Yves Bonnefoy |
Yves Bonnefoy nasceu no dia 24 de junho de 1923, na cidade de Tours, Departamento de Indre-et-Loire, no interior da França, de pai ferroviário e mãe professora primária. Após o curso secundário realizado em sua cidade natal, estudou matemática e filosofia, tendo obtido o "baccaloréat" em 1941. Depois, na Universidade de Poitiers, e em seguida,a partir de 1943, na Sorbonne, prosseguirá os estudos de matemática superior, história das ciências e filosofia.
Adolescente ainda, despertou para a poesia lendo Valéry, mas se apegará particularmente a Baudelaire - sobre o qual fará o mestrado -, Rimbaud e Mallarmé.
Em Paris, descobre os poetas e os pintores surrealistas, chegando a freqüentar o grupo de André Breton. Sua passagem pelo Surrealismo está documentada na revista La Révolucion la Nuit, que fundou com alguns amigos. Mantém-se, entretanto, reservado quanto a certas práticas surrealistas e rompe com o grupo em 1947. Desde então, a sua originalidade se afirma definitivamente, e ele será um daqueles inovadores que irão imprimir novos rumos à poesia francesa.
Com a publicação, em 1953, da coletânea de poemas intitulada Du Mouvement et de l'Immobilité de Douve, primeira de uma série que se vai ampliando durante toda esta segunda metade do século, impôs-se como criador de uma das obras poéticas maiores da França e mesmo creio não ser temerário afirmá-lo - da literatura ocidental.
Há que se destacar também, como parte integrante da produção de Yves Bonnefoy, as suas traduções de Shakespeare, Yeats, John Donne e outros, assim como os numerosos ensaios que escreveu sobre literatura, poesia, artes plásticas e outros temas.
Também a docência se insere entre as atividades de Yves Bonnefoy: depois de ensinar em várias universidades, na França e no exterior, Yves Bonnefoy foi eleito, em 1981, para o Collège de France, onde lecionou poética até a aposentadoria, em 1993.
Mas para melhor entender a gênese da poesia de Yves Bonnefoy, talvez seja necessário voltar a considerar os tempos de sua infância. Costumava então ir passar as férias na casa dos avós, na cidadezinha de Saint-Pierre-Toirac, no vale do Rio Lot, no Quercy. A região, rude e bela, cortada por rios cujas águas límpidas cavam profundas gargantas na rocha calcárea (te Causse), registra a passagem de numerosas e sucessivas culturas: o homem das cavernas deixou ali os seus vestígios em admiráveis pinturas rupestres; a topografia acidentada fez da região um dos últimos baluartes da resistência gaulesa à invasão romana; os romanos, vencedores, fizeram passar por aqueles vales a importante rota que ligava Lião a Bordéus; a Idade Média semeou os vales, as encostas, os cumes de igrejas e castelos-fortes; nas Idades Moderna e Contemporânea registrou-se um declínio de toda a região em benefício de outras, por razões históricas que não cabe aqui esmiuçar, mas essa "France profonde" manteve-se como um relicário do passado e um celeiro de tradições.
Yves Bonnefoy, Paris - 2010. |
Mas o sucesso da produção poética de Yves Bonnefoy se deve também à sua extraordinária clarividência, às suas admiráveis faculdades de intuição e ao profundo senso poético que preside a sua vida e à sua produção artística e intelectual, à aguda visão arquitetural e de conjunto, que talvez tenha as suas raízes nos estudos matemáticos e filosóficos a que se dedicou desde a juventude. Assim, Yves Bonnefoy, como diz Jean Starobinski, "conhece por experiência o atrativo do pensamento abstrato, a alegria que a mente pode experimentar em construir o edifício dos conceitos e das relações puras. Mas como Bachelard, de quem seguiu os ensinamentos científicos, também ele, depois de exaltar a ascese científica, apaixonou-se pelo que tinha rejeitado: as convicções sonhadoras, a configuração que o desejo dá ao espaço, as virtudes imaginárias que emprestamos à matéria.''
É por essa convivência entre o pensamento conceptual científico e a "narrativa em sonho" que se torna difícil, na produção de Bonnefoy, separar o que é poesia do que é ensaio. Comentando concretamente a produção, o surgimento de um de seus próprios textos, ele nos diz: "Há dois verões atrás, por exemplo, eu havia escrito um pequenino livro, era então mais um ensaio, e eu ia enviá-lo ao editor; anunciei-lhe que ele iria recebê-lo dentro de poucos dias; só me faltava datilografá-lo. E sentei-me diante da máquina; mas uma palavra, na segunda frase, me desagradou; eu a mudei. Pronto, toda a terceira teve de ser refeita em conseqüência; e de uma frase para a próxima, a coisa foi-se ampliando tanto que muito do primeiro texto se dissipou; ziguezagueou o raio de uma rasgadura, no seio do qual percebi os delineamentos de uma escrita nova, não conceptual desta vez". Assim, por um impulso interno que deságua na escrita, Yves Bonnefoy oscila entre o conceito e o devaneio na produção do texto.
- Mário Laranjeira. "Apresentação". in "Yves Bonnefoy. Obra Poética". [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
Yves Bonnefoy,caricatura de Claudia Patuzzi |
OBRA DE YVES BONNEFOY PUBLICADA EM PORTUGUÊS
Poesia
:: Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
Ensaio
:: Rimbaud. Yves Bonnefoy. [tradução do texto e poemas por Filipe Jarro]. Lisboa: Livros Cotovia, 2004.
Antologia (participação)
:: Pequena antologia de poemas franceses. [concepção e tradução de Renata Cordeiro]. São Paulo: Editora Landy, 2002.
:: Poetas de França hoje, 1945-1995. [seleção, introdução e tradução de Mário Laranjeira]. Edição bilíngue. São Paulo: EDUSP, 1997.
:: Folhetim: poemas traduzidos. [apresentação presentação de Matinas Suzuki Jr.; tradutores Nelson Ascher e outros]. São Paulo: Editora da Folha, 1987.
Yves Bonnefoy - foto: Ulises Ruiz Basurto/EPA |
ÀS ÁRVORES
Vós que vos apagastes à sua passagem,
Que sobre ela fechastes os vossos caminhos,
Impassíveis avais de que até morta Douve
Há de ser luz, ainda não sendo nada.
Vós fibrosa matéria e densidade,
Árvores, junto a mim quando ela se lançou
Na embarcação dos mortos e boca fechada
Ao óbolo de fome, de frio e silêncio.
Ouço através de vós que diálogo ela tenta
Com esses cães, com esse informe bateleiro,
E eu pertenço a vós pelo seu caminhar
Por entre tanta noite e apesar deste rio.
O trovão tão profundo a vos rolar nos galhos,
As festas que ele inflama ao cume do verão
Sinalam que ela liga a sua fortuna à minha
Pela mediação da vossa austeridade.
.
AUX ARBRES
Vous qui vous êtes effacés sur son passage,
Qui avez refermé sur elle vos chemins,
Impassibles garants que Douve même morte
Sera lumière encore n'étant rien.
Vous fibreuse matière et densité,
Arbres, proches de moi quand elle s'est jetée
Dans la barque des morts et la bouche serrée
Sur l'obole de faim, de froid et de silence.
J'entends à travers vous quel dialogue elle tente
Avec les chiens, avec l'informe nautonier,
Et je vous appartiens par son cheminement
À travers tant de nuit et malgré tout ce fleuve.
Le tonnerre profond qui roule sur vos branches,
Les fêtes qu'il enflamme au sommet de l'été
Signifient qu'elle lie sa fortune à la mienne
Dans la médiation de votre austérité.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
VERDADEIRO NOME
Eu chamarei deserto ao castelo que foste,
Noite a essa voz, ausência ao teu semblante,
E ao caíres um dia nessa terra estéril
Eu chamarei de nada o raio teu raptor.
Morrer é um país de que tu gostavas. Venho
Mas pela eternidade em teus negros caminhos.
Destruo o teu desejo, a forma e a memória,
Eu sou teu inimigo e não terá piedade.
Eu te chamarei guerra e tomarei
Contigo as liberdades da guerra e terei
Nas mãos esse teu rosto, escuro e trespassado,
No meu peito o país que em tempestade luz.
A luz profunda necessita pra surgir
De uma terra talada e a arrebentar de noite.
De lenha tenebrosa é que a chama se exalta.
Mesmo para a palavra é preciso matéria,
Uma inerte ribeira além de todo canto.
Tem de passar a morte por que vivas,
A mais pura presença é sangue derramado.
.
VRAI NOM
Je nommerai désert ce château que tu fus,
Nuit cette voix, absence ton visage,
Et quand tu tomberas dans la terre stérile
Je nommerai néant l'éclair qui t'a porté.
Mourir est un pays que tu aimais. Je viens
Mais éternellement par tes sombres chemins.
Je détruis ton désir, ta forme, ta mémoire,
Je suis ton ennemi qui n'aura de pitié.
Je te nommerai guerre et je prendrai
Sur toi les libertés de la guerre et j'aurai
Dans mes mains ton visage obscur et traversé,
Dans mon cœur ce pays qu'illumine l'orage.
La lumière profonde a besoin pour paraître
D'une terre rouée et craquante de nuit.
C'est d'un bois ténébreux que la flamme s'exalte.
Il faut à la parole même une matière.
Un inerte rivage au delà de tout chant.
Il te faudra franchir la mort pour que tu vives,
La plus pure présence est un sang répandu.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
Que palavra surgiu perto de mim,
Que grito nasce numa boca ausente?
Mal posso ouvir o grito contra mim,
Mal sinto o hálito que me nomeia.
No entanto o grito em mim vem de mim mesmo,
Estou murado em minha extravagância.
Que voz divina ou que estranha voz
Consentira habitar o meu silencio?
.
Quelle parole a surgi près de moi,
Quel cri se fait sur une bouche absente?
A peine si j'entends crier contre moi,
A peine si je sens ce souffle qui me nomme.
Pourtant ce cri sur moi vient de moi,
Je suis muré dans mon extravagance.
Quelle divine ou quelle étrange voix
Eût consenti d'habiter mon silence?
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
UMA VOZ
Que casa para mim queres erguer,
Que escrita negra quando vem o fogo?
*
Recuei muito tempo aos teus sinais,
Baniste-me de toda densidade.
*
Mas eis que a noite infinda me protege,
Por sombrios cavalos salvo-me de ti.
.
UNE VOIX
Quelle maison veux-tu dresser pour moi,
Quelle écriture noire quand vient le feu?
