- Hafiz - poeta místico da Pérsia
Nota: página em construção. 12.3.2024.
"Shams-ud-Din Muhammad Hāfez-e Širāzi (c. 1315-1390), Hafiz de Xiraz: poeta persa do século XIV que viveu na cidade de Xiraz, no sudoeste do atual Irã. Sua obra, que é absolutamente central no cânone literário persa, consiste principalmente em gazéis, uma forma lírica que possui como temática central o amor, a separação e o vinho. Em seus poemas, Hafiz desenvolve uma poética caracterizada pela ambiguidade e polissemia, misturando significados profanos e místicos de uma maneira inédita até então. É, infelizmente, pouco conhecido no Brasil, mas seus versos já foram elogiados por Manuel Bandeira em Gazal em louvor de Hafiz, poema que adota estrutura formal semelhante à do gazel." (Texto de Nicolas Voss).
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Khwāja Šamsu d-Dīn Muḥammad Hāfez-e Šīrāzī, conhecido por seu pseudônimo Hāfez ou Hafiz, foi um poeta lírico e místico persa, nascido entre 1310 e 1337 na cidade de Xiraz na Pérsia, filho de Baha-ud-Din.
Hafiz ou Hafez (Árabe: حافظ), que significa 'guardião', é um termo utilizado pelos muçulmanos para designar aqueles que memorizaram completamente o Corão.
- Hafiz - poeta místico da Pérsia (autoria não identificada)
OBRA DE HAFIZ PUBLICADA EM PORTUGUÊS
Hafiz no Brasil
:: Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim]. Edição não bilíngue. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944
:: Vinho, vida e amor de Hafiz e Saadi. [tradução Aurélio Buarque de Holanda]. Edição não bilíngue. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio, 1946.
Em revistas
:: Imagens do Oriente/ Poesia Persa - p. 121-176. In: Poesia Sempre - Revista Semestral de Poesia, ano 9 – n. 14. agosto 2001. [editor geral Marco Lucchesi]. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2001. Disponível no link. (acessado em 24.2.2024)
:: Hafiz - poemas [tradução Aurélio Buarque de Holanda]. In: Revista Religião e sociedade, Rio de Janeiro, n. 11.01, julho 1984, p. 147-149.
:: Quatro Gazéis de Hafiz {'Vaidade', 'A desdenhosa', 'Não te Afluas!...', 'A cidade do amor'}.. [tradução Aurelio Buarque de Holanda; ilustrações de Luis Jardim]. In: Revista O Cruzeiro, edição nº 0034, 1943, p. 20-21, 19 de junho 1943 / Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível no link. (acessado em 10.3.2024)
Em Portugal
:: O Mar do Infinito Perdão. 54 gazéis de Hafez. [seleção, tradução, introdução e notas de Jônatas Batista Neto]. Universitária Editora, Lisboa, 2003. direto do persa/ tradutor é brasileiro.
Em espanhol
:: Hafez Shirazí - 101 poemas. [presentación de Clara Janés; edición y traducción del persa de Clara Janés y Ahmad Taherí]. Ediciones del Oriente y del Mediterráneo, 2002.
:: Antología de Poetas Persas. selección, introducción, traducción y notas Rafael Cansinos Asséns. Arca Ediciones, 2006. {traducción directa de los textos de Jayyan, Hafiz y Chami, el resto de los poetas fueron traducidos a partir de versiones inglesas, francesas y alemanas}.
OS GAZÉIS DE HAFIZ
Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim]. Edição não bilíngue. Coleção Rubáiyát. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944
Les Ghazels de Hafiz. traduits du persan par Charles Devilliers; Color frontispiece by Edmund Dulac. Collection Ex Oriente, Lux. Paris, D'Art H. Piazza, 1922
- Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim. Coleção Rubáiyát. José Olympio, 1944 // Color frontispiece by Edmund Dulac
HAFIZ
SEIS séculos se passaram – e a sua magoada voz ainda nos chega com a mesma sugestão musical, o mesmo tom de quando ele compôs os seus gazéis. Grande voz lírica, de uma dor que não vai ao desespero; voz de fundas angústias quase sempre diluídas numa doce mágoa de acalanto; voz de quem muito sofreu de amor sem nunca odiar o amor. Ainda hoje, nas estradas da Pérsia, ouvem-se-lhe as canções, pela boca dos cameleiros, nas longas solitárias travessias.
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Como em Omar Kháyyám, o vinho é um leitmotiv em Hafiz. Mas, segundo observa Charles Devilliers, não é que esse refrão báquico represente para o lírico dos Gazéis a última palavra da sabedoria humana, mas porque, para ele, a embriaguez é o símbolo do mais alto grau do amor. "Aliás" – continua Devilliers – "mais e melhor que pelas palavras, a embriaguez assim compreendida traduz-se....pelo tom aparentemente descosido da maior parte dos gazéis, pela singular mas sugestiva incoerência dos dísticos, ligados por um fio não raro invisível, de tão tênue".
"Vem, oh vem" – fala o poeta à mulher amada – "neste momento eu procuro no vinho a minha ruína." E logo depois: "Quem sabe se nessa ruína não se encontrará um tesouro?" E quando ele diz: –"É preciso fazer do poeta um homem bêbedo, em ruínas, que se leva ao mercado de escravos" – pensa, decerto, quanto o vinho o purificará dos seus pecados. "Viandante! não te desvies da sepultura de Hafiz! Embora sujo de pecados, talvez seja ele o eleito, entre todos, nos Céus."
Ah! o mágico poder do vinho! A alma está desolada? "Que o vinho te reconforte o coração, pois o mundo é um deserto, e, no fim de tudo, o teu pó se misturará com a argila do oleiro." O vinho é o bálsamo para o velho e o adolescente. "Se o arrulho da rola emudece, que importa? Escuta a música suave que sobe da ânfora do vinho." Para a felicidade, basta "vinho de dois anos, uma bem-amada de quatorze..."
O vinho, a taça, inspiram-lhe dos mais belos achados poéticos: "Traze-me a taça, esse espelho em que se evocam os ausentes." "O sol é quente como o vinho, e a lua é fresca como uma taça. Derrama o sol na lua."
