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| Vinicius de Moraes | 
Minha namorada
Se você quer ser minha namorada
Ah, que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ser
Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber por quê
Porém, se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho seja triste pra você
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
Os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois
- Vinicius de Moraes
Nada como ter um amor
Nada como ter carinho 
Nada como estar pertinho 
Ao se enternecer 
Bem baixinho, assim, dizer: 
Só hei de amar você 
Nada como viver juntos 
Sempre assim, querer e muito 
Nada como ter alegria de viver 
E ver o sol aparecer 
No sempre novo resplendor 
E não ter nada como ter amor
-
Vinicius de Moraes
Soneto
do maior amor
Maior amor nem mais estranho existe 
Que o meu, que não sossega a coisa amada 
E quando a sente alegre, fica triste 
E se a vê descontente, dá risada. 
E que só fica em paz se lhe resiste 
O amado coração, e que se agrada 
Mais da eterna aventura em que persiste 
Que de uma vida mal-aventurada. 
Louco amor meu, que quando toca, fere 
E quando fere vibra, mas prefere 
Ferir a fenecer - e vive a esmo 
Fiel à sua lei de cada instante 
Desassombrado, doido, delirante 
Numa paixão de tudo e de si mesmo.
-
Vinicius de Moraes
Soneto
do amor total
Amo-te tanto, meu amor... não cante 
O humano coração com mais verdade... 
Amo-te como amigo e como amante 
Numa sempre diversa realidade 
Amo-te afim, de um calmo amor prestante, 
E te amo além, presente na saudade. 
Amo-te, enfim, com grande liberdade 
Dentro da eternidade e a cada instante. 
Amo-te como um bicho, simplesmente, 
De um amor sem mistério e sem virtude 
Com um desejo maciço e permanente. 
E de te amar assim muito e amiúde, 
É que um dia em teu corpo de repente 
Hei de morrer de amar mais do que pude.
-
Vinicius de Moraes
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente 
Embora o meu amor seja uma velha canção nos
teus ouvidos 
Das horas que passei à sombra dos teus
gestos 
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos 
Das noites que vivi acalentado 
Pela graça indizível dos teus passos
eternamente fugindo 
Trago a doçura dos que aceitam
melancolicamente. 
E posso te dizer que o grande afeto que te
deixo 
Não traz o exaspero das lágrimas nem a
fascinação das promessas 
Nem as misteriosas palavras dos véus da
alma... 
É um sossego, uma unção, um transbordamento
de carícias 
E só te pede que te repouses quieta, muito
quieta 
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
-
Vinicius de Moraes
A
rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças 
Mudas telepáticas 
Pensem nas meninas 
Cegas inexatas 
Pensem nas mulheres 
Rotas alteradas 
Pensem nas feridas 
Como rosas cálidas 
Mas oh não se esqueçam 
Da rosa da rosa 
Da rosa de Hiroshima 
A rosa hereditária 
A rosa radioativa 
Estúpida e inválida 
A rosa com cirrose 
A anti-rosa atômica 
Sem cor sem perfume 
Sem rosa sem nada
-
Vinicius de Moraes
Solidão
A maior solidão é a do ser que não ama. A
maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se
recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em
si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar
de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o
que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo,
do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também
tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa
às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado
em seu duro privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.
-
Vinicius de Moraes
O
terceiro filho
Em busca dos irmãos que tinham ido 
Eu parti com pouco ouro e muita bênção 
Sob o olhar dos pais aflitos. 
Eu encontrei os meus irmãos 
Que a ira do Senhor transformou em pedra 
Mas ainda não encontrei o velho mendigo 
Que ficava na encruzilhada do bom e do mau
caminho 
E que se parecia com Jesus de Nazaré...
-
Vinicius de Moraes
O
poeta
A vida do poeta tem um ritmo diferente 
É um contínuo de dor angustiante. 
O poeta é o destinado do sofrimento 
Do sofrimento que lhe clareia a visão de
beleza 
E a sua alma é uma parcela do infinito
distante 
O infinito que ninguém sonda e ninguém
compreende. 
Ele é o eterno errante dos caminhos 
Que vai, pisando a terra e olhando o céu 
Preso pelos extremos intangíveis 
Clareando como um raio de sol a paisagem da
vida. 
O poeta tem o coração claro das aves 
E a sensibilidade das crianças. 
O poeta chora. 
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas
tristes 
Olhando o espaço imenso da sua alma. 
O poeta sorri. 
Sorri à vida e à beleza e à amizade 
Sorri com a sua mocidade a todas as
mulheres que passam. 
O poeta é bom. 
Ele ama as mulheres castas e as mulheres
impuras 
Sua alma as compreende na luz e na lama 
Ele é cheio de amor para as coisas da vida 
E é cheio de respeito para as coisas da
morte. 
O poeta não teme a morte. 
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de
um novo mistério. 
A sua poesia é a razão da sua existência 
Ela o faz puro e grande e nobre 
E o consola da dor e o consola da angústia.
A vida do poeta tem um ritmo diferente 
Ela o conduz errante pelos caminhos,
pisando a terra e olhando o céu 
Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.
-
Vinicius de Moraes
Minha
mãe
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo 
Tenho medo da vida, minha mãe. 
Canta a doce cantiga que cantavas 
Quando eu corria doido ao teu regaço 
Com medo dos fantasmas do telhado. 
Nina o meu sono cheio de inquietude 
Batendo de levinho no meu braço 
Que estou com muito medo, minha mãe. 
Repousa a luz amiga dos teus olhos 
Nos meus olhos sem luz e sem repouso 
Dize à dor que me espera eternamente 
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa 
Do meu ser que não quer e que não pode 
Dá-me um beijo na fronte dolorida 
Que ela arde de febre, minha mãe. 
Aninha-me em teu colo como outrora 
Dize-me bem baixo assim: - Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme. 
Dorme. Os que de há muito te esperavam 
Cansados já se foram para longe. 
Perto de ti está tua mãezinha 
Teu irmão, que o estudo adormeceu 
Tuas irmãs pisando de levinho 
Para não despertar o sono teu. 
Dorme, meu filho, dorme no meu peito 
Sonha a felicidade. Velo eu. 
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo 
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique 
Dize que eu parta, ó mãe, para a saudade. 
Afugenta este espaço que me prende 
Afugenta o infinito que me chama 
Que eu estou com muito medo, minha mãe.
-
Vinicius de Moraes
A minha pátria é como se não fosse, é
íntima 
Doçura e vontade de chorar; uma criança
dormindo 
É minha pátria. Por isso, no exílio 
Assistindo dormir meu filho 
Choro de saudades de minha pátria. 
Se me perguntarem o que é a minha pátria,
direi: 
Não sei. De fato, não sei 
Como, por que e quando a minha pátria 
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e
a água 
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa 
Em longas lágrimas amargas. 
Vontade de beijar os olhos de minha pátria 
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos
cabelos... 
Vontade de mudar as cores do vestido
(auriverde!) tão feias 
De minha pátria, de minha pátria sem
sapatos 
E sem meias, pátria minha 
Tão pobrinha! 
