africanas em língua portuguesa. [organização Fabio Mario da Silva]. Lisboa: CLEPUL, 2014. Disponível no link. (acessado em 8.9.2021).
:: Antologias de Poesia da Casa de Estudantes do Império 1951-1963 - Angola e S. Tomé e Príncipe - volume I. UCCA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, 2014. Disponível no link. (acessado em 8.9.2021).

Em revistas e jornais
MARGARIDO, Maria Manuela. De Costa Alegre a Francisco José Tenreiro: um percurso poético santomense. In: Estudos ultramarinos: literatura e arte.- nº 3, 1959, p. 93-107.
MARGARIDO, Maria Manuela. Dois poemas quase religiosos. In: Colóquio, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1977. p. 58-59.



Tatiana Hackman - Cores africanas

POEMAS SELECIONADOS DE MARIA MANUELA MARGARIDO


Memória da Ilha do Príncipe
Mãe, tu pegavas charroco
nas águas das ribeiras
a caminho da praia.
Teus cabelos eram lemba-lembas
agora distantes e saudosas,
mas teu rosto escuro
desce sobre mim.
Teu rosto, liliácea
irrompendo entre o cacau,
perfumando com a sua sombra
o instante em que te descubro
no fundo das bocas graves.
Tua mão cor-de-laranja
oscila no céu de zinco
e fixa a saudade
com uns grandes olhos taciturnos.

(No sonho do Pico as mangas percorrem a órbita lenta
das orações dos ocás e todas as feiticeiras desertam
a caminho do mal, entre a doçura das palmas).

Na varanda de marapião
os veios da madeira guardam
a marca dos teus pés leves
e lentos e suaves e próximos.
E ambas nos lançamos
nas grandes flores de ébano
que crescem na água cálida
das vozes clarividentes
enchendo a nossa África
com sua mágica profecia.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.

§

Nas minhas ilhas
nada escapa à contabilidade dos espíritos
na claridade do dia como na opacidade das noites
espíritos e homens estão ligados
com a força das lianas.
Dêvé é pagar o que os espíritos pedem
com suas vozes silenciosas
insistentes
quando na noite despertam as vegetações
mais tensas e mais opulentas
cheias de gestos de palavras de desejos
Se os espíritos pedem comida e tabaco
com seus movimentos oscilantes
é para manter viva esta comunicação
necessária entre os que já partiram
e os que vão chegar,
mensageiros do além:
quando a criança nasce
traz na palma da mão o tangen
roteiro mais do que destino
- Maria Manuela Margarido, "Dois poemas quase religiosos". in: Colóquio, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, p.58.

§

1. Instalada na encruzilhada
a boneca aberta na madeira do ocá
cria a reversibilidade do tempo
permite o regresso dos que partiram

tão hesitantes que devem voltar
para nos dizer nas lentas horas nocturnas
os segredos mais ousados
os mais eternos
possivelmente os mais dramáticos
quando o homem está colocado
nas margem dos rios
perante a alvura cintilante
do ocosso.

2. Tanta doçura
pela vassoura de sete ramos de andala
e penas de galinha!
As sete bandeiras triangulares
desenham a crespura vegetal do mundo:
se os amigos abatem amorosamente o chicote
sobre o teu corpo
é para o abrirem à confidência eterna
dos que nos acompanham do outro lado
da vida e da morte.
- Maria Manuela Margarido, "Dois poemas quase religiosos". in: Colóquio, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, p.59.

§

Paisagem
Alto sonho, alto
como o coqueiro na borda do mar
com os seus frutos dourados e duros
como pedras oclusas
oscilando no ventre do tornado,
sulcando o céu com o seu penacho
doido.
No céu perpassa a angústia austera
da revolta
com suas garras suas ânsias suas certezas.
E uma figura de linhas agrestes
se apodera do tempo e da palavra
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração". [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra, e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.

§

Roça
A noite sangra
no mato,
ferida por uma aguda lança
de cólera.
A madrugada sangra
de outro modo:
é o sino da alvorada
que desperta o terreiro.
E o feito que começa
a destinar as tarefas
para mais um dia de trabalho.

