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Augusto dos Anjos - o poeta amargo, angustiado e pessimista

Augusto dos Anjos - poeta


O meu nirvana
No alheamento da obscura forma humana, 
De que, pensando, me desencarcero, 
Foi que eu, num grito de emoção, sincero 
Encontrei, afinal, o meu Nirvana! 

Nessa manumissão schopenhauereana, 
Onde a Vida do humano aspecto fero 
Se desarraiga, eu, feito força, impero 
Na imanência da Idéia Soberana! 

Destruída a sensação que oriunda fora 
Do tato -- ínfima antena aferidora 
Destas tegumentárias mãos plebéias -- 

Gozo o prazer, que os anos não carcomem, 
De haver trocado a minha forma de homem 
Pela imortalidade das Idéias! 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.




"Ah! Dentro de toda a alma existe a prova 
De que a dor como um dartro se renova, 
Quando o prazer barbaramente a ataca... 
Assim também, observa a ciência crua, 
Dentro da elipse ignívoma da lua 
A realidade de uma esfera opaca. 
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, 
Abranda as rochas rígidas, torna água 
Todo o fogo telúrico profundo 
E reduz, sem que, entanto, a desintegre, 
À condição de uma planície alegre, 
A aspereza orográfica do mundo!
- Augusto dos Anjos, do poema "Monólogo de uma sombra".

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos
nasceu no Engenho Pau d'Arco, Paraíba, no dia 20 de abril de 1884. Aprendeu com seu pai, bacharel, as primeiras letras. Fez o curso secundário no Liceu Paraibano, já sendo dado como doentio e nervoso por testemunhos da época. De uma família de proprietários de engenhos, assiste, nos primeiros anos do século XX, à decadência da antiga estrutura latifundiária, substituída pelas grandes usinas. Em 1903, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, formando-se em 1907. Ali teve contato com o trabalho "A Poesia Científica", do professor Martins Junior. Formado em direito, não advogou; vivia de ensinar português. 
Casou-se, em 04 de julho de 1910, com Ester Fialho. Nesse ano, em consequência de desentendimento com o governador, é afastado do cargo de professor do Liceu Paraibano. Muda-se para o Rio de Janeiro e dedica-se ao magistério. Lecionou geografia na Escola Normal, depois Instituto de Educação, e no Ginásio Nacional, depois Colégio Pedro II, sem conseguir ser efetivado como professor. Em 1911, morre prematuramente seu primeiro filho. Em fins de 1913 mudou-se para Leopoldina MG, onde assumiu a direção do grupo escolar e continuou a dar aulas particulares. Seu único livro, "Eu", foi publicado em 1912. Surgido em momento de transição, pouco antes da virada modernista de 1922, é bem representativo do espírito sincrético que prevalecia na época, parnasianismo por alguns aspectos e simbolista por outros. Praticamente ignorado a princípio, quer pelo público, quer pela crítica, esse livro que canta a degenerescência da carne e os limites do humano só alcançou novas edições graças ao empenho de Órris Soares (1884-1964), amigo e biógrafo do autor. 
Cético em relação às possibilidades do amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me"), Augusto dos Anjos fez da obsessão com o próprio "eu" o centro do seu pensamento. Não raro, o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo é egoísmo e angústia em seu livro patético ("Ai! Um urubu pousou na minha sorte"). A vida e suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se a combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e biológicas, decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua angústia, sedimentou-lhe o amargo pessimismo ("Tome, doutor, essa tesoura e corte / Minha singularíssima pessoa"). Ao asco de volúpia e à inapetência para o prazer contrapõe-se porém um veemente desejo de conhecer outros mundos, outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma ("Quero, arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais").
A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do "Eu" - desde 1919 constantemente reeditado como "Eu e outras poesias" - um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma. Com o tempo, Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais lidos do país, sobrevivendo às mutações da cultura e a seus diversos modismos como um fenômeno incomum de aceitação popular. Vitimado pela pneumonia aos trinta anos de idade, morreu em Leopoldina em 12 de novembro de 1914.
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Imagem: Caricatura de Augusto dos Anjos, por Thales Gaspari.


O martírio do artista
Arte ingrata! E conquanto, em desalento, 
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda, 
Busca exteriorizar o pensamento 
Que em suas fronetais células guarda! 

Tarda-lhe a Idéia!  A inspiração lhe tarda! 
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento, 
Como o soldado que rasgou a farda 
No desespero do último momento! 

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!... 
É como o paralítico que, à míngua 
Da própria voz e na que ardente o lavra 

Febre de em vão falar, com os dedos brutos 
Para falar, puxa e repuxa a língua, 
E não lhe vem  à boca uma palavra!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


