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Henfil - entrevista: o baixinho sou eu

Henfil, humorista e cartunista (foto: Itaci/VEJA)
"O baixinho sou eu"

O pai dos dois Fradinhos crê no sucesso de uma linguagem universal: a do sadismo

Por Osvaldo Amorim

Guerreiro solitário, antes só do que mal acompanhado, ele desceu as montanhas, atravessou o Paraíba, chegou ao Rio, riu e venceu. Mas já havia sido tricampeão da charge num concurso em Minas Gerais, onde - há 28 anos - nasceu e foi educado no que chama "a religião do terror". Essa formação "mistura de puritanismo, tradicionalismo, patriarcalismo e matriarcalismo, aliada a uma terrível fobia por qualquer espécie de pecados, originais, veniais e mortais, me inoculou magníficas neuroses, responsáveis por toda a minha graça", diz Henrique de Souza Filho, o Henfil de "Urubu e Bacalhau" (no "Jornal dos Sports"), das charges políticas (no "Jornal do Brasil"), e sobretudo de "Os Fradinhos" (em "O Pasquim").
Primeira revista do Fradim, lançada em 1971
Entre alto e baixo, quase magro ("São 60 quilos proporcionalmente distribuídos em 1,70m"), jeito de adolescente ("Que bom"), alegre, mas caladão e caseiro *casado, tem um filho de um ano e meio), vê-lo e conhecê-lo faz lembrar muito pouco o feroz Baixinho - um dos fradinhos. Na verdade, Henfil se parece mais com o outro, o Cumprido ("Ê com u mesmo"), ingênuo, puro, indefeso diante das malvadezas do companheiro. "De fato, eu sou o Baixinho", diz Henfil. "Mas justifico o seu mau caráter em cada uma de suas ações."
Agora ele vai lançar os dois num "Almanaque dos Fradinhos", esta semana. O álbum, "primeiro de
uma longa - espero - série", inclui 135 historietas, desde a primeira, publicada, em 1964, na revista "Alterosa", de Belo Horizonte. "Eu acho que o livro vai pegar porque o Baixinho tem uma linguagem universal, é o sadismo." E, por isso, a próxima meta de Henfil é lançar a dupla no exterior. O autor, contudo, não tem nenhuma intenção de acompanhá-los em suas viagens. "Meu negócio é o Brasil." Ou o Rio de Janeiro: "Não há lugar mais moleque em todo país. É o único do mundo com quase 6 milhões de Baixinhos".

Osvaldo Amorim - Henfil, modéstia à parte, você se considera o maior humorista do Brasil?
Henfil - Não. Eu não sou o maior humorista do Brasil. E não falo por modéstia, não. O maior humorista brasileiro, o humorista mais completo do país, no meu entender, é o Millôr Fernandes, que está aí mesmo na revista. Ele é um cara que tá de antena ligada para tudo quanto é assunto. É um cosmopolita da informação. Ele bebe água em anúncio classificado, em televisão, em enciclopédia, em revistinha imbecil, em jornal. E, se estou aprendendo, não posso ser maior do que ele, que também leva sobre mim a vantagem do maior tempo de serviço. E tem o Ziraldo, o Jaguar, p Fortuna. Quer dizer, um pessoal pelo qual eu tenho o maior respeito, inclusive está na minha frente há muitos anos. Eu sou uma novidade. E novidade normalmente faz barulho.

Osvaldo Amorim - O criador do contestador Baixinho, segundo consta, tem um dos maiores salários do país. Afinal, que contestação é essa?
Henfil - Realmente, eu ganhava muito bem. Era um cara que tinha uma soma de salários muito boa. Mas isso me deu uma série de problemas. Um deles: excesso de segurança. Eu acho que para criar é preciso estar inseguro, estar a perigo o tempo todo. A insegurança, o "a perigo", é que faz com que o cara crie. A maioria dos meus personagens, eu os criei numa época em que estava a perigo, tentando abrir caminho profissionalmente. Depois, não criei nada novo. Quando vi que o negócio era esse, resolvi cortar o mal pela raiz. Deixei 90% dos lugares onde trabalhava. Cortei definitivamente os trabalhos em publicidade, que são justamente aqueles que rendem mais, passei a trabalhar só em três veículos que me interessam: "Jornal do Brasil", onde faço uma charge política para um público mais sofisticado, "O Pasquim", onde eu faço grossura para um público relativamente indefinido (não sei se é elite, porque todo mundo lê - inclusive tem uma penetração violenta no interior), e o "Jornal dos Sports", onde eu faço charge para o povão. Estou ganhando 90% menos por tática: para criar melhor. Não há maior perigo para um cara que cria do que a estabilidade.