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que
não tenho 
Pátria, eu semente que nasci do vento 
Eu que não vou e não venho, eu que
permaneço 
Em contato com a dor do tempo, eu elemento 
De ligação entre a ação e o pensamento 
Eu fio invisível no espaço de todo adeus 
Eu, o sem Deus! 
Tenho-te no entanto em mim como um gemido 
De flor; tenho-te como um amor morrido 
A quem se jurou; tenho-te como uma fé 
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me
sinto a jeito 
Nesta sala estrangeira com lareira 
E sem pé-direito. 
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no
Maine, Nova Inglaterra 
Quando tudo passou a ser infinito e nada
terra 
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o
monte até o céu 
Muitos me surpreenderam parado no campo sem
luz 
À espera de ver surgir a Cruz do Sul 
Que eu sabia, mas amanheceu... 
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha 
Amada, idolatrada, salve, salve! 
Que mais doce esperança acorrentada 
O não poder dizer-te: aguarda... 
Não tardo! 
Quero rever-te, pátria minha, e para 
Rever-te me esqueci de tudo 
Fui cego, estropiado, surdo, mudo 
Vi minha humilde morte cara a cara 
Rasguei poemas, mulheres, horizontes 
Fiquei simples, sem fontes. 
Pátria minha... A minha pátria não é
florão, nem ostenta 
Lábaro não; a minha pátria é desolação 
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande
rio secular 
Que bebe nuvem, come terra 
E urina mar. 
Mais do que a mais garrida a minha pátria
tem 
Uma quentura, um querer bem, um bem 
Um libertas quae sera tamen 
Que um dia traduzi num exame escrito: 
"Liberta que serás também" 
E repito! 
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa 
Que brinca em teus cabelos e te alisa 
Pátria minha, e perfuma o teu chão... 
Que vontade me vem de adormecer-me 
Entre teus doces montes, pátria minha 
Atento à fome em tuas entranhas 
E ao batuque em teu coração. 
Não te direi o nome, pátria minha 
Teu nome é pátria amada, é patriazinha 
Não rima com mãe gentil 
Vives em mim como uma filha, que és 
Uma ilha de ternura: a Ilha 
Brasil, talvez. 
Agora chamarei a amiga cotovia 
E pedirei que peça ao rouxinol do dia 
Que peça ao sabiá 
Para levar-te presto este avigrama: 
"Pátria minha, saudades de quem te
ama… 
Vinicius de Moraes."
-
Vinicius de Moraes
O
verbo no infinito
Ser criado, gerar-se, transformar 
O amor em carne e a carne em amor; nascer 
Respirar, e chorar, e adormecer 
E se nutrir para poder chorar 
Para poder nutrir-se; e despertar 
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir 
E começar a amar e então sorrir 
E então sorrir para poder chorar. 
E crescer, e saber, e ser, e haver 
E perder, e sofrer, e ter horror 
De ser e amar, e se sentir maldito 
E esquecer tudo ao vir um novo amor 
E viver esse amor até morrer 
E ir conjugar o verbo no infinito...
-
Vinicius de Moraes
Saudade
que dá
E a lua aparecendo 
Diz baixinho uma oração 
Não há coisa mais bonita 
Que o luar do meu sertão 
Terra seca mais danada 
Não dá nada, dá saudade 
Saudade, saudade que dá 
Não dá nada, dá vontade 
Vontade de voltar pra lá 
Vou mandar rezar um terço 
Para ver se de Deus mereço 
Uma última bênção 
E morrer junto ao meu berço 
No luar do meu sertão
-
Vinicius de Moraes
A
cidade antiga
Houve tempo em que a cidade tinha pêlo na
axila 
E em que os parques usavam cinto de
castidade 
As gaivotas do Pharoux não contavam em
absoluto 
Com a posterior invenção dos kamikazes 
De resto, a metrópole era inexpugnável 
Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara. 
Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA 
U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata! 
Vogais! tônico para o cabelo da poesia 
Já escrevi, certa vez, vossa triste balada 
Entre os minuetos sutis do comércio
imediato 
As portadoras de êxtase e de permanganato! 
Houve um tempo em que um morro era apenas
um morro 
E não um camelô de colete brilhante 
Piscando intermitente o grito de socorro 
Da livre concorrência: um pequeno gigante 
Que nunca se curvava, ou somente nos dias 
Em que o Melo Maluco praticava acrobacias. 
Houve tempo em que se exclamava: Asfalto! 
Em que se comentava: Verso livre! com
receio... 
Em que, para se mostrar, alguém dizia alto:
"Então às seis, sob a marquise do
Passeio..." 
Em que se ia ver a bem-amada sepulcral 
Decompor o espectro de um sorvete na
Paschoal 
Houve tempo em que o amor era melancolia 
E a tuberculose se chamava consumpção 
De geométrico na cidade só existia 
A palamenta dos ioles, de manhã... 
Mas em compensação, que abundância de tudo!
Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo!
Houve tempo em que apareceu diante do
espelho 
A flapper cheia de it, a esfuziante miss 
A boca em coração, a saia acima do joelho 
Sempre a tremelicar os ombros e os quadris 
Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy!
Ó Nita! 
Que vos transformastes em dízima
infinita... 
Houve tempo... e em verdade eu vos digo:
havia tempo 
Tempo para a peteca e tempo para o soneto 
Tempo para trabalhar e para dar tempo ao
tempo 
Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto...
Eis por que, para que volte o tempo, e o
sonho, e a rima 
Eu fiz, de humor irônico, esta poesia
acima.
-
Vinicius de Moraes
Revolta
Alma que sofres pavorosamente 
A dor de seres privilegiada 
Abandona o teu pranto, sê contente 
Antes que o horror da solidão te invada. 
Deixa que a vida te possua ardente 
Ó alma supremamente desgraçada. 
Abandona, águia, a inóspita morada 
Vem rastejar no chão como a serpente. 
De que te vale o espaço se te cansa? 
Quanto mais sobes mais o espaço avança... 
Desce ao chão, águia audaz, que a noite é
fria. 
Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste 
O mundo é bom, o espaço é muito triste... 
Talvez tu possas ser feliz um dia.
-
Vinicius de Moraes
Bom
dia, tristeza
Bom dia, tristeza 
Que tarde, tristeza 
Você veio hoje me ver 
Já estava ficando 
Até meio triste 
De estar tanto tempo 
Longe de você 
Se chegue, tristeza 
Se sente comigo 
Aqui, nesta mesa de bar 
Beba do meu copo 
Me dê o seu ombro 
Que é para eu chorar 
Chorar de tristeza 
Tristeza de amar
-
Vinicius de Moraes
A
ponte de Van Gogh
O lugar não importa: pode ser o Japão, a
Holanda, a campina inglesa. 
Mas é absolutamente preciso que seja
domingo. 
O azul do céu ecoa na esmeralda do rio 
E o rio reflete docemente as margens de
relva verde-laranja 
Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o
lençol virginal de miss 
Para ser no céu sem mancha a única nuvem. 
