Clarice Lispector e Tom Jobim, no lançamento de "A maça no escuro" - foto: Acervo Arquivo Nacional |
Tom Jobim e eu já nos conhecíamos: ele foi
o meu padrinho no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu livro
A maça no escuro. E ele fazia
brincadeiras: segurava o livro na mão e perguntava: quem compra? Quem quer
comprar?
Para este diálogo, marcamos às seis da
tarde: às seis e trinta e cinco tocavam a campainha da porta. E era o mesmo Tom
que eu conhecia: bonito, simpático, com um ar puro malgré lui, com os cabelos um pouco caídos na testa. Um uísque na
mesa e começamos quase que imediatamente a entrevista.
- Como é que você encara o problema da
maturidade? É terrível ter quarenta anos?
- Tem um verso do Drummond que diz: “A
madureza, esta horrível prenda...” não sei, Clarice, a gente fica mais capaz,
mas também mais exigente.
- Não faz mal, Tom, a gente exige bem.
- Com a maturidade a gente passa a ter
consciência de uma série de coisas que antes não tinha, mesmo os instintos, os
mais espontâneos, passam pelo filtro. A polícia do espaço está presente, essa
polícia que é a verdadeira polícia da gente. Tenho notado que a música vem
mudando com os meios de divulgação, com a preguiça de se ir ao Teatro
Municipal. Quero te fazer esta pergunta, Clarice, a respeito da leitura dos
livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e rádio de pilha, meios
inadequados. Tudo o que escrevi de erudito e mais sério fica na gaveta. Que não
haja mal-entendido: a música popular considero-a seriíssima. Será que hoje em
dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto, tendo hábito de ir para a
cama com um livro antes de dormir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo
da humanidade – o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que é que você
acha?
- Sofro se isto acontecer, que alguém me
leia apenas do método vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção e
ternura e dor e pesquisa, e queria de volta, como mínimo, uma atenção completa.
Uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu não
tenho mais paciência de ler ficção.
- Mais aí você está se negando, Clarice!
- Não, meus livros felizmente para mim não
são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo. Há quem
diga a literatura e a música vão acabar. Sabe quem disse? Henry Miller. Não sei
se ele queria dizer para já ou para daqui a trezentos ou quinhentos anos. Mas
eu acho que nunca acabarão.
Riso feliz de Tom:
- Pois eu, sabe, também acho!
- Acho que o som da música é imprescindível
para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música,
duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino
animal.
- E mineral também, e vegetal também! (Ele
ri) Acho que sou um músico que acredita em palavras. Li ontem o teu O búfalo e a Imitação da rosa.
- Sim, mas é a morte às vezes.
- A morte não existe, Clarice. Tive uma
(uma com agá: huma) experiência que me revelou isso. Assim como também não
existe o eu nem o euzinho nem o euzão. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte vinte
e quatro horas por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.
- Tem alguma coisa além do eu, Tom.
- Além de tudo (ri) e vivam os estudantes!
Se eu não defender os estudantes, estou desprotegendo meus filhos. Se esse eco
do sucesso não nos interessa em vida, muito menos depois da morte. Isso é o que
eu chamo de mortalidade.
Tom Jobim - foto: Antônio Andrade |
- Você acredita em reencarnação, Tom?
- Não sei. Dizem os hindus que só entende
de reencarnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. Evidentemente
não é meu ponto de vista: se existe reencarnação só pode ser por um
despojamento.
Dei-lhe então a epígrafe de um de meus
livros: é uma frase de Bernard Berenson, crítico de arte: “Uma vida completa
talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não eu que não resta
um eu para morrer.”
- Isto é muito bonito, é o despojamento.
Caí numa armadilha porque sem o eu, eu me neguei. Se nós negamos qualquer
passagem de um eu para outro, o que significa reencarnação, então a estamos
negando.
- Não estou entendendo nada do que nós
estamos falando, mas faz sentido. Como podemos, Tom, falar do que não
entendemos. Vamos ver se na próxima reencarnação nós dois nos encontramos mais
cedo. Que é que você acha do fato da liderança do mundo estar hoje nas mãos dos
estudantes?
- Acho que não podia ser de outra forma e
que venham os estudantes. Vladimir sabe disso.