*
J'ai reculé longtemps devant tes signes,
Tu m'as chassée de toute densité.
*
Mais voici que la nuit incessante me garde,
Par de sombres chevaux je me sauve de toi.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
OUTRA VOZ
Sacudindo o cabelo, essa cinza de Fénix,
Que gesto tentas quando tudo pára,
E no ser meia-noite as mesas ilumina?
*
Que signo guardas nos seus lábios negros,
Que indigente palavra quando tudo cala,
Última brasa quando o lar hesita e apaga?
*
Hei de viver em ti, hei de arrancar
Toda luz que há em ti,
Toda encarnação, todo recife e lei.
*
E no vazio em que te alço eu vou abrindo
O caminho do raio,
Ou maior grito que jamais um ser tentara.
.
UNE AUTRE VOIX
Secouant ta chevelure ou cendre de Phénix,
Quel geste tentes-tu quand tout s'arrête,
Et quand minuit dans l'être illumine les tables?
*
Quel signe gardes-tu sur tes lèvres noires,
Quelle pauvre parole quand tout se tait,
Dernier tison quando I'âtre hésite et se referme?
*
Je saurai vivre en toi, j'arracherai
En toi toute lumière,
Toute incarnation, tout récif, toute loi.
*
Et dans le vide où je te hausse j'ouvrirai
La route de la foudre,
Ou plus grand cri qu'être ait jamais tenté.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
Se esta noite é outra, não a noite,
Renasce, longe voz benéfica, desperta
Essa argila mais grave onde dormisse o grão,
Fala: eu não era mais que terra desejante,
Eis enfim as palavras da aurora e da chuva.
Mas fala por que eu seja esse chão bem-fadado,
Fala se existe ainda um dia sepultado.
.
Si cette nuit est autre que la nuit,
Renais, lointaine voix bénéfique, réveille
L'argile la plus grave où le grain ait dormi.
Parle: je n'étais plus que terre désirante,
Voici les mots enfin de l'aube et de la pluie.
Mais parle que je sois la terre favorable,
Parle s'il est encor un jour enseveli.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
Pergunta ao senhor da noite qual é esta noite
Pergunta: o que é que queres, ó senhor disjunto?
Náufrago da tua noite, sim, te busco nela,
Vivo de tuas questões, e falo no teu sangue,
Sou senhor da tua noite, velo em ti como a noite.
.
Demande au maître de la nuit quelle est cette nuit,
Demande: que veux-tu, ô maitre disjoint?
Naufragé de ta nuit, oui, je te cherche en elle,
Je vis de tes questions, je parle dans ton sang,
Je suis le maître de ta nuit, je veille en toi comme la nuit.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
UMA VOZ
Recorda aquela ilha onde se erige o fogo
Dos vivos olivais no flanco das cimeiras,
E é para que mais alta a noite seja e à aurora
Não haja vento mais que de esterilidade.
Tanto caminho negro há de fazer um reino
Onde recuperar o orgulho que já fomos,
Pois nada há de aumentar mais uma força eterna
Do que uma chama eterna e tudo se desfaça.
Por mim, irei buscar essa terra de cinzas,
Meu coração irei deitar sobre teu corpo.
Arrasado. Não sou tua vida em fundas ânsias,
Cujo só monumento é Fénix na fogueira?
.
UNE VOIX
Souviens-toi de cette île où l'on bâtit le feu
De tout olivier vif au flanc des crêtes,
Et c'est pour que la nuit soit plus haute et qu"à l'aube
Il n"y ait plus de vent que de stérilité.
Tant de chemins noircis feront bien un royaume
Où rétablir l'orgueil que nous avons été,
Car rien ne peut grandir une éternelle force
Q'une éternelle flamme et que tout soit défait.
Pour moi je rejoindrai cette terre cendreuse,
Je coucherai mon coeur sur son corps dévasté.
Ne suis-je pas ta vie aux profondes alarmes,
Qui n'a de monument que Phénix au bûcher?
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
Pede para teus olhos que os rompa a noite,
Nada há de começar, só além desse véu,
Pede aquele prazer que propicia a noite
De gritar sob o baixo arco de lua alguma,
Pede para tua voz que a silencie a noite...
Pede por fim o frio, deseja essa hulha.
.
Demande pour tes yeux que les rompe la nuit,
Rien ne commencera qu'au delà de ce voile,
Demande ce plaisir que dispense la nuit
De crier sous le cercle bas d'aucune lune,
Demande pour ta voix que l'étouffe la nuit.
Demande enfin le froid, désire cette houille.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
UMA VOZ
Levei minha palavra em ti como uma chama,
Mais árduas trevas do que as chamas são os ventos.
E nada me dobrou em tão profunda luta,
Nenhuma estrela má, nenhum transviamento.
Assim foi o que vivi, mas forte de uma chama,
Que mais eu conheci que o seu recurvamento
E essa noite que sei que há de vir ao caírem
Vidraças sem porvir do místico tormento?
Palavra apenas soa contra a ausência intentada,
A ausência destruirá esta arenga que tanto.
Sim, logo é perecer, não ser senão palavra,
E é tarefa fatal e vão coroamento.
.
UNE VOIX
J'ai porté ma parole en vous comme une flamme,
Ténèbres plus ardues qu'aux flammes sont les vents.
Et rien ne m'a soumise en si profonde lutte,
Nulle étoile mauvaise et nul égarement.
Ainsi ai-je vécu, mais forte d'une flamme,
Qu'ai-je d'autre connu que son recourbement
Et la nuit que je sais qui viendra quand retombent
Les vitres sans destin de son élancement?
Je ne suis que parole intentée à l'absence,
L'absence détruira tout mon ressassement.
Oui, c'est bientôt périr de n'être que parole,
Et c'est tâche fatale et vain couronnement.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
LUGAR VERDADEIRO
Seja dado um lugar àquele que vem vindo,
Personagem com frio e privado de lar.
Personagem que o ruído tenta de uma lâmpada,
E a soleira alumiada de um único lar.
E se alquebrado está de angústia e de fadiga,
Repitam-lhe as palavras que o irão curar.
Que falta a esse peito que era só silêncio,
Senão palavras feitas do signo e do orar.
E qual pequeno fogo de repente à noite,
E essa mesa entrevista de um humilde lar?
.
VRAI LIEU
Qu’une place soit faite à celui qui approche,
Personnage ayant froid et privé de maison.
Personnage tenté par le bruit d’une lampe,
Par le seuil éclairé d’une seule maison.
Et s’il reste recru d’angoisse et de fatigue,
Qu’on redise pour lui les mots de guérison.
Que faut-il à ce coeur qui n’était que silence,
Sinon des mots qui soient le signe et l’oraison.
Et comme un peu de feu soudain la nuit,
Et la table entrevue d’une pauvre maison?
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O RUÍDO DAS VOZES
Da voz calou-se o ruído, que te designava.
Estás só no cercado das barcas escuras.
Caminhas nesse solo a se mover, mas tens
Um canto outro que a água cinza no teu peito.
Uma esperança outra que a partida certa,
Passos tíbios, o fogo a cambalear à frente.
Não amas esse rio, meras águas terrestres,
Seu caminho de lua em que se acalma o vento.
Antes, dizes tu, antes em praias já sem vida,
Dos palácios que fui altas ruínas apenas,
Tu só amas a noite enquanto noite, alçando
A tocha, teu destino, de renúncia plena.
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LE BRUIT DES VOIX
Le bruit des voix s'est tu, qui te désignait.
Tu es seul dans l'enclos des barques obscures.
Marches-tu sur ce sol qui bouge, mais tu as
Un autre chant que cette eau grise dans ton cœur,
Un autre espoir que ce départ que l'on assure,
Ces pas mornes, ce feu qui chancelle à l'avant.
Tu n'aimes pas le fleuve aux simples eaux terrestres
Et son chemin de lune où se calme le vent.
Plutôt, dis-tu, plutôt sur de plus mortes rives,
Des palais que je fus le haut délabrement,
Tu n'aimes que la nuit en tant que nuit, qui porte
La torche, ton destin, de tout renoncement.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
BELO VERÃO
Nossos dias o fogo habitava e cumpria,
Feria ao tempo o ferro a cada alva mais cinza,
O vento golpeava a morte em nossos tetos,
O frio não sustava o cerco em nossos peitos.
Foi um belo verão, insosso, áspero e escuro,
Amaste a maciez da chuva no verão
E amaste a morte assim dominando o verão
Do pavilhão tremente em suas asas de cinza.
Naquele ano vieste quase a decifrar
Um signo sempre negro alçado ao teu olhar
Pelas pedras, e ventos, e águas, e folhagens.
Assim a relha já mordia a terra móvel
E o teu orgulho amou aquela luz tão nova,
A embriaguez de ter medo em terra de verão.
.
LE BEL ÉTÉ
Le feu hantait nos jours et les accomplissait,
Son fer blessait le temps à chaque aube plus grise,
Le vent heurtait la mort sur le toit de nos chambres,
Le froid ne cessait pas d’environner nos coeurs.
Ce fut un bel été, fade, brisant et sombre,
Tu aimas la douceur de la pluie en été
Et tu aimas la mort qui dominait l’été
Du pavillon tremblant de ses ailes de cendre.
Cette année-là, tu vins à presque distinguer
Um signe toujours noir devant tes yeux porté
Par les pierres, les vents, les eaux et les feuillages.
Ainsi le soc déjà mordait la terre meuble
Et ton orgueil aima cette lumière neuve,
L’ivresse d’avoir peur sur la terre d’été.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
Muita vez no silêncio de uma grota
Ouço (ou desejo ouvir, eu já nem sei)
Cair um corpo em meio aos galhos. Longa e lenta
É essa queda cega; grito algum
Vem nunca interrompê-la ou terminá-la.
Eu penso então nas procissões da luz
No país sem nascer e sem morrer.
.
Souvent dans le silence d’un ravin
J’entends (ou je désire entendre, je ne sais)
Um corps tomber parmi les branches. Longue et lente
Est cette chute aveugle; que nul cri
Ne vient jamais interrompre ou finir.
Je pense alors aux processions de la lumière
Dans le pays sans naître ni mourir.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A PONTE DE FERRO
Existe ainda por certo ao fim de uma longa rua
Onde andava eu criança um pântano estagnado
Retângulo pesado de morte ao céu negro.
Desde então a poesia
Separou de outras águas suas águas,
Beleza alguma, ou cor a vão reter,
Por ferro ela angustia-se e por noite.