Uma poesia, a sua, onde o misticismo é temperado de uma viva nota epicurística. Ele vai à mesquita, mas, se o sermão demora, corre à taverna a aproveitar as horas fugitivas: "Não me censures o haver trocado a mesquita pela taberna: o sermão era longo, e o tempo fugia."
De tão vibrátil, a sensibilidade de Hafiz vê o pranto prestes a estalar das cordas de um instrumento: "A harpa cantou muitas canções tristes: cortai-lhe as cordas, para que delas não rebentem lágrimas."
Não lhe sai da boca uma sombra de maldição à desdenhosa que passou, de coração distante e isento, sem ouvir-lhe as queixas; aquela que, se o visse a arder como um círio, não lhe viria apressar o termo do sofrimento com um sopro dos seus lábios.
Porque ama apaixonadamente a terra natal, essa paixão lhe sofreia o espírito de aventura, o gosto dos climas raros e remotos: "As brisas de Mosela e as águas de Rocknabad impediram-me sempre de partir para uma vida errante."
Não há em Hafiz o pessimismo tantas vezes duro e pungente de Omar Kháyyám. "Cumpra-se o destino." "Doente, ou triste, tem paciência," – são as vozes da sua resignação conjurando perigos a que poderiam arrastá-lo os assomos de pessimismo. Chega a esperar da própria dor a cura dos seus males. Se a experiência o leva a não se fiar dos homens, se procura defender-se contra o otimismo vão, sabe, contudo, crer no Amor e na Poesia: "Para um devoto do Amor o Céu e a Terra não valem nada."
Aconselha a descrença nos astros, que traçam os destinos; não se deslumbrem os mortais com a glória e o poder: "Não te fies nas estrelas, essas ladras noturnas: elas arrebataram a coroa de Kaus e o cinto de Kaí-Khosrú." "A Fortuna é vária. Não foi Adão expulso do Paraíso?" "Cedo ou tarde, o Destino retoma tudo o que dá."
Mas aconselha, igualmente, a serenidade, o sonho, o gozo dos prazeres humildes e apagados, enquanto a vida se escoa: "Não te inquietes com a fuga do tempo. Sem um gemido, deixa rodar a roda do Destino. Toca sossegado o teu alaúde para ti somente." "Vive à mercê dos sonhos." Nada de esforços – esforços vãos: "Não tentes reter o vento, ainda quando ele sopre à feição dos teus desejos." "A Renúncia, eis a melhor coroa." "Feliz do mendigo que dorme sobre o seu tapete usado: é uma alegria, esta, desconhecida dos que trazem coroa" "Não te prendas a outros bens senão àqueles que podes levar contigo."
Na sua poesia há sol, há vida, ainda que de ordinário essas alegrias estejam vedadas ao poeta. Por não poder iluminar-se interiormente com a luz que lhe vai em derredor, nem por isto os seus olhos se fazem cegos a essa luz, ou sua boca deixa de lhe cantar o esplendor: "O vinho é claro, e os pássaros estão bêbedos de sol. É o tempo do Amor, a vida é bela." E se a alma se contorce de angústia, então – "não te aflijas: a cela da tristeza se transformará um dia em jardim de rosas"; se "por instantes as esferas estreladas não giram à feição dos teus desejos", "não te aflijas", que "a roda do Tempo não anda sempre na mesma direção"; "não te aflijas, ó Hafiz, no humilde recanto em que te julgas pobre, e na desolação das noites escuras: ainda tens o teu canto e o teu amor". O canto de que ele tanto se orgulha – "Nenhum cantor se faz ouvir na assembleia em que Hafiz ergue a voz" – e o amor que o faz ter ciúmes do vento: "Não brinques com as suas tranças, ó brisa nômade: por um só dos seus cabelos Hafiz daria mil vezes a vida." E na "Cidade do Amor", queixando-se de que a Amada o evita, a ele que tanto espera um beijo dos seus lábios, procura exortá-la ao gozo do momento feliz que passa: "Amada, o vinho é de boa vindima; bebe-o sem demora, goza da hora propícia. Mas tarde, dizes tu... Mas quem pode contar com outra Primavera?" E, apontando-lhe o exemplo da Natureza: "Vê: os companheiros da Tulipa e da Rosa já estão reunidos no jardim. Cada conviva enche a sua taça em homenagem àquela a quem ama..."
E' uma das características mais vivas da sua poesia, e à qual se lhe devem alguns dos mais altos e puros momentos líricos – esse gosto de animar seres e coisas naturais, o mundo dos ventos, dos pássaros, das árvores e das flores. O Zéfiro e a brisa; o rouxinol; o cipreste; a rosa, a tulipa, o lírio, a anêmona e o jacinto: todos eles vivem, sonham e sofrem nestes poemas de estranho e denso lirismo. A brisa da manhã é a mensageira sentimental do poeta: traz-lhe mensagens da Amada, ou pede a esta que, em sua prece matinal, volte o pensamento para Hafiz. Enquanto passeia o jardim, o poeta pensa no rouxinol, "desgraçado como eu, torturado pelo amor", e na rosa cruel e insensível, "na rosa que se tornara amiga da sarça traidora, enquanto o rouxinol lhe permanecia fiel". "A tulipa oferece ao jasmim a sua taça. O olhar terno do narciso acaricia a anêmona. A dor da partida, que o rouxinol canta, enche de tristeza o coração da rosa.” “A brisa com suas ágeis mãos emaranhou as tranças da rosa, e os anelados cabelos do jacinto caem molemente sobre o rosto do jasmim."
As flores até possuem, como os seres humanos, a noção da precariedade e contingência do destino e do amor: "A tulipa certamente previu a inconstância do Tempo: desde que nasceu, e amou, tem sempre erguida a sua taça cheia de vinho." "O sorriso da rosa nada promete, nem sequer fidelidade. Chora, Rouxinol, esse lamentável destino."
É ele próprio, muitas vezes, o rouxinol, e a rosa a Bem-Amada: "No meu desespero, Rouxinol de Amor, arranco as minhas penas para lançá-las ao vento." "O' Rosa, .... não deixes morrer assim o teu rouxinol."
