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Astrid Cabral - a sagração da memória

Astrid Cabral - foto (...)


Astrid Cabral
Félix de Sousa
 (poeta, contista, tradutora e professora), nasceu
no dia 25 de setembro de 1936, em Manaus-AM, onde fez os primeiros estudos e integrou o movimento renovador Clube da Madrugada. Adolescente ainda transferiu-se para o Rio de Janeiro, diplomando-se em Letras Neolatinas na atual UFRJ, e mais tarde como professora de inglês pelo IBEU. Lecionou língua e literatura no ensino médio e na Universidade de Brasília, onde integrou a primeira turma de docentes saindo em 1965 em conseqüência do golpe militar. Em 1968 ingressou por concurso no Itamaraty, tendo servido como Oficial de Chancelaria em Brasília, Beirute, Rio e Chicago. Com a anistia, em 1988 foi reintegrada à UnB. Ao longo de sua vida profissional desempenhou os mais variados trabalhos, fora e dentro da área cultural. Detentora de importantes prêmios, participa de numerosas antologias no Brasil e no exterior. Colabora com assiduidade em jornais e revistas especializadas. Viúva do poeta Afonso Félix de Sousa, é mãe de cinco filhos.

Em 1979 publicou “Ponto de Cruz” com grande recepção crítica. A partir de então, vem construindo uma sólida obra poética, onde uma lírica precisa e versos cuidadosamente dosados investigam ora a interioridade, ora as imprevisibilidades do mundo, ora os pequenos sustos de existir. A inexorabilidade da morte e a celeridade da vida também estão presentes.
:: Fonte: jornal de poesia (acessado em 11.01.2016).



PRÊMIOS DE ASTRID CABRAL
1987 - Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, com a obra "Lição de Alice";
1998 - Prêmio Nacional de Poesia Helena Kolody, da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, com a obra "Intramuros";
2004 - Prêmio Nacional de Poesia, da Academia Brasileira de Letras, com a obra "Rasos d`água";
2012Prêmio Troféu Rio de Personalidade Cultural 2012, da UBE-RJ/ União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro.


Astrid Cabral - foto: Selmo Vasconcellos

OBRA DE ASTRID CABRAL

Poesia
:: Ponto de cruz (poesia). Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1979. 
:: Torna-viagem (poesia). Recife: Editora Pirata, 1981, 84p. 
:: Lição de Alice (poesia).. [Coleção Poesia sempre, 7]. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, 112p.  
:: Visgo da terra (poesia). Manaus: Edições Puxirum, 1986; 3ª ed., revista pela autora. [organização Tenório Teles].  Manaus: Valer Editora; Governo do Estado do Amazonas; Edua; UniNorte, 2005. 128p. 
:: Rês desgarrada (poesia). Brasília: Editora Thesaurus, 1994. 
:: De déu em déu (poesia reunida). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, 422p.
:: Intramuros (poesia). Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, 1998; 2ª ed., revista pela autora.  Manaus: Valer Editora, 2011, 114p. 
:: Rasos d’água (poesia). Manaus: Editora Valer; Governo do Amazonas,2003.
:: Jaula (poesia). Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2006, 78p.
:: Ante-sala (poesia). Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2007, 88p.
:: Antologia pessoal (poesia). Brasília: Thesaurus Editora, 2008, 152p.
:: 50 Poemas escolhidos pelo autor (poesia).. [Coleção Cinquenta poemas escolhidos pelo autor, v. 28]. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2008, 116p.
:: Palavra na berlinda. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011, 60p.
:: Infância em franjas. Rio de Janeiro: editora KD, 2014, 64p.

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Conto

:: Alameda (contos). Rio de Janeiro: Editora GRD, 1963. 

Infanto-juvenil
:: Zé Pirulito. Rio de Janeiro: Editora Agir; INL, 1982.