Nutre um longo
Pesar de margem morta, uma ponte de ferro
Lançada à outra margem mais noturna ainda
É sua só memória e só real amor.
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LE PONT DE FER
Il y a sans doute toujours au bout d'une longue rue
Où je marchais enfant une mare d'huile,
Un rectangle de lourde mort sous le ciel noir.
Depuis la poésie
A séparé ses eaux des autres eaux,
Nulle beauté nulle couleur ne la retiennent,
Elle s'angoisse pour du fer et de la nuit.
Elle nourrit
Un long chagrin de rive morte, un pont de fer
Jeté vers l'autre rive encore plus nocturne
Est sa seule mémoire et son seul vrai amour.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O JARDIM
Docel de astros cobria os muros do jardim
Como os frutos da árvore além, mas as pedras
Do mortal sítio punham na espuma da árvore
Como sombra de vante e como uma lembrança.
Astros e vós, grés de um caminho puro,
Pálidos, nos tomáveis o vero jardim
Os caminhos do céu estrelado ensombravam
Esse náufrago canto; a nossa rota escura.
.
LE JARDIN
Les étoiles voûtaient les murs du haut jardin
Comme les fruits de l'arbre au-delà, mais les pierres
Du lieu mortel portaient dans l'écume de l'arbre
Comme une ombre d'étrave et comme un souvenir.
Etoiles et vous, craies d'un pur chemin.
Vous pâlissiez, vous nous preniez le vrai jardin,
Tous les chemins du ciel étoile faisant ombre
Sur ce chant naufragé; sur notre route obscure.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
Em seus cofres de sonho recolheu
Seus panos tintos, e a sombra
Desse rosto manchado
Da argila rubra dos mortos.
Tu não quiseste segurar
As mãos estreitas que fizeram
O sinal de solidão
Nas encostas ocres de um corpo.
E tal como água que se perde
Nos rubores de uma água escura,
A nuca próxima se curva
Sobre a praia onde brilha a morte.
.
Dans ses coffres le rêve a replié
Ses étoffes peintes, et l'ombre
De ce visage taché
De l'argile rouge des morts.
Tu n'as pas voulu retenir
Ces mains étroites qui firent
Le signe de solitude
Sur les pentes ocres d'un cotps.
Et telle une eau qui se perd
Dans les rougeurs d'une eau sombre,
La nuque proche se courbe
Sur la plage où brille la mort.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A ESPUMA, O ARRECIFE
Solidão a não escalar, quantos caminhos!
Vestes vermelhas, horas tantas sob as árvores!
Adeus, nesta alva fria, minha água pura,
Adeus, mesmo apesar do grito, o ombro, o sono.
Escuta, nunca mais as mãos que se retomam
Como perpetuamente a espuma e o rochedo,
Nem mesmo aqueles olhos que buscam a sombra,
Amando antes o sono ainda partilhado.
Nunca mais se tentar unir voz e oração,
Noite e esperança, anseios do abismo e do porto.
Vê, não é Mozart que luta em tua alma,
Mas o gongo, contra a arma disforme da morte.
Adeus, semblante em maio.
O azul do céu é tíbio neste dia, aqui.
Do astro da indiferença o gládio fere ainda
Uma vez mais a terra do que está dormindo.
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L'ÉCUME, LE RÉCIF
Soliiudc à nc pas gravir, que dc chemins!
Robe rouge, que d'heures proches sous les arbres!
Mais adieu, dans cette aube froide, mon eau pure,
Adieu malgré le cri, l`épaule, le sommeil.
Écoute, il ne faut plus ces mains qui se reprennent
Comme éternellement l'écume et le rocher,
Et même plus ces yeux qui se tournent vers l'ombre,
Aimant mieux le sommeil encore partagé.
Il ne faut plus tenter d'unir voix et prière,
Espoir et nuit, désirs de l'abîme et du port.
Vois, ce n'est pas Mozart qui lutte dans ton âme,
Mais le gong, contre l'arme informe de la mort.
Adieu, visage en mai.
Le bleu du ciel est morne aujourd'hui, ici.
Le glaive de l'indifférence de l'étoile
Blesse une fois de plus la terre du dormeur.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
UMA PEDRA
Dizia-me, Tu és uma água, a mais obscura,
Mais fresca, onde provar o amor impartilhável.
Eu lhe retive o passo, mas entre outras pedras,
Nesse eterno beber do dia aquém de dia.
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A PIERRE
Il me disait, Tu es une eau, la plus obscure,
La plus fraîche où goûter l'impartageable amour.
J'ai retenu son pas, mais parmi d'autres pierres,
Dans le boire éternel du jour plus bas que jour.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
LUGAR DOS MORTOS
Qual é o lugar dos mortos,
Terão direito como nós a ter caminhos,
Acaso falam, com palavras mais reais,
Serão a alma das folhagens ou folhagens mais altas?
Fénix terá erguido para eles um castelo,
Posto para eles a mesa?
O grito de alguma ave no fogo de alguma árvore
Seria o espaço em que se juntam todos?
Jazem eles quem sabe na folha da hera,
Desfeita a sua palavra
Sendo o porto do rasgo das folhas, aonde a noite vem.
.
LE LIEU DES MORTS
Quel est le lieu des morts,
Ont-ils droit comme nous à des chemins,
Parlent-ils, plus réels étant leurs mots,
Sont-ils l'esprit des feuillages ou des feuillages plus
hauts?
Phénix a-t-il construit pour eux un château.
Dressé pour eux une table?
Le cri de quelque oiseau dans le feu de quelque arbre
Est-il l'espace où ils se pressent tous?
Peut-être gisent-ils dans la feuille du lierre,
Leur parole défaite
Étant le port de la déchirure des feuilles, où la nuit
vient.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
LUGAR DOS MORTOS
Lugar dos mortos
É a dobra quem sabe do pano vermelho.
Eles caem talvez
Em suas mãos pedrentas; talvez se agravem
Pelos tufos no mar de cor vermelha;
Teriam como espelho
O corpo gris da jovem cega; têm por fome
No gorjeio das aves as mãos de afogada.
Ou estão reunidos sob o sicômoro ou o bordo?
Ruído algum perturba já sua assembléia.
A deusa se mantém no topo da árvore,
Inclina para eles a jarra de ouro.
É às vezes brilha só o braço divino na árvore
E pássaros se calam, outros pássaros.
.
LE LIEU DES MORTS
Le lieu des morts,
C’est peut-être le pli de l’étoffe rouge.
Peut-être tombent-ils
Dans ses mains rocailleuses; s’aggravent-ils
Dans les touffes en mer de la couleur rouge;
Ont-ils comme miroir
Le corps gris de la jeune aveugle; ont-ils pour faim
Dans le chant des oiseaux ses mains de noyée.
Ou sont-ils réunis sous le sycomore ou l’érable?
Nul bruit ne trouble plus leur assemblée.
La déesse se tient au sommet de l’arbre,
Ele incline ses yeux vers l’aiguière d’or.
Et seul parfois le bras divin brille dans l’arbre
Et des oiseaux se taisent, d’autres oiseaux.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A ÁRVORE, A LÂMPADA
A árvore na árvore envelhece, é verão.
A ave passa o canto da ave que se evade.
O rubro do vestido ilumina e dispersa
Longe, no céu, o carrejar de antiga dor.
Ó tão frágil país,
Como a chama de lâmpada que se carrega,
Próximo estando o sono na seiva do mundo,
Simples o batimento da alma partilhada.
Também tu amas o instante em que a luz da lâmpada
Se descolore e sonha dia adentro.
Sabes que é o escuro do teu peito que cura,
A barca que atingindo a praia tomba.
.
L'ARBRE, LA LAMPE
L'arbre vieillit dans l'arbre, c'est l'été
L'oiseau franchit le chant de l'oiseau et s'évade.
Le rouge de la robe illumine et disperse
Loin, au ciel, le charroi de l'antique douleur.
O fragile pays,
Comme la flamme d'une lampe que l'on porte,
Proche étant le sommeil dans la sève du monde,
Simple le battement de l'âme partagée.
Toi aussi tu aimes l'instant où la lumière des lampes
Se décolore et rêve dans le jour.
Tu sais que c'est l'obscur de ton cœur qui guérit,
La barque qui rejoint le rivage et tombe.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
OS CAMINHOS
Caminhos, entre
A matéria das árvores. Deuses, por entre
Os tufos desse canto incansável de pássaros.
E todo o sangue arcado sob mão sonhadora,
Ó próximo, ó meu dia todo.
Quem recolheu o ferro
Enferrujado, entre altos matos, não esquece
Que aos grumos do metal a luz pode prender
E consumir o sal da dúvida e da morte.
.
LES CHEMINS
Chemins, parmi
La matière des arbres. Dieux, parmi
Les touffes de ce chant inlassable d'oiseaux.
Et tout ton sang voûté sous une main rêveuse,
O proche, ô tout mon jour.
Qui ramassa le fer
Rouillé, parmi les hautes herbes, n'oublie plus
Qu'aux grumeaux du métal la lumière peut prendre
Et consumer le sel du doute et de la mort.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A MURTA
Por vezes te sabia a terra, eu bebia
Em teus lábios a angústia das nascentes
Quando brota das pedras quentes, e o verão
Dominava alto a pedra airosa e quem bebia.
Por vezes te dizia de murta e queimávamos
A árvore de teus gestos todos todo um dia.
Eram fogaréus breves de uma luz vestal,
Assim eu te inventava em teus cabelos claros.
Todo um nulo verão secara-nos os sonhos,
Tolhera a voz, inchara os corpos, quebrara os ferros.
Por vezes ia rodando o leito, barca livre
Que ganha lentamente o mais alto cio mar.
.
LE MYRTE
Parfois je te savais la terre, je buvais
Sur tes lèvres l’angoisse des fontaines
Quand elle sourd des pierres chaudes, et l’été
Dominait haut la pierre heureuse et le buveur.
Parfois je te disais de myrte et nous brûlions
L’arbre de tous tes gestes tout un jour.
C’étaient de grands feux brefs de lumière vestale,
Ainsi je t’inventais parmi tes cheveux clairs.
Tout un grand été nul avait séché nos rêves,
Rouillé nos voix, accru nos corps, défait nos fers.
Parfois le lit tournait comme une barque libre
Qui gagne lentement le plus haut de la mer.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O SANGUE, A NOTA SI
Longas, longas jornadas,
O sangue insaciado fere o sangue.
O nadador é cego.
Ele desce em púrpuras etapas nas batidas do teu coração.
Quando a nuca está tensa
Grito sempre deserto toma a boca pura.