Osvaldo Amorim - Henfil, o fradinho baixinho é a exteriorização de suas neuroses?
Henfil - Como habitante desde planeta industrial, obviamente eu sou neurótico. E o Baixinho é apenas a exteriorização dos meus impulsos. Descarrego nele as minhas reações impulsivas, inclusive aquelas de que muitas vezes eu discordo depois.

Osvaldo Amorim - Você já levou o Baixinho ao psicanalista?
Henfil - Levei ao reflexologista, o negócio do condicionamento. O pessoal lá da clínica brincava comigo: "Você vai perder a graça, pois seu humor é fruto de suas neuroses". Se isto for verdade, pensei, vou passar fome depois de curado. Mas aconteceu o inverso. Ao me libertar de uma série de tensões, de problemas, fiquei mais descontraído. O Baixinho ficou ainda mais baixinho e eu fiquei mais espontâneo.

Osvaldo Amorim - Se o Baixinho é você, quem é o Cumprido?
Henfil - O Baixinho sou eu. Hoje. O Cumprido também sou eu - numa versão antiga. Vamos dizer que eu andei e o Cumprido ficou para trás. É isso. O Cumprido é como eu era: um cara carola, infantil, ingênuo, aquele mineirão com aquela formação religiosa antiga, mórbida. A religião do terror, na qual tudo é pecado (o raio que está caindo é castigo de Deus). Do pecado mortal, venial e original. O Cumprido ficou nessa fase. Afora eu me identifico com o Baixinho, que é exatamente como eu sou hoje: toda uma negação desse meu passado. E de uma maneira muito agressiva, porque esse meu passado me incomoda bastante. Não acho nada gostoso ser um cara que já foi da cruzada eucarística, que quase foi congregado mariano. Minha mãe me formava para eu ser padre. Fui salvo pelos dominicanos, que me deram uma nova formação, uma nova visão da Igreja, de justiça, de liberdade, de alegria. A outra era uma visão tétrica. O Baixinho procura, através da agressão, do ridículo, me checar e ao meio em que eu vivo. Já vi: não era só eu o carola: meio mundo é carola, fariseu, hipócrita. Então eu passei a anarquizar, a agredir essa gente, como o Baixinho agride.

Osvaldo Amorim - O Baixinho é considerado o mau caráter da dupla dos fradinhos, o Henfil é mau caráter?
Henfil - Não. Eu não sou mau caráter. De jeito nenhum. Eu seria mau caráter se as ações do Baixinho, pelas quais sou responsável, fossem gratuitas. Mas não são. Ele está sempre provocado: pela frescura com a criança, o relacionamento que se tem com a criança, por exemplo. O pessoal acha o Baixinho um tremendo mau caráter porque ele está sempre agredindo as crianças, não é isso? O problema é que existe um negócio que me provoca: a paparicação das crianças até os dois, três anos. Elas são os reizinhos, as princesinhas da casa. Daí em diante o negócio começa a mudar: o cacete começa comer em cima, elas são mandadas para a  guerra do Vietnam. Quer dizer: eu sou a favor do adulto. Não quero essa discriminação de idades. Por isso agrido a carolice com as crianças, que é negócio de fariseu: paparica agora para ser bucha de ganhão depois. O Baixinho agride esse relacionamento falso, hipócrita. Procura escandalizar: chega e dá uma "cocada" numa criança. Aí todo mundo acha aquilo um sadismo tremendo. Mas se por acaso eu fizer o Baixinho mandar um rapaz para a guerra, ninguém acha graça. Meu negócio é esse, mostrar, com a ajuda do sadismo, um troço que, na base da poesia, não entra na cabeça de ninguém. Minha política é simples: poesia não, sadismo sim.