Antologia (participação)
:: A poesia Amazonense no século XX: antologia. [organização e seleção Heliodoro Balbi]. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1998, 233p.
:: Cem anos de poesia: um panorama da poesia brasileira no século XX. [organização Claufe Rodrigues e Alexandra maria]. 2 vol's., Rio de Janeiro: Overso Edições, 2001.
:: Fourteen female voices from Brazil: interviews and work. [edited by Elzbieta Szoka; introduction by Jean Franco]Austin, Texas: Host Publications, INC., 2003. {included in this anthology: Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral, Marly de Oliveira, Jandira Martini, Leilah Assumpção, Maria Adelaide Amaral, Myriam Campello, Sonia Coutinho, Esmerelda Ribeiro, Miriam Alves, Conceição Evaristo e Renata Pallottini}.  

Obra traduzida
:: Les doigts dans l'eau. [tradução Fontanay Le Conte]. Collection les fruits étranges. France: Chez les arêtes, 2008.
:: Cage. [tradução Alexis Levitin].  Austin/Texas: Host Publications Inc., 2008, 91p.



TRADUÇÕES
THOREAU, Henry David. Walden, ou a vida nos bosques. [tradução Astrid Cabral]. São Paulo: Global editora, 1984. 
THOREAU, Henry David. A desobediência civil[tradução Astrid Cabral]. São Paulo: Global editora, 1984. 


ENTREVISTAS
AGUIAR, Cláudio. Astrid Cabral [entrevista]. in: PEN Clube do Brasil. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
VASCONCELLOS, Selmo. Astrid Cabral. [entrevista]. in: Selmo Vasconcellos, 03 de setembro de 2009. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).


A palavra na berlinda
As palavras se contaminam
de cada um de nós.
Bebem nosso único sangue.
Engravidam das vivências
de específicos destinos.
Quando alçadas em abstrações
prévias estagiaram no cerne
de nossa própria carne.
Por isso descaminhos se traçam
e se cavam abismos e abismos
entre bocas e ouvidos.
O que se expressa e vigora
em aparente senha comum
não cintila a sua aura
e de nós o essencial ignora.
- Astrid Cabral, em "Palavra na berlinda". Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011.



  • Astrid Cabral - poeta, contista, tradutora e professora

POEMAS ESCOLHIDOS DE ASTRUD CABRAL

Ante- sala
Este o mundo
de mistérios
refratários
a microscópios.
Este o mundo
de muralhas
inexpugnáveis
a máquinas.
Aqui a noite
opaca parca
de estrelas.
Aqui os olhos embrulhados
em dobras e sombras.
Esta a ante-sala:
áspera espera
de outra era.
- Astrid Cabral, em "Ante-sala". Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2007, p. 13.


Áureos tempos
Áureos tempos aqueles
quando na manhãzinha goiaba
colhíamos no cerrado gabirobas
ainda vestidas de orvalho.
Pés e patas competiam no capim
pródigo de carrapichos.
Gestos elásticos ultra-rápidos
assustávamos insetos e aves.
Um séquito de suaves súditos
nos seguia em semi-adoração
nós, os príncipes daquele feudo.
Depois, o asfalto rasgou o campo.
Cogumelos de concreto brotaram.
Cresceram as crianças e a cidade.
Anãs ficaram as árvores aos pés
de edifícios colossais. Sumiram
pássaros gabirobas araçás.
Fim de passeios e piqueniques.
Só ficou a fome funda das frutas
no vão sem remissão das bocas .
- Astrid Cabral, em "Rasos d'água". Manaus: Secretaria de Cultura de Amazonas; Valer, 2003, p. 45.


Boca
livre trânsito
de vocábulos e aves
fruições e frutos.
Boca
sede de gozo e poder
pombos lhe pousam
entre os dentes ávidos
pêssegos se imolam
cindindo-lhe os lábios.
Boca
sítio de martírio
se a contragosto
de fome se fecha
ou em pânico se cala
atrás de uma mordaça. 
- Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p. 17. 


Busca
Minha infância é hoje
aquele peixe de prata
que me escorregou da mão
como se fosse sabão.
     Mergulho no antigo rio
     atrás do peixe vadio
     – Quem viu? Quem viu?
Minha infância é hoje
aquele papagaio fujão
no ar, sua muda canção.
     Subo nos galhos da goiabeira
     atrás do falaz papagaio
     – me segura, me segura
     senão eu caio.
- Astrid Cabral, em "Visgo da terra". Edições Puxirum: Manaus, 1986, p. 78.