Envelhece o verão assim. Assim a morte
Cerca a felicidade da chama a mover-se.
E dormimos um pouco. A nota si
Ressoa muito tempo no pano vermelho.
.
LE SANG, LA NOTE SI
Longues, longues journées.
Le sang inapaisé heurte le sang.
Le nageur est aveugle.
Il descend par étages pourpres dans le battement de ton
cœur.
Quand la nuque se tend
Le cri toujours désert prend une bouche pure.
Ainsi vieillit l'été. Ainsi la mort
Encercle le bonheur de la flamme qui bouge.
Et nous dormons un peu. La note si
Resonne très longtemps dans l'étoffe rouge.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A ABELHA, A COR
Cinco horas.
O sono é leve, em manchas na vidraça.
O dia vai buscar na cor a água fresca,
Cascateante, da noite.
E é como se a água se simplificasse
Sendo luz ainda mais, que tranqüiliza,
Mas, o Um rasgando-se na perna escura, vais
Perder-te onde bebeu a boca na acre morte.
(A cornucópia com o fruto rubro
Ao sol que vai girando. E o barulho todo
De abelhas dessa impura e doce eternidade
No tão próximo prado ainda tão ardente).
.
L'ABEILLE. LA COULEUR
Cinq heures.
Le sommeil est léger, en taches sur les vitres.
Le jour puise là-bas dans la couleur l'eau fraîche,
Ruisselante, du soir.
Et c'est comme si l'âme se simplifie
Etant lumière davantage, et qui rassure,
Mais, l'Un se déchirant contre la jambe obscure,
Tu te perds, où la bouche a bu à l'acre mort.
(La corne d'abondance avec le fruit
Rouge dans le soleil qui tourne. Et tout ce bruit
D'abeilles de l'impure et douce éternité
Sur le si proche pré si brûlant encore).
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
O ENTARDECER
Riscas azuis e negras.
Uma lavra que vai rumo aos baixos do céu.
O leito, amplo e fendido como o rio em cheia.
– Vê, já caiu a noite.
E o fogo fala junto a nós na eternidade da sálvia.
.
LE SOIR
Rayures bleues et noires.
Un labour qui dévie vers le bas du ciel.
Le lit, vaste et brisé comme le fleuve en crue.
— Vois, c'est déjà le soir,
Et le feu parle auprès de nous dans l'éternité de la
sauge.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A LUZ DO ENTARDECER
A tarde,
Pássaros que se falam, imprecisos,
Que se mordiscam, luz.
A mão que se moveu sobre o flanco deserto.
Nós estamos imóveis parados há já tempo.
Falamos baixo.
E o tempo fica em volta a nós como poças coloridas.
.
LA LUMIÈRE DU SOIR
Le soir,
Ces oiseaux qui se parlent, indéfinis,
Qui se mordent, lumière.
La main qui a bougé sur le flanc désert.
Nous sommes immobiles depuis longtemps.
Nous parlons bas.
Et le temps reste autour de nous comme des flaques de couleur.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A FALA DA NOITE
O país do princípio de outubro só tinha
Frutas a se rasgar no chão, seus passarinhos
Chegavam a soltar gritos de ausência e pedra
No alto flanco curvado vindo rumo a nós.
Minha fala da noite,
Como uva de um outono tardio tens frio,
Mas o vinho já queima em tua alma e eu encontro
Meu só real calor: teu verbo fundador.
A nave de um findar de outubro, claro, pode
Vir. Saberemos misturar as duas luzes,
Ó minha nave iluminada em mar errante,
Clarão de noite perto e clarão de palavra,
— Bruma que subirá de toda coisa viva
E tu, meu rubescer de lâmpada na morte.
.
LA PAROLE DU SOIR
Le pays du début d'octobre n'avait fruit
Qui ne se déchirât dans l'herbe, et ses oiseaux
En venaient à des cris d'absence et de rocaille
Sur un haut flanc courbé qui se hâtait vers nous.
Ma parole du soir,
Comme un raisin d'arrière-automne tu as froid,
Mais le vin déjà brûle en ton âme et je trouve
Ma seule chaleur vraie dans tes mots fondateurs.
Le vaisseau d'un achèvement d'octobre, clair,
Peut venir. Nous saurons mêler ces deux lumières,
O mon vaisseau illuminé errant en mer,
Clarté de proche nuit et clarté de parole,
— Brume qui montera de toute chose vive
Et toi. mon rougeoiement de lampe dans la mort.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
SOBRE UMA PIETÁ DE TINTORETTO
Nunca uma dor
Teve mais elegância nessas grades
Negras, e devoradas pelo sol. Nem nunca
Elegância foi causa mais espiritual,
Um fogo duplo, em pé sobre as grades da noite.
Aqui,
Uma grande esperança foi pintor. Que é
Mais real: o amargor desejante ou a imagem
Pintada? O desejo rasgou o véu da imagem,
A imagem deu vida ao exangue desejo.
.
SUR UNE PIETÀ DE TINTORET
Jamais douleur
Ne fut plus élégante dans ces grilles
Noires, que dévora le soleil. Et jamais
Élégance ne fut cause plus spirituelle,
Um feu double, debout sur les grilles du soir.
Ici,
Um grand espoir fut peintre. Oh, qui est plus réel
Du chagrin désirant ou de l’image peinte?
Le désir déchira le voile de l’image,
L’image donna vie à l’exsangue désir.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
UMA VOZ
Tu que dizem beberes da água quase ausente,
Lembra-te de que ela nos escapa e fala-nos.
A frustrante teria, enfim cativa,
Outro gosto que o da água mortal e serás
O iluminado de palavra obscura
Bebida nessa fonte e sempre viva,
Ou a água é sombra só, em que teu rosto
Reflete apenas sua finitude?
— Eu nada sei, eu já não sou, o tempo acaba
Como a cheia de um sonho aos deuses ocultados,
E tua voz, também como uma água, apaga-se
Dessa linguagem clara e que me consumiu.
Sim, posso aqui viver. O anjo, que é a terra,
Vai em cada touceira surgir e queimar.
Sou esse altar vazio, e esse abismo, e esses arcos
E tu mesmo talvez, e a dúvida: mais a alva
E o refulgir das pedras descobertas.
.
UNE VOIX
Toi que l’on dit qui bois de cette eau presque absente,
Souviens-toi qu’elle nous échappe et parle-nous.
La décevante est-elle, enfin saisie,
D’un autre goût que l’eau mortelle et seras-tu
L’illuminé d’une obscure parole
Bue à cette fontaine et toujours vive,
Ou l’eau n’est-elle que l’ombre, où ton visage
Ne fait que réfléchir sa finitude?
– Je ne sais pas, je ne suis plus, le temps s’achève
Comme la crue d’un rêve aux dieux irrévélés,
Et ta voix, comme une eau elle-même, s’efface
De ce langage clair et qui m’a consumé.
Oui, je puis vivre ici. L’ange, qui est la terre,
Va dans chaque buisson et paraître et brûler.
Je suis cet autel vide, et ce gouffre, et ces arches
Et toi-même peut-être, et le doute: mais l’aube
Et le rayonnement de pierres descellées.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
ARTE DA POESIA
Dragado foi o olhar fora daquela noite.
As mãos secadas e imobilizadas.
Reconciliou-se a febre. Disse-se ao coração
Que fosse o coração. Há um demônio nessas veias
Que fugiu a gritar.
Há na boca uma voz tíbia e sangrenta
Que foi lavada e outra vez chamada.
.
ART DE LA POÉSIE
Dragué fut le regard hors de cette nuit.
Immobilisées et séchées les mains.
On a réconcilié la fièvre. On a dit au coeur
D'être le cceur. Il y avait un démon dans ces veines
Qui s'est enfui en criant.
II y avait dans la bouche une voix morne sanglante
Qui a été lavée et rappelée.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A TERRA
..............................................................................
Ó chama
Que a consumir celebras,
Cinza
Que a dispersar recolhes.
Chama, sim, que apagas
Da mesa sacrificial do estio
A febre, os sobressaltos
Da mão crispada.
Chama, para que a pedra do céu claro
Fique lavada desta sombra, e seja
Um deus criança que brinque
Na acritude da seiva.
Sobre ti me debruço, colho, de joelhos,
Chama que vais,
A impaciência, o ardor, o luto, a solidão
Em tua fumaça
Sobre ti me debruço, aurora, e pego
Nas minhas mãos a tua face. Tempo lindo
Faz na cama deserta! Eu sacrifico
E és a ressurreição do que eu queimo.
Chama
Nosso quarto de outro ano, misterioso
Como uma proa de barca que passa.
Chama, esse vidro
Na mesa da cozinha abandonada,
Em V.
Entre os escombros.
Chama, de sala em sala,
O estuque,
Toda uma indiferença, iluminada.
Chama essa lâmpada
Onde faltava Deus
Acima do portal daquele estábulo.
Chama
A vinha do relâmpago, distante,
No pisoteamento dos bichos que sonham.
Chama essa pedra
Onde a faca do sonho lidou tanto.
Chama,
Na paz da chama,
O cordeiro a imolar mantido a salvo.
.............................................................................
..............................................................................
Sim, eu as pedras da noite, iluminadas,
Eu consinto.
Sim, eu a poça
Mais vasta do que o céu, a criança
Que lhe remexe a lama, o íris
De reflexos sem repouso, sem lembrança,
Da água, sim, eu consinto.
E eu o fogo, eu
A pupila do fogo, na fumaça
Das plantas e dos séculos, consinto.
Eu a nuvem
Eu consinto. Eu a estrela da tarde
Eu consinto.
Eu os cochos de mundos já maduros,
Eu a partida
Dos pedreiros tardios rumo às vilas
Eu o ruído do furgão a se perder,
Consinto. Eu o pastor,
Levo o cansaço e a esperança
Sob o arco da estrela para o estábulo.
Eu a noite de agosto,
Faço a cama dos animais no estábulo.
Eu o sono,
Eu pego o sonho em minhas barcas, eu consinto.
E eu, a voz
Que tanto desejou. Eu o malho
Que bateu, golpes surdos,
No céu, na terra negra. Eu o barqueiro,
Eu a barca de tudo através tudo,
Eu o sol,
Paro nas pedras, píncaro do mundo.
Palavra
Descrucificada. Cânhamo da aparência
Que enfim desfibra.
.......................................................................
.
LA TERRE
..............................................................................
O flamme
Qui consumant célèbres.
Cendre
Qui dispersant recueilles.