As flores têm ciúme da beleza da Amada: a Amada ri, e ante a "flor aberta" desse riso botão de rosa dilacera as pétalas; o narciso morre de inveja dos olhos dela.
Que os ciprestes se inclinem diante da esbelteza da mulher querida. Ela é o cipreste feliz, que não se verga ao peso da dor; enquanto o poeta, o sofrimento fê-lo curvo como um arco. O cipreste é um escravo da Amada: "De pé como um escravo, o cipreste acaba de desdobrar-te o fresco tapete de sua sombra azul."
Que vale o narciso diante dos "olhos sorridentes" da Bem-Amada? Os dela são alegres; os dele, bêbedos.
À vista da "beleza adolescente" da Bem-Amada, "fugira a tranquilidade ao coração do melodioso rouxinol. O olhar do narciso encheu-se de lágrimas de piedade" – piedade do sofrimento do poeta – "e a tulipa, queixosa, mostrou o sangue das feridas que lhe fez o Amor. O próprio lírio deixou sair suas finas agulhas de ouro, e a frágil anêmona se abriu como boca gemente."
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Cinco séculos antes de Victor Hugo ter visto na lua crescente, pelos olhos de Rute, uma foice ("Booz endormi", La Légende des. Siècles, I) – imagem que Castro Alves utilizou no seu poema "Murmúrios da tarde", julgando haver encontrado coisa "semelhante" nas Orientais do poeta francês (engano desfeito pelo sr. Afrânio Peixoto em sua edição do poeta baiano) – já o velho Hafiz enxergara na lua essa mesma foice. Observe-se:
Em Hafiz:
"Eu contemplava o Céu que se ostentava em sua glória como um campo infinito, e a lua, igual a uma foice, e pensava em minhas colheitas e no tempo da messe."
Em Victor Hugo:
"Les astres émaillaient le ciel profond et sombre;Le croissant fin et clair parmi ces fleurs de l'ombreBrillait à l'occident, et Ruth se demandait,Immobile, ouvrant l'oeil à moitié sous ses voiles,Quel dieu, quel moissonneur de l'éternel étéAvait, en s'en allant, négligemment jetéCette faucille d'or dans le champs des étoiles."
Note-se também: o "campo infinito", a que Hafiz compara o céu, e o "champs des étoiles" de Hugo. Ainda: o primeiro fala em "minhas colheitas" e "tempo da messe", e o segundo no "moissoneur de l'éternel été".
Teria o poeta francês conhecido, através do Divã ocidente-oriental, em que Goethe fez adaptações de poemas do Oriente, aqueles versos do lírico de Chiraz? Não conheço nenhuma tradução do volume de Goethe, não sei o alemão para lê-lo no original, nem tive coragem de solicitar de algum amigo essa verificação. Seja como for, é possível que se trate de pura coincidência.
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Gazel, ou gazal, é um poemeto, espécie de ode, em que os versos, todos de metro igual, e em número não superior a trinta, são dispostos em dísticos ou parelhas; os versos do primeiro dístico rimam entre si e com o segundo verso dos outros dísticos, e os demais versos são brancos.
Eis aqui um gazel feito por Manuel Bandeira e publicado em recente artigo seu, Em louvor de Hafiz:
"Escuta o gazal que fiz,Darling, em louvor de Hafiz:– Poeta de Chiraz, teu versoTuas mágoas e a minha diz,Pois no mistério do mundoTambém me sinto infeliz.Falaste: "Amarei constanteAquela que não me quis."E as filhas de Samarcanda,Cameleiros e sufísAinda repetem os cantosEm que choras e sorrís.As bem-amadas ingratas,São pó: tu, vives, Hafiz!"
Além de gazéis, Hafiz escreveu methnevi (palavra que significa "duplicado": nesse tipo de poesia os versos são de rimas duplas); numerosos kite (fragmentos) – poemas religiosos, amorosos ou báquicos; e rubáiyát (quartetos).
Todas essas produções foram recolhidas no Divã (coletânea), após a morte do poeta, por seu amigo Mohammed Gulandam.
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A Goethe deve Hafiz o seu renome universal. Nascido de pais humildes, em Chiraz, na primeira metade do século XIV, conforme a lenda ele trabalhou, no começo da vida, como aprendiz de padeiro. Passou quase toda a existência – durante a qual foi alvo ora dos favores ora do desagrado dos reis persas – na terra natal, onde morreu em 1389, segundo o cronograma do seu túmulo.
Khwaja Shamsuddin Mohammed: eis o verdadeiro nome de Hafiz, d"o rouxinol de Chiraz". O cognome "Hafiz" quer dizer – "o que sabe o Corão de cor". Faz isto crer que haja o poeta consagrado longo tempo ao estudo da bíblia maometana. Nem é de admirar que assim seja: tal como a grande maioria dos mais ilustres poetas persas, Hafiz pertenceu à seita dos Sufis, místicos do Islă, que lhe chamavam "o intérprete dos segredos", "conhecedor da língua mística", "língua do invisível". Para estes, aliás – como se lê em Prampolini (História Universal da Literatura) – próprios convites de mais vivo sabor anacreôntico feitos pelo lírico, em seus versos, aos escanções – os escanções de sobrancelhas arqueadas – e às donzelas – as doces raparigas de Chiraz, as "raparigas de Cachemira de olhos de diamante negro", as belas raparigas de Samarcanda –foram interpretados por aqueles religiosos como expansões de arrebatamento místico. O que dificilmente pode ser aceito por um leitor ocidental.
Acabou os dias como xeque dos dervizes. Isto não obstou – reza a lenda – a que lhe pretendessem negar sepultura. Seus amigos propuseram, então, a "prova da agulha": decidiria, no caso, o verso sobre que ficasse a ponta de uma agulha que se enfiaria num dos seus livros, fechado. O verso falava da contrição e esperança em Deus – e Hafiz foi enterrado nos jardins de rosas de Mosela, daquela região cuja brisa conspirou com as águas do Rocknabad para sustar-lhe o ímpeto de vagamundear, ao sabor do sonho, por alongadas terras.