A calma é velha, de uma velhice sem pátina 
As cores são simples, ingênuas 
A estação é feliz: o guarda da ponte chegou
a pintar 
De listas vermelhas o teto de sua
casinhola. 
E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos
de pinheiros a fazer caretas 
E a pressa com que o homem da charrete vai:
- A pressa de quem atravessou um vago
perigo 
Tudo estivesse perfeito, e não me viesse
esse medo tolo de a pequena ponte levadiça 
Desabe e se molhe o vestido preto de
Cristina Georgina Rosseti 
Que vai de umbrela especialmente para ouvir
a prédica do novo pastor da vila
-
Vinicius de Moraes
Desde
sempre
Na minha frente, no cinema escuro e
silencioso 
Eu vejo as imagens musicalmente rítmicas 
Narrando a beleza suave de um drama de
amor. 
Atrás de mim, no cinema escuro e silencioso
Ouço vozes surdas, viciadas 
Vivendo a miséria de uma comédia de carne. 
Cada beijo longo e casto do drama 
Corresponde a cada beijo ruidoso e sensual
da comédia 
Minha alma recolhe a carícia de um 
E a minha carne a brutalidade do outro. 
Eu me angustio. 
Desespera-me não me perder da comédia
ridícula e falsa 
Para me integrar definitivamente no drama. 
Sinto a minha carne curiosa prendendo-me às
palavras implorantes 
Que ambos se trocam na agitação do sexo. 
Tento fugir para a imagem pura e melodiosa 
Mas ouço terrivelmente tudo 
Sem poder tapar os ouvidos. 
Num impulso fujo, vou para longe do casal
impudico 
Para somente poder ver a imagem. 
Mas é tarde. Olho o drama sem mais
penetrar-lhe a beleza 
Minha imaginação cria o fim da comédia que
é sempre o mesmo fim 
E me penetra a alma uma tristeza infinita 
Como se para mim tudo tivesse morrido.
-
Vinicius de Moraes
Para que vieste 
Na minha janela 
Meter o nariz? 
Se foi por um verso 
Não sou mais poeta 
Ando tão feliz! 
Se é para uma prosa 
Não sou Anchieta 
Nem venho de Assis. 
Deixa-te de histórias 
Some-te daqui!
-
Vinicius de Moraes
Amor
nos três pavimentos
Eu não sei tocar, mas se você pedir 
Eu toco violino fagote trombone saxofone. 
Eu não sei cantar, mas se você pedir 
Dou um beijo na lua, bebo mel himeto 
Pra cantar melhor. 
Se você pedir eu mato o papa, eu tomo
cicuta 
Eu faço tudo que você quiser. 
Você querendo, você me pede, um brinco, um
namorado 
Que eu te arranjo logo. 
Você quer fazer verso? É tão simples!...
você assina 
Ninguém vai saber. 
Se você me pedir, eu trabalho dobrado 
Só pra te agradar. 
Se você quisesse!... até na morte eu ia 
Descobrir poesia. 
Te recitava as Pombas, tirava modinhas 
Pra te adormecer. 
Até um gurizinho, se você deixar 
Eu dou pra você...
-
Vinicius de Moraes
Rua
da amargura
A minha rua é longa e silenciosa como um
caminho que foge 
E tem casas baixas que ficam me espiando de
noite 
Quando a minha angústia passa olhando o
alto. 
A minha rua tem avenidas escuras e feias 
De onde saem papéis velhos correndo com
medo do vento 
E gemidos de pessoas que estão eternamente
à morte. 
A minha rua tem gatos que não fogem e cães
que não ladram 
Tem árvores grandes que tremem na noite
silente 
Fugindo as grandes sombras dos pés
aterrados. 
A minha rua é soturna… 
Na capela da igreja há sempre uma voz que
murmura louvemos 
Sozinha e prostrada diante da imagem 
Sem medo das costas que a vaga penumbra
apunhala. 
A minha rua tem um lampião apagado 
Na frente da casa onde a filha matou o pai 
Porque não queria ser dele. 
No escuro da casa só brilha uma chapa
gritando quarenta. 
A minha rua é a expiação de grandes pecados
De homens ferozes perdendo meninas pequenas
De meninas pequenas levando ventres
inchados 
De ventres inchados que vão perder meninas
pequenas. 
É a rua da gata louca que mia buscando os
filhinhos nas portas das casas. 
É a impossibilidade de fuga diante da vida 
É o pecado e a desolação do pecado 
É a aceitação da tragédia e a indiferença
ao degredo 
Como negação do aniquilamento. 
É uma rua como tantas outras 
Com o mesmo ar feliz de dia e o mesmo
desencontro de noite. 
É a rua por onde eu passo a minha angústia 
Ouvindo os ruídos subterrâneos como ecos de
prazeres inacabados. 
É a longa rua que me leva ao horror do meu
quarto 
Pelo desejo de fugir à sua murmuração
tenebrosa 
Que me leva à solidão gelada do meu
quarto... 
Rua da amargura…
-
Vinicius de Moraes
Sei
lá... a vida tem sempre razão
Tem dias que eu fico 
Pensando na vida 
E sinceramente 
Não vejo saída 
Como é, por exemplo 
Que dá pra entender 
A gente mal nasce 
Começa a morrer 
Depois da chegada 
Vem sempre a partida 
Porque não há nada 
Sem separação 
Sei lá, sei lá 
A vida é uma grande ilusão 
Sei lá, sei lá 
Só sei que ela está com a razão 
A gente nem sabe 
Que males se apronta 
Fazendo de conta 
Fingindo esquecer 
Que nada renasce 
Antes que se acabe 
E o sol que desponta 
Tem que anoitecer 
De nada adianta 
Ficar-se de fora 
A hora do sim 
É um descuido do não 
Sei lá, sei lá 
Só sei que é preciso paixão 
Sei lá, sei lá 
A vida tem sempre razão
-
Vinicius de Moraes
Pelos
caminhos da vida
Vai, segue o caminho 
Encontrarás meu rosto triste 
Em todas as estradas 
Os velhos caminhos 
Desertos e sem fim 
Que seguem sozinhos 
Sem vida e sem amor 
E que te querem levar 
De mim 
Ouvirás na voz do vento 
Meu constante adeus 
E meu coração batendo 
No mesmo passo dos teus 
Vai, segue o caminho 
Encontrarás em toda parte 
A minha grande mágoa 
A mágoa das horas 
Tão desesperada 
Das noites e auroras 
Ao longo das estradas 
Velhos caminhos 
Que não têm fim 
Ouvirás na voz do vento 
Meu constante adeus 
E meu coração batendo 
No mesmo passo dos teus 
Vai, segue o caminho 
Encontrarás meu rosto triste 
Em todas as estradas 
Estradas de sol 
Varridas pelo vento 
Cobertas de estrelas 
Em pleno firmamento 
E que te trazem de volta 
A mim
-
Vinicius de Moraes
Um
beijo
Um minuto o nosso beijo 
Um só minuto; no entanto 
Nesse minuto de beijo 
Quantos segundos de espanto! 
Quantas mães e esposas loucas 
Pelo drama de um momento 
Quantos milhares de bocas 
Uivando de sofrimento! 