Osvaldo Amorim - Como foi que os Fradinhos nasceram?
Henfil - Nasceram graças à insistência de um cara lá de Minas, que praticamente me obrigou a criar os personagens para a revista "Alterosa", que ele dirigia. Quer dizer: ele queria que eu criasse um personagem. como na época, 1964, em convivia muito com os frades dominicanos, acabei vestindo os personagens com hábito deles. Curioso é que o Roberto Drumond, o jornalista, foi o único sujeito a acreditar em mim, numa época em que nem eu acreditava. Eu era um péssimo desenhista. Meus desenhos poderiam servir, no máximo, para um catálogo de esquizofrênicos, ou uma coleção de desenhos de débil mental. Eu pedia demissão todo o mês mas o Roberto não aceitava e ainda metia minha família no meio para me obrigar a continuar. Também não durou muito, pois quatro número e quatro meses depois a revista fechou.

Osvaldo Amorim - Você matou os Fradinhos e depois ressuscitou. Por que tentou acabar com eles e por que desistiu? As criaturas foram mais fortes do que o criador?
Henfil - Foi o seguinte: eu trabalho há três anos no "Jornal dos Sports", fazendo uma charge diária de quase uma página. Quer dizer: em três anos temos aí umas mil e tantas charges. Pois bem, até hoje ninguém escreveu ou falou que eu estava chato, que precisava modificar, renovar: o povo tem uma raiz cultural muito firme, muito bacana. Ele vai se identificando com o negócio e passa a ser mesmo até contra mudanças radicais. Não gosta de estar mudando todo dia. Sabe que até as galinhas põem menos ovos quando trocadas de galinheiro. Essas mudanças sucessivas acabam desestruturando, arrasando o cara. O povão é assim: nestes três anos de "Jornal dos Sports" nunca me pediu para eu mudar minhas galinhas de galinheiro. No "Pasquim" é diferente. Seus leitores não pertencem ao povão, mas da classe média alta para a burguesia: estudantes, profissionais liberais, enfim um pessoal com um nível cultural um pouquinho mais elevado e com uma formação cultural principalmente estrangeira. Um pessoa de moda, que muda de filósofo, de Marcuse, como quem muda de camisa. Que muda de músico, de cantor, como quem muda de cueca. Esse pessoal fica mudando, só mudando, porque não tem raiz nenhuma - devido à formação estrangeira vive de costas para o Brasil. O sonho desse pessoal todo é pegar uma bolsa de estudo para a Europa, é ir passear ou trabalhar nos Estados Unidos. Resultado, dezesseis números, isto é, quatro meses, depois de "Os Fradinhos" estrearem no "Pasquim", começaram a chegar as cartas de reclamação.

Osvaldo Amorim - O que pretendiam as cartas?
Henfil - Elas diziam: "É preciso mudar, é preciso renovar, esse negócio está chato, o Henfil está sem imaginação". Fiquei mordido com o negócio. Meu primeiro golpe foi retirar o Baixinho, que era o personagem de que eles mais gostavam. Foi minha primeira vingança. Quando o Baixinho saiu, comecei a receber montes de cartas indignadas. De protesto em protesto, eu que já tinha o negócio mais ou menos engatilhado, fiz o Baixinho voltar. A volta foi anunciada na primeira página. O pessoal ficou na maior alegria ao reencontrar o Baixinho nos primeiros quadrinhos. A alegria durou pouco: no penúltimo quadrinho, um caminhão atropelou e matou os dois fradinhos. Foi minha segunda vingança. Aí é que foi aquela indignação total: era nome feio em todas as cartas. Houve até um cara, de Vitória, que prometeu vir ao Rio para me dar uma bolacha. O fato é que eu atingi o que queria: mostrei pra todo mundo que por trás dos Fradinhos havia um criador que tudo sabia e tudo queria a respeito deles.