Astrid Cabral - foto (...)
Canção trôpega
A vida não tem volta.
Sobra o séquito de sombras
e uma canção trôpega
atravessada no peito:
espada, rubra espada
cravada de mau jeito.
Aqueles rapazes esbeltos
ai, estrangularam-se
nas gravatas da rotina.
Ai, crucificaram-se
no lenho das doenças.
Aqueles rapazes tão belos
não fazem mais acrobacias
nem discursos inflamados
Arrastam chinelos e redes
ruminam silêncio amargo.
Um dia fui bela, filha,
digo a surpreendê-la.
Devo provar com retratos
o que tem ar de mentira. 
- Astrid Cabral, em "Rasos d'água". Manaus: Secretaria de Cultura de Amazonas; Valer, 2003, p. 35.


Careiro
Aquela terra, muitos dizem, permanece
em que pese a fúria da corrente corroendo-lhe
o corpo de barro ao sol.
Ali, o reino de avós e pacíficos
bichos, bois de cordiais apelidos
cavalos já mansos sob os selins
pastando em matagais de carrapichos.
Terra de grelos e de cambuquiras
bambus, cipós, ervas-de-passarinhos
ovos de onde explodem cascos e penas
cajus disputados ao bico de aves
luas ceifando piranhas nas águas
rolos de cobras quais fumos de corda.
Cavalgando barrancas derrocadas
o perfume dos pendões de angélicas
rosas cambraias e manacás no sereno
aporta em mim varando o rude tempo.
Ali o reino que meu sonho tece.
Aquela terra, também digo, permanece.
- Astrid Cabral, do livro " Visgo da terra", em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 175.


Cenário arcaico
O mundo? Aquele quintal
pulando cercas e ruas
até mergulhar raízes
no raso rio vizinho.
Ah verde dossel de folhas
periquitos papagaios
mil sombras à flor da terra
retalhos de azul e sol!
Chuvas de frutas maduras
pedras tingidas de limo
troncos de pardas orelhas.
Era uma vez a mangueira
encantada, tinha ancas
lombo e crinas de cavalo.
Manga espada manga rosa
manga jasmim manga sapo.
Mosquitos zumbiam zin
zin ávidos na carniça
das ácidas graviolas.
Gravetos e folhas secas
fuçavam o chão nos turvos
riachos das enxurradas.
Entre galinhas de Angola
a ciscarem grãos de milho
um jabuti tartamudo
arrastava-se no exílio.
Ossos de animais brotavam
da terra recém-lavada:
sinal da morte nascendo
em irônica semente.
(Meus olhos ciscando o mundo.)
- Astrid Cabral, do livro " Visgo da terra", em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 162.


Cercas
 “Good fences make good neighbours”

No meu país, as cercas
são visíveis e inúteis.
Na infância, rouba-se fruta
do quintal alheio, as goiabas
do vizinho mais gostosas.
Após a colheita das chuvas
põe-se alguidar2
com mangas
em cima dos muros baixos
dádiva à gula de quem passar.
Embrulhos de café e açúcar
vasilhas de ovos e azeitonas
cruzam as cercas pro formas
em vaivéns fraternos.
Neste país de jardins abertos
e altos muros de reservas
as cercas estão fincadas
no coração dos homens.
- Astrid Cabral, em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 336. 


De mãos atadas
Enquanto com as mãos intatas
Garatujo este poema inútil
Assalta-me a cifra macabra:
Em mil novecentos e oitenta e seis
Oitocentos mil operários brasileiros
Tiveram as mãos mutiladas.
Escrever pra quê se a palavra
Não é espada que transpasse
O coração de pedra do poder
Há séculos de mãos cruzadas?
- Astrid Cabral, em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 343.


Filosofia de bolso
O mistério é grande
mas a gente vai
e quebra a cabeça.
A água é funda
mas a gente dá
com os burros n'água.
A vida é dura
mas a gente dá murro
em ponto de faca.
A fome é feia
mas a gente tira
leite das pedras.
Tudo pra num triz
num piscar de olhos
vestir pijama de madeira
e ir come capim pela raiz.
 - Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p. 43.