- A sociedade industrial organiza e
despersonaliza demais a vida. Você não acha, Tom, que está reservado aos
artistas o papel de preservar a alegria do mundo? Ou a consciência do mundo?
- Sou contra a arte de consumo. Claro,
Clarice, que eu amo o consumo... Mas do momento que a estandardização de tudo
tira a alegria de viver, sou contra a industrialização. Sou a favor do
maquinismo que facilita a vida humana, jamais a máquina que domina a espécie
humana. Claro, os artistas devem preservar a alegria do mundo. Embora a arte
ande tão alienada e só dê tristeza ao mundo. Mas não é culpa da arte porque ela
tem o papel de refletir o mundo. Ela reflete e é honesta. Viva Oscar Niemeyer e
viva Villa-Lobos! Viva Clarice Lispector! Viva Antônio Carlos Jobim! A nossa,
Clarice, é uma arte que denuncia. Tenho sinfonias e músicas de câmara que não
vêm à tona.
- Você não acha que é dever seu o de fazer
a música que sua alma pede? Pelas coisas que você disse, suponho que significa
que o nosso melhor está dito para as elites?
- Evidentemente que nós, para nos
expressarmos, temos que recorrer à linguagem das elites, elites estas que não
existem no Brasil... Eis o grande drama de Carlos Drummond de Andrade e
Villa-Lobos.
- Para quem você faz música e para quem eu
escrevo?
- Acho que não nos foi perguntado nada a
respeito, e, desprevenidos, ouvimos no entanto a música e a palavra, sem tê-las
realmente aprendido de ninguém. Não nos coube a escolha: você e eu trabalhamos
sob uma inspiração. De nossa ingrata argila de que é feito o gesso. Ingrata
mesmo para conosco. A crítica que eu no faria, Clarice, nesse confortável
apartamento do Leme, é de sermos seres rarefeitos que só se dão em determinadas
alturas. A gente devia se dar mais, a toda hora, indiscriminadamente. Hoje
quando leio uma partitura de Stravinsky ainda mais sinto uma vontade irreprimível
de estar com o povo, embora a cultura jogada fora volte pelas janelas – estou roubando
C.D.A.
- Por que nós todos somos parte de uma
geração quem sabe se fracassada?
- Não concordo absolutamente! – disse Tom.
- É que eu sinto que nós chegamos ao limiar
de portas que estavam abertas – e por medo ou pelo que não sei, não
atravessamos plenamente essas portas. Que no entanto têm nelas já gravadas
nosso nome. Cada pessoa tem uma porta com seu nome gravado, Tom, e é só através
dela que essa pessoa perdida pode entrar e se achar.
- Batei e abrir-se-vos-á.
- Vou confessar a você, Tom, sem o menor
vestígio de mentira: sinto que se eu tivesse tido coragem mesmo, eu já teria
atravessado a minha porta, e sem medo de que me chamassem de louca. Porque
existe uma nova linguagem, tanto a musical quanto a escrita, e nós dois
seríamos os legítimos representantes das portas estreitas que nos pertencem. Em
resumo e sem vaidade: estou simplesmente dizendo que nós dois temos uma vocação
a cumprir. Como se processa em você a elaboração musical que termina em
criação? Estou simplesmente misturando tudo, mas não é culpa minha, Tom, nem
sua: é que esta entrevista foi se tornando meio psicodélica.
- A criação musica em mim é compulsória. Os
anseios de liberdade se manifestam.
- Liberdade interna ou externa?
- A liberdade total. Se como homem fui um
pequeno-burguês adaptado, como artista me vinguei nas amplidões do amor. Você
desculpe, eu não quero mais uísque por causa de minha voracidade, tenho que é
que beber cerveja porque ela locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos
impede a embriaguez súbita. Gosto de beber só de vez em quando. Gosto de tomar
uma cerveja mas de estar bêbado não gosto.
(Foi devidamente providenciada a ida da
empregada para comprar cerveja.)
Tom Jobim - foto: Instituto Antônio Carlos Jobim |
- Tom, toda pessoa muito conhecida, como
você, é no fundo o grande desconhecido. Qual é a sua face oculta?