A manhã sangra ainda:
salsas a bananeira
com um machim de prata;
capinas o mato
com um machim de raiva;
abres o coco
com um machim de esperança;
cortas o cacho de andim
corn um machim de certeza.

E à tarde regressas
a senzala;
a noite esculpe
os seus lábios frios
na tua pele
E sonhas na distância
uma vida mais livre,
que o teu gesto há-de realizar
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração". [organização Inocência Mata, António Andrade, Danilo Salvaterra, e Júlio Pires]. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.

§

Socopé
Os verdes longos da minha ilha
são agora a sombra do ocâ,
névoa da vida,
nos dorsos dobrados sob a carga
(copra, café ou cacau - tanto faz).
Ouço os passos no ritmo
calculado do socopé,
os pés-raizes-da-terra
enquanto a voz do coro
insiste na sua queixa
(queixa ou protesto - tanto faz).
Monótona se arrasta
até explodir
na alta ânsia de liberdade.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Antologias de Poesia da Casa do estudantes do Império (1951-1963): Angola – São Tomé e Príncipe". I volume, Lisboa: Edição ACEI (Associação Casa dos Estudantes do Império), 1994.

§

Vós que ocupais a nossa terra
E preciso não perder
de vista as crianças que brincam:
a cobra preta passeia fardada
à porta das nossas casas.
Derrubam as árvores fruta-pão
para que passemos fome
e vigiam as estradas
receando a fuga do cacau.
A tragédia já a conhecemos:
a cubata incendiada,
o telhado de andala flamejando
e o cheiro do fumo misturando-se
ao cheiro do andu
e ao cheiro da morte.
Nos nós conhecemos e sabemos,
tomamos chá do gabão,
arrancamos a casca do cajueiro.
E vós, apenas desbotadas
máscaras do homem,
apenas esvaziados fantasmas do homem?
Vós que ocupais a nossa terra?
- Maria Manuela Margarido, no livro "Poetas de São Tomé e Príncipe". [organização e prefácio Alfredo Margarido]. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1963.

§

I

Penetras secretamente
na realização aerodinâmica
dum mundo transparente
onde desembocam as cores
dos rostos amargos,
verdadeiramente necessários.
Coroado de espinhas,
és um oouriço circulando no ventre da noite,
procurando
a solução embaladora
na chuva de espelhos nocturnos.
E com ritmos férreos
és o sentido íntimo de enlaçar a tarde,
estendendo os músculos das recordações de infância
através da poeira que cresce nos jornais do dia,
ilustrando os milhares de problemas
das viagens dialogadas.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.

§

V

A ilha te fala
de rosas bravias
com pétalas
de abandono e medo.

No fundo da sombra
bebendo por conchas
de vermelha espuma
que mundos de gentes
por entre cortinas
espessas de dor.

Oh, a tarde clara
deste fim de Inverno!
Só com horas azuis
no fundo do casulo,
e agora a ilha,
a linha bravia das rosas
e a grande baba negra
e mortal das cobras.
- Maria Manuela Margarido, no livro "No reino de Caliban II: Angola e São Tomé e Príncipe". [organização Manuel Ferreira]. Lisboa: Seara Nova, 1976.

§

XXI 
No dia em que te foste embora,
longos navios de silêncio
encheram a casa,
tão grande, tão vasta!
Todos os gatos da vizinhança
comiam cogumelos
e varriam as cascatas dos cemitérios
com agudas lâminas de tédio.
No cais das horas
fiquei a esperar-te:
grande pedra de saudade
de olhos hirtos.
Paira sobre mim a presença
de uma mão pálida
e sempre uma ave parte:

nunca sei para onde.
- Maria Manuela Margarido, no livro "Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.