Flamme, oui, qui effaces
De la table sacrificielle de l'été
La fièvre, les sursauts
De la main crispée.
Flamme, pour que la pierre du ciel clair
Soit lavée de notre ombre, et que ce soit
Un dieu enfant qui joue
Dans l'âcreté de la sève.
Je me penche sur toi, je rassemble, à genoux,
Flamme qui vas.
L'impatience, l'ardeur, le deuil, la solitude
Dans ta fumée.
Je me penche sur toi, aube, je prends
Dans mes mains ton visage. Qu'il fait beau
Sur notre lit désert! Je sacrifie
Et tu es la résurrection de ce que je brûle.
Flamme
Notre chambre de l'autre année, mystérieuse
Comme la proue d'une barque qui passe.
Flamme le verre
Sur la table de la cuisine abandonnée,
AV.
Dans les gravats.
Flamme, de salle en salle.
Le plâtre.
Toute une indifférence, illuminée.
Flamme l'ampoule
Où manquait Dieu
Au-dessus de la porte de l'étable.
Flamme
La vigne de l'éclair. là-bas.
Dans le piétinement des bêtes qui révent
Flamme la pierre
Où le couteau du rêve a tant œuvré.
Flamme,
Dans la paix de la flamme.
L'agneau du sacrifice gardé sauf.
.............................................................................
.............................................................................
Oui, moi les pierres du soir, illuminées,
Je consens.
Oui, moi la flaque
Plus vaste que le ciel, l’enfant
Qui en remue la boue, l’iris
Aux reflets sans repos, sans souvenirs,
De l’eau, moi, je consens.
Et moi le feu, moi
La pupille du feu, dans la fumée
Des herbes et des siècles, je consens.
Moi la nuée
Je consens. Moi l'étoile du soir
Je consens.
Moi les grappes de mondes qui ont mûri,
Moi le départ
Des maçons attardés vers les villages,
Moi le bruit de la fourgonnette qui se perd,
Je consens.
Moi le berger.
Je pousse la fatigue et l'espérance
Sous l'arche de l'étoile vers l'étable.
Moi la nuit d'août,
Je fais le lit des bêtes dans l'étable.
Moi le sommeil.
Je prends le rêve dans mes barques, je consens.
Et moi, la voix
Qui a tant désiré.
Moi le maillet
Qui heurta, à coups sourds,
Le ciel, la terre noire.
Moi le passeur,
Moi la barque de tout à travers tout.
Moi le soleil.
Je m'arrête au faîte du monde dans les pierres.
Parole
Décrucifiée. Chanvre de l'apparence
Enfin rouie.
.......................................................................
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
AS ÁRVORES
Olhávamos as árvores, era do alto
Do terraço que nos foi caro, o sol
Ficava junto a nós mais esta vez ainda
Mas retirado, silencioso anfitrião
No limiar da casa em ruínas, que deixávamos
A seu poder, imensa, iluminada.
Vê, dizia-te eu, ele faz deslizar
Na pedra desigual, insondável do nosso apoio
A sombra do teu ombro confundido ao meu,
A das amendoeiras junto a nós
E aquela até do alto dos muros que se mescla às outras,
Rota, barca queimada, proa que deriva,
Como excesso de sonho ou de fumaça.
Mas lá longe estão imóveis os carvalhos,
Nem mesmo a sombra deles se move, na luz,
São as margens do tempo que corre aqui onde estamos,
E é inatingível o seu chão, de tão veloz
Que é o fluir da esperança grávida da morte.
Toda uma hora olhamos para as árvores.
O sol ficava à espera, em meio às pedras,
Teve pena depois, e estendeu
Para eles, mais abaixo do barranco,
Nossas sombras que parecem atingi-los
Como, estendendo o braço, pode-se tocar
Por vezes, na distância entre dois seres,
Um instante do sonho do outro, que vai sem fim.
.
LES ARBRES
Nous regardions nos arbres, c'était du haut
De la terrasse qui nous fut chère, le soleil
Se tenait près de nous cette fois encore
Mais en retrait, hôte silencieux
Au seuil de la maison en ruines, que nous laissions
À son pouvoir, immense, illuminée.
Vois, te disais-je, il fait glisser contre la pierre
Inégale, incompréhensible, de notre appui
L'ombre de nos épaules confondues,
Celle des amandiers qui sont près de nous
Et celle même du haut des murs qui se mêle aux autres,
Trouée, barque brûlée, proue qui dérive,
Comme un surcroît de rêve ou de fumée.
Mais ces chênes là-bas sont immobiles,
Même leur ombre ne bouge pas, dans la lumière,
Ce sont les rives du temps qui coule ici où nous sommes,
Et leur sol est inabordable, tant est rapide
Le courant de l'espoir gros de la mort.
Nous regardâmes les arbres toute une heure.
Le soleil attendait, parmi les pierres,
Puis il eut compassion, il étendit
Vers eux, en contrebas dans le ravin,
Nos ombres qui parurent les atteindre
Comme, avançant le bras, on peut toucher
Parfois, dans la distance entre deux êtres,
Un instant du rêve de l'autre, qui va sans fin.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O GAVIÃO
Já faz muitos, muitos anos,
Em V.,
Vimos o tempo vir diante de nós
Que estávamos a olhar pela janela aberta
Do quarto acima da capela.
Era um gavião
Voltando ao ninho no oco da parede.
Segurava no bico uma serpente morta.
Quando nos viu
Deu um grito de cólera e de angústia pura
Mas sem largar a presa e, imóvel
Na luminosidade da alva,
Formou com ela o próprio signo
Do princípio, do meio e do fim.
E havia ali
No país de verão, bem rente ao céu,
Muitos vasos, cerrados; e de cada um
Erguia-se uma chama; e cada chama
Tinha uma cor outra, que soava,
Vapor ou sonho, ou mundo, sob a estrela.
Dir-se-ia uma faina de almas, esperadas
Num trapiche na ponta de urna ilha.
Pensava estar ouvindo palavras, ou quase
(Quase, seja por falta ou por excesso
Da enferma potência da linguagem),
Passar, como se fosse um tremer do calor
No ar fosforescente que fazia uma
De todas essas cores de que algumas
Me pareciam, longe, ser desconhecidas.
Eu as tocava, elas não queimavam.
Eu estendia a mão, não, não pegava nada
Desses cachos de fruta outra que a luz.
.
L'ÉPERVIER
Il y a nombre d'années,
AV.,
Nous avons vu le temps venir au-devant de nous
Qui regardions par la fenêtre ouverte
De la chambre au-dessus de la chapelle.
C'était un épervier
Qui regagnait son nid au creux du mur.
Il tenait dans son bec un serpent mort.
Quand il nous vit
Il cria de colère et d'angoisse pure
Mais sans lâcher sa proie et, immobile
Dans la lumière de l'aube,
Il forma avec elle le signe même
Du début, du milieu et de la fin.
Et il y avait là
Dans le pays d'été, très près du ciel,
Nombre de vases, serrés; et de chacun
S'élevait une flamme; et de chaque flamme
La couleur était autre, qui bruissait,
Vapeur ou rêve, ou monde, sous l'étoile.
On eût dit d'un affairement d'âmes, attendues
À un appontement au bout d'une île.
Je croyais même entendre des mots, ou presque
(Presque, soit par défaut, soit par excès
De la puissance infirme du langage),
Passer, comme un frémissement de la chaleur
Dans l'air phosphorescent qui ne faisait qu'une
De toutes ces couleurs dont il me semblait
Que certaines, au loin, m'étaient inconnues.
Je les touchais, elles ne brûlaient pas.
J'y avançais la main, non, je ne prenais rien
De ces grappes d'un autre fruit que la lumière.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O ADEUS
Estamos de regresso à nossa origem.
Foi o lugar da evidência, mas rasgada.
As janelas mesclavam muitas luzes,
As escadas galgavam estrelas demais
Que são arcadas desabando, são entulhos,
O fogo parecia arder num outro mundo.
E agora voam pássaros de quarto em quarto,
Caíram as janelas, cobre-se o leito de pedras,
O lar cheio de escombros do céu a se apagarem.
Ali falávamos, à noite, em voz velada
Por causa dos rumores dos arcos, lá no entanto
Formávamos projetos: e uma barca,
Carregada de pedras rubras, se afastava
Irresistível de uma margem, e o olvido
Já deitava sua cinza sobre os sonhos
Que retomávamos sem fim, a povoar de imagens
O fogo que queimou até o último dia.
É certo, minha amiga,
Que há apenas um termo para designar
Na língua que chamamos de poesia
O sol do amanhecer e o da tarde,
Um só o grito de júbilo e o grito de angústia,
Um só o deserto rio acima e as machadadas,
Um só o leito desfeito e o céu de tempestade,
Um só a criancinha a nascer e o deus morto?
Sim, creio, quero crer, mas que sombras são essas
Que consigo carregam o espelho?
E vê, a urze pega em meio às pedras
Na via de relva ainda mal aberta
Onde iam nossos passos às árvores novas.
Parece-me hoje, aqui, que a palavra
É esse cocho partido, de que se derrama
A cada alva de chuva a água inútil.
A relva e nela a água a brilhar como um rio.
Tudo está sempre a remalhar o mundo.
O paraíso é esparso, bem o sei,
É tarefa terrestre lhe reconhecer
As flores esparzidas pela relva pobre,
Mas desapareceu o anjo, uma luz
Quem não foi de repente mais que o sol poente.
E como Adão e Eva nós caminharemos
Uma última vez pelo jardim.
Como Adão o primeiro remorso, como Eva
A primeira coragem vamos querer e não
Passar a porta baixa que se entreabre
Lá adiante, na outra ponta das cordas, colorida
Como de último raio, auguralmente.
O futuro acaso pega-se na origem
Como consente o céu a um espelho curvo,
Poderemos colher daquela luz,
Que foi daqui o milagre, a semente nas mãos
Sombrias, para outras poças no segredo
De outros campos “barrados de pedras”?
Sim, o lugar para vencer, para vencer-nos, é aqui
De onde partimos, esta noite. Aqui sem fim
Tal como aquela água que escapa do cocho.
.
L'ADIEU
Nous sommes revenus à notre origine.
Ce fut le lieu de l'évidence, mais déchirée.
Les fenêtres mêlaient trop de lumières,
Les escaliers gravissaient trop d'étoiles
Qui sont des arches qui s'effondrent, des gravats,
Le feu semblait brûler dans un autre monde.