Iniciação
Infalível, dia após dia
mergulhas no mar das trevas
decúbito na cama esquife
entre lençóis mortalha.
O cansaço te prostra
e arrasta pelas sendas
abissais do nada.
Em parêntesis de tempo
sonhos irrompem tênues
devolvendo-te do mundo
quebra-cabeças e farelos.
Firme instala-se o hábito
da ausência e da renúncia:
vais ensaiando a morte,
última exigência do corpo,
em teu colchão de espuma
- Astrid Cabral, do livro "Ponto de cruz", em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 48.


Metamorfose
Ainda nos chamam
pelos mesmos nomes.
Acaso seremos os mesmos
ou é a cegueira alheia?
Éramos formosos
afortunados donos
de sesmarias de sonhos.
Tínhamos frescor de frondes
ímpetos de fontes e fogos
destemor de duelos, dúvidas
que não machucavam quase.
Éramos potros selvagens
farejando precipícios
pelas pastagens do mundo.

No curral ainda nos sobra
a noção do tesouro perdido
e essa ração de memória
é a esmola que nos cabe.
- Astrid Cabral, em "Rasos d'água". Manaus: Secretaria de Cultura de Amazonas; Valer, 2003, p. 37.


Navio-esquife
Correm as águas do rio
Corre veloz o navio
Entre as faces do vento
Entre as faces do tempo
Corremos nós.
Ao abraço de que foz
Viajam as águas
Viajamos nós?
Árvores nas margens
Céleres passam
Sob remansos de céu
Onde se apaga o sol.
Eis que longe o porto acende seu colar de luzes:
Grinalda para os mortos
Que no navio-esquife
Ante-somos todos.
- Astrid Cabral, em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 52.


No silêncio
No silêncio êncioêncio...
ouve-se o rio de sangue
correndo o leito do corpo
o surdo arfar da madeira
nos poros dos móveis
nos veios das árvores.
No silêncio êncioêncio...
cantam oceanos e rios
em romarias pagãs
sopram anônimos ventos
varando o ventre das manhãs
tocam estrelas suas música
em teclas ao léu do céu
a vida inscrito ruído 
nas faixas do infinito.
No silêncio não há silêncio. 
- Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p.  21.


O anjo bom
Entre montanhas de roupas
e colinas-pilhas de louça
afogava-se nas águas
de pias, tanques, baldes
e mágoas represadas.
E perseguia a poeira
e a fome num desvelo
que era novelo sem fim
desenrolando-lhe os dias.
Onipresente, mas tão muda
que se fazia invisível,
era o anjo bom do lar
– exilada sem asas –
no chão do seu inferno.
- Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p. 38.


Astrid Cabral - foto (...)
Resíduos
Varre-se a alma
mas entre as gretas
sempre resta
estática poeira.

Jamais devolverás, memória,
a juventude em carne e osso.
O que nos sobra além de fotos
é carne mumificada sem sangue
sem esperança e sem alvoroço.

Dias de sol
e fomos espigas.
Hoje não somos
mais que sabugos.
Onde os grãos?
- Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p.  90.


Rio do tempo
Rio do tempo, por tuas águas
de silêncio é que navego
a montante buscando
a inatingível nascente
de onde jorra o ser.
A refluir entre correntes
de pretérita amargura
bendigo o presente alivia
e em remansos de findo gozo
chora ilhas de céus submersos.
Nessa viagem de regresso
nostalgia movendo velas
de punhos atados ante
o destino cumprido, reluto
e grita contra a vertigem

que me conduz ao abismo.
- Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p. 75. 


Selvagem repasto
Leão voraz o tempo
devora as horas
contumaz pertinaz.
Com ventre de avestruz
ele ingere e digere
fétidos e bons bocados
em sua goela de lobo
vou sendo engolida
deglutida em ávidos
nhacotes nhacotes.
Nas suas mandíbulas
mais dia menos dia
preso como por fíbulas
estará entre destroços
o pó destes meus ossos.
- Astrid Cabral, em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 69.


Sendas de rugas
A insônia a e o sono

habitam o rosto dessas mulheres

de sorrisos maculados de metais.

Elas caminham para a morte

pelas sendas de suas rugas

e cobrem os seios lassos

não de tecidos grossos

mas de restos de sonhos.