CRONOLOGIA DA VIDA E OBRA DE AUGUSTO DOS ANJOS
Augusto dos Anjos, por FTF.
1884 - Em 20 de abril, nasce Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos, no Engenho Pau d'Arco, no interior da Paraíba, o terceiro filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e Córdula de Carvalho Rodrigues dos Anjos, mais conhecida como Sinhá-Mocinha. É alfabetizado pelo pai.
1885 - 27 de fevereiro é batizado na Capela do Engenho Pau d’Arco.
1900 - Presta exames preparatórios para o Liceu Paraibano. Aparecimento de seu primeiro soneto “Saudade”, no “Almanaque do Estado da Paraíba”. Começa a viajar com freqüência a João Pessoa, relacionando-se com a intelectualidade local.
1901 - Publica no Jornal “O Comércio” o soneto “Abandonada”, dando início a uma colaboração que será mantida por um bom período com outros poemas e alguma prosa.
1903 - Muda-se para o Recife, onde ingressa na Faculdade de Direito.
1905 - Morre seu pai. Seis dias após, publica no “O Comércio”, os três célebres poemas dedicados a ele. Continua a publicar poemas pela imprensa e em outubro inicia a “Crônica Paudarquense”, em prosa.
1906 - Matricula-se no 4º ano de Direito. Sai em “O Comércio”, “Queixas Noturnas”, “Poemas Negros” e “Versos Íntimos”.
1907 - Conclui o Curso de Direito. Tinha como colegas Gilberto Amado e Orris Soares.
1908 - Transfere-se para a capital da Paraíba, onde dá aulas particulares. É nomeado professor interino de Literatura do Liceu Paraibano. Colabora no Jornal Nonevar.
1909 - Na “A União”, publicou diversos poemas, durante esse ano. Profere, no Teatro Santa Rosa, discurso nas comemorações do 13 de maio, chocando a platéia por seu léxico incompreensível e bizarro.
1910 - Casa-se com Ester Fialho e desliga-se do Liceu Paraibano por intransigência do governador João Machado. Viaja para o Rio de Janeiro, embarca com a mulher no paquete Acre e ali chega no mês de outubro. Ao chegar, hospeda-se em uma pensão, no Largo do Machado. Muda-se em seguida para a Avenida Central. Sua família vende o Engenho Pau d'Arco.
1911 - Em 2 de fevereiro, sua mulher, grávida de 6 meses, perde a criança. Assume o cargo de professor de Geografia na Escola Normal e no Colégio Pedro II. Nasce morto o primeiro filho com sete meses incompletos.
1912 - Escreve no jornal “O Estado”. Termina a impressão do EU, custeado por ele e por seu irmão Odilon, numa primeira tiragem de 1000 exemplares. O livro é recebido com grande impacto e estranheza por parte da critica, que oscila entre o entusiasmo e a repulsa. No dia 12 de junho nasce sua filha Glória.
1913 - Nasce seu filho Guilherme.
1914 - É nomeado diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira, em Leopoldina, Minas Gerais, onde passa a residir. Em 30 de outubro adoece, vindo a falecer a 12 de novembro de pneumonia.
1920 - Aparece, na Paraíba, “Eu e Outras Poesias”, acrescido das poesias coligidas por Orris Soares, que preparou e prefaciou essa edição.
1928 - Ainda por interferência de Orris Soares, a Livraria Castilho, do Rio, lança a 3ª edição. Sem data, posteriormente, a Companhia Editora Nacional, de São Paulo, publicou a 4ª edição.




OBRA DE AUGUSTO DOS ANJOS
ANJOS, Augusto dos. Desajustada. Rio de Janeiro: Ponjetti, 1952.
_______. Eu. (revista e custeada pelo poeta ainda em vida com ajuda de seu irmão Odilon dos Anjos).1ª edição - Rio de Janeiro: [s.c.p.] 1912.
_______. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
_______. Eu. João Pessoa: UFPB, 1999.


Augusto dos Anjos, por Carlos Drummond de Andrade (acervo BN/Brasil)


"Li o "Eu" na adolescência e foi como se levasse um soco na cara. Jamais eu vira antes, engastadas em decassílabos, palavras estranhas como simbiose, mônada, metafisicismo, fenomênica, quimiotaxia. Zooplasma, intracefálica... E elas funcionavam bem nos versos! Ao espanto sucedeu intensa curiosidade. Quis ler mais esse poeta diferente dos clássicos, dos românticos, dos parnasianos, dos simbolistas, de todos os poetas que eu conhecia. A leitura do "Eu" foi para mim uma aventura milionária. Enriqueceu minha noção de poesia. Vi como se pode fazer lirismo com dramaticidade permanente, que se grava para sempre na memória do leitor. Augusto de Anjos continua sendo o grande caso singular da poesia brasileira."
- Carlos Drummond de Andrade (escrito em 1984, Centenário de Augusto dos Anjos, a pedido da Biblioteca Nacional)



"Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!"
- Augusto dos Anjos, do poema "O Deus-verme".


Solilóquio de um visionário
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncole etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



“Havia em Augusto dos Anjos alguma coisa de um moderno pintor alemão expressionista. Um gosto mais de decomposição do que de composição.”
- Gilberto Freyre.



VÍDEO-POEMAS DE AUGUSTO DOS ANJOS

Augusto dos Anjos - Poema Versos Íntimos, na voz de Othon Bastos




Augusto dos Anjos - Poema Negro, na voz de Othon Bastos




Soneto "Incógnita", de Augusto dos Anjos



POEMAS ESCOLHIDOS DE AUGUSTO DOS ANJOS


Alucinação à beira-mar
Um medo de morrer meus pés esfriava. 
Noite alta. Ante o telúrico recorte, 
na diuturna discórdia, a equórea coorte 
Atordoadamente ribombava! 

Eu, ególatra céptico, cismava 
Em meu destino!... O vento estava forte 
E aquela matemárica da Morte 
Com os seus números negros, me assombrava! 

Mas a alga usufrutuária dos oceanos 
E os malacopterígios subraquianos 
Que um castigo de espécie emudeceu, 

No eterno horror das convulsões marítimas 
Pareciam também corpos de vítimas 
Condenados à Morte, assim como eu!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 1998.


Cítara mística
Cantas... E eu ouço etérea cavatina!
Há nos teus lábios -- dois sangrentos círios --
A gêmea florescência de dois lírios
Entrelaçados numa unção divina.

Como o santo levita dos Martírios,
Rendo piedosa dúlia peregrina
À tua doce voz que me fascina,
-- Harpa virgem brandindo mil delírios!

Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,
E a Noite afeia como num sarcasmo
E agora a sombra versperal morreu...

Chegou a Noite... E para mim, meu anjo,
Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,
É a música de Deus que vem do Céu!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


Solitário
Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
-- Velho caixão a carregar destroços --

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 1998.


Ave libertas
Ao clarão da madrugada,
Da liberdade ao toque alvissareiro,
Banhou-se o coração do Brasileiro
Num eflúvio de luz auroreada.

É que baqueia a vida escravizada!
Já se ouvem os clangores do pregoeiro,
Como um Tritão, levando ao mundo inteiro,
Da República a nova sublimada.

E ali do despotismo entre os escombros,
Rola um drama que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de paz imorredoura,
A República rola-lhe nos ombros;

Enquanto fora na trevosa agrura
Sucumbe o servilismo, e, esplendorosa,
A liberdade assoma majestosa,
-- Estrela d’Alva imaculada e pura!

É livre a Pátria outrora opressa e exangue!
Esse labéu que mancha a glória pública,
Que apouca o triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pode as aras da República.

Não! que esse ideal puro, risonho,
Há de transpor sereno os penetrais
Da Pátria, e há de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das Glórias Imortais!

Esplende, pois, oh! Redentora d’alma,
Oh! Liberdade, essa bendita e branca
Luz que os negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal bendita e calma.

Vós, oh Pátria, fazei que destes brilhos,
Caia do santuário lá da História,
Fulgente do valor da vossa glória,
A bênção do valor dos vossos filhos!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



O Canto dos presos
Troa, a alardear bárbaros sons abstrusos,
O epitalâmio da Suprema Falta,
Entoado asperamente, em voz muito alta,
Pela promiscuidade dos reclusos!

No wagnerismo desses sons confusos,
Em que o Mal se engrandece e o Ódio se exalta,
Uiva, à luz de fantástica ribalta,
A ignomínia de todos os abusos!

É a prosódia do cárcere, é a partênea
Aterradoramente heterogênea
Dos grandes transviamentos subjetivos...

É a saudade dos erros satisfeitos,
Que, não cabendo mais dentro dos peitos,
Se escapa pela boca dos cativos!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



Augusto dos Anjos,
por Thomaz Santa Rosa
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


Vencedor
Toma as espadas rútilas, guerreiro, 
E á rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma, 
Nenhum pode domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois de um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta, 

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pude domá-lo, enfim, ninguém, 
Que ninguém doma um coração de poeta!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


Lamento das coisas
Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!

E a dor da Força desaproveitada
-- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



A idéia
De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegração maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica…

Quebra a força centrípeda que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



Augusto dos Anjos, por William
Trevas
Haverá, por hipótese, nas geenas
Luz bastante fulmínea que transforme
Dentro da noite cavernosa e enorme
Minhas trevas anímicas serenas?!

Raio horrendo haverá que as rasgue apenas?!
Não! Porque, na abismal substância informe,
Para convulsionar a alma que dorme
Todas as tempestades são pequenas!

Há de a Terra vibrar na ardência infinda
Do éter em branca luz transubstanciado,
Rotos os nimbos maus que a obstruem a êsmo...

A própria Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente eu, hei de ficar trancado
Na noite aterradora de mim mesmo!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



A dor
Chama-se a Dor, e quando passa, enluta
E todo mundo que por ela passa
Há de beber a taça da cicuta
E há de beber até o fim da taça!

Há de beber, enxuto o olhar, enxuta
A face, e o travo há de sentir, e a ameaça
Amarga dessa desgraçada fruta
Que é a fruta amargosa da Desgraça!

E quando o mundo todo paralisa
E quando a multidão toda agoniza,
Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno

De agonizante multidão rodeada,
Derrama em cada boca envenenada
Mais uma gota do fatal veneno!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


A esperança
A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



Augusto dos Anjos (...)
Ao Luar
Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tactil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



Soneto
[A Frederico Nietzsche]
Para que nesta vida o espírito esfalfaste
Em vãs meditações, homem meditabundo?
- Escalpelaste todo o cadáver do mundo
E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!...

A loucura destruiu tudo o que arquitetaste
E a Alemanha tremeu ao teu gemido fundo!...
De que te serviu, pois, estudares profundo
O homem e a lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?

Pois, para penetrar o mistério das lousas,
Foi-te mister sondar a substância das cousas
- Construíste de ilusões um mundo diferente,

Desconheceste Deus no vidro do astrolábio
E quando a Ciência vã te proclamava sábio,
A tua construção quebrou-se de repente!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



Aos meus filhos
Na intermitência da vital canseira,
Sois vós que sustentais (Força Alta exige-o ...)
Com o vosso catalítico prestígio,
Meu fantasma de carne passageira!

Vulcão da bioquímica fogueira
Destruiu-me todo o orgânico fastígio ...
Dai-me asas, pois, para o último remígio,
Dai-me alma, pois, para a hora derradeira!

Culminâncias humanas ainda obscuras,
Expressões do universo radioativo,
Ions emanados do meu próprio ideal,

Benditos vós, que, em épocas futuras,
Haveis de ser no mundo subjetivo,
Minha continuidade emocional!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


Depois da orgia
O prazer que na orgia a hetaíra goza 
Produz no meu sensorium de bacante 
O efeito de uma túnica brilhante 
Cobrindo ampla apostema escrofulosa! 

Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa, 
O sistema nervoso de um gigante 
Para sofrer na minha carne estuante 
A dor da força cósmica furiosa. 

Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia 
Que ao comércio dos homens me traz presa, 
Livre deste cadeado de peçonha, 

Semelhante a um cachorro de atalaia 
Às decomposições da Natureza, 
Ficar latindo minha dor medonha!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


O Lupanar
Ah! Por que monstruosíssimo motivo 
Prenderam para sempre, nesta rede, 
Dentro do ângulo diedro da parede,  
A alma do homem poilígamo e lascivo?! 

Este lugar, moços do mundo, vede: 
É o grande bebedeouro coletivo, 
Onde os bandalhos, como um gado vivo, 
Todas as noites, Vêm matar a sede! 

É o afrodístico leito do hetairismo 
A antecâmara lúbrica do abismo, 
Em que é mister que o gênero humano entre. 

Quando a promiscuidade aterradora 
Matar a última força geradora 
E comer o último óvulo do ventre! 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


Idealismo
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! 
O amor da Humanidade é uma mentira. 
É. E é por isso que na minha lira 
De amores fúteis poucas vezes falo. 

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor quea Humanidade inspira 
É o amor do sibarita e da hetaíra, 
De Messalina e de Sardanapalo?! 

Pois é mister que, para o amor sagrado, 
O mundo fique imaterializado 
-- Alavanca desviada do seu futuro -- 

E haja só amizade verdadeira 
Duma caveira para outra caveira, 
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


Idealização da humanidade futura
Rugia nos meus centros cerebrais 
A multidão dos séculos futuros 
-- Homens que a herança de ímpetos impuros 
Tornara etnicamente irracionais! 

Não sei que livro, em letras garrafais, 
Meus olhos liam! No húmus dos monturos, 
Realizavam-se os partos mais obscuros, 
Dentre as genealogias animais! 

Como quem esmigalha protozoários 
Meti todos os dedos mercenários 
Na consciência daquela multidão... 

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama, 
Somente achei moléculas de lama 
E a mosca alegre da putrefação! 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.




Augusto dos Anjos, por Netto
Eterna mágoa
O homem por sobre quem caiu a praga 
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste 
Para todos os séculos existe 
E nunca mais o seu pesar se apaga! 

Não crê em nada, pois, nada há que traga 
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste. 
Quer resistir, e quanto mais resiste 
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga. 

Sabe que sofre, mas o que não sabe 
É que essa mágoa infinda assim, não cabe 
Na sua vida, é que essa mágoa infinda 

Transpõe a vida do seu corpo inerme; 
E quando esse homem se transforma em verme 
É essa mágoa que o acompanha ainda! 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



O pântano
Podem vê-lo, sem dor, meus semelhantes!... 
Mas, para mim que a Natureza escuto, 
Este pântano é o túmulo absoluto, 
De todas as grandezas começantes! 

Larvas desconhecidas de gigantes 
Sobre o seu leito de peçonha e luto 
Dormem tranqüilamente o sono bruto 
Dos superorganismos ainda infantes! 

Em sua estagnação arde uma raça, 
Tragicamente, à espera de quem passa 
Para abrir-lhe, às escâncaras, a porta... 

E eu sinto a angústia dessa raça ardente 
Condenada a esperar perpetuamente 
No universo esmagado da água morta!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.




Dolências
Oh! Lua morta de minha vida, 
Os sonhos meus 
Em vão te buscam, andas perdida 
E eu ando em busca dos rastos teus... 

Vago sem crenças, vagas sem norte, 
Cheia de brumas e enegrecida, 
Ah! Se morreste pra minha vida! 
Vive, consolo de minha morte! 

Baixa, portanto, coração ermo 
De lua fria 
À plaga triste, plaga sombria 
Dessa dor lenta que não tem termo. 

Tu que tombaste no caos extremo 
Da Noite imensa do meu Passado, 
Sabes da angústia do torturado... 
Ah! Tu bem sabes por que é que eu gemo! 

Instilo mágoas saudoso, e enquanto 
Planto saudades num campo morto, 
Ninguém ao menos dá-me um conforto, 
Um só ao menos! E no entretanto 

Ninguém me chora! Ah! Se eu tombar 
Cedo na lida... 
Oh! Lua fria vem me chorar 
Oh! Lua morta da minha vida! 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



Augusto dos Anjos, ilustração Paulo Roberto.

Um soneto cabalístico que o poeta fez pouco antes de sua morte, “Último Número” resume quem sabe, o seu embate com o cosmo, com a poesia, com a humanidade:

O último número
Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado, 
A Idéia estertorava-se... No fundo 
Do meu entendimento moribundo 
Jazia o Último Número cansado. 

Era de vê-lo, imóvel, resignado, 
Tragicamente de si mesmo oriundo, 
Fora da sucessão, estranho ao mundo, 
Com o reflexo fúnebre do Incriado: 

Bradei: -- Que fazes ainda no meu crânio? 
E o Último Número, atro e subterrâneo, 
Parecia dizer-me: “É tarde, amigo! 

Pois que a minha antogênica Grandeza 
Nunca vibrou em tua língua presa, 
Não te abandono mais! Morro contigo!” 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.


“Eis porque lhe chamo poeta da morte”, porque não amava nem a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, na sua fatalidade.”
- Antônio Houaiss


OTTO MARIA CARPEAUX, SOBRE AUGUSTO DOS ANJOS
Augusto dos Anjos, ilustração Mago William.