Quantas crianças nascendo 
Para morrer em seguida 
Quanta carne se rompendo 
Quanta morte pela vida! 
Quantos adeuses efêmeros 
Tornados o último adeus 
Quantas tíbias, quantos fêmures 
Quanta loucura de Deus! 
Que mundo de mal-amadas 
Com as esperanças perdidas 
Que cardume de afogadas 
Que pomar de suicidas! 
Que mar de entranhas correndo 
De corpos desfalecidos 
Que choque de trens horrendo 
Quantos mortos e feridos! 
Que dízima de doentes 
Recebendo a extrema-unção 
Quanto sangue derramado 
Dentro do meu coração! 
Quanto cadáver sozinho 
Em mesa de necrotério 
Quanta morte sem carinho 
Quanto canhenho funéreo! 
Que plantel de prisioneiros 
Tendo as unhas arrancadas 
Quantos beijos derradeiros 
Quantos mortos nas estradas! 
Que safra de uxoricidas 
A bala, a punhal, a mão 
Quantas mulheres batidas 
Quantos dentes pelo chão! 
Que monte de nascituros 
Atirados nos baldios 
Quantos fetos nos monturos 
Quanta placenta nos rios! 
Quantos mortos pela frente 
Quantos mortos à traição 
Quantos mortos de repente 
Quantos mortos sem razão! 
Quanto câncer sub-reptício 
Cujo amanhã será tarde 
Quanta tara, quanto vício 
Quanto enfarte do miocárdio 
Quanto medo, quanto pranto 
Quanta paixão, quanto luto!... 
Tudo isso pelo encanto 
Desse beijo de um minuto: 
Desse beijo de um minuto 
Mas que cria, em seu transporte 
De um minuto, a eternidade 
E a vida, de tanta morte.
-
Vinicius de Moraes
Elegia
ao primeiro amigo
Seguramente não sou eu 
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem
finalidade e sem história. 
É antes uma vontade indizível de te falar
docemente 
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto
meandro de ternura 
Neste momento de solidão e desmesurado
perigo em que me encontro. 
Talvez seja o menino que um dia escreveu um
soneto para o dia de teus anos 
E te confessava um terrível pudor de amar,
e que chorava às escondidas 
Porque via em muitos dúvidas sobre uma
inteligência que ele estimava genial. 
Seguramente não é a minha forma. 
A forma que uma tarde, na montanha,
entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria poesia. 
É apenas um prenúncio do mistério 
Um suspiro da morte íntima, ainda não
desencantada... 
Vim para ser lembrado 
Para ser tocado de emoção, para chorar 
Vim para ouvir o mar contigo 
Como no tempo em que o sonho da mulher nos
alucinava, e nós 
Encontrávamos força para sorrir à luz
fantástica da manhã. 
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor 
Nossos corpos duros e insensíveis 
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto 
Para aquele que, entre nós, ferido de
beleza 
Aquele de rosto de pedra 
De mãos assassinas e corpo hermético de
mártir 
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa
do mar. 
Pouco importa que tenha passado, e agora 
Eu te possa ver subindo e descendo os frios
vales 
Ou nunca mais irei, eu 
Que muita vez neles me perdi para afrontar
o medo da treva... 
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa 
A quem te deste como quem se dá ao abismo,
e para quem cantas o teu desespero Como um grande pássaro sem ar. 
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto 
Quem és, amigo, tu que inventaste a
angústia 
E abrigaste em ti todo o patético? 
Não sei o que tenho de te falar assim: sei 
Que te amo de uma poderosa ternura que nada
pede nem dá 
Imediata e silenciosa; sei que poderias
morrer 
E eu nada diria de grave; decerto 
Foi a primavera temporã que desceu sobre o
meu quarto de mendigo 
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas
e de velhos livros... 
Pensar-te agora na velha estrada me dá
tanta saudade de mim mesmo 
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança
tanto instante vivido: 
Tudo isso que vais hoje revelar à tua
amiga, e que nós descobrimos numa incomparável aventura 
Que é como se me voltasse aos olhos a
inocência com que um dia dormi nos braços de uma mulher que queria me matar. 
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo)
Quero um bem enorme a vocês dois, acho
vocês formidáveis 
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o
que não vejo possível 
(Vá lá por conta da necessária
gentileza...) 
No entanto, delicadamente, me desprenderei
da vossa companhia, deixar-me-ei ficar para trás, para trás... 
Existo também; de algum lugar 
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes 
Escuto vozes ermas 
Que me chamam para o silêncio. 
Sofro 
O horror dos espaços 
O pânico do infinito 
O tédio das beatitudes. 
Sinto 
Refazerem-se em mim mãos que decepei de
meus braços 
Que viveram sexos nauseabundos, seios em
putrefação. 
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar,
na sombra 
Uma mulher me vê viver... - perdi o meio da
vida 
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano
ao luar. 
Falarei baixo 
Para não perturbar tua amiga adormecida 
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro
de delicadeza. 
Tudo me merece um olhar. Trago 
Nos dedos um constante afago para afagar;
na boca 
Um constante beijo para beijar; meus olhos 
Acarinham sem ver; minha barba é delicada
na pele das mulheres. 
Mato com delicadeza. Faço chorar
delicadamente 
E me deleito. Inventei o carinho dos pés;
minha palma 
Áspera de menino de ilha pousa com
delicadeza sobre um corpo de adúltera. 
Na verdade, sou um homem de muitas
mulheres, e com todas delicado e atento 
Se me entediam, abandono-as delicadamente,
desprendendo-me delas com uma doçura de água 
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de
maneira irremissível 
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati
numa mulher 
Mas com singular delicadeza. Não sou bom 
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e
fratricida 
Como um lobo. Se não fosse delicado 
Já não seria mais. Ninguém me injuria 
Porque sou delicado; também não conheço o
dom da injúria. 
Meu comércio com os homens é leal e
delicado; prezo ao absurdo 
A liberdade alheia; não existe 
Ser mais delicado que eu; sou um místico da
delicadeza 
Sou um mártir da delicadeza; sou 
Um monstro de delicadeza. 
Seguramente não sou eu: 
É a tarde, talvez, assim parada 
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo 
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto 
Preciso desprender-me de toda lembrança; de
algum lugar 
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo 
Segui-Ia, porque tal é o meu destino.
Seguirei 
Todas as mulheres em meu caminho, de tal
forma 
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de
pegadas 
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo
de saber 
Que fui amante, e que entre a mulher e eu
alguma coisa existe 
Maior que o amor e a carne, um secreto
acordo, uma promessa 
De socorro, de compreensão e de fidelidade
para a vida.
-
Vinicius de Moraes
Soneto
à lua
Por que tens, por que tens olhos escuros 
E mãos lânguidas, loucas e sem fim 
Quem és, quem és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros? 
Que paixão fez-te os lábios tão maduros 
Num rosto como o teu criança assim 
Quem te criou tão boa para o ruim 
E tão fatal para os meus versos duros? 