Da memória de outros dias

elas se nutrem e não
das carnes que temperam
com cebolas.
 - Astrid Cabral, em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 80.


Tragediazinha
Cansou-se da eterna espera
o morno amor chove-não-molha
e retirou seu cavalinho
da chuva peneirando lá fora.
Casou-se com a igreja
o fogão a máquina de costura
e recheou os frios dias
de tríduos e novenas
biscoitos bolos rendas.
Mas na calada da noite
no recato escuro
ainda embala o velho sonho
de um amor absoluto.
- Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p. 39.


Transitória
Enquanto
    folhas folham
    árvores arvoram
    e o dia irradia
sigo
    figo
       no ramo da tarde.
Até que a noite anoiteça
o fruto apodreça
e na terra em fome
         tombe
sem alarde.
- Astrid Cabral, em "Ante-sala". Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2007,  p. 21.


Viagem à revelia 
Se por enquanto deslizo
pelas espáduas do rio
e mal lhe distingo as margens
se tudo agora ignoro
sobre a fonte ou mesmo a foz
salvo a aresta da pergunta
que o peito me dilacera
se por enquanto me visto
com lantejoulas de sol
ou às vezes me descubro
órfã no luto da noite
uma lição aprendi:
devo apascentar as ondas
e louvar a companhia
que me faz a própria sombra
na viagem à revelia.
- Astrid Cabral, em "Rasos d'água". Manaus: Secretaria de Cultura de Amazonas; Valer, 2003,  p. 99.


I
Em Tiro o mar é morno
e entre conchas e ondas
moram mates mosaicos
de um tempo morto.
Garotos faturam a História
cunhando moedas falsas
entre antigas crateras
de vidro cor de cobalto.
Colunas e capitéis
decapitados de tronos
de frágil glória
repousam reles na relva.
Sarcófagos estuprados
embalam fantasmas
nos sinistros berços.
Folhas de acanto
fósseis florescem
em verde vivo solo.
Em Tiro o mar é eterno:
fenício e romano
mas também anônimo
de um tempo antes
e depois de Cristo
aquém e além do homem
e seus impérios. 
- Astrid Cabral, do livro "Torna-viagem", em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 89.


V
O mar me presenteia
(mero acaso ou desígnio?)
com a alça de um vaso
constelada de crustáceos.
De que longínquo jarro
de azeite ou vinho tinto?
Na palma antes parece
estranha orelha de barro
escancarada ao marulho
do mar a arfar eterno.
Em que recanto da terra
restará o corpo amputado?
Que bojo de náufrago navio
ocultará a restante parte?
Atrás de que vetusta vitrine
exibir-se-á o ex-ser total?
Oh mundo indevassável enigma
mar de abstrações e extravios.
Quando enfim adivinharemos
o todo de que somos fragmento?
- Astrid Cabral, do livro "Torna-viagem", em "De déu em déu". Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 93.