- A música. O ambiente era competitivo, e
eu teria que matar meu colega e meu irmão para sobreviver. O espetáculo do
mundo me soou falso. O piano no quarto escuro me oferecia uma possibilidade de harmônio
infinita. Esta é a minha face oculta. A minha fuga, a minha timidez me levaram
inadvertidamente, contra a minha vontade, aos holofotes do Carnegie Hall.
Sempre fugi do sucesso, Clarice, como o diabo foge da cruz. Sempre quis ser
aquele que não vai ao palco. O piano me oferecia, de volta da praia, um mundo
insuspeitado de ampla liberdade – as notas eram todas disponíveis e eu antevi
que se abriam os caminhos, que tudo era lícito, e que se poderia ir a qualquer
lugar desde que se fosse inteiro. Subitamente, sabe, aquilo que se oferece a um
menor púbere, que o grande sonho de amor estava lá e que este sonho tão
inseguro era seguro, não, Clarice? Sabe que a flor não sabe que é flor. Eu me
perdi e me ganhei, enquanto isso sonhava pela fechadura os seios de minha
empregada. Eram lindos os seios dela através do buraco da fechadura.
- Tom, você seria capaz de improvisar um
poema que servisse de letra para uma canção?
Ele assentiu e, depois de uma pequena
pausa, me ditou o que se segue:
Teus olhos verdes são maiores que o mar.
Se um dia fosse tão forte quanto você
eu te desprezaria e viveria no espaço.
Ou talvez então eu te amasse.
Ai! que saudades me dá da vida
que nunca tive!
- Como é que você sente que vai nascer uma
canção?
- As dores do parto são terríveis. Bater
com a cabeça na parede, angústia, o desnecessário do necessário, são os
sintomas de uma nova música nascendo. Eu gosto mais de uma música quanto menos
eu mexo nela. Qualquer resquício de savoir
faire me apavora.
- Tom, Gauguin, que não é meu predileto,
disse no entanto uma coisa que não se deve esquecer, por mais dor que ela nos
traga. É o seguinte: “Quando tua mão estiver hábil, pinta com a esquerda, quando
a esquerda ficar hábil, pinta com os pés.” Isso responde ao seu terror do savoir faire.
- Para mim a habilidade é muito útil mas em
última instância a habilidade é inútil. Só a criação satisfaz. Verdade ou
mentira, Clarice, eu prefiro uma forma torta que diga, do que uma forma hábil
que não diga.
- Você é quem escolhe os intérpretes? e os
colaboradores?
- Quando posso escolher intérpretes,
escolho. Mas a vida veio muito depressa. Gosto de colaborar com que eu amo,
Vinícius, Chico Buarque, João Gilberto, Newton Mendonça, Dolores Duran. E você?
- Faz parte da minha profissão estar mesmo
sempre sozinha, sem colaboradores e intérpretes. Escute, Tom, todas as vezes em
que eu acabei de escrever um livro ou um conto, pensei com desespero e com toda
a certeza de que nunca mais escreveria nada. Você, que sensação tem quando
acaba de dar à luz uma canção?
- Exatamente o mesmo. Eu sempre penso,
Clarice, que morri depois das dores do parto.
- Vou agora lhe fazer as minhas três
perguntas clássicas. Qual é a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa
mais importante para a pessoa como indivíduo? E o que é amor?
- A coisa mais importantes do mundo é o
amor. Segunda pergunta: a integridade da alma, mesmo que no exterior ela pareça
suja. Quando ela diz que sim, é sim, quando ela diz que não, é não. E durma-se
com um barulho desses. Apesar de todos os santos, apesar de todos os dólares.
Quanto ao que é o amor, amor é se dar, se dar, se dar. Dar-se não de acordo com
o seu eu – muita gente pensa que está se dando e não está dando nada – mas de
acordo com o eu do ente amado. Quem não se dá, a si próprio detesta, e a si
próprio se castra. Amor sozinho é besteira.
- Houve algum momento decisivo na sua vida?
- Só houve momentos decisivos na minha
vida. Inclusive ter de ir, aos 36 anos, aos Estados Unidos, por força do
Itamaraty, eu que gostava já nessa época de pijama listrado, cadeira de balanço
de vime, e o céu azul com nuvens esparsas.
