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Ferreira Gullar - entrevistado por Clarice Lispector

Ferreira Gullar - foto: Alaor Filho
De volta para o Brasil, o poeta Ferreira Gullar encontra os cariocas mais agitados, mais apressados, como se não soubessem o que vai acontecer no minuto seguinte.
Sou fervente admiradora de Ferreira Gullar, desde os tempos de A luta corporal até esse escandalosamente belíssimo Poema sujo. Nossos mútuos contatos se fizeram no tempo da primeira revista Senhor, para a qual nós dois escrevíamos. Mas eu tinha um pouco de medo dele, parecia-me que, com seu extraordinário poder verbal, eu seria aniquilada. Éramos um pouco distantes um do outro, e eu desconfiava que ele rejeitava a minha “literatura”. Mas o que fazer? Nada, senão continuar a gostar do que ele escrevia e escreve. Nesta entrevista, ele me assegurou que a desconfiança antiga era errada. Aleluia! Ele esteve em minha casa. Verifiquei que, praticamente, não mudou, tem o rosto como que talhado em madeira. Madeira sensível, madeira-de-lei. É pessoa extremamente simpática e com ar de bondade.

Clarice Lispector – Há quanto tempo você não vinha ao Brasil?
Ferreira Gullar – Há cinco anos e oito meses. Voltei no dia 10 de março deste ano.

Clarice Lispector – Que diferenças você notou entre o Rio de antes e o de agora?
Ferreira Gullar – O de hoje me parece mais frenético do que o de antes. É uma impressão um tanto subjetiva, de uma pessoa que apenas acaba de chegar. Sinto isso no comportamento das pessoas e no próprio aspecto da cidade, que parece mais um canteiro de obras. As pessoas estão mais agitadas, mais apressadas – como se não soubessem o que vai acontecer no minuto seguinte. Não há um ponto da cidade onde eu chegue e não veja buracos, terra e pedras, tudo amontoado e, às vezes, como se ali estivesse para sempre. Outra coisa que noto também é o distanciamento maior entre as classes sociais. Eu, que não tenho carro e que ando de ônibus, percebo que os usuários desses veículos são quase exclusivamente pessoas muito modestas. As outras devem estar no seu próprio carro. É uma sensação um pouco parecida com a que eu sentia em Lima, no Peru, onde o contraste social é enorme.

Clarice Lispector – O mesmo eu senti na Colômbia, Gullar, onde havia multimilionários e o resto era completamente abandonado por todos, inclusive pelo governo. Lá a miséria é maior do que no Brasil, porque, com o frio, tudo piora.
Ferreira Gullar – É claro, o clima do Brasil é uma das sortes nossas, Clarice.

Clarice Lispector – Você tem reencontrado aqui os seus grandes amigos?
Ferreira Gullar – Claro, e esta é uma das grandes alegrias da volta. Mas alguns desapareceram para sempre, como Leo Vitor, o Vianinha e Paulo Pontes.

Clarice Lispector – Você já foi ao Maranhão, depois que voltou?
Ferreira Gullar – Não, no momento não tenho condições para ver minha terra natal. Aqui me aguardavam problemas muito graves de família que exigem solução urgente e minha total dedicação. Mas, assim que eu puder, irei a São Luís para rever minha mãe, meus irmãos e minha cidade.

Clarice Lispector – Olhe, Gullar, no Poema sujo você me fez sentir uma criança diante de uma selva ou de um altíssimo monumento. E quando você falou em “noites envenenadas de jasmim” – pois bem, senti-me de volta a Recife, que é a minha terra.
Ferreira Gullar – É, suponho que o jasmim é algo muito forte. Assim o senti em Valparaíso, quando tomei um susto em relação ao intenso perfume dessa flor. Também então eu fui transportado de novo à minha cidade e infância. Em Lima, perto da casa onde morava, havia um muro, de onde se debruçava um jasmineiro.

Ferreira Gullar - foto: Alaor Filho
Clarice Lispector – Em que cidades você morou, durante seu tempo de exílio?
Ferreira Gullar – A maior parte do tempo na América Latina, mas estive também em Paris e Roma. Depois morei em Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires.

Clarice Lispector – Como é que você se sustentava nesses lugares?
Ferreira Gullar – Como a maior parte do tempo eu vivi sem a família, não necessitava de muito dinheiro para me manter. Escrevi para revistas brasileiras e dei aulas de português. Eventualmente, fazia palestras sobre arte e literatura brasileiras.

Clarice Lispector – Você encontrou aqui, na sua volta, facilidade de arranjar um bom emprego?
Ferreira Gullar – Durante todo o tempo de minha ausência, me mantive profissionalmente vinculado ao jornal O Estado de S. Paulo, onde eu fora redator desde 1962. Ao voltar, o diretor da sucursal do Estado, Villas Boas, que me recebeu no aeroporto, foi logo dizendo: “Como é? Amanhã você já estará na redação.” Bem, no dia seguinte não, mas na semana seguinte recomecei a trabalhar.