Fugaz, com que direito tens-me presa 
A alma que por ti soluça nua 
E não és Tatiana e nem Teresa: 
E és tampouco a mulher que anda na rua 
Vagabunda, patética, indefesa 
Ó minha branca e pequenina lua!
-
Vinicius de Moraes
Balada
da praia do Vidigal
A lua foi companheira 
Na praia do Vidigal 
Não surgiu, mas mesmo oculta 
Nos recordou seu luar 
Teu ventre de maré cheia 
Vinha em ondas me puxar 
Eram-me os dedos de areia 
Eram-te os lábios de sal. 
Do rochedo em miramar 
Eu soube te amar, menina 
Na praia do Vidigal... 
Havia tanto silêncio 
Que para o desencantar 
Nem meus clamores de vento 
Nem teus soluços de água. 
Minhas mãos te confundiam 
Com a fria areia molhada 
Vencendo as mãos dos alísios 
Nas ondas da tua saia. 
Meus olhos baços de brumas 
Junto aos teus olhos de alga 
Viam-te envolta de espumas 
Como a menina afogada. 
E que doçura entregar-me 
Àquela mole de peixes 
Cegando-te o olhar vazio 
Com meu cardume de beijos! 
Muito lutamos, menina 
Naquele pego selvagem 
Entre areias assassinas 
Junto ao rochedo da margem. 
Três vezes submergiste 
Três vezes voltaste à flor 
E te afogaras não fossem 
As redes do meu amor. 
Quando voltamos, a noite 
Parecia em tua face 
Tinhas vento em teus cabelos 
Gotas d'água em tua carne. 
No verde lençol da areia 
Um marco ficou cravado 
Moldando a forma de um corpo 
No meio da cruz de uns braços. 
Talvez que o marco, criança 
Já o tenha lavado o mar 
Mas nunca leva a lembrança 
Daquela noite de amores 
Na praia do Vidigal.
-
Vinicius de Moraes
Soneto
do amigo
Enfim, depois de tanto erro passado 
Tantas retaliações, tanto perigo 
Eis que ressurge noutro o velho amigo 
Nunca perdido, sempre reencontrado. 
É bom sentá-lo novamente ao lado 
Com olhos que contêm o olhar antigo 
Sempre comigo um pouco atribulado 
E como sempre singular comigo. 
Um bicho igual a mim, simples e humano 
Sabendo se mover e comover 
E a disfarçar com o meu próprio engano. 
O amigo: um ser que a vida não explica 
Que só se vai ao ver outro nascer 
E o espelho de minha alma multiplica...
-
Vinicius de Moraes
A
que há de vir
Aquela que dormirá comigo todas as luas 
É a desejada de minha alma. 
Ela me dará o amor do seu coração 
E me dará o amor da sua carne. 
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo 
E virá a mim com os peitos e virá a mim com
os lábios 
Ela é a querida da minha alma 
Que me fará longos carinhos nos olhos 
Que me beijará longos beijos nos ouvidos 
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso. 
Ela só verá minhas alegrias e minhas
tristezas 
Temerá minha cólera e se aninhará no meu
sossego 
Ela abandonará filho e esposo 
Abandonará o mundo e o prazer do mundo 
Abandonará Deus e a Igreja de Deus 
E virá a mim me olhando de olhos claros 
Se oferecendo à minha posse 
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor 
Cheia de uma pureza luminosa. 
Ela é a amada sempre nova do meu coração 
Ela ficará me olhando calada 
Que ela só crerá em mim 
Far-me-á a razão suprema das coisas. 
Ela é a amada da minha alma triste 
É a que dará o peito casto 
Onde os meus lábios pousados viverão a vida
do seu coração 
Ela é a minha poesia e a minha mocidade 
É a mulher que se guardou para o amado de
sua alma 
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela
dele. 
Ela é o amor vivendo de si mesmo. 
É a que dormirá comigo todas as luas 
E a quem eu protegerei contra os males do
mundo. 
Ela é a anunciada da minha poesia 
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e
com os peitos 
E que será minha, só minha, como a força é
do forte e a poesia é do poeta
-
Vinicius de Moraes
O
vale do paraíso
Quando vier de novo o céu de maio largando
estrelas 
Eu irei, lá onde os pinheiros recendem nas
manhãs úmidas 
Lá onde a aragem não desdenha a pequenina
flor das encostas 
Será como sempre, na estrada vermelha a
grande pedra recolherá sol 
E os pequenos insetos irão e virão, e longe
um cão ladrará 
E nos tufos dos arbustos haverá enredados
de orvalho nas teias de aranha. 
As montanhas, vejo-as iluminadas, ardendo
no grande sol amarelo 
As vertentes algodoadas de neblina,
lembro-as suspendendo árvores nas nuvens 
As matas, sinto-as ainda vibrando na
comunhão das sensações 
Como uma epiderme verde, porejada. 
Na eminência a casa estará rindo no
lampejar dos vidros das suas mil janelas 
A sineta tocará matinas e a presença de
Deus não permitirá a Ave-Maria 
Apenas a poesia estará nas ramadas que
entram pela porta 
E a água estará fria e todos correrão pela
grama 
E o pão estará fresco e os olhos estarão
satisfeitos. 
Eu irei, será como sempre, nunca o silêncio
sem remédio das insônias 
O vento cantará nas frinchas e os grilos
trilarão folhas secas 
E haverá coaxos distantes a cada instante 
Depois as grandes chuvas encharcando o
barro e esmagando a erva 
E batendo nas latas vagas monotonias de
cidade. 
Eu me recolherei um minuto e escreverei: -
"Onde estará a volúpia?..." 
E as borboletas se fecundando não me
responderão. 
Será como sempre, será a altura, será a
proximidade da suprema inexistência 
Lá onde à noite o frio imobiliza a luz
cadente das estrelas 
Lá onde eu irei.
-
Vinicius de Moraes
Tempo
feliz
Feliz o tempo que passou, passou 
Tempo tão cheio de recordações 
Tantas canções ele deixou, deixou 
Trazendo paz a tantos corações 
Que sons mais lindos tinha pelo ar 
Que alegria de viver 
Ah, meu amor, que tristeza me dá 
Vendo o dia querendo amanhecer 
E ninguém cantar 
Mas, meu bem 
Deixa estar, tempo vai 
Tempo vem 
E quando um dia esse tempo voltar 
Eu nem quero pensar no que vai ser 
Até o sol raiar
-
Vinicius de Moraes
Místico
O ar está cheio de murmúrios misteriosos 
E na névoa clara das coisas há um vago
sentido de espiritualização… 
Tudo está cheio de ruídos sonolentos 
Que vêm do céu, que vêm do chão 
E que esmagam o infinito do meu desespero. 
Através do tenuíssimo de névoa que o céu
cobre 
Eu sinto a luz desesperadamente 
Bater no fosco da bruma que a suspende. 
As grandes nuvens brancas e paradas - 
Suspensas e paradas 
Como aves solícitas de luz - 
Ritmam interiormente o movimento da luz: 
Dão ao lago do céu 
A beleza plácida dos grandes blocos de
gelo. 
No olhar aberto que eu ponho nas coisas do
alto 
Há todo um amor à divindade. 