Em seu túmulo, de ágata gravada, à margem do Buknabad, viceja um cipreste, plantado pelas mãos do poeta, e que, conforme vontade sua, projeta "a sombra tranquila sobre a poeira dos seus desejos".
No jardim onde repousa, cantam rouxinóis, atraídos pela água fresca do repuxo e o doce perfume das rosas e das laranjeiras em flor. Admiradores de Hafiz, em grande número, descansam perto dele, reunidos numa admiração comum. Um "cemitério ideal" esse recanto, privativo, em começo, do grande poeta.
Sombra de cipreste, jardim de rosas, canto de rouxinol. Cipreste: o corpo esbelto da Bem-Amada. Rosas: aquelas a que tantas vezes Hafiz comparou a Bem-Amada. Rouxinol: o pobre rouxinol que ele foi, "cantor incansável" da beleza da Bem-Amada.
O mundo do morto é, assim, o mundo do vivo. Nem lhe falta a companhia dos amigos mais íntimos da sua sensibilidade, dos camaradas de sonho.
AURELIO BUARQUE DE HOLLANDA
Rio, junho de 1943.
- Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim. Coleção Rubáiyát. José Olympio, 1944
POEMAS DE HAFIZ
JURAMENTO DE AMOR
Pela magia dos teus olhos, ó feliz rapariga, pela maravilha da penugem de tuas faces;
Pelo hálito de tua boca de rubis, pela tua cor e pelo teu aroma, ó bela Primavera que me enlevas;
Pela poeira do caminho que trilhas, pela terra que, sob os teus pés, faz ciúme à água clara;
Por esse andar que lembra o voo da perdiz dos montes, por esses olhos mais doces do que os olhos da gazela;
Por tua graça e pelo teu hálito em que há o perfume das madrugadas, pelo feitiço dos teus cabelos cheirosos como o vento da tarde;
Por esses olhos de ônix que tanto deslumbram os meus olhos, por essas pérolas do escrínio de tua palavra;
Pela flor de tuas faces, ó Roseira de inteligência, por esse divino jardim, lar dos meus sonhos:
Hafiz, o poeta, jura, se para ele volves o olhar, que, para satisfazer-te, sacrificará não só todos os seus bens, mas ainda a própria vida.
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EMBRIAGUEZ
A violeta inveja o aroma das tuas tranças, e ante a flor aberta do teu sorriso o botão de rosa dilacera as pétalas.
Ó Rosa, cujo perfume tanto me embriaga, não deixes morrer assim o teu rouxinol, cantor incansável da tua beleza.
Amar-te – eis o destino escrito em minha fronte. O pó do limiar de tua porta é o meu paraíso; teu radioso semblante, a minha alegria; teu prazer, o meu repouso.
O amor é um mendigo que em seus trapos esconde um tesouro, e aquele que pede esmola pode ganhar uma coroa.
Esta alucinação a que a embriaguez me leva, e o delírio do meu amor, não me permitirão descansar a cabeça enquanto não a tiver inclinado até à poeira que pisas.
Tua beleza é um jardim de flores, e Hafiz, de cantos tão doces, é o teu rouxinol.
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A CIDADE DO AMOR
Ó Cidade do Amor! Admirável cidade! Suave estância da graça! Namorados! é de lá que vos saúda o amor!
Nunca os olhos do Céu pousaram sobre mais frescas raparigas! Jamais se ofereceu mais bela presa às flechas do caçador!
Quem já viu formas terrestres mais semelhantes a anjos? Que a poeira mortal nunca lhes suje as vestes!
E tu, ó Bem-Amada, porque afastas de tua presença uma criatura tão desgraçada como eu?
Ah! que esperança eu tinha de um beijo, de um abraço!
Amada, o vinho é de boa vindima: bebe-o sem demora, goza da hora propícia. Mais tarde, dizes tu... Mas quem pode contar com outra Primavera?
Vê: os companheiros da Tulipa e da Rosa já estão reunidos no jardim. Cada conviva enche a sua taça em homenagem àquela a quem ama...
E eu – como resolver este enigma do meu coração? Que sofrimento! Doloroso mistério!
Os meus cabelos se misturaram às tranças de uma doce rapariga. Como é perigoso habitar a Cidade do Amor!
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VOTOS DE AMANTE
Que a tua beleza cada dia mais resplandeça!
Que tua face de cores frescas, igual à tulipa, não deixe de me alegrar os olhos.
Que a visão do teu amor, brilhante como uma estrela, cintile cada vez mais no meu pensamento.
Que todas as belezas deste mundo se ponham ao serviço da tua beleza.
Inclinem-se todos os ciprestes diante da tua esbeltez.
Derramem sangue em vez de lágrimas os olhos rebeldes ao teu encanto.
Teu olhar, que sabe enfeitiçar todos os corações, seja ele dotado de todos os sortilégios.
Não conheça repouso nem paz o coração que de leve te possa ferir.
Que os teus lábios tão doces, mais caros a Hafiz que a sua própria alma, ignorem sempre os beijos indignos deles.
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O CÍRCULO ENCANTADO
Quem pensa com amor na lanugem de tuas faces fica pelo resto da vida prisioneiro num círculo encantado.
Quando, no dia da ressurreição, minha cabeça se erguer do pó da sepultura, as cicatrizes do louco amor que me inspiras serão visíveis ainda em todos os pontos do meu coração.
Possam os teus anelados cabelos formar um abrigo em que eu descanse a cabeça e onde encontre repouso o coração mal-ferido.
Aproxima-te de mim, por um minuto, ó coração do meu coração: mais tarde a união será talvez impossível.
Até quando permitirás, ó pérola rara, que eu tenha a alma abismada no oceano da tristeza?
As lágrimas me assomam; sinto-as tremer nos cílios... Ei-las agora a cair-me em ondas.
Tudo porque os teus olhos de amorosos olhares não se volvem para Hafiz. O orgulho é a qualidade do cruel narciso.
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LEMBRANÇA
Nada mais grato ao coração que a lembrança das palavras de amor.