Astrid Cabral - foto: Selmo Vasconcellos


FORTUNA CRÍTICA DE ASTRID CABRAL

ASTRID Cabral. Discurso de posse no P.E.N Clube do Brasil. Saudação de Lélia Coelho Frota. in: jornal de poesia. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
ATROCH, Daniel Cavalcanti; ZUCOLO, N. P.. Traços existenciais e soteriológicos do conto 'A orquídea da exposição' de Astrid Cabral. Somanlu (UFAM), v. 9, p. 87-93, 2009.
AZEVEDO, Kenedi Santos. A cidade nos poemas de Astrid Cabral e Al Berto. In: III Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário, 2012, Manaus. Anais do III Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário: Amazônia: Literatura e Cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. v. 1. p. 207-212.
BARBOSA FILHO, Hildeberto. A enunciação poética essencial. in: jornal de poesia. Disponível no link. (acessado em 12.01.2016).
CLUBE da Madrugada - Manaus. in: KRUGER, Marcos Aleixo Frederico. Verbete publicado originalmente no Estado do Amazonas em Verbetes. Organizado por Santos, f.j. & SAMPAIO, P.M. 2002,P.49 e 50./ Portal Amazonia. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
Astrid Cabral - foto: Fernando Lemos
DANTAS, Maria Socorro da Silva; ANDREATTA, Elaine Pereira. Sophia Andresen e Astrid Cabral no intervalo da vida e da morte.. Manaus-Amazonas: UEA- Edições, 2012.
ENGRÁCIO, Arthur (org.). Poetas e prosadores contemporâneos do Amazonas: súmula biobibliográfica. Manaus: Universidade do Amazonas,  1994, 181p.
FAGUNDES, Igor. Do espanto às indagações: a zoopoética de Astrid Cabral/in: Poeta da vez. in: Panorama da Palavra. Disponível no link. (acessado em 12.01.2016).
FERREIRA, Izacyl Guimarães. Uma lição de Astrid Cabral. in: jornal de poesia. Disponível no link. (acessado em 12.01.2016).
GRAÇA, Antônio Paulo. A poesia de Astrid Cabral. in: jornal de poesia. Disponível no link. (acessado em 12.01.2016).
GUEDELHA, Carlos Antônio Magalhães. Manaus de águas passadas - a recriação poética de Manaus em Visgo da Terra, de Astrid Cabral. (Dissertação Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia). Universidade Federal do Amazonas, UFAM, 2001.
GUEDELHA, Carlos Antônio Magalhães. Astrid Cabral, entre o pão e a palavra. Textos JC. Manaus: Jornal do Commercio, 03 de abril de 2000.
GUEDELHA, Carlos Antônio Magalhães; SAMPAIO, Enderson de Souza. Eros e tânatos em o instante da açucena, de Astrid Cabral. Revista Decifrar, v. 01, p. 185-198, 2014. Disponível no link. (acessado em 10.01.2016).
LEÃO, Allison (org.). Amazônia: literatura e cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
OLIVEIRA, Irenísia Torres de.. O cotidiano em três poemas de Astrid Cabral. Revista do Livro, Rio de Janeiro, p. 99 - 110.
LIMA, Eliane F.C.. Astrid Cabral e a poética do espanto. in: Literatura em Vida, 26 de novembro de 2011. Disponível no link. (acessado em 10.01.2016).
LIMA, Eliane F.C.. Vários olhares sobre a velhice - Palavras sobre palavras in: Literatura em Vida, 06 de novembro de 2010. Disponível no link. (acessado em 10.01.2016).
LIMA, Eliane F.C.. "Coisa de mulher" - Literatura, já 16/Palavras sobre palavras 18. in: Literatura em Vida,  27 de junho de 2010. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
LIMA, Pollyanna Furtado. Lírica de sagração em Lição de Alice, de Astrid Cabral. in: Revista Estação Literária, Londrina, Volume 13, p. 161-175, jan. 2015. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
PEIXOTO, Lina Tâmega. Palavra e silêncio na poesia de Astrid Cabral. in: Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 91-100, jul./dez. 2013. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
SAMPAIO, Enderson de Souza; SILVEIRA, Ederson Luís. Astrid Cabral e a literatura amazonense: sobre escritas e exterioridades nas poéticas da memória. in: revista eletrônica interdisciplinar Univar, v. 1, nº 13, 2015. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
SANTOS, Lucinéia Rodrigues dos.. Astrid Cabral: poesia e cartografias da memória. (Dissertação Mestrado em Letras). Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, 2009. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
SANTOS, Lucinéia Rodrigues dos; CRUZ, Antonio Donizeti da.. O fazer poético em Astrid Cabral, Neide Archanjo e Olga Savary. Anais da ... Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários, v. 10, p. 442-447, 2007.
SANTOS, Lucinéia Rodrigues dosCRUZ, Antonio Donizeti da.. Poesia e modernidade em Astrid Cabral. Anais da ... Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários, v. 1, p. 383-388, 2007.
SANTOS, Lucinéia Rodrigues dosCRUZ, Antonio Donizeti da.. Memória, viagem e natureza na poesia de Astrid Cabral. Anais da Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários, v. 1, p. 305-308, 2006.
SANTOS, Lucinéia Rodrigues dosCRUZ, Antonio Donizeti da.. Poesia e Memória em Astrid Cabral. In: Anais do V EPPEL - Encontro Paranaense Pós-graduado em Estudos Literários, I EPPLI - Econtro Paranaense de Pós-graduação em Linguística e VI SPLE - Seminário de Pesquisa em Letras. Maringá: Editora da UEM, 2008. v. 1. p. 1-12.
SANTOS, Lucinéia Rodrigues dosCRUZ, Antonio Donizeti da.. A poesia de Astrid Cabral: uma leitura de Ante-sala. In: Anais do VIII Seminário Nacional de Literatura, História e Memória - Literatura e Cultura na América Latina e II Simpósio de Pesquisas em Letras da UNIOESTE. Cascavel - PR: Edunioeste, 2008. v. 1. p. 1-12.
SANTOS, Lucinéia Rodrigues dosCRUZ, Antonio Donizeti da.. Viagem e memória em Astrid Cabral. In: Simpósio Nacional em Ciências Humanas: Universidade e Sociedade, 2006, Marechal Cândido Rondon. Anais do Simpósio Nacional em Ciências Humanas: Universidade e Sociedade. Cascavel: Gráfica Scussiatto, 2006. v. 1. p. 1-10.
Astrid Cabral - foto (...)