Augusto dos Anjos não teve sorte na vida: parecia a personificação de uma fase especialmente infeliz da evolução intelectual do Brasil, mistura incoerente de uma cultura ou semicultura bacharelesca, ávida de novíssimas novidades científicas, mal assimiladas, e dos ambientes das massas populares miseravelmente abandonadas nas ruas estreitas do Nordeste tropical. Ninguém o compreendeu, ninguém lhe leu os versos nos cafés superficialmente afrancesados do Rio de Janeiro, e é conhecida a cena de um dos seus raros admiradores que leu um soneto de Augusto dos Anjos a Olavo Bilac e recebeu a resposta desdenhosa: "É este o seu grande poeta? Fez bem ter morrido!" Foi uma época de eclipse do sal, de trevas ao meio-dia.
Quem salvou a fama póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, o do Nordeste e do interior do Brasil. A abundância de estranhas expressões científicas e de palavras esquisitas em seus versos atraiu os leitores semicultos que não compreenderam nada de sua poesia e ficavam, no entanto, fascinados pelas metáforas de decomposição em seus versos assim como estavam em decomposição suas vidas. Nada menos que 31 edições do seu livro EU dão testemunho dessa imensa popularidade que é o reverso da medalha - repeliu os leitores exigentes, de tal modo que, até durante a fase modernista da literatura brasileira, os versos de Augusto dos Anjos passaram por exemplos de mau gosto de uma época superada.
Foram alguns poucos leitores dedicados que conseguiram reivindicar e restabelecer a verdadeira grandeza de Augusto dos Anjos: Álvaro Lins, Antônio Houaiss, Francisco de Assis Barbosa (e, assim como nos quadros que pintou de altar de igrejas medievais o pintor ousava colocar no último canto seu auto-retrato, assim ouso colocar no fim dessa lista meu próprio nome). Lendo e relendo o EU, sempre descobrimos coisas novas, estranhas e admiráveis. O mau-gosto da expressões científicas e pseudo-científicas? Augusto dos Anjos tem o poder extraordinário de revelar um sentido oculto nos sons dessas palavras bárbaras, que acrescentam um novo frisson às suas visões tétricas e profundamente comoventes. Suas rimas surpreendentes e extravagantes abrem horizontes nunca vistos; parece-se ele com os metaphysical poets ingleses que não conhecia. Até sabe dar sabor metafísico a nomes próprios; e mesmo quem ignora que a casa do Agra no Recife, no fim da ponte Buarque de Macedo, é o necrotério, sebte todo tremor da morte ameaçadora no verso: "Recife. Ponte Buarque de Macedo...", tremor devido ao terrificante e como que definitivo ponto atrás da palavra "Recife", censura que é a linha divisória entre a vida e o fim da vida.
Existem em Augusto dos Anjos inúmeros casos assim, de descoberta de um sentido novo das palavras. Nem sempre percebemos claramente os motivos da nossa admiração. É o esclarecimento desses motivos que devemos, agora, a Ferreira Gullar.
Sua análise estilística da poesia de Augusto dos Anjos é precisa, sem cair jamais no jargão pseudo-científico dos pseudo-especialistas. Tem, como ponto de partida, uma indicação exata da situação literária do Brasil naquele tempo e como base uma análise sociológica, não menos exata, da vida e morte e morte nordestina de que Augusto dos Anjos é o poeta. Mas essa crítica não é só estilística nem apenas sociológica. O permanente ponto de referência é a psicologia do poeta que deu a seu livro o título EU. É um trabalho completo.
Também é completo quanto às referências ao futuro. Augusto dos Anjos escreveu nas formas parnasianas do seu tempo. Modifica-lhes o sentido pelas influências de Baudelaire e de Cesário Verde e por algumas luzes do simbolismo. Mas preanuncia igualmente a poesia de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, justamente lembrados por Ferreira Gullar.
Quando Augusto dos Anjos morreu, o céu da poesia brasileira estava escurecido como por trevas ao meio dia. Ninguém o reconheceu. Hoje, a literatura brasileira parece, outra vez, escurecida por trevas. Mas quem sabe se não se encontra, irreconhecido entre nós - ou mesmo longe de nós - o grande poeta que sabe dizer como este povo sofre e lhe prever uma nova aurora.
Fonte: Arte Livre


Augusto dos Anjos, por Emilio Damiani.


Soneto
Aurora morta, foge! Eu busco a virgem loura
Que fugiu-me do peito ao teu clarão de morte
E Ela era a minha estrela, o meu único Norte,
O grande Sol de afeto - o Sol que as almas doura!

Fugiu... e em si a Luz consoladora
Do amor - esse clarão eterno d'alma forte -
Astro da minha Paz, Sírius da minha Sorte
E da Noute da vida a Vênus Redentora.

Agora, oh! Minha Mágoa, agita as tuas asas,
Vem! Rasga deste peito as nebulosas gazas
E, num Pálio auroral de Luz deslumbradora,

Ascende à Claridade. Adeus oh! Dia escuro,
Dia do meu Passado! Irrompe, meu Futuro;
Aurora morta, foge - eu busco a virgem loura!

- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



A ilha de Cipango
Estou sozinho! A estrada se desdobra 
Como uma imensa e rutilante cobra 
De epiderfe finíssima de areia... 
E por essa finíssima epiderme 
Eis-me passeando como um grande verme 
Que, ao sol, em plena podridão, passeia! 

A agonia do sol vai ter começo! 
Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço 
Preces a Deus de amor e de respeito 
E o Ocaso que nas águas se retrata 
Nitidamente repdoruz, exata, 
A saudade interior que há no meu peito... 
Augusto dos Anjos

tenho alucinações de toda a sorte... 
Impressionado sem cessar com a Morte 
E sentindo o que um lázaro não sente, 
Em negras nuanças lúgubres e aziagas 
Vejo terribilíssimas adagas, 
Atravessando os ares bruscamente. 

Os olhos volvo para o céu divino 
E observo-me pigmeu e pequenino 
Através de minúsculos espelhos. 
Assim, quem diante duma cordilheira, 
Pára, entre assombros, pela vez primeira, 
Sente vontade de cair de joelhos! 