- Muitas vezes, nas criações em qualquer
domínio, pode-se notar tese, antítese e síntese. Você sente isso nas suas
canções? Pense.
- Sinto demais isso. Sou um matemático
amoroso, carente de amor e de matemática. Sem forma não há nada. Mesmo no
caótico há forma.
Tom Jobim - foto: Otto Stupakoff |
- Quais foram as grandes emoções de sua
vida como compositor e na sua vida pessoal?
- Como compositor nenhuma. Na minha vida
pessoal, a descoberta do eu e do não eu.
- Qual é o tipo de música brasileira que
faz sucesso no exterior?
- Todos os tipos. O velho mundo, Europa e
Estados Unidos estão completamente exauridos de temas, de força, de virilidade.
O Brasil, apesar de tudo, é um país de alma extremamente livre. Ele conduz à
criação, ele é conivente com os grandes estados de alma.
_______
Fonte:
- LISPECTOR, Clarice. Clarice na cabeceira:
jornalismo. 1º Edição. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
[Originalmente publicado em: Revista "Manchete",
21 de setembro de 1968.]
VEJA AQUI A ÚLTIMA ENTREVISTA DE JOBIM
:: Antônio Carlos Jobim (Tom Jobim) – a última entrevista
OUTRAS ENTREVISTAS PUBLICADAS NO SITE: Veja aqui!
VEJA AQUI A ÚLTIMA ENTREVISTA DE JOBIM
:: Antônio Carlos Jobim (Tom Jobim) – a última entrevista
VEJA AQUI OUTRAS ENTREVISTAS REALIZADAS POR CLARICE LISPECTOR:
:: Darcy Ribeiro (o cientista) - entrevistado por Clarice Lispector
:: Elis Regina - entrevistado por Clarice Lispector
:: Erico Verissimo - entrevistado por Clarice Lispector
:: Elis Regina - entrevistado por Clarice Lispector
:: Erico Verissimo - entrevistado por Clarice Lispector
OUTRAS ENTREVISTAS PUBLICADAS NO SITE: Veja aqui!
© Direitos reservados ao autor/e ou ao seus herdeiros
____
Viajei, sai de mim, visitei mundos em cujos nunca pisei, encarnei outras personalidades até, o tempo passou rápido ao ler esta entrevista... Líiiiiindo!
ResponderExcluirOlá Eduardo,
ExcluirAgradeço a visita e o comentário.
Fico feliz que tenha gostado, volte sempre.
Abraços
muito linda esta entrevista :) Beijos de Portugal
ResponderExcluirLina
Obrigada, fico feliz que tenha gostado.
ExcluirVolte sempre!
Abraços
Eu adorei...também viajei no tempo. Uma alegria foi o que eu senti ao final da leitura!
ResponderExcluirOlá Astrid, que bom que gostastes.
ExcluirHá no blog outras entrevistas, dê uma olhada! Quem sabe elas não lhe tragam tamanha alegria também.
Volte sempre, abraços.
O coração selvagem do meu não-eu bate em ritmo de bossa-nova....são referências como essas que fazem a vida valer a pena,pois a alma não é pequena!! Salve Clarice em Tom de Lispector Jobim!
ResponderExcluirObrigada pela visita.
ExcluirVolte sempre, abraços
Maravilhoso... amei!!
ResponderExcluirO Vitor Pordeus compartilhou isto e paramim foi um presente, muito obrigado
ResponderExcluirMuito boa entrevista. Os dois batendo um bolão. Já nem havia mais entrevistadora e entrevistado, mas um bate bola animado com dois craques da Arte.
ResponderExcluirQue maravilha, que frescor para minha mente.Essa entrevista me remete a uma época que não vivi e mesmo assim, sinto muitas saudades.
ResponderExcluirMe senti feliz ao final da entrevista...♥
ResponderExcluirQue personalidades singulares, muito obrigado por compartilhar.
ResponderExcluirMaravilhoso!!! Como e bom ter acesso a pessoas resolvidas !!! Acho que todos nós almejamos o encontro com o próprio eu! O autoconhecimento nos dá a dimensão do chão para puxarmos e também o potencial para aventurarmos pelas palavras e vivências... Muito grata pelo acesso!
ResponderExcluir