Sob o zimbório arredondado deste quarto imagino ainda escutar-lhes o eco; mas o vinho rubro que bebi é apenas uma água amarga.
Poupa-me o coração, de há muito – e para sempre – embriagado pela tua beleza.
O narciso está morrendo de inveja dos teus olhos. Não alcançou o segredo da magia do teu olhar, e suas pétalas se fanaram.
De tão maravilhado com a tua beleza, o pintor andou fixando por toda parte, nas portas e paredes, a lembrança dela.
O coração de Hafiz veio um dia brincar em tuas tranças. Quis retornar, era tarde: ficou prisioneiro para sempre.
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A LUA DA ESPERANÇA
A fênix da felicidade cairá num laço se te dignares – simplesmente – de passar perto de minha casa.
Quando minha alma esteve entregue, em sacrifício, aos teus lábios, acreditei que um gole de água pura me refrescaria a boca.
Se os reis são indignos de beijar a poeira de tua porta, que esperança posso nutrir de que respondas à minha saudação?
Todavia, ó Hafiz, não deixes, despeitado, essa porta; tenta a fortuna. Talvez o dado da sorte venha a cair em teu nome.
Na noite em que a lua da esperança se ergue no céu, que o seu reflexo de prata inunde a tua açoteia!
Quando Hafiz se refere à poeira de tua rua, as rosas do jardim da vida nos envolvem com o seu perfume.
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O SORRISO
Uma destas noites, um sábio me falou: – "É preciso conheceres o segredo daquele que nos vende o vinho."
E ainda: – "Não leves nada a sério. O mundo carrega de enormes fardos aqueles que dobram a cerviz."
Depois, estendeu-me uma taça onde o esplendor do céu se refletia tão vivamente que Zuhra se pôs a dançar:
– "Filho, segue o meu conselho; não te inquietes com as coisas deste mundo. Guarda as minhas palavras: elas são mais raras do que as pérolas.
"Aceita a vida como aceitas essa taça, de sorriso nos lábios, ainda que o coração esteja a sangrar. Não gemas como um alaúde; esconde as tuas chagas.
"Até o dia em que passares por trás do véu, nada compreenderás. Não podem ouvidos humanos ouvir a palavra do anjo.
"Na casa do Amor, não te envaideças das tuas perguntas, nem da resposta."
Vinho, ó Saki, mais vinho: as loucuras de Hafiz foram compreendidas pelo Senhor da alegria, Aquele que perdoa, Aquele que esquece...
*
CONTEMPLAR-TE!.
Ó lua do meu amor, mais vale contemplar-te, de coração tranquilo, que trazer a coroa de rei durante uma longa vida cheia de honrarias.
Como podem olhos tão belos ferir com tanto desdém a quem os admira?
Meu coração já não está contigo: partiste.
Meus olhos não se fartaram de te ver. Fora de ti não conheço pesar nem desejo.
Não brinques assim com as suas tranças, ó brisa nômade: por um só de seus cabelos Hafiz daria mil vezes a vida.
*
QUEM SOU EU?.
Quem sou eu para não merecer o teu desdém?
Concedes-me tantos favores, a mim que não aspiro a outra coroa senão a poeira do teu umbral!
Dize-me, ó tu que cativas os corações: quem te aconselhou essa bondade generosa? Não posso atribuí-lo àqueles que velam por ti.
Pássaro sagrado, guia-me na senda dos meus desejos: a viagem é muito longa, e mal iniciei a caminhada.
Brisa da manhã, leva-lhe a minha mensagem. Dize-lhe que pense em mim na sua prece matinal.
Mostra-me, Bem-Amada, o caminho que conduz ao teu escondido recanto, para que eu possa ir beber contigo e libertar-me das minhas dores.
Que grandeza a sua, que subjugou o mundo, a dignidade do canto lírico, a beleza dos versos! Pede ao Senhor dos Mares, Hafiz, que te encha a boca de pérolas.
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Ó VENTO DA TARDE!
Teus negros cílios crivaram-me de frechas o coração! Jorrou de teus olhos uma chama em que ardem todas as minhas mágoas.
Doce companheira, perdes a lembrança daqueles que te amam.
Não chegue jamais o dia em que te esqueça, nem por um instante.
Este mundo é uma flor que murcha e passa. Oferecê-la-ei como penhor para guardar a minha Bem-Amada. Para mim, o soberano do mundo não é mais do que o humilde escravo do meu amor.
Se a Bem-Amada prefere a mim um estranho, submeto-me à sua vontade, eu que, no entanto, nada preferiria à Bem-Amada, – nem a própria vida.
A chama da paixão cruel me abrasa todo. Ó vento da tarde, refresca-me com o teu hálito, mas que esse hálito seja embalsamado pelo seu perfume.
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A FONTE QUE CHORA
Da rua onde mora a Bem-Amada sopra um vento macio. É o anúncio de um novo ano, em que poderás, se o quiseres, reacender a lâmpada de teu coração,
Se possuís, como a rosa, uma parcela de ouro, deposita-a nas mãos do prazer.
Como encontrar o caminho que vai ter ao país onde vive o teu Desejo? Renunciando aos teus desejos. A Renúncia, eis a maior coroa.
Porque geme esta fonte, porque geme como uma rola? Talvez sofra, como eu, de um mal que a aflige noite e dia.
A doce amiga te esqueceu. Ó lume, fica solitário, agora. Tua felicidade e tua dor obedecem, por igual, aos desígnios do Céu.
Expande-te como o botão da rosa. A Primavera vem chegando.
Vive à mercê dos teus sonhos. Bebe vinho. Desprezo a hipocrisia. Que melhor caminho?
Vai ao jardim, e lá, rouba ao rouxinol o segredo do Amor. Vem à Assembleia, e Hafiz te ensinará o segredo dos cantos imortais.
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SUA BELEZA
A rosa só é bela porque belo é o semblante de minha Amada. Sem o sangue da vinha a Primavera não teria ardor.
Que graça teria a relva do relvado e a brisa que sopra no jardim, se não fora a face de tulipe de minha Amada?