No coração aberto que eu tenho para as
coisas do alto 
Há todo um amor ao mundo. 
No espírito que eu tenho embebido das
coisas do alto 
Há toda uma compreensão. 
Almas que povoais o caminho de luz 
Que, longas, passeais nas noites lindas 
Que andais suspensas a caminhar no sentido
da luz 
O que buscais, almas irmãs da minha? 
Por que vos arrastais dentro da noite
murmurosa 
Com os vossos braços longos em atitude de
êxtase? 
Vedes alguma coisa 
Que esta luz que me ofusca esconde à minha
visão? 
Sentis alguma coisa 
Que eu não sinta talvez? 
Por que as vossas mãos de nuvem e névoa 
Se espalmam na suprema adoração? 
É o castigo, talvez? 
Eu já de há muito tempo vos espio 
Na vossa estranha caminhada. 
Como quisera estar entre o vosso cortejo 
Para viver entre vós a minha vida humana...
Talvez, unido a vós, solto por entre vós 
Eu pudesse quebrar os grilhões que vos
prendem... 
Sou bem melhor que vós, almas acorrentadas 
Porque eu também estou acorrentado 
E nem vos passa, talvez, a idéia do
auxílio. 
Eu estou acorrentado à noite murmurosa 
E não me libertais... 
Sou bem melhor que vós, almas cheias de
humildade. 
Solta ao mundo, a minha alma jamais irá
viver convosco. 
Eu sei que ela já tem o seu lugar 
Bem junto ao trono da divindade 
Para a verdadeira adoração. 
Tem o lugar dos escolhidos 
Dos que sofreram, dos que viveram e dos que
compreenderam.
-
Vinicius de Moraes
Mormaço
No silêncio morno das coisas do meio-dia 
Eu me esvaio no aniquilamento dos
agudíssimos do violino 
Que a menina pálida estuda há anos sem
compreender. 
Eu sinto o letargo das dissonâncias harmônicas
Do vendedor de modinhas e da pedra do
amolador 
Que trazem a visão de mulheres macilentas
dançando no espaço 
Na moleza das espatifadas da carne. 
Eu vou pouco a pouco adormecendo 
Sentindo os gritos do violino que penetram
em todas as frestas 
E ressecam os lábios entreabertos na
respiração 
Mas que dão a impressão da mediocridade
feliz e boa. 
Que importa que a imagem do Cristo pregada
na parede seja a verdade... 
Eu sinto que a verdade é a grande calma do
sono 
Que vem com o cantar longínquo dos galos 
E que me esmaga nos cílios longos beijos
luxuriosos... 
Eu sinto a queda de tudo na lassidão... 
Adormeço aos poucos na apatia dos ruídos da
rua 
E na constância nostálgica da tosse do
vizinho tuberculoso 
Que há um ano espera a morte que eu morro
no sono do meio-dia.
-
Vinicius de Moraes
O
único caminho
No tempo em que o Espírito habitava a terra
E em que os homens sentiam na carne a
beleza da arte 
Eu ainda não tinha aparecido. 
Naquele tempo as pombas brincavam com as
crianças 
E os homens morriam na guerra cobertos de
sangue. 
Naquele tempo as mulheres davam de dia o
trabalho da palha e da lã 
E davam de noite, ao homem cansado, a
volúpia amorosa do corpo. 
Eu ainda não tinha aparecido. 
No tempo que vinham mudando os seres e as
coisas 
Chegavam também os primeiros gritos da
vinda do homem novo 
Que vinha trazer à carne um novo sentido de
prazer 
E vinha expulsar o Espírito dos seres e das
coisas. 
Eu já tinha aparecido. 
No caos, no horror, no parado, eu vi o
caminho que ninguém via 
O caminho que só o homem de Deus pressente
na treva. 
Eu quis fugir da perdição dos outros
caminhos 
Mas eu caí. 
Eu não tinha como o homem de outrora a
força da luta 
Eu não matei quando devia matar 
Eu cedi ao prazer e à luxúria da carne do
mundo. 
Eu vi que o caminho se ia afastando da
minha vista 
Se ia sumindo, ficando indeciso,
desaparecendo. 
Quis andar para a frente. 
Mas o corpo cansado tombou ao beijo da
última mulher que ficara. 
Mas não. 
Eu sei que a Verdade ainda habita minha
alma 
E a alma que é da Verdade é como a raiz que
é da terra. 
O caminho fugiu dos olhos do meu corpo 
Mas não desapareceu dos olhos do meu
espírito 
Meu espírito sabe... 
Ele sabe que longe da carne e do amor do
mundo 
Fica a longa vereda dos destinados do
profeta. 
Eu tenho esperanças, Senhor. 
Na verdade o que subsiste é o forte que
luta 
O fraco que foge é a lama que corre do
monte para o vale. 
A águia dos precipícios não é do beiral das
casas 
Ela voa na tempestade e repousa na bonança.
Eu tenho esperanças, Senhor. 
Tenho esperanças no meu espírito
extraordinário 
E tenho esperança na minha alma
extraordinária. 
O filho dos homens antigos 
Cujo cadáver não era possuído da terra 
Há de um dia ver o caminho de luz que
existe na treva 
E então, Senhor 
Ele há de caminhar de braços abertos, de
olhos abertos 
Para o profeta que a sua alma ama mas que
seu espírito ainda não possuiu.
-
Vinicius de Moraes
Grande
paixão
Sofro por ti meu amor 
Grande paixão 
Grande paixão 
Desilusão 
Ai quem me dera 
Ai quem me dera 
O teu langor 
A primavera 
A primavera 
É toda em flor 
Retorna a mim esquecida 
Que existe o adeus 
E vem jazer 
Morta enfim 
Nos braços meus 
Ah, minha amada 
Sem fim 
Na solidão 
Volta que dói 
Tanto em mim 
Grande paixão
-
Vinicius de Moraes
Primavera
O meu amor sozinho 
É assim como um jardim sem flor 
Só queria poder ir dizer a ela 
Como é triste se sentir saudade 
É que eu gosto tanto dela 
Que é capaz dela gostar de mim 
E acontece que eu estou mais longe dela 
Que da estrela a reluzir na tarde 
Estrela, eu lhe diria 
Desce à terra, o amor existe 
E a poesia só espera ver 
Nascer a primavera 
Para não morrer 
Não há amor sozinho 
É juntinho que ele fica bom 
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho 
Eu queria ter felicidade 
É que o meu amor é tanto 
Um encanto que não tem mais fim 
E no entanto ele nem sabe que isso existe 
É tão triste se sentir saudade 
Amor, eu lhe direi 
Amor que eu tanto procurei 
Ah, quem me dera eu pudesse ser 
A tua primavera 
E depois morrer
-
Vinicius de Moraes
Soneto
ao inverno
Inverno, doce inverno das manhãs 
Translúcidas, tardias e distantes 
Propício ao sentimento das irmãs 
E ao mistério da carne das amantes: 
Quem és, que transfiguras as maçãs 
Em iluminações dessemelhantes 
E enlouqueces as rosas temporãs 
Rosa-dos-ventos, rosa dos instantes? 