Soa o rumor fatídico dos ventos, 
Anunciando  desmoronamentos 
De mil lajedos sobre mil lajedos... 
E ao longe soam trágicos fracassos 
De heróis, partindo e fraturando os braços 
Nas pontas escarpadas dos rochedos! 

Mas de repente, num enleio doce, 
Qual num sonho arrebatado fosse, 
Na ilha encantada de Cipango tombo, 
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha 
A  árvore da perpétua maravilha, 
À cuja sombra descansou Colombo! 

Foi nessa ilha encantada de Cipango, 
Verde, afetando a forma de um losango, 
Rica, ostentando amplo floral risonho, 
Que Toscanelli viu seu sonho extinto 
E como sucedeu a Afonso Quinto 
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho! 

Lembro-me bem. Nesse maldito dia 
O gênio singular da Fantasia 
Convidou-me a sorrir para um passeio... 
Iríamos a um país de eternas pazes 
Onde em cada deserto há mil oásis 
E em cada rocha um cristalino veio. 

Gozei numa hora séculos de afagos, 
Banhei-me na água de risonhos lagos, 
E finalmente me cobri de flores... 
Mas veio o vento que a Desgraça espalha 
E cobriu-me com o pano da mortalha, 
Que estou cosendo para os meus amores! 

Desde então para cá fiquei sombrioi! 
Um penetrante e corrosivo frio 
Anestesiou-me a sensibilidade 
E a grandes golpes arrancou as raízes 
Que prendiam meus dias infelizes 
A um sonho antigo de felicidade! 

Invoco os Deuses salvadores do erro. 
A tarde morre. Passa o seu enterro!... 
A luz descreve siguezagues tortos 
Enviando à terra os derradeiros beijos. 
Pela estrada feral dois realejos 
Estão chorando meus amores mortos! 

E a treva ocupa toda a estrada longa... 
O Firmamento é uma caverna oblonga 
Em cujo fundo a Via-Láctea existe. 
E como agora a lua cheia brilha! 
Ilha maldita vinte vezes a ilha 
Que para todo o sempre me fez triste!
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.





DOCUMENTÁRIO SOBRE AUGUSTO DOS ANJOS
Documentário: Eu, Estranho Personagem (da série Tela Brasil)
Sinopse: registra fatos da vida do poeta Augusto dos Anjos, que morreu de pneumonia aos 30 anos de idade, e analisa a única obra que deixou, o livro "Eu". O documentário foi produzido e veiculado na passagem dos 95 anos de morte do poeta, que ocorreu em 12 de novembro de 1914.
Autoria: TV Senado
Categoria: Especial/Literatura
Idioma: Português - Brasil


“...ao caráter original, paradozal, até mesmo chocante, da sua linguagem, tecida de vocábulos esdrúxulos e animada de uma virulência pessimista, sem igual em nossas letras.” 
- Alfredo Bosi


AUGUSTO DOS ANJOS - NA ACADEMIA PARAIBANA DE LETRAS
É patrono da cadeira número 1 da Academia Paraibana de Letras, que teve como fundador o jurista e ensaísta José Flósculo da Nóbrega e como primeiro ocupante o seu biógrafo Humberto Nóbrega, sendo ocupada, atualmente, por José Neumanne Pinto.






FORTUNA CRÍTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS
[Bibliografia sobre obra e vida de Augustos dos Anjos]

ALBURQUERQUE, L. C. Eu: singularíssima pessoa. Recife: Inojosa, 1993.
ALEIXO, Elvis Brassaroto. A expressão do sagrado budista na poesia de Augusto dos Anjos. (Dissertação de Mestrado). UNICAMP - Instituto de Estudos da Linguagem. Junho de 2008.
Augusto dos Anjos
ALMEIDA, Horácio de. As Razões da Angústia de Augusto dos Anjos. RJ: ed. Gráfica Ouvidor, 1962. Disponível no link. (acessado em 15.12.2013).
ALMEIDA, Horácio de. Augusto dos Anjos: um tema para debate. Rio de Janeiro: Apex. Gráfica, 1970.
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AMORIM, Cristiane. Augusto dos Anjos: a anatomia do absurdo. vol. 5 Vernaculum. Disponível no link. (acessado em 15.12.2013).
ARRUDA, Maria Olívia Garcia R. Escritas da violência no eu, de Augusto dos Anjos. Literatura e Autoritarismo Dossiê “Escritas da Violência”, Nov. 2008. Disponível no link.
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BARBOSA, F. A Contribuição para uma edição crítica das poesias de Augusto dos Anjos. São Paulo: Brasilense, 1956.
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VIDA e poesia de Augusto dos Anjos. João Pessoa: SEC, [19- -]
VIDAL, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1967.


Augusto dos Anjos


Monólogo de uma sombra
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras, 
Do cosmopolitismo das moneras... 
Pólipo de recônditas reentrâncias, 
Larva de caos telúrico, procedo 
Da escuridão do cósmico segredo, 
Da substância de todas as substâncias! 

A simbiose das coisas me equilibra. 
Em minha ignota mônada, ampla, vibra 
A alma dos movimentos rotatórios... 
E é de mim que decorrem, simultâneas, 
A saúde das forças subterrâneas 
E a morbidez dos seres ilusórios! 

Pairando acima dos mundanos tetos, 
Não conheço o acidente da Senectus 
-- Esta universitária sanguessuga 
Que produz, sem dispêndio algum de vírus, 
O amarelecimento do papirus 
E a miséria anatômica da ruga! 