Et maintenant des oiseaux volent de chambre en chambre,
Les volets sont tombés, le lit est couvert de pierres,
L'âtre plein de débris du ciel qui vont s'éteindre.
Là nous parlions, le soir, presque à voix basse
A cause des rumeurs des voûtes, là pourtant
Nous formions nos projets : mais une barque,
Chargée de pierres rouges, s'éloignait
Irrésistiblement d'une rive, et l'oubli
Posait déjà sa cendre sur les rêves
Que nous recommencions sans fin, peuplant d'images
Le feu qui a brûlé jusqu'au dernier jour.
Est-il vrai, mon amie,
Qu'il n'y a qu'un seul mot pour désigner
Dans la langue qu'on nomme la poésie
Le soleil du matin et celui du soir,
Un seul le cri de joie et le cri d'angoisse,
Un seul l'amont désert et les coups de haches,
Un seul le lit défait et le ciel d'orage,
Un seul l'enfant qui naît et le dieu mort ?
Oui, je le crois, je veux le croire, mais quelles sont
Ces ombres qui emportent le miroir ?
Et vois, la ronce prend parmi les pierres
Sur la voie d'herbe encore mal frayée
Où se portaient nos pas vers les jeunes arbres.
Il me semble aujourd'hui, ici, que la parole
Est cette auge à demi brisée, dont se répand
A chaque aube de pluie l'eau inutile.
L'herbe et dans l'herbe l'eau qui brille, comme un fleuve.
Tout est toujours à remailler du monde.
Le paradis est épars, je le sais,
C'est la tâche terrestre d'en reconnaître
Les fleurs disséminées dans l'herbe pauvre,
Mais l'ange a disparu, une lumière
Qui ne fut plus soudain que soleil couchant.
Et comme Adam et Ève nous marcherons
Une dernière fois dans le jardin.
Comme Adam le premier regret, comme Ève le premier
Courage nous voudrons et ne voudrons pas
Franchir la porte basse qui s'entrouvre
Là-bas, à l'autre bout des longes, colorée
Comme auguralement d'un dernier rayon.
L'avenir se prend-il dans l'origine
Comme le ciel consent à un miroir courbe,
Pourrons-nous recueillir de cette lumière
Qui a été le miracle d'ici
La semence dans nos mains sombres, pour d'autres flaques
Au secret d'autres champs « barrées de pierres » ?
Certes, le lieu pour vaincre, pour nous vaincre, c'est ici
Dont nous partons, ce soir. Ici sans fin
Comme cette eau qui s'échappe de l'auge.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O ESPELHO CURVO
I
Olha-os lá, naquela encruzilhada;
Parecem hesitar depois retomam
A estrada. À frente deles o menino corre,
A braçadas colheram para os poucos vasos
Pelo campo essas flores que nem nome têm.
E o anjo está lá em cima, a observá-los
E envolto pelo vento de suas cores.
Tem um dos braços nu no pano rubro,
Parece que segura um espelho, e que a terra
Se reflete na água dessa outra margem.
E que designa agora, com o dedo
Que aponta nessa imagem um lugar?
Será outra casa ou será outro mundo,
Será mesmo uma porta, em meio à luz
Aqui mesclada às coisas e aos signos?
.
LE MIROIR COURBE
I
Regarde-les là-bas, à ce carrefour,
Qui semblent hésiter puis qui repartent.
L'enfant court devant eux, ils ont cueilli
En de grandes brassées pour les quelques vases
Ces fleurs d'à travers champs qui n'ont pas de nom.
Et l'ange est au-dessus, qui les observe
Enveloppé du vent de ses couleurs.
Un de ses bras est nu dans l'étoffe rouge,
On dirait qu'il tient un miroir, et que la terre
Se reflète dans l'eau de cette autre rive.
Et que désigne-t-il maintenant, du doigt
Qui pointe vers un lieu dans cette image?
Est-ce une autre maison ou un autre monde,
Est-ce même une porte, dans la lumière
Ici mêlée des choses et des signes?
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
II
Gostam de voltar tarde, assim. Já não distinguem
O caminho sequer por entre as pedras
De onde ainda brota uma sombra ocre-rubra.
Mas estão confiantes. Junto da soleira
A relva é fácil e não existe morte.
E ei-los agora embaixo das abóbodas.
Há escuridão ali no rumor dessas folhas
Secas, que o vento que não sabe move
Por sobre as lajes, de uma sala a outra,
O que tem nome e o que é apenas coisa.
Eles vão indo, vão. Além entre as ruínas,
É o país onde as margens são tranqüilas,
Os caminhos imóveis. Pelos quartos
Irão dispondo as flores, junto ao espelho
Que consume talvez, e talvez salve.
.
II
Ils aiment rentrer tard, ainsi. Ils ne distinguent
Plus même le chemin parmi les pierres
D'où sourd encore une ombre d'ocre rouge.
Ils ont pourtant confiance. Près du seuil
L'herbe est facile et il n'est point de mort.
Et les voici maintenant sous des voûtes.
Il y fait noir dans la rumeur des feuilles
Sèches, que fait bouger sur le dallage
Le vent qui ne sait pas, de salle en salle,
Ce qui a nom et ce qui n'est que chose.
Ils vont, ils vont. Là-bas parmi les ruines,
C'est le pays où les rives sont calmes,
Les chemins immobiles. Dans les chambres
Ils placeront les fleurs, près du miroir
Qui peut-être consume, et peut-être sauve.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O POÇO
Escutas a corrente a bater na parede
Quando o balde desce no poço que é a outra estrela,
Vésper às vezes, solitária estrela,
Fogo sem raio as vezes a esperar à alva
Que saiam o pastor e suas reses.
Mas sempre a água está presa, no fundo do poço,
A estrela fica sempre ali selada.
É possível ver sombras, sob os galhos,
São viajantes que de noite passam
Curvados, carregando às costas massa negra,
Hesitantes, diria, numa encruzilhada.
Uns parecem que esperam, outros se apagam
No faiscar que vai sem luz.
A viagem do homem, da mulher é longa, mais longa do que a vida,
É uma estrada no fim do caminho, um céu
Que se pensou ter visto brilhar entre as árvores.
Quando o balde toca a água, que o levanta,
É uma alegria, então a corrente o esmaga.
.
LE PUITS
Tu écoutes la chaîne heurter la paroi
Quand le seau descend dans le puits qui est l'autre étoile,
Parfois l'étoile du soir, celle qui vient seule,
Parfois le feu sans rayons qui attend à l'aube
Que le berger et les bêtes sortent.
Mais toujours l'eau est close, au fond du puits,
Toujours l'étoile y demeure scellée.
On y perçoit des ombres, sous des branches,
Ce sont des voyageurs qui passent de nuit
Courbés, le dos chargé d'une masse noire,
Hésitant, dirait-on, à un carrefour.
Certains semblent attendre, d'autres s'effacent
Dans l'étincellement qui va sans lumière.
Le voyage de l'homme, de la femme est long, plus long que la vie,
C'est une étoile au bout du chemin, un ciel
Qu'on a cru voir briller entre deux arbres.
Quand le seau touche l'eau, qui le soulève,
C'est une joie puis la chaîne l'accable.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
A RAPIDEZ DAS NUVENS
O leito, ali a vidraça, o vale, o céu,
A rapidez magnifica das nuvens.
Sobre a vidraça a garra da chuva, de súbito,
Como se o nada rubricasse o mundo.
Em meu sonho de ontem
O grão de anos passados ardia por chamas
Curtas no piso ladrilhado, sem calor.
Nossos pés o afastavam, nus, com água limpa.
Ó minha amiga,
Que pouca era a distância entre o teu corpo e o meu!
A lâmina da espada do tempo que ronda
Ali buscara em vão lugar para vencer.
.
LA RAPIDITÉ DES NUAGES
Le lit, la vitre auprès, la vallée, le ciel,
La magnifique rapidité de ces nuages.
La griffe de la pluie sur la vitre, soudain,
Comme si le néant paraphait le monde.
Dans mon rêve d'hier
Le grain d'autres années brûlait par flammes courtes
Sur le sol carrelé, mais sans chaleur.
Nos pieds nus l'écartaient comme une eau limpide.
O mon amie,
Comme était faible la distance entre nos corps!
La lame de l'épée du temps qui rôde
Y eût cherché en vain le lieu pour vaincre.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O RAIO
Choveu, durante a noite.
A trilha tem o cheiro da relva molhada.
Depois a mão, de novo, do calor
Em nossos ombros, como
Para dizer que o tempo nada vai tomar-nos.
Mas onde
O campo vai bater na amendoeira,
Vê, saltou uma fera
De ontem para hoje atravessando as folhas.
E nos detemos, é fora do mundo,
E eu me chego a ti
Termino de arrancar-te ao tronco enegrecido,
Ramo, verão tocado pelo raio
De que a seiva de ontem, divina ainda, escorre.
.
LA FOUDRE
Il a plu, cette nuit.
Le chemin a l'odeur de l'herbe mouillée,
Puis, à nouveau, la main de la chaleur
Sur notre épaule, comme
Pour dire que le temps ne va rien nous prendre.
Mais là
Où le champ vient buter contre l'amandier,
Vois, un fauve a bondi
D'hier à aujourd'hui à travers les feuilles.
Et nous nous arrêtons, c'est hors du monde,
Et je viens près de toi,
J'achève de t'arracher du tronc noirci,
Branche, été foudroyé
De quoi la sève d'hier, divine encore, coule.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O GALHO
Galho que na beirada do bosque recolho
Mas para abandonar-te no fim do mundo,
Escondido entre as pedras, na guarida
Onde invisível inicia outro caminho
(Porque todo terrestre instante é encruzilhada
Onde, findo o verão, vai nossa sombra
Para sua outra terra nas mesmas árvores,
E é raro que se venha retornar
Noutro ano o galho com o qual se curva
Todo um verão, sem tomar tento, a relva),
Galho, em ti penso agora, enquanto neva,
Eu te vejo apertado no não-senso
Dos raros nós do pau, lá onde a casca
Se escama, nesse inchaço de tuas forças sombrias,
E retorno, uma sombra sobre o solo branco,
Para teu sono que me vive na memória,
Apanho-te em teu sono que se esparze,
Sendo de água apenas que uma luz penetra.
Depois eu vou aonde sei que a terra
Se furta de repente, em meio às árvores,
E atiro-te tão longe quanto posso,
E escuto-te saltar de pedra em pedra.
(Não, te quero
Todo um momento ainda. Eu vou, eu tomo
O terceiro caminho, que eu via
Perder-se pela relva, sem saber
Por certo escuras, mudas de gorjeios nas folhagens.