§

© Michel Rauscher

FORTUNA CRÍTICA DE MARIA MANUELA MARGARIDO

ALÓS, Anselmo Peres. Versos pós-coloniais: manifestações poéticas em São Tomé e Príncipe. Itinerários, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012. Disponível no link. (acessado em 8.8.2016).
ANDRADE, Mário de.. Antologia Temática de Poesia Africana 1. Na Noite Grávida de Punhais. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1976.
CASTAÑO, Joana; LIMA, Conceição. Bibliografia sobre Literatura São-Tomense em Português. in: Cátedra de Português - Língua Segunda e Estrangeira - Instituo Camões | Universidade Eduardo Mondlane Moçambique. Disponível no link. (acessado em 8.8.2016).
CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania. (org.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.
MARTINS, Izabel Cristina Oliveira. Pelas sendas do feminino: Diáspora e exílio nas literaturas africanas de língua portuguesa. (Tese Doutorado em Literatura e Interculturalidade). Universidade Estadual da Paraíba, UEPB, 2019. Disponível no link. (acessado em 1.9.2021).
MARTINS, Izabel Cristina Oliveira. Palavras: escrita feminina, lusofonia, Áfricas. In: XIII Conages - anais, 2018. Disponível no link. (acessado em 1.9.2021).
MATA, Inocência; ANDRADE, António; SALVATERRA, Danilo; PIRES, Júlio (org.). Alto como o silêncio & outros poemas – Testemunho de uma geração. Ourém: CoOi - Conde Oliveira, 2007.
MATA, Inocência. Emergência e existência de uma literatura - O caso santomense. Linda-a-Velha: ALAC, 1993.
MATA, Inocência. Manuela Margarido: uma poetisa lírica entre o cânone e a margem. In: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 240-252, 2º sem. 2004. Disponível no link. (acessado em 7.8.2016).
QUEIROZ, Amarino Oliveira de.. As inscrituras do verbo: dizibilidades performáticas da palavra poética africa. (Tese Doutorado em Letras). Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 2007. 
QUEIROZ, Amarino Oliveira de.. Cantares de São Tomé e Príncipe: a militante poesia de Maria Manuela Margarido e Alda Espírito Santo. In: Contexto, Vitória, n. 25, 2014. Disponível no link. (acessado em 8.8.2016).
SECCO,  Carmen Lucia Tindó. Três vozes Guerreira Femininas de São Tomé e  Príncipe: D. Alda, Manuela Margarido, Conceição Lima. In: MATA, Inocência/ SILVA,  Agnaldo Rodrigues da..  Trajectórias culturais e literária das ilhas do Equador: Estudos sobre São Tomé e Príncipe. Campinas: Pontes Editores, 2018. p. 281-299.

© Théo Lautrey  - São Tomé e Príncipe

MARIA MANUELA CONCEIÇÃO CARVALHO MARGARIDO 'DEPOIMENTO AUTOBIOGRÁFICO' 

"Sinto-me como a última geração do que se convencionou ser o império português. Há no meu sangue uma mistura de continentes, nos meus afectos uma mistura de gentes, na minha formação a cultura portuguesa, na minha poesia o resumo do pulsar da minha ilha.
Nasci na Roça Olímpia na ilha do Príncipe, S. Tomé e Príncipe, a 11 de Setembro de 1925. O meu pai, David Guedes de Carvalho, era de uma família judia do Porto, de nome Pinto de Carvalho. A minha mãe era mestiça, filha de angolana e indiano. O meu avô materno era descendente de uma família Moniz, de Goa, e trago bem marcada a fusão das minhas origens.
Comecei a viajar para Portugal muito nova. A primeira vez que aqui estive tinha apenas três anos e fui baptizada em Lisboa.

A minha mãe morreu cedo e dos meus irmãos, só a Maria Helena está viva. Um dos irmãos foi juiz na Madeira, Moçambique e Angola. Ficaram sobrinhos, um deles meu afilhado, também é advogado. No Princípe e em S. Tomé, tenho uma cunhada, sobrinhos e a minha prima Julieta do Espírito Santo, entre outros parentes menos próximos.