A boca de mel e a radiosa imagem da Bem-Amada nada seriam sem os seus beijos e as suas carícias.
O balançar do cipreste e a loucura da rosa que encanto possuiriam se não fora o canto de rouxinol?
Pintura traçada pela mão do gênio, nenhuma existe comparável à imagem do meu ídolo.
Glorioso é o jardim, a rosa e o vinho são gloriosos; mas que seriam todos eles sem a presença de minha Amada?
Tua vida, ó Hafiz! não passa de uma moeda sem valor que ninguém ousaria atirar à multidão em dia de festa!
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ESQUECESTES
Brisas cheirosas, ide para minha Amada. Brincai na sua cabeleira, e trazei-me, de volta, o perfume dela.
Dizei-lhe baixinho, ao ouvido, acariciando-a:
– "Volta para ele, não sejas cruel. Teu pobre amante morre a te esperar."
Dei-te o meu coração, mas comprei a tua alma! Não me imponhas o peso terrível da separação!
Quantas vezes tens esquecido o teu servo! Cumpre agora a promessa feita ao amigo fiel!
Ó coração, lança fora de ti este martírio! Sê paciente, enxuga as lágrimas!
Visto que Hafiz nada pode fazer para que retorne a Bem-Amada, conservai, olhos meus, a imagem dela.
*
SE EU PUDESSE!...
Que mais posso pedir à minha estrela, senão sempre viver em tua presença?
Se à tua porta enxameiam adoradores ardentes, que há nisso de espantoso? Em torno das flores zumbem, à porfia, as abelhas.
Não é necessário uma espada para degolar amante: basta um olhar para lhe arrebatar metade da vida.
Se me fosse dado respirar em comum com a Bem-Amada, a que daria eu o nome de paraíso?
O destino tornou-me tão fraco! Quem dera asas ao meu desejo, ó belo cipreste, para atingir-te o cimo!
Como descobriria o desgraçado que se está afogando um meio de salvação, se a torrente do Amor o cerca de todos os lados?
Encontrasse eu mil vezes a Bem-Amada, e ela me repetira a cada encontro: –"Que homem é este?"
Doce é o vinho colorido, doce a companhia da Amada. A estes dois amores, Hafiz, de coração perdido, ficará sempre fiel.
*
O ESPINHO E A ROSA
O Zéfiro embriaga-nos com o seu hálito: é a festa da rosa. Onde está o doce rouxinol? Pedi-lhe que nos cante uma canção.
Coração triste, não te queixes da separação. Neste mundo existem, lado a lado, o prazer e a dor, como o espinho e a rosa.
O sofrimento fez-me curvo como um arco, e todavia não penso em abandonar as sobrancelhas que me ferem com suas frechas ardentes.
A ninguém falarei da separação: o coração daqueles que não amam não saberia guardar um segredo.
O perfume de tuas tranças trai a angústia do meu peito. Não é estranho que o musgo seja um contador de histórias.
Quantos olhares te contemplam! E não te voltas para nenhum deles.
Ó coração, bendiz a chama que te abrasa, continua a respirar o amor e a carregar o teu martírio.
Mergulha a fronte na poeira, Hafiz, e reza as tuas preces!
*
O AMANTE REPELIDO
O Amor e a Fé foram-se embora. A que roubou a minha alma disse: – "Não fiques mais por muito tempo junto de mim."
Mas acaso já ouviste dizer que um homem sentado, numa festa, para desfrutar a sua hora, se levante antes do fim?
Se o facho se pudesse vangloriar, seria de ter ardido a noite inteira diante de ti.
Ai! que a brisa da Primavera teve de se furtar às caricias das rosas...
Passaste – e logo eu vacilei como um ébrio. Os Anjos desceram em bando para te ver.
Em tua presença o orgulhoso cipreste secou, envergonhado, cheio de inveja de tua elegância e tua graça.
*
O JARDIM DE SULEÍMA
Senhor, entrego aos teus cuidados esta rosa sorridente que confiaste à minha guarda, afim de que a preserves dos cobiçosos olhares do jardim.
E – porque vais conduzi-la para bem longe do país da fidelidade – que a sua alma e o seu corpo fiquem ao abrigo de qualquer sortilégio.
Aonde quer que ela for, terá por companheiro o coração do seu amigo; serão seu escudo as doces preces que ele faz por ela.
Ó brisa da manhã, se acaso passares pelo jardim de Suleíma, leva à Amada a minha terna saudação!
Espalha suavemente o teu cheiro almiscarado sobre as suas negras tranças.
Dize-lhe: – "O coração do teu amante continua preso ao seu voto de fidelidade."
Triste daquele que não conhecesse a embriaguez, nestes lugares onde se bebe à lembrança da beleza dela.
Não esperes encontrar nenhum ouro no limiar da taverna: aqui, toda fortuna se dissipa.
Aquele que foge temendo a febre do amor é indigno de ser amado.
A poesia de Hafiz é o começo da sabedoria: ela entoa louvores à tua mocidade e ao teu encanto.
*
CHIRAZ
Salve, Chiraz! Cidade incomparável! Que o céu te proteja contra todo perigo! Mil louvores a este país que a luz celeste premiou com tantos esplendores.
A brisa que sopra entre Jafferabad e Mosela, depois de haver-te aflorado, ó Chiraz, fica toda embalsamada do perfume do âmbar cinzento.
Peregrinos do Amor, vinde a Chiraz! e o amor, se vosso coração o implora, encher-vos-á de todos os seus dons.
Brisa da manhã, que notícias trazes da beleza que me enfeitiça?
Não me desperteis do meu sonho. Diante deste espetáculo, que me embriaga, já não sinto o abandono.
Se é o teu sangue, ó pobre coração, o que deseja o meu ídolo de coração tão doce, derrama-o todo, sem pena.
Se a ausência pode fazer-te sofrer tanto, ó Hafiz, que dirás para pintar a tua alegria quando tornares a vê-la?
*
O AMOR EM FUGA
A quem hei-de pedir uma lembrança daquela que partiu? O que a brisa murmurou, foi-se com a brisa.