Vou indo, logo chego a uma casa
Onde outrora vivi mas cuja via
Se perdera tal como, quando a vida passa,
Palavras se proferem, sem que se dê conta,
Pela última vez dentro do eterno.
Um fogo arde, numa de suas salas ermas sempre,
Eu o escuto a buscar dentro do espelho
Do braseiro esse ramo da luz, tal
Como o deus que acredita estar criando
A vida, o espírito, na noite cujos nós
São apertados, infinitos, labirínticos.
Depois te pouso, docemente, na cama de chamas,
Eu te vejo abrasar-te no teu sono,
Inclino-me, seguro longamente ainda
Tua mão, que é a infância que se acaba.)
.
LA BRANCHE
Branche que je ramasse à l'orée des bois
Mais pour t'abandonner à la fin du monde,
Cachée parmi des pierres, dans l'abri
Où commence invisible l'autre chemin
(Car tout instant terrestre est un carrefour
Où, quand l'été s'achève, va notre ombre
Vers son autre pays dans les mêmes arbres,
Et rarement est-on venu reprendre
Une autre année la branche dont on courbe
Tout un été, distraitement, les herbes),
Branche, je pense à toi maintenant qu'il neige,
Je te vois resserrée sur le non-sens
Des quelques nœuds du bois, là où l'écorce
S'écaille, au gonflement de tes forces sombres,
Et je reviens, une ombre sur le sol blanc,
Vers ton sommeil qui hante ma mémoire,
Je te prends à ton rêve qui s'éparpille,
N'étant que d'eau pénétrée de lumière.
Puis je vais là où je sais que la terre
Se dérobe d'un coup, parmi les arbres,
Et je te jette aussi loin que je peux,
Je t'écoute qui rebondit de pierre en pierre.
(Non, je te veux
Tout un moment encore.
Je vais, je prends
Le troisième chemin, que je voyais
Se perdre dans les herbes, sans que je sache
Pourquoi je n'entrais pas dans ses fourrés
Certes sombres, certes sans voix d'oiseaux dans les feuillages.
Je vais, je suis bientôt dans une maison
Où j'ai vécu jadis mais dont la voie
S'était perdue comme, quand la vie passe,
Des mots sont dits, sans qu'on s'en aperçoive,
Pour la dernière fois dans l'éternel.
Un feu brûle, dans une de ses salles toujours désertes,
Je l'écoute qui cherche dans le miroir
Des braises le rameau de la lumière,
Ainsi le dieu qui croit qu'il va créer
L'esprit, la vie, dans la nuit dont les nœuds
Sont serrés, infinis, labyrinthiques.
Puis je te pose, doucement, sur le lit des flammes,
Je te vois qui t'embrase dans ton sommeil,
Je suis penché, je tiens longtemps encore
Ta main, qui est l'enfance qui s'achève.)
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
SOBRE GALHOS CARREGADOS DE NEVE
I
De um a outro galho nevoso, desses anos
Passados sem que vento algum lhes turbe as folhas,
Dão-se esparramamentos da luz em momentos,
À medida que vamos avançando no silêncio.
E essa poeira cai apenas infinita,
Já não sabemos bem se um mundo existe
Ainda, ou recolhermos nas nossas mãos molhadas
Um cristal de realidade inteiramente pura.
Cores mais densas com o frio, azuis e púrpura
A chamar de mais longe do que o fruto,
Sois nosso sonho acaso que se afasta
Menos do que se faz a presciência e a via?
O próprio céu tem mesmo aquelas nuvens
Cuja evidencia é filha da neve,
E se nós nos voltamos para a estrada branca,
É a mesma luz e é a mesma paz.
.
SUR DES BRANCHES CHARGÉES DE NEIGE
I
D'une branche neigeuse à l'autre, de ces années
Qui ont passé sans qu'aucun vent n'effraie leurs feuilles,
Se font des éparpillements de la lumière
À des moments, comme nous avançons dans ce silence.
Et cette poudre ne retombe qu'infinie,
Nous ne savons plus bien si un monde existe
Encore, ou si nous recueillons sur nos mains mouillées
Un cristal de réalité parfaitement pure.
Couleurs avec le froid plus denses, bleus et pourpres
Qui appelez de plus loin que le fruit,
Êtes-vous notre rêve qui moins s'efface
Qu'il ne se fait la prescience et la voie?
Le ciel a bien lui-même ces nuées
Dont l'évidence est fille de la neige,
Et si nous nous tournons vers la route blanche,
C'est la même lumière et la même paix.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
II
Salvo que o mundo, na verdade, tem apenas
Imagens como as flores que furam a neve
Em março, e se esparramam, enfeitadas,
Em nosso devaneio de um dia de festa,
E que a gente se inclina ali para levar
Braçadas da alegria sua em nossa vida,
Logo ei-las mortas, não tanto na sombra
De sua cor fanada quanto em nosso peito.
Árdua é a beleza, um enigma quase,
E sempre a retomar o aprendizado
Do seu real sentido pelo campo em flor
Aqui e ali coberto por placas de neve.
.
II
Sauf, c'est vrai, que le monde n'a d'images
Que semblables aux fleurs qui trouent la neige
En mars, puis se répandent, toutes parées,
Dans notre rêverie d'un jour de fête,
Et qu'on se penche là, pour emporter
Des brassées de leur joie dans notre vie,
Bientôt les voici mortes, non tant dans l'ombre
De leur couleur fanée que dans nos cœurs.
Ardue est la beauté, presque une énigme,
Et toujours à recommencer l'apprentissage
De son vrai sens au flanc du pré en fleurs
Que couvrent par endroits des plaques de neige.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
A NEVE
Ela chegou de bem mais longe que as estradas,
Ela tocou o campo, o ocre das flores,
Com essa mão que escreve com fumaça,
Ela ao tempo venceu pelo silêncio.
A luz é mais intensa nesta tarde
Devido à neve.
Parece até que as folhas ardem, frente à porta,
E a lenha recolhida está com água.
.
LA NEIGE
Elle est venue de plus loin que les routes,
Elle a touché le pré, l'ocre des fleurs,
De cette main qui écrit en fumée,
Elle a vaincu le temps par le silence.
Davantage de lumière ce soir
À cause de la neige.
On dirait que des feuilles brûlent, devant la porte;
Et il y a de l'eau dans le bois qu'on rentre.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
POR ONDE A TERRA FINDA
VI
Budistas sem o saber.
E principalmente não “uma via". Deixavam isso para a nossa gnose.
Tentando mesmo reter, ironicamente, o peregrino.
Bela imagem deles esses pequenos deuses do Japão que são vistos junto das aldeias, estátuas toscas de pedra cinza que trazem um pano amarrado ao pescoço diante de algumas oferendas como se fossem crianças que vão comer seu ovo quente. Seu lugar de culto, entre nós: esses oratórios cuja grade enferrujada já não fecha mais, onde se nota de passagem, meio seca, a adoração cheirosa de flores misturadas a folhas.
.
PAR OÙ LA TERRE FINIT
VI
Bouddhistes sans le savoir.
Et surtout pas “une voie”. Ils laissaient cela à notre gnose.
Essayant même de retenir, ironiquement, le pèlerin.
Belle image d'eux ces petits dieux du Japon qu'on voit auprès des villages, statues frustes de pierre grise qui ont une étoffe attachée au cou devant les quelques offrandes comme s'ils étaient des enfants qui vont manger leur œuf à la coque. Leur lieu de culte, chez nous: ces oratoires dont la grille rouillée ne ferme plus, où l'on perçoit au passage, demi-séchée, l'adoration odorante de fleurs mêlées à des feuilles.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
O JARDIM
Neva.
Sob os flocos a porta
Abre enfim ao jardim
De mais que o mundo.
Avança. Mas se prendes
A minha echarpe a ferro
Enferrujado, e rasga-se
Em mim o pano do sonho.
.
LE JARDIN
Il neige.
Sous les flocons la porte
Ouvre enfin au jardin
De plus que le monde.
J’avance. Mais se prend
Mon écharpe à du fer
Rouillé, et se déchire
En moi l’étoffe du songe.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
AS MAÇÃS
E que se há de pensar
Das maças amarelas?
Ontem, surpreendiam, esperando, nuas
Depois da queda das folhas,
Hoje, elas encantam
Tanto os seus ombros
Estão, modestamente, sublinhados
De uma orela de neve.
.
LES POMMES
Et que faut-il penser
De ces pommes jaunes?
Hier, elles étonnaient, d’attendre ainsi, nues
Après la chute des feuilles,
Aujourd’hui elles charment
Tant leurs épaules
Sont, modestement, soulignées
D’un ourlet de neige.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
AS TOCHAS
Neve
Que paraste de dar, que não és mais
Essa que vem mas aquela que espera
Em silêncio, tendo trazido e sem que ainda
Se tenha pego e, entanto, toda a noite,
Pudemos divisar, no embaçamento
Das vidraças por vezes gotejantes,
Esse teu faiscar na grande mesa.
Neve, nosso caminho,
Imaculado ainda, para ir buscar
Sob os galhos curvados, como atentos,
Estas tochas, o que é, que apareceram
Uma por uma, e queimaram, e parece apagarem-se
Como nos olhos do desejo quando acede
Aos bens com que sonhava (que é freqüente
Quando tudo talvez se resolvesse, em nós
Apagar-se de sala em sala esse reflexo
Do céu, sobre os espelhos), neve, toca
Essas tochas ainda, reicendeia-as
No frio desta aurora; e que a exemplo
Dos teus flocos que as tomam já de assalto
Com seu descuidar, fogo mais claro,
E embora tanta febre na palavra
E tanta nostalgia na lembrança,
Nossas palavras outras já não buscam mas delas
se avizinham,
Passam perto, simplesmente,
E se uma aflora a outra, e se se unem,
Será apenas ainda a tua luz,
Nossa brevidade a disseminar-se,
A escrita a dissipar-se, finda a sua tarefa.
(E tal floco se atarda, o olhar o segue,
Seria bom olhá-lo sempre e sempre,
Tal outro vem se pôr na mão que se oferece.
E tal mais lento afasta-se a pedido,
Volteia, e então retorna. Isso não quer dizer
Que uma palavra, uma outra, ainda por inventar,
Redimiria o mundo? Mas não se sabe
Se se ouve essa palavra ou se é um sonho).
.