Na existência social, possuo uma arma 
-- O metafisicismo de Abidarma -- 
E trago, sem bramânicas tesouras, 
Como um dorso de azêmola passiva, 
A solidariedade subjetiva 
De todas as espécies sofredoras. 

Como um pouco de saliva quotidiana 
Mostro meu nojo à Natureza Humana. 
A podridão me serve de Evangelho... 
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques 
E o animal inferior que urra nos bosques 
É com certeza meu irmão mais velho! 
Tal qual quem para o próprio túmulo olha, 
Amarguradamente se me antolha, 
À luz do americano plenilúnio, 
Na alma crepuscular de minha raça 
Como uma vocação para a Desgraça 
E um tropismo ancestral para o Infortúnio. 

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias, 
Trazendo no deserto das idéias 
O desespero endêmico do inferno, 
Com a cara hirta, tatuada de fuligens 
Esse mineiro doido das origens, 
Que se chama o Filósofo Moderno! 

Quis compreender, quebrando estéreis normas, 
A vida fenomênica das Formas, 
Que, iguais a fogos passageiros, luzem. 
E apenas encontrou na idéia gasta, 
O horror dessa mecânica nefasta, 
A que todas as coisas se reduzem! 

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes, 
Sobre a esteira sarcófaga das pestes 
A mosrtrar, já nos últimos momentos, 
Como quem se submete a uma charqueada, 
Ao clarão tropical da luz danada, 
O espólio dos seus dedos peçonhentos. 

Augusto dos Anjos, por Foca Cruz
Tal a finalidade dos estames! 
Mas ele viverá, rotos os liames 
Dessa estranguladora lei que aperta 
Todos os agregados perecíveis, 
Nas eterizações indefiníveis 
Da energia intra-atômica liberta! 

Será calor, causa ubíqua de gozo, 
Raio X, magnetismo misterioso, 
Quimiotaxia, ondulação aérea, 
Fonte de repulsões e de prazeres, 
Sonoridade potencial dos seres, 
Estrangulada dentro da matéria! 

E o que ele foi: clavículas, abdômen, 
O coração, a boca, em síntese, o Homem, 
-- Engrenagem de vísceras vulgares -- 
Os dedos carregados de peçonha, 
Tudo coube na lógica medonha 
Dos apodrecimentos musculares. 

A desarrumação dos intestinos 
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos 
Dentro daquela massa que o húmus come, 
Numa glutoneria hedionda, brincam, 
Como as cadelas que as dentuças trincam 
No espasmo fisiológico da fome. 

É uma trágica festa emocionante! 
A bacteriologia inventariante 
Toma conta do corpo que apodrece... 
E até os membros da família engulham, 
Vendo as larvas malignas que se embrulham 
No cadáver malsão, fazendo um s.

E foi então para isto que esse doudo 
Estragou o vibrátil plasma todo, 
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!... 
Num suicídio graduado, consumir-se, 
E após tantas vigílias, reduzir-se 
À herança miserável dos micróbios! 

Estoutro agora é o sátiro peralta 
Que o sensualismo sodomita exalta, 
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo... 
Como que, em suas clélulas vilíssimas, 
Há estratificações requintadíssimas 
De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbadas o beijam. 
Suas artérias hírcicas latejam, 
Sentindo o odor das carnações abstêmias, 
E à noite, vai gozar, ébrio de vício, 
No sombrio bazer domeretrício, 
O cuspo afrodisíaco das fêmeas. 

No horror de sua anômala nevrose, 
Toda a sensualidade da simbiose, 
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos, 
Como no babilônico sansara, 
Lembra a fome incoercível que escancara 
A mucosa carnívora dos lobos. 

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda. 
Negra paixão congênita, bastarda, 
Do seu zooplasma ofídico resulta... 
E explode, igual à luz que o ar acomete, 
Com a veemência mavórtica do aríete 
E os arremessos de uma catapulta. 

Mas muitas vezes, quando a noite avança, 
Hirto, observa através a tênue trança 
Dos filamentos fluídicos de um halo 
A destra descarnada de um duende, 
Que tateando nas tênebras, se estende 
Dentro da noite má, para agarrá-lo! 

Cresce-lhe a intracefálica tortura, 
E de su’alma na caverna escura, 
Fazendo ultra-epiléticos esforços, 
Acorda, com os candeeiros apagados, 
Numa coreografia de danados, 
A família alarmada dos remorsos. 

É o despertar de um povo subterrâneo! 
É a fauna cavernícola do crânio 
-- Macbeths da patológica vigília, 
Mostrando, em rembrandtescas telas várias, 
As incestuosidades sangüinárias 
Que ele tem praticado na família. 

As alucinações tácteis pululam. 
Sente que megatérios o estrangulam... 
A asa negra das moscas o horroriza; 
E autopsiando a amaríssima existência 
Encontra um cancro assíduo na consciência 
E três manchas de sangue na camisa! 
Míngua-se o combustível da lanterna .

E a consciência do sátiro se inferna, 
Reconhecendo, bêbedo de sono, 
Na própria ânsia dionísica do gozo, 
Essa necessidade de horroroso, 
Que é talvez propriedade do carbono! 

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova 
De que a dor como um dartro se renova, 
Quando o prazer barbaramente a ataca... 
Assim também, observa a ciência crua, 
Dentro da elipse ignívoma da lua 
A realidade de uma esfera opaca. 
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, 
Abranda as rochas rígidas, torna água 
Todo o fogo telúrico profundo 
E reduz, sem que, entanto, a desintegre, 
À condição de uma planície alegre, 
A aspereza orográfica do mundo! 

Provo desta maneira ao mundo odiento 
Pelas grandes razões do sentimento, 
Sem os métodos da abstrusa ciência fria 
E os trovões gritadores da dialética, 
Que a mais alta expressãoda dor estética 
Consiste essencialmente na alegria. 