Adormece tua dor, ó Hafiz, adormece tua dor antiga com vinho velho. Só ele, bem o sabes, faz germinar uma messe de felicidade.
Ai de mim! foi tão fácil a esta lua cruel abandonar aqueles que a amavam!
Agora, já me acostumei à minha dor e não lhe procuro remédio.
Não tentes reter o vento, ainda quando ele sopre à feição do teu desejo. Embora a sorte pareça agraciar-te, não te desvies do teu caminho.
Não profiras uma só palavra interrogando sobre o "como" e o "porquê". O escravo fiel cumpre cegamente as ordens do Senhor.
Quem te disse que Hafiz ainda pensava em ti? Ó Bem-Amada, é mentira.
*
O CORAÇÃO PRISIONEIRO
Minha vida parece chegada ao termo, mas o meu desejo não se cumpriu. Hoje, como dantes, a ventura para mim reside no sono.
Escoam-se-me as horas nestes pensamentos, e não saro das feridas que me fizeste.
Meu coração foi condenado a ficar prisioneiro de tuas tranças. Naturalmente ele se deleita nessas armadilhas balsâmicas, pois dele nada mais sei.
Enquanto eu não te houver estreitada entre os meus braços, a roseira de minha alma não desejará florir.
Quis contar as minhas mágoas à brisa matinal, mas a aurora não pousou sobre a minha vidraça a face em flor e a fronte radiosa.
Ser fiel é entregar inteiro o coração. Parte, ó Hafiz, se não queres separar-te dela.
*
REFLEXO NA PAREDE
Meu desejo ainda não perdeu a esperança do teu beijo, esperança que vive sempre e me faz viver.
Meu coração perdeu-se na embalsamada noite da tua cabeleira. Como ficaria eu se este amor tivesse de acabar?
Um dia, meu nome aflorou aos lábios da Amada, e esse nome pareceu-me conter todas as alegrias da vida.
O sol faz dançar nas paredes do meu quarto o reflexo do teu rosto, e este reflexo brilha até na sombra da minha açoteia.
Teu lábio é um escanção. O vinho que ele verte me abrasa.
Que importa! Dá-me desse vinho: sou um estranho entre aqueles que possuem a ciência perfeita do Amor.
Tu me disseras: – "Abandona-me nas mãos a tua vida, e terás a paz." Dei sem pena a minha vida, e a paz não veio.
*
O EXÍLIO DO AMOR
Senhor, poupai os outros mortais ao suplicio da ausência. Toda a minha vida se consumiu na dor da separação.
Estrangeiro na própria terra, tremente de amor, pobre e desesperado, vou arrastando os dias na tristeza da solidão.
Aonde irei? A quem hei-de contar a história do meu coração? Quem me fará justiça?
Donde me vem tanta mágoa? Nasci para ser um exilado do Reino do Amor.
É por causa de tamanho infortúnio, e porque estão gravados em mim todos os sinais da paixão, que os meus soluços respondem às queixas do rouxinol.
*
BRISA DA MANHÃ
Boas novas, meu coração! Voltou a brisa da manhã, trazendo em suas asas felizes mensagens colhidas nas fronteiras de Sabá.
Ave da madrugada, continua a deliciar-nos com o teu canto, teu canto doce como o de Daví: a Rosa, rival de Salomão, está de volta, nas asas do vento.
A tulipa descobriu o perfume do vinho no hálito da manhã, e nele espera encontrar um bálsamo para as feridas do seu coração.
Onde o homem sábio que possa falar a língua dos lírios e perguntar-lhes: – "Donde volta a Bem-Amada?"
Meus olhos se umedeceram de lágrimas vendo partir a caravana. E as lágrimas correram até o dia em que o ouvido do meu coração ouviu telintar o chocalho dos camelos anunciando o retorno.
Deus me cumulou de graças, Deus me concedeu mais do que a riqueza: foi a sua misericórdia que me restituiu este ídolo de coração de pedra.
Hafiz, bateste à porta do pecado e renegaste tua fé. Mas estás perdoado. Ei-la que volta com uma mensagem de paz.
*
O INCURÁVEL
Tenho a alma cheia de sofrimento. Quem me trará o alívio? Meu coração desolado sente a morte bem próxima. Quem me dará o Amigo, o que vela os moribundos?
Uma hora, só, de repouso! Não ver mais a face amarga deste mundo! Escanção, enche-me a taça desse vinho que me dará, por instantes, um sonho de paz.
Mas – vamos, de pé! Ofereçamos os corações às belas raparigas de Samarcanda. A brisa nos traz o perfume das margens do Oxus.
Disse eu a um sábio: – "Vê a minha miséria!" E ele me respondeu: – "Tens razão: tua dor é funda, nossa vida é um enigma estranho, o mundo uma ruína."
No caminho do Amor, o sofrimento é uma alegria, a dor um arrimo. Que o coração ansioso de cura seja ferido mais uma vez!
Onde encontrar um homem, na sombra deste mundo de lama e pó? Fora preciso recriar o Universo, plasmar novo Adão.
Ó Hafiz, que importam as lágrimas, aos olhos do Amor?
*
A FONTE VIVA
Ó Zéfiro, que a tua asa não deixe de aflorar a casa de minha Querida. Ao retornares, não te esqueças de vir falar a seu pobre amante.
Em sinal de gratidão, faço votos para que, de passagem, colhas todos os perfumes da Primavera. Ó Rosa, não te recuses ao pássaro da manhã.
Amada, todas as minhas esperanças dependem de um teu olhar. Não o queiras negar ao teu amigo fiel.
Fui o companheiro do teu banquete quando tu te erguias como a lua nova. Agora que brilhas como a lua nova em todo o seu esplendor, não me negues a claridade dos teus olhos!
O poeta leva consigo tua lembrança aos confins do mundo. Não lhe negues o viático, que ele implora.
Os teus lábios de rubis sugerem uma fonte viva. Fala, ó Querida!...
*
O ESCANÇÃO DO ESQUECIMENTO
Meus olhos estão ofuscados pelo pranto. Eis a miséria a que reduzes os teus adoradores.
Quando, ao Leste da minha rua, se ergue o sol da tua beleza, vem-me, com ele, o pressentimento de um dia feliz.