Osvaldo Amorim - Por que o Baixinho é muito mais popular que o Cumprido?
Henfil - É fácil: a gente vive num clima mundial de sadismo. Em cada esquina o sujeito está levando cacete (não confundir com cassetete) na cabeça. Então nada mais óbvio que o pessoal se identifique com o personagem sádico ou por projeção ou por sublimação. Mas é bom que se diga que a maioria dos leitores é formada por Cumpridos, por tremendos Cumpridos. O escândalo que o Baixinho produz neles é que me leva a ter essa ideia. Com um detalhe: o maior desejo deles é serem iguais ao Baixinho.

Osvaldo Amorim - Os Fradinhos são o Henfil, você já disse. Mas fisicamente eles se inspiraram em alguém?
Henfil - Sim. Em dois frades dominicanos, de quem eu gostava muito. Um era gordinho, baixinho, moleque - o frei Rato; o outro, cumprido, magrelo e muito místico - o frei Patrício.

Osvaldo Amorim - Você é mineiro e foi criado no melhor estilo TFM (Tradicional Família Mineira): muita religião, tabus e preconceitos. Qual a influência disso no seu humor?
Henfil - Eu sou um reflexo da minha criação. Inclusive agradeço muito a minha mãe, a minha família, à TFM pelo que eu posso produzir hoje. O negócio lá em casa era terrível: era comemorar dia de santo por dia de santo. Quer dizer, todo dia, era aquela chamada religião do terror: eu tinha um medo danado do fogo do inferno. Em dia de tempestade a gente queimava palha benta, entrava debaixo da mesa com medo do castigo de Deus em cima da cidade. Depois da confissão voltava para casa rezando uma estranha objurgatória - "Deus pra cá, capeta pra lá" - acompanhada de um movimento com a mão direita. Quando eu dizia "Deus pra cá", levava a mão ao peito. Quando dizia "Capeta pra lá", a retirava, num gesto de expulsão. Mas, durante a caminhada, acabava havendo um desencontro entre as palavras e os gestos. E quando eu percebia, entrava em pânico e voltava correndo para confessar de novo, pois pra mim era como se eu tivesse dito que estava com o capeta. A repressão que eu sofria por causa disso obviamente desabrochou o masoquismo: foi criado o masoquista Henfil. E, como todo mundo sabe, masoquismo e sadismo são a mesma coisa. Logicamente isso influenciou todo o meu trabalho. Não nego isso em nenhum momento e até faço propaganda do tipo de enredo que os Fradinhos vivem. Tá no Cumprido neste esquema antigo e tá no Baixinho o meu protesto, a minha agressão a esse tipo de vida que eu levava. Eu agradeço a esse tipo de educação que eu tive e que já superei. O negócio é que eu assimilei e consegui dar um tratamento comercial às minhas neuroses. Hoje vendo as minhas neuroses nas páginas do "Pasquim". Mas, olhando bem, a posição crítica em que me coloco me dá certo crédito de sadio. Sou crítico, logo sou sadio, portanto não sou tão neurótico assim.

Osvaldo Amorim - O humorista deve fazer o humor pelo humor ou esse humor deve ter um fim? (Nesse caso, que fim?)
Henfil - Acho bacana responder essa pergunta. Justamente porque não sou um cara gratuito. Acho que o meu trabalho tem um fim. A época do humor pelo humor já passou. Hoje o humor é jornalístico, tem de ser engajado, de ser quente. A fase da comunicação pura e simples acabou. O humor agora é de identificação. Procuro dar o meu recado através do humor. Humor pelo humor é sofisticação, é frescura. E nesta eu não tou: meu negócio é pé na cara. E levo o humorismo a sério. Faço a maior preparação para detonar as minhas bombas de humor. Reservo horário, ambiente, me concentro, expulso criança de perto, dou tiro em vizinho com o rádio ligado alto - o diabo. Quer dizer: para detonar. Mas mantenho sempre a preocupação de que todos me entendam. Evito erudição, intelectualismo. Não sou artista plástico: meu negócio é me fazer entender da maneira mais fácil, rápida e direta possível.

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:: Entrevista publicada originalmente na revista Veja, 28 de abril de 1971 - Edição 138.


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Página atualizada em 6.4.2016.



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