LES FLAMBEAUX
Neige
Qui as cessé de donner, qui n’es plus
Celle qui vient mais celle qui attend
En silence, ayant apporté mais sans qu’encore
On ait pris, et pourtant, toute la nuit,
Nous avons aperçu; dans l’embuement
Des vitres parfois même ruisselantes,
Ton étincellement sur la grande table.
Neige, notre chemin,
Immaculé encore, pour aller prendre
Sous les branches courbées et comme attentives
Ces flambeaux, ce qui est, qui ont paru
Un à un, et brûlé, mais semblent s’éteindre
Comme aux yeux du désir quand il accède
Aux biens dont il rêvait (car c’est souvent
Quand tout se dénouerait peut-être, que s’efface
En nous de salle en salle le reflet
Du ciel, dans les miroirs), ô neige, touche
Encore ces flambeaux, renflamme-les
Dans le froid de cette aube; et qu’à l’exemple
De tes flocons qui déjà les assaillent
De leur insouciance, feu plus clair,
Et malgré tant de fièvre dans la parole
Et tant de nostalgie dans le souvenir,
Nos mots ne cherchent plus les autres mots mais les
avoisinent,
Passent auprès d’eux, simplement,
Et si l’un en a frôlé un, et s’ils s’unissent,
Ce ne sera qu’encore ta lumière,
Notre brièveté qui se dissémine,
L’écriture qui se dissipe, sa tâche faite.
(Et tel flocon s’attarde, on le suit des yeux,
On aimerait le regarder toujours,
Tel autre s’est posé sur la main offerte.
Et tel plus lent et comme égaré s’éloigne
Et tournoie, puis revient. Et n’est-ce dire
Qu’un mot, un autre mot encore, à inventer
Rédimerait le monde? Mais on ne sait
Si on entend ce mot ou si on le rêve).
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
§
§
UMA PEDRA
Tenho sempre fome desse
Lugar que nos foi espelho,
Das frutas curvadas dentro
De sua água, luz que salva,
E gravarei sobre a pedra
Lembrança de que brilhou
Um círculo, fogo ermo.
Acima é rápido o céu
Como ao voto a pedra é fechada.
Que buscávamos? Talvez
Nada, a paixão só é sonho.
Nada pedem suas mãos.
E de quem amou uma imagem,
Por mais que o olhar deseje,
Fica a voz sempre partida,
É a palavra toda cinzas.
.
UNE PIERRE
J'ai toujours faim de ce lieu
Qui nous était un miroir,
Des fruits voûtés dans son eau,
De sa lumière qui sauve.
Et je graverai dans la pierre
En souvenir qu'il brilla
Un cercle, ce feu désert.
Au-dessus le ciel est rapide
Comme au voeu la pierre est fermée.
Que cherchions-nous? Rien peut-être,
Une passion n'est qu'un rêve,
Ses mains ne demandent pas.
Et de qui aima une image,
Le regard a beau désirer,
La voix demeure brisée,
La parole est pleine de cendres.
- Yves Bonnefoy. Obra Poética. [tradução e organização de Mário Laranjeira]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
FORTUNA CRÍTICA DE YVES BONNEFOY
Yves Bonnefoy - foto: Michal Cizek/AFP |
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. Rastro, hesitação e memória: o lugar do tempo na poesia de Yves Bonnefoy. (Tese Doutorado em Teoria e História Literária). Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 2006. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. L?Arrière-pays de Yves Bonnefoy, viagem e escrita de si. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 15, p. 45-58, 2014.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. A memória do mundo e a confiança em Yves Bonnefoy. Revista do Centro de Estudos Portugueses, v. 34, p. 181-196, 2014.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. Yves Bonnefoy e a imagem, com uma nota sobre Raoul Ubac. Guavira Letras, v. 11, p. 22-32, 2010.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. O lugar do tempo na poesia de Yves Bonnefoy, introdução. Sínteses (UNICAMP. Impresso), v. 12, p. 0-00, 2007.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. O erotismo e a mescla, sobre As Pranchas Curvas de Yves Bonnefoy. Crítica & Companhia, v. 1, p. 0-00, 2005.BASTOS, Jorge Henrique. Escritor francês Yves Bonnefoy deixa obra erudita e monumental. in: Ilustríssima - Folha de S. Paulo, 10.7.2016. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
CORRÊA, Monica Cristina. Entrevista: Yves Bonnefoy . Cult (São Paulo), v. 8, p. 5-11, 1999.
CORRÊA, Monica Cristina. Yves Bonnefoy descreve a morte e a efemeridade da vida .. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 10 jan. 1999.
COSTA, Leila de Aguiar. Por uma poética reinventada: Manoel de Barros e Yves Bonnefoy. Revista do Centro de Estudos Portugueses, vol. 34. n. 51, 2014. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
COSTA, Leila de Aguiar. A cor, a pedra, o poético: Yves Bonnefoy e os limites da linguagem. Cerrados - Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, nº 36. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
COSTA, Leila de Aguiar. Yves Bonnefoy multiforme: uma apresentação. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 15, p. 4-10, 2014.
COSTA, Leila de Aguiar. Yves Bonnefoy ou quando a escritura não é mais escritura mas coisas e corese. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 14, p. 81-94, 2013.
COSTA, Leila de Aguiar. A cena poética originária: Yves Bonnefoy. In: ANDRADE DA SILVA, Paulo César; FERNANDES, Maria Lúcia Outeiro; SANTINI, Juliana; VIEIRA, Brunno V. G. (org.). Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. II Seminário Internacional de Estudos Literários: a poesia na era da internacionalização dos saberes Trabalhos completos.. 1ª ed., Araraquara: FCL-Araraquara, 2014, v. , p. 45-54.
CULTURA, Istoé. Morre o poeta francês Yves Bonnefoy, grande figura da poesia contemporânea. in: IStoé, 2.7.2016. Disponível no link. (acessado em 19.9.2016).
FONTES FILHO, Osvaldo. Traço que se rompe e palavra que se dobra. Notas sobre a poesia e o desenho em Yves Bonnefoy. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 15(1), p. 73-89, 2014.
LEIRNER, Sheila. Morre Yves Bonnefoy, autor de uma obra prolixa como ele mesmo. in: Estadão, cultura. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
LEITE, Guacira Marcondes Machado.. A verdade de palavra em Yves Bonnefoy e Marceline Desbordes-Valmore. Revista do Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 34, p. 143-157, 2014. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
MILLER, Chris. Yves Bonnefoy: para começar, um tríptico (ensaio).. [tradução Érico Nogueira]. São Paulo: Dicta & Contradicta nº 7, junho de 2011.
MILLER, Chris. O poeta improvável: uma conversa com Yves Bonnefoy (entrevista).. [tradução Érico Nogueira]. São Paulo: Dicta & Contradicta nº 7, junho de 2011.
OUTRAS FONTES E REFERÊNCIAS DE PESQUISA
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. L?Arrière-pays de Yves Bonnefoy, viagem e escrita de si. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 15, p. 45-58, 2014.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. A memória do mundo e a confiança em Yves Bonnefoy. Revista do Centro de Estudos Portugueses, v. 34, p. 181-196, 2014.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. Yves Bonnefoy e a imagem, com uma nota sobre Raoul Ubac. Guavira Letras, v. 11, p. 22-32, 2010.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. O lugar do tempo na poesia de Yves Bonnefoy, introdução. Sínteses (UNICAMP. Impresso), v. 12, p. 0-00, 2007.
AMORIM, Pablo Simpson Kilzer. O erotismo e a mescla, sobre As Pranchas Curvas de Yves Bonnefoy. Crítica & Companhia, v. 1, p. 0-00, 2005.BASTOS, Jorge Henrique. Escritor francês Yves Bonnefoy deixa obra erudita e monumental. in: Ilustríssima - Folha de S. Paulo, 10.7.2016. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
CORRÊA, Monica Cristina. Entrevista: Yves Bonnefoy . Cult (São Paulo), v. 8, p. 5-11, 1999.
CORRÊA, Monica Cristina. Yves Bonnefoy descreve a morte e a efemeridade da vida .. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 10 jan. 1999.
COSTA, Leila de Aguiar. Por uma poética reinventada: Manoel de Barros e Yves Bonnefoy. Revista do Centro de Estudos Portugueses, vol. 34. n. 51, 2014. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
COSTA, Leila de Aguiar. A cor, a pedra, o poético: Yves Bonnefoy e os limites da linguagem. Cerrados - Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, nº 36. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
COSTA, Leila de Aguiar. Yves Bonnefoy multiforme: uma apresentação. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 15, p. 4-10, 2014.
COSTA, Leila de Aguiar. Yves Bonnefoy ou quando a escritura não é mais escritura mas coisas e corese. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 14, p. 81-94, 2013.
COSTA, Leila de Aguiar. A cena poética originária: Yves Bonnefoy. In: ANDRADE DA SILVA, Paulo César; FERNANDES, Maria Lúcia Outeiro; SANTINI, Juliana; VIEIRA, Brunno V. G. (org.). Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. II Seminário Internacional de Estudos Literários: a poesia na era da internacionalização dos saberes Trabalhos completos.. 1ª ed., Araraquara: FCL-Araraquara, 2014, v. , p. 45-54.
CULTURA, Istoé. Morre o poeta francês Yves Bonnefoy, grande figura da poesia contemporânea. in: IStoé, 2.7.2016. Disponível no link. (acessado em 19.9.2016).
FONTES FILHO, Osvaldo. Traço que se rompe e palavra que se dobra. Notas sobre a poesia e o desenho em Yves Bonnefoy. Lettres Francaises (UNESP Araraquara), v. 15(1), p. 73-89, 2014.
LEIRNER, Sheila. Morre Yves Bonnefoy, autor de uma obra prolixa como ele mesmo. in: Estadão, cultura. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
LEITE, Guacira Marcondes Machado.. A verdade de palavra em Yves Bonnefoy e Marceline Desbordes-Valmore. Revista do Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 34, p. 143-157, 2014. Disponível no link. (acessado em 18.9.2016).
MILLER, Chris. Yves Bonnefoy: para começar, um tríptico (ensaio).. [tradução Érico Nogueira]. São Paulo: Dicta & Contradicta nº 7, junho de 2011.
MILLER, Chris. O poeta improvável: uma conversa com Yves Bonnefoy (entrevista).. [tradução Érico Nogueira]. São Paulo: Dicta & Contradicta nº 7, junho de 2011.
Yves Bonnefoy - foto: Sandrine Expilly |
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Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Yves Bonnefoy - poeta francês. Templo Cultural Delfos, setembro/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Yves Bonnefoy - poeta francês. Templo Cultural Delfos, setembro/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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