Continua o martírio das criaturas: 
-- O homicídio nas vielas mais escuras, 
-- O ferido que a hostil gleba atra escarva, 
-- O último solilóquio dos suicidas -- 
E eu sinto a dor de todas essas vidas 
Em minha vida anônima de larva!” 


Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos, 
Da luz da lua aos pálidos venábulos, 
Na ânsa de um nervosíssimo entusiasmo, 
Julgava ouvir monótonas corujas, 
Executando, entre daveiras sujas, 
A orquestra arrepiadora do sarcasmo! 


Era a elegia panteísta do Universo, 
Na produção do sangue humano imenso, 
Prostituído talvez, em suas bases... 
Era a canção da Natureza exausta, 
Chorando e rindo na ironia infausta 
Da incoerência infernal daquelas frases. 

E o turbilhão de tais fonemas acres 
Trovejando grandíloquos massacres, 
Há-de ferir-me as auditivas portas, 
até que minha efêmera cabeça, 
Reverta à quietação datrava espessa 
E à palidez das fotosferas mortas! 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.



Augusto dos Anjos (...)



OBRA DE AUGUSTO DOS ANJOS DIGITALIZADA, DISPONÍVEL NO PORTAL DOMÍNIO PÚBLICO PARA BAIXAR (PDF)
Augusto dos Anjos - "Eterna Magoa" - Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro/USP.
Augusto dos Anjos - "Eu" - Fundação Biblioteca Nacional.
Augusto dos Anjos - "Eu e Outras Poesias" - Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro/USP.
Augusto dos Anjos - "Outras Poesias" - Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro/USP.




REFERÊNCIAS E FONTES DE PESQUISA



Versos íntimos
Augusto dos Anjos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável 
Enterro de tua última quimera. 
Somente a Ingratidão -- esta pantera -- 
Foi tua companheira inseparável! 

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,  
Mora, entre feras, sente inevitável 
Necessidade de também ser fera. 

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! 
o beijo, amigo, é a véspera do escarro, 
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 

Se a alguém causa inda pena a tua chaga, 
Apedreja essa mão vil que te afaga,  
Escarra nessa boca que te beija! 
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.




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COMO CITAR:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção, edição e organização). Augusto dos Anjos - o poeta amargo, angustiado e pessimista. Templo Cultural Delfos, janeiro/2011. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
____
*Página atualizada em 11.12.2013.
**Página original JANEIRO/2011.




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15 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada Nilza,
      Que bom que gostastes!
      Peço perdão pela demora em responder-te, contudo, só agora descobrimos como fazê-lo de forma correta. Tentamos por diversas vezes, mas, sempre dava erro.
      Espero que retorne por aqui mais vezes para saber das novidades.
      Abraços.

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  2. excelente!! Augusto dos Anjos eh simplesmente uma matriz, rizmoa, da nossa literatura! muito me diz.
    obs - a entrevista parece uma anaminese, rs, entrevista de psiquiatra...

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    1. Obrigada Cambralha,
      Que bom que gostastes!
      Peço perdão pela demora em responder-te, contudo, só agora descobrimos como fazê-lo de forma correta. Tentamos por diversas vezes, mas, sempre dava erro.
      Quanto a entrevista, tenho de concordar, mas, não era de se esperar algo diferente vindo dele. (hahhah)
      Espero que retorne por aqui mais vezes para saber das novidades.
      Abraços.

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  3. Augusto dos Anjos não tinha nada de anjo. Era, em verdade,um ser humano que trazia consigo adescrença pelo ser humano, suas angústias, fraquezas e impossibilidades. Augusto dos Anjos estava mais para Angústias e prantos.
    Tinha o dom de vasculhar os mais recônditos recantos da alma humana. Não há um sequer que não se indentifique, em maior ou menor intensidade, com o poeta. Não há quem tivesse escrito na 1ª pessoa com tanta coisa em comum com seus pares quanto este poeta gigante.
    Ao lado do conteúdo de seus versos, que não raro refletem o estado da alma de quem procura motivo pra dizer-se feliz, frise-se também a forma:impecável, na melodia, métrica e rima.
    É o pouco que posso dizer sobre o muito que o poeta fez.

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  4. Meu maior lampejo.Sua obra vaga sobre o intelecto humano.

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  5. Conhecer este site(blog?) foi surpreendente.
    Augusto dos Anjos é um dos meus preferidos dd muito jovem.
    A postagem esta perfeita..Parabens!

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    1. Obrigada Ceci,
      Que bom que gostastes!
      Peço perdão pela demora em responder-te, contudo, só agora descobrimos como fazê-lo de forma correta. Tentamos por diversas vezes, mas, sempre dava erro.
      Espero que retorne por aqui mais vezes para saber das novidades.
      Abraços.

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  6. Olá, gostaria de saber se alguém teve a impressão de no poema Idealização da Humanidade Futura, ter alguma msg (Contra ou a favor) do racismo?

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  7. Página perfeita. Surpreendente. Gosto muito dele desde adolescente.
    Aplausos pela excelência. Obrigada. Mirtis Ribeiro de Carvalho

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  8. Amei a publicação. Nunca tive tanta informação sobre o poeta, nem nos anos de escola.

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  9. Texto fantástico! Muito obrigada por dar a conhecer essa figura tão interessante da literatura brasileira!
    Um abraço literário de Portugal,

    Ana Santos

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  10. Espero que seu espirito ronde diuturnamente esta terra de injustiças.

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  11. O título não caiu bem. Augusto dos Anjos é um "existencialista", porém, bastante espiritualizado...

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