SANTOS, Pablo Edgardo Monteiro; PÁSCOA, Luciane Vieira Barros. Reflexões sobre a produção do Clube da Madrugada através dos Suplementos Literários e Artísticos do Amazonas: o caso do Caderno Madrugada em O Jornal – 1961-1966. Revista Eletrônica Aboré Publicação da Escola Superior de Artes e Turismo - Edição 03/2007.
SILVA, Marcos Fabrício Lopes da.. A crítica do marketing na poesia de Astrid Cabral. Comunicologia (Brasília), v. 1, p. 114-138, 2010. Disponível no link. (acessado em 10.01.2016.
SOARES, Angelica Maria Santos. A marginalização social das mulheres na poesia de Silvia Jacintho e Astrid Cabral. Revista de letras (UNESP. Online), v. 48, p. 37-51, 2008.
SOARES, Angelica Maria Santos. Ilimitáveis da memória / Exercícios de metamemória (Cecília Meireles, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral). Scripta (PUCMG), v. 01, p. 95-107, 2006. Disponível no link. (acessado em 10.01.2016).
SOARES, Angelica Maria Santos. Por uma compreensão Poética da Memória (Adélia Prado e Astrid Cabral). Revista Texto Poético, v. 04, p. 02-06, 2007. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
SOUZA, Marcio. Astrid Cabral. in: blog do Francisco Gomes. Disponível no link. (acessado em 11.01.2016).
TELLES, Tenório Nunes. Mais que uma sensibilidade feminina. in: jornal de poesia. Disponível no link. (acessado em 12.01.2016).


Cave canem
Dentro de mim há cachorros
que uivam em horas de raiva
contra as jaulas da cortesia
e as coleiras do bom senso.
Solto-os em nome da justiça
tomada de coragem homicida.
Mas sabendo que raiva mata
à míngua de tomar meus cães
vacinei-os. Ladrem mas não mordam
e caso mordam, não matem.
- Astrid Cabral, em "Jaula". Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2006.


Infância em franjas

                A infância não passou de todo.
                Recolheu-se a um armário de
               lembranças-fantasmas, de onde
              às vezes escapam e me visitam.

Me apoiei numa pedra
pra poder me levantar.
(O limo me enganou)
A pedra saltou longe.
Era um baita sapo de
 olho esbugalhado em mim.
Foi um susto mútuo:
meus dedos na pele fria
fogo na cacunda dele.
Se espirrasse veneno
e eu ficasse cega?
Abalo de súbito medo
bateu-me no estômago
nojo ânsia de vômito.
Se nos contos de fada
sapos viravam príncipes
na minha experiência
pedras viravam sapos. 
- Astrid Cabral, em "Infância em franjas". Rio de Janeiro: editora KD, 2014.


Astrid Cabral - foto (...)
OUTRAS FONTES E REFERÊNCIAS DE PESQUISA
:: Antônio Miranda
:: Fundação Biblioteca Nacional


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Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção, edição e organização). Astrid Cabral - a sagração da memória. Templo Cultural Delfos, janeiro/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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** Página atualizada em 12.1.2016.
* Página original JANEIRO/2016.



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