Apesar de ter passado grande parte da infância em S. Tomé e Princípe, não falo, fluentemente, o crioulo. Filha de professora e de juiz, havia na minha casa a pretensão de que os filhos fossem um exemplo no modo de se expressar. O professor Lindley Cintra costumava gabar a correcção do modo como me expressava na nossa língua.

Fiz a minha escolaridade num Colégio de franciscanas em Valença do Minho e, depois, no Sagrado Coração de Maria, em Lisboa. Por esse tempo, a madre-geral do Sagrado Coração era americana e tinha o hábito de organizar uma cerimónia no final do ano lectivo onde apresentava as classificações finais das alunas. Eu tive boas notas e vinte valores em comportamento, em delicadeza, em pontualidade. A madre, muito simpaticamente, exclamou: vinte e um valores! Eram os frutos da mentalização inculcada pelo meu pai que nos dizia que, como judias e mestiças, deveríamos estar melhor preparadas do que as outras raparigas para vencer na vida. Foram palavras que me marcaram para sempre.

Voltei para África nas vésperas da guerra. Todos nós, africanos, voltámos para casa.

Regressei de S. Tomé muito doente e fui para Valença do Minho repousar. Curei-me graças aos cuidados do Dr. Tapian, um médico muito considerado na época.

Casei em Lisboa e por aqui fiquei muitos anos.

Estive sempre atenta aos anseios dos africanos que aqui estudavam. Encontrávamo-nos na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, onde participava em actividades culturais, com residentes de todas as colónias. A Associação C.E.I. foi fundada em 1943 e era a fusão de diversas Casas de Estudantes oriundos de todo o espaço do ultramar português. (...) Era uma iniciativa apadrinhada pelo regime.

(...) Lembro-me de que, no chão de uma sala, havia um grande mapa com todas as colónias da autoria do Arquitecto Trofa Real, de Angola, que também frequentava a Casa.

(...) A Casa dos Estudantes do Império estava organizada por secções autónomas: de Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, e assim sucessivamente. Assegurava alojamento e tinha cantina própria. Era, também, lugar de convívio e de cultura: organizavam-se exposições, colóquios, recitais, bailes e actividades desportivas. As produções literárias dos associados eram publicadas na revista Mensagem, fundada por Carlos Ervedosa, Alfredo Margarido e Costa Andrade e constitui, hoje, uma obra de referência das primeiras produções de poetas e escritores da lusofonia.

Eu colaborava nos eventos culturais e aparecia por lá para conversar. Falávamos de livros, da situação política nacional e internacional e, naturalmente, das nossas terras.

Estiveram lá Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Chissano, Fernando Mourão, Narana Cossoró, Rui Romano, Francisco Tenreiro, meu amigo pessoal, entre outros de que não me lembro agora.

O Francisco Tenreiro foi muito importante para as gerações seguintes do arquipélago pela consciência étnica que imprimia nas suas poesias. Através dele seguimos de perto o pensamento e a obra de Senghor e de Aimé Césaire que, de certa forma, se tornaram nossos mentores do mesmo modo que foram referências históricas para a África negra. (...) Os meus poemas tornaram-se mais africanos.

Em Alto como o Silêncio (Lisboa, 1957), a minha poesia é a saudade dos sons, cheiros, luz e, também das angústias, dos medos e sonhos da minha ilha. As minhas composições falam dos homens, dos pássaros, dos cacaueiros, dos coqueiros e do mar que nos libertava e nos oprimia.

(...) Na década de sessenta começaram as perseguições e os exílios.

Em 1965, a PIDE/DGS selou as portas da Casa dos Estudantes do Império e o ficheiro foi apreendido para facilitar as identificações. Esse ficheiro está, agora, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em 1993, a Câmara Municipal de Lisboa celebrou os cinquenta anos da fundação da Casa e publicou uma brochura alusiva ao acontecimento.