Por que ruflaste as tremulantes asas 
Alma do céu? o amor das coisas várias 
Fez-te migrar - inverno sobre casas! 
Anjo tutelar das luminárias 
Preservador de santas e de estrelas... 
Que importa a noite lúgubre escondê-las?
-
Vinicius de Moraes
A
carta que não foi mandada
Paris, outono de 73 
Estou no nosso bar mais uma vez 
E escrevo pra dizer 
Que é a mesma taça e a mesma luz 
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez 
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de
dor 
Saudades, certamente, de algum grande amor 
Mas ao vê-lo assim tão triste e só 
Sou eu que estou chorando 
Lágrimas iguais 
E, a vida é assim, o tempo passa 
E fica relembrando 
Canções do amor demais 
Sim, será mais um, mais um qualquer 
Que vem de vez em quando 
E olha para trás 
É, existe sempre uma mulher 
Pra se ficar pensando 
Nem sei... nem lembro mais
-
Vinicius de Moraes
O
operário em construção
E o Diabo, levando-o a um alto monte,
mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória,
porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares,
tudo será teu. 
E Jesus, respondendo, disse-lhe: 
- Vai-te, Satanás; porque está escrito:
adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás. 
Lucas, cap. V, vs. 5-8. 
Era ele que erguia casas 
Onde antes só havia chão. 
Como um pássaro sem asas 
Ele subia com as casas 
Que lhe brotavam da mão. 
Mas tudo desconhecia 
De sua grande missão: 
Não sabia, por exemplo 
Que a casa de um homem é um templo 
Um templo sem religião 
Como tampouco sabia 
Que a casa que ele fazia 
Sendo a sua liberdade 
Era a sua escravidão. 
De fato, como podia 
Um operário em construção 
Compreender por que um tijolo 
Valia mais do que um pão? 
Tijolos ele empilhava 
Com pá, cimento e esquadria 
Quanto ao pão, ele o comia... 
Mas fosse comer tijolo! 
E assim o operário ia 
Com suor e com cimento 
Erguendo uma casa aqui 
Adiante um apartamento 
Além uma igreja, à frente 
Um quartel e uma prisão: 
Prisão de que sofreria 
Não fosse, eventualmente 
Um operário em construção. 
Mas ele desconhecia 
Esse fato extraordinário: 
Que o operário faz a coisa 
E a coisa faz o operário. 
De forma que, certo dia 
À mesa, ao cortar o pão 
O operário foi tomado 
De uma súbita emoção 
Ao constatar assombrado 
Que tudo naquela mesa 
- Garrafa, prato, facão - 
Era ele quem os fazia 
Um operário em construção. 
Olhou em torno: gamela 
Banco, enxerga, caldeirão 
Vidro, parede, janela 
Casa, cidade, nação! 
Tudo, tudo o que existia 
Era ele quem o fazia 
Ele, um humilde operário 
Um operário que sabia 
Exercer a profissão. 
Ah, homens de pensamento 
Não sabereis nunca o quanto 
Aquele humilde operário 
Soube naquele momento! 
Naquela casa vazia 
Que ele mesmo levantara 
Um mundo novo nascia 
De que sequer suspeitava. 
O operário emocionado 
Olhou sua própria mão 
Sua rude mão de operário 
De operário em construção 
E olhando bem para ela 
Teve um segundo a impressão 
De que não havia no mundo 
Coisa que fosse mais bela. 
Foi dentro da compreensão 
Desse instante solitário 
Que, tal sua construção 
Cresceu também o operário. 
Cresceu em alto e profundo 
Em largo e no coração 
E como tudo que cresce 
Ele não cresceu em vão 
Pois além do que sabia 
- Exercer a profissão - 
O operário adquiriu 
Uma nova dimensão: 
A dimensão da poesia. 
E um fato novo se viu 
Que a todos admirava: 
O que o operário dizia 
Outro operário escutava. 
E foi assim que o operário 
Do edifício em construção 
Que sempre dizia sim 
Começou a dizer não. 
E aprendeu a notar coisas 
A que não dava atenção: 
Notou que sua marmita 
Era o prato do patrão 
Que sua cerveja preta 
Era o uísque do patrão 
Que seu macacão de zuarte 
Era o terno do patrão 
Que o casebre onde morava 
Era a mansão do patrão 
Que seus dois pés andarilhos 
Eram as rodas do patrão 
Que a dureza do seu dia 
Era a noite do patrão 
Que sua imensa fadiga 
Era amiga do patrão. 
E o operário disse: Não! 
E o operário fez-se forte 
Na sua resolução. 
Como era de se esperar 
As bocas da delação 
Começaram a dizer coisas 
Aos ouvidos do patrão. 
Mas o patrão não queria 
Nenhuma preocupação 
- "Convençam-no" do contrário - 
Disse ele sobre o operário 
E ao dizer isso sorria. 
Dia seguinte, o operário 
Ao sair da construção 
Viu-se súbito cercado 
Dos homens da delação 
E sofreu, por destinado 
Sua primeira agressão. 
Teve seu rosto cuspido 
Teve seu braço quebrado 
Mas quando foi perguntado 
O operário disse: Não! 
Em vão sofrera o operário 
Sua primeira agressão 
Muitas outras se seguiram 
Muitas outras seguirão. 
Porém, por imprescindível 
Ao edifício em construção 
Seu trabalho prosseguia 
E todo o seu sofrimento 
Misturava-se ao cimento 
Da construção que crescia. 
Sentindo que a violência 
Não dobraria o operário 
Um dia tentou o patrão 
Dobrá-lo de modo vário. 
De sorte que o foi levando 
Ao alto da construção 
E num momento de tempo 
Mostrou-lhe toda a região 
E apontando-a ao operário 
Fez-lhe esta declaração: 
- Dar-te-ei todo esse poder 
E a sua satisfação 
Porque a mim me foi entregue 
E dou-o a quem bem quiser. 
Dou-te tempo de lazer 
Dou-te tempo de mulher. 
Portanto, tudo o que vês 
Será teu se me adorares 
E, ainda mais, se abandonares 
O que te faz dizer não. 
Disse, e fitou o operário 
Que olhava e que refletia 
Mas o que via o operário 
O patrão nunca veria. 
O operário via as casas 
E dentro das estruturas 
Via coisas, objetos 
Produtos, manufaturas. 
Via tudo o que fazia 
O lucro do seu patrão 
E em cada coisa que via 
Misteriosamente havia 
A marca de sua mão. 
E o operário disse: Não! 
- Loucura! - gritou o patrão 
Não vês o que te dou eu? 
- Mentira! - disse o operário 
Não podes dar-me o que é meu. 
E um grande silêncio fez-se 
Dentro do seu coração 
Um silêncio de martírios 
Um silêncio de prisão. 
Um silêncio povoado 
De pedidos de perdão 
Um silêncio apavorado 
Com o medo em solidão. 
Um silêncio de torturas 
E gritos de maldição 
Um silêncio de fraturas 
A se arrastarem no chão. 
E o operário ouviu a voz 
De todos os seus irmãos 
Os seus irmãos que morreram 
Por outros que viverão. 