Clarice Lispector – Qual a sua função no Estadão?
Ferreira Gullar – Sou copidesque, isto é, reescrevo o que os outros escrevem.

Clarice Lispector – Marques Rebelo me disse uma vez que reescrever era mais simples que escrever. Quanto a mim, Gullar, eu discordo, pois minhas frases já vêm prontas. Em você, como se processa o ato criador? Você reescreve?
Ferreira Gullar – Não, só me sento para escrever quando sinto que a coisa está praticamente pronta dentro de mim. Depois que escrevo, faço, como você, eventualmente, algumas emendas, mas é só.

Clarice Lispector – Gullar, vou lhe fazer uma pergunta muito difícil que eu mesma não saberia como responder. É o seguinte: como nasce, em você, o poema, a palavra escrita?
Ferreira Gullar – Em mim o poema quase sempre é provocado por um choque emocional qualquer. Por exemplo, quando escrevi o poema sobre o Vietnã, a coisa se deu do seguinte modo: eu acordei, comecei a ler o jornal com suas tremendas notícias sobre a guerra. À porta de minha casa havia uma feira. Quando vi aquelas pessoas se dirigindo para as suas casas, com as cestas carregadas de verduras e frutas, deu-se o choque. Eu pensei: se fosse no Vietnã aquela senhora poderia encontrar a sua casa em chamas. Eu próprio havia marcado para sair de férias, um mês depois. Pensei: num país em guerra deve ser impossível planejar a vida, marcar férias, ir ao cinema, tudo pode ser desfeito de um momento para o outro. É a insegurança total. O choque emocional já por si provoca as palavras, eu em geral não me preocupo em escolhê-las, elas jorram.

Clarice Lispector – Glauber Rocha disse que o Poema sujo é o ponto culminante do concretismo. Qual é a sua opinião?
Ferreira Gullar – O Poema sujo não tem nada a ver com o concretismo. Eu mesmo nunca fiz concretismo, já que meus poemas, naquela época, destoavam da concepção ortodoxa dos paulistas que lançaram o movimento. As coisas que escrevia, então, davam continuidade à minha própria experiência, onde já havia a utilização dos elementos visuais. O Poema sujo incorpora toda a minha experiência formal e, no aspecto gráfico, se liga ao neoconcretismo. Conversando posteriormente com Glauber, soube que ele nessa frase, usando a expressão concretismo, incluía a poesia neoconcreta.

Clarice Lispector – Sua poesia passou por sucessivas etapas, verdadeiras rupturas com as fases anteriores, e há quem diga que seu último poema rompe com tudo o que você fez antes. Como explica isso?
Ferreira Gullar – As rupturas são aparentes, ou melhor, de superfície. Sempre fiz literatura como um modo de entender a vida e a mim mesmo. A vida muda, eu mudo, as formas de expressão refletem essas mudanças. O Poema sujo rompe com certa rigidez, a que a própria prática de escrever vai submetendo o escritor, este poema é mais livre, é sobretudo um reencontro comigo mesmo.

Clarice Lispector – O Poema sujo é um poema de exílio?
Ferreira Gullar – Não somente. Acredito que a condição de exilado penetra todo o poema e deve ter sido uma de suas motivações. Mas creio que o poema vai além disso – ele é uma tentativa de dizer tudo como se depois dele eu fosse morrer. O que ele significa exatamente, eu não sei.

Clarice Lispector – Você está escrevendo atualmente algum poema?
Ferreira Gullar – Não. Em 1975 escrevi um curto poema sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer. Mas é praticamente inédito pois só foi publicado uma vez numa revista especializada de arquitetura.

Clarice Lispector – Ah, se você soubesse de cor esse poema desconhecido, nós, que gostamos tanto de você e de Oscar, ficaríamos muito contentes...
Ferreira Gullar – Sei de cor, chama-se “Lições de arquitetura”:
No ombro do planeta (em Caracas)
Oscar depositou para sempre uma ave uma flor
ele não faz de pedra nossas casas
faz de asas.
No coração de Argel sofrida
fez aterrissar uma tarde uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(Com seu traço futuro Oscar nos ensina que o sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos com matéria dura
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura
Nos ensina a viver
no que ele transfigura
no açúcar da pedra
Ferreira Gullar
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve.

Clarice Lispector – É uma beleza, Gullar, digna de Oscar. E o que é que você gostaria de ter escrito e não escreveu?
Ferreira Gullar – Um poema capaz de abarcar toda a história sofrida e obscura da gente brasileira.


FERREIRA GULLAR – O poeta de Poema sujo e Muitas vozes foi um dos criadores do
neoconcretismo. Membro do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC) e um dos fundadores do Grupo Opinião. Em março de 1977 voltou do exílio. Nesta ocasião concedeu uma entrevista à Clarice Lispector para a revista Fatos & Fotos.

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Fonte: 
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.


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Página atualizada em 2.7.2016



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