Em 1962 fui presa, em Caxias, pela P.I.D.E. Eu tinha conhecido Salazar nas festas centenárias da cidade de Guimarães, era então aluna num colégio de Valença e, como tinha boa voz, fui escolhida para, com o Amândio César, darmos as boas vindas a Salazar. E ele beijou-me! Eu repetia para a P.I.D.E. que o Salazar me tinha beijado, que era amiga do Cardeal Patriarca, mas de nada me valeu. Afinal, nós queríamos tão somente a autonomia das colónias, inspirados no modelo francês. Ninguém nos ouviu.

A minha poesia tornava-se num grito de liberdade. Em Vós que ocupais a nossa terra (1963), denuncio "a cobra preta que passeia fardada", a polícia e os soldados do continente, tema que foi recorrente na minha poesia de contestação. É um poema muito dorido e que reflecte o sentir da geração esclarecida das ilhas nessa época.

O espartilho da censura e da opressão política empurrou-me para o exílio. Fui para Paris onde fiquei trinta anos. Fiz lá a minha formação académica. Diplomei-me em Ciências Religiosas na École Pratique des Hautes Études, onde fui aluna de Roland Barthes. Licenciei-me em Letras (Fui aluna de Francastel) e estudei Cinema. Fui secretária-bibliotecária do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, e secretária da Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular em Paris. Também fiz teatro, quando era dirigido pelo Benjamim Marques. Com o Carlos César fiz a Barca de Gil Vicente. Ia colaborando em jornais e na revista Estudos Ultramarinos.

(...) Continuei a escrever sobre temas africanos e publiquei Os Poetas e Contistas Africanos (S. Paulo, 1963); Poetas de S. Tomé e Príncipe, (Lisboa, 1963); Nova Soma de poesia do mundo negro "Présence Africaine nº 57" (Paris, 1966).

Depois da Revolução de Abril, iniciou-se uma nova fase na minha vida, talvez mais aliciante ou, espero, mais útil à minha pátria recém-nascida. Era a oportunidade de dar a conhecer aquelas ilhas que amo, pequenos pontos no Atlântico Sul para os grandes países da Europa, procurar dar a conhecer a cultura própria das suas gentes. Tenho orgulho em ter sido embaixadora de S. Tomé e Príncipe em dez países (dos quais Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega) e oito organizações (entre elas a UNESCO e a FAO).

Quando Mário Soares foi Presidente da República Portuguesa, ocupei o lugar de consultora para os assuntos africanos.

Enquanto fui embaixadora, foi com muita emoção que ocupei o lugar em Paris, a cidade onde cresci culturalmente. Para além dos assuntos relacionados com as minhas funções oficiais foram importantes as relações de amizade.

(...) Acabada a minha tarefa, pensei voltar à ilha do Príncipe onde ainda sou proprietária da Roça Olímpia, uma grande extensão de coqueiros, cacaueiros e cafézeiros que se espraia pela costa. Mas não tenho meios económicos nem saúde para a explorar. (...)

Sempre tive consciência de que os valores portugueses nos tinham formado as raízes do pensamento, até no modo como reagimos à colonização. (...)

Fez-se a descolonização e o meu país sentiu-se livre. Mas independência não foi nem é tudo. Há muito para fazer em toda a África, é necessário e urgente cuidar da língua portuguesa, para que se mantenha. Estou confiante de que outros virão para concretizar os sonhos da minha geração, talvez de outro modo porque os tempos exigem sempre desafios diferentes. A nossa utopia será substituída por outras utopias que darão sentido às lutas por um mundo melhor.


Gosto de pensar que tantos anos de perseverança num ideal, que se concretizou ao longo da minha vida, é reconhecido aqui e lá no meu pequeno país"
- Maria Manuela Conceição Carvalho Margarido "Depoimento autobiográfico". in: Revista de Estudos sobre a Mulher, Lisboa: Edições Colibri, n. 9, ano 2003 | reproduzido em 'Almariada blog' e 'Lusofonia poética'. (acessado em 8.8.2016). 




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Lúcida mergulho na água,
fria água da memória.
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** Página atualizada em 30.8.2021
* Página original AGOSTO/2016.




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