Uma esperança sincera 
Cresceu no seu coração 
E dentro da tarde mansa 
Agigantou-se a razão 
De um homem pobre e esquecido 
Razão porém que fizera 
Em operário construído 
O operário em construção.
-
Vinicius de Moraes
Soneto
do só
 (Parábola
de Malte Laurids Brigge) 
Sentiu-se pobre e triste como Jó 
Um cão veio lamber-lhe a mão na estrada 
Espantado, parou. Depois foi só. 
Depois veio a poesia ensimesmada 
Em espelhos. Sofreu de fazer dó 
Viu a face do Cristo ensangüentada 
Da sua, imagem - e orou. Depois foi só. 
Depois veio o verão e veio o medo 
Desceu de seu castelo até o rochedo 
Sobre a noite e do mar lhe veio a voz 
A anunciar os anjos sanguinários... 
Depois cerrou os olhos solitários 
E só então foi totalmente a sós.
-
Vinicius de Moraes
Variação
sobre um soneto de Shakespeare
És como um dia cálido de estio... 
Azul? Não, és mais linda e mais amena 
O verão como tudo traz o frio 
E o verão é inconstante, e tu serena. 
Tu não trazes o frio, nem a pena 
Da luz foste - tu vives, como um rio 
Que cantasse uma mesma cantilena 
Num sempre novo manso desvario. 
Não morre o estio em ti - e no teu rosto
Ele deixou as cores da manhã E as tristezas suaves do sol-posto.
Sem as marcas cruéis da noite vã. E a morte
que em ser também se deita Em tua alma descansa satisfeita.
-
Vinicius de Moraes
Sonoridade
Meus ouvidos pousam na noite dormente como
aves calmas 
Há iluminações no céu se desfazendo... 
O grilo é um coração pulsando no sono do
espaço 
E as folhas farfalham um murmúrio de coisas
passadas 
Devagarinho… 
Em árvores longínquas pássaros sonâmbulos
pipilam 
E águas desconhecidas escorrem sussurros
brancos na treva. 
Na escuta meus olhos se fecham, meus lábios
se oprimem 
Tudo em mim é o instante de percepção de
todas as vibrações. 
Pela reta invisível os galos são vigilantes
que gritam sossego 
Mais forte, mais fraco, mais brando, mais
longe, sumindo 
Voltando, mais longe, mais brando, mais
fraco, mais forte. 
Batidos distantes de passos caminham no
escuro sem almas 
Amantes que voltam... 
Pouco a pouco todos os ruídos se vão
penetrando como dedos 
E a noite ora. 
Eu ouço a estranha ladainha 
E ponho os olhos no alto, sonolento. 
Um vento leve começa a descer como um sopro
de bênção 
Ora pro nobis... 
Os primeiros perfumes ascendem da terra 
Como emanações de calor de um corpo jovem. 
Na treva os lírios tremem, as rosas se
desfolham... 
O silêncio sopra sono pelo vento 
Tudo se dilata um momento e se enlanguesce 
E dorme. 
Eu vou me desprendendo de mansinho... 
A noite dorme.
-
Vinicius de Moraes
Soneto
de carnaval
Distante o meu amor, se me afigura 
O amor como um patético tormento 
Pensar nele é morrer de desventura 
Não pensar é matar meu pensamento. 
Seu mais doce desejo se amargura 
Todo o instante perdido é um sofrimento 
Cada beijo lembrado uma tortura 
Um ciúme do próprio ciumento. 
E vivemos partindo, ela de mim 
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos 
Para a grande partida que há no fim 
De toda a vida e todo o amor humanos: 
Mas tranqüila ela sabe, e eu sei tranqüilo 
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.
-
Vinicius de Moraes
Soneto
de agosto
Tu me levaste, eu fui... Na treva, ousados 
Amamos, vagamente surpreendidos 
Pelo ardor com que estávamos unidos 
Nós que andávamos sempre separados. 
Espantei-me, confesso-te, dos brados 
Com que enchi teus patéticos ouvidos 
E achei rude o calor dos teus gemidos 
Eu que sempre os julgara desolados. 
Só assim arrancara a linha inútil 
Da tua eterna túnica inconsútil... 
E para a glória do teu ser mais franco 
Quisera que te vissem como eu via 
Depois, à luz da lâmpada macia 
O púbis negro sobre o corpo branco.
-
Vinicius de Moraes
Soneto
simples
Chegara enfim o mesmo que partira: a porta
aberta e o coração voando ao encontro dos olhos e das mãos. Velhos pássaros,
velhas criaturas, algumas cinzas plácidas passando - somente a amiga é como o
melro branco! 
E enfim partira o mesmo que chegara; o
horizonte transpondo o pensamento e nas auroras plácidas passando o doce perfil
da amiga adormecida. Desejo de morrer de nostalgia da noite dos vales tristes e
perdidos… (foi quando desceu do céu a poesia como um grito de luz nos meus
ouvidos…)
-
Vinicius de Moraes
Soneto
de contrição
Eu te amo, Maria, eu te amo tanto 
Que o meu peito me dói como em doença 
E quanto mais me seja a dor intensa 
Mais cresce na minha alma teu encanto. 
Como a criança que vagueia o canto 
Ante o mistério da amplidão suspensa 
Meu coração é um vago de acalanto 
Berçando versos de saudade imensa. 
Não é maior o coração que a alma 
Nem melhor a presença que a saudade 
Só te amar é divino, e sentir calma... 
E é uma calma tão feita de humildade 
Que tão mais te soubesse pertencida 
Menos seria eterno em tua vida.
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Vinicius de Moraes
Soneto
de devoção
Essa mulher que se arremessa, fria 
E lúbrica aos meus braços, e nos seios 
Me arrebata e me beija e balbucia 
Versos, votos de amor e nomes feios. 
Essa mulher, flor de melancolia 
Que se ri dos meus pálidos receios 
A única entre todas a quem dei 
Os carinhos que nunca a outra daria. 
Essa mulher que a cada amor proclama 
A miséria e a grandeza de quem ama 
E guarda a marca dos meus dentes nela. 
Essa mulher é um mundo! - uma cadela 
Talvez... - mas na moldura de uma cama 
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
-
Vinicius de Moraes
Soneto
de quarta-feira de cinzas
Por seres quem me foste, grave e pura 
Em tão doce surpresa conquistada 
Por seres uma branca criatura 
De uma brancura de manhã raiada 
Por seres de uma rara formosura 
Malgrado a vida dura e atormentada 
Por seres mais que a simples aventura 
E menos que a constante namorada 
Porque te vi nascer de mim sozinha 
Como a noturna flor desabrochada 
A uma fala de amor, talvez perjura 
Por não te possuir, tendo-te minha 
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada 
Hei de lembrar-te sempre com ternura.
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Vinicius de Moraes
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*** Todos os poemas de Vinicius de Moraes desta pagina foram extraídos do Site Oficial do autor.
© Pesquisa, seleção e organização: Gabriela Fenske Feldkircher
© Pesquisa, seleção e organização: Gabriela Fenske Feldkircher
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