Tem piedade do meu coração: ele se fez o escravo do teu corpo de cipreste jovem. Fala-me: tua voz é mais doce que todas as canções.
Ó Saki, consola-me, tu que derramas o esquecimento.
Desde o momento em que a sua fascinante beleza se esquivou ao meu abraço, fiz em trapos, lentamente, as vestes do meu orgulho.
E Hafiz, desolado, vaga pelas ruas, tal um mendigo à procura do tesouro de Cartum.
*
- Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim. Coleção Rubáiyát. José Olympio, 1944
ELA PARTIU
Um beijo, sequer, dos seus lábios, eu não lhe furtei... e ela partiu.
Seu rosto puro, mal cheguei a vê-lo – e ela partiu.
Nossa união, que sempre foi alegria, agora não é mais do que amargura. Não tive forças para detê-la: ela partiu.
Quanta ternura nas palavras que ela dissera baixinho: – "Jamais fugirei do círculo abençoado de teus braços, ó fonte do meu desejo!" Que doces caricias!... E ela partiu.
Ela dizia: – "Quem quer a alegria da minha presença deve renunciar a si mesmo.' Abandonei tudo... e ela partiu.
Como era altivo o seu andar! Com que nobre ar de rainha pisava a erva tenra e as flores! E eu não pude colher a rosa de sua boca... Ela partiu.
Ó Hafiz, cada fim de tarde te enche de saudades e de lágrimas. Ai de mim! ai de mim! Não pude, ao menos, dizer-lhe adeus... e ela partiu.
*
PORQUE CHORAR?
Senhor, fazei que minha Amada volte! Só ela saberá libertar-me dos laços da tristeza.
Dai-me, como um bálsamo, a poeira do caminho onde ficou o vestígio dos seus passos.
Ai de mim! como fugir ao sofrimento? Todas as estradas me conduzem para a sua beleza!
Apiada-te de mim, Senhor, enquanto me acho sob o teu poder. Amanhã, quando eu já não for mais do que um pouco de argila, onde encontrarei, para te enternecer, as lágrimas do penitente?
Mas porque estes lamentos? Aquela que me feriu pode pagar-me centuplicada a minha pena.
Livre-me Deus, ó Amada, de censurar a tua ingratidão, que tanto me faz sofrer. A beleza, ainda quando injusta, é cheia de piedade e de ternura.
Hafiz nunca poderá fazer uma breve canção sobre a tua cabeleira.
*
AO ROMPER DO DIA, SONHAREI.
Ó tu que te vais para longe dos meus olhos, Deus te proteja! Minha alma abandona-me, mas eu te guardo no coração.
Até o dia em que a mortalha me envolver o corpo, não creias que eu te possa esquecer.
Deixa-me fitar, ainda uma vez, a chama dos teus olhos! Ao romper do dia sonharei que minhas mãos suplicantes se alongam em volta do teu colo.
Se eu pudesse encontrar um Mago da Babilônia, pedir-lhe-ia encantos para te conquistar.
Deixa-me, por piedade, aproximar-me de ti. Que de meu coração ardente caia a teus pés uma chuva de pérolas.
Choro na esperança de que esta torrente de lágrimas fará desabrochar em teu coração a flor pura do Amor.
Meu único desejo, antes da hora da morte, é que procures saber qual o destino do teu amado.
O Hafiz! o vinho, as mulheres, as canções são indignas de ti! Renega estes ídolos, se queres o teu próprio perdão!
*
A AUSÊNCIA
A poeira do caminho da Bem-Amada é um perfume. Traze-me essa poeira, ó Zéfiro! Apaga-me a angústia do coração.
Dize-me uma palavra só, uma palavra alegre ouvida de sua boca. Traze-me do seu mundo secreto uma mensagem de boas novas.
Amigos, em nome da vossa lealdade eu vos suplico: trazei-me um pouco do pó pisado por ela, não aquele em que se imprimiram passos estranhos.
Longos dias se passaram sem que meus olhos a vissem. Ó Saki, dá-me a taça, esse espelho em que se evocam os ausentes.
Não há mister de cadeias para capturar um coração perdido pelo Amor. Basta uma trança dos teus cabelos.
Coração ingênuo e simples, não nasci para as aventuras. Dai-me notícias da feiticeira que me enfeitiçou.
Belo pássaro do jardim, agradeço-te essa alegria. Canta as rosas e o seu vivo aroma para aqueles que estão cativos numa gaiola.
De que servem estas vestes esfarrapadas que cobrem Hafiz? E' preciso avermelhá-las de vinho e fazer do poeta um homem bêbedo, em ruínas, que se leva ao mercado de escravos.
*
A CARTA DE AMOR
Aquele mensageiro me trouxe, com sua carta secreta, um talismã para a minha vida: essa mensagem vinha da terra de minha Amada.
Ele me fez um presente raro; e contou-me longamente da glória de minha Amada.
Dei-lhe o coração em troca de suas boas notícias, mas envergonho-me de ser tão pobre: que poderia atirar aos pés de minha Amada?
Louvado seja Deus, pois, com o a auxílio do destino propício, harmonizei todos os meus desejos com os desejos de minha Amada.
Como desejaria eu submeter ao meu domínio as revoluções das esferas e as fases da lua, se todos os movimentos dos astros dependem de minha Amada?
Permanecerei no umbral de sua casa, a cabeça em prece curvada sobre a areia, e não me levantarei senão para cair adormecido no seio de minha Amada.
Se um inimigo pretende injuriar Hafiz, porque temê-lo, se, graças a Deus, não tenho motivo de envergonhar-me de minha Amada?
*
A ROSA DE TUA BOCA
Ó tu, cujo radioso semblante empresta à vida as cores da alegria, volta! Sem as rosas de tuas faces a Primavera não pode viver.
Se as lágrimas, em ondas, me rebentam dos olhos, não há razão para que te espantes: sem ti a vida não tem sentido.
Não temo o oceano da morte, onde tudo se aniquila. A rosa de tua boca é o centro do mundo.
Nos breves instantes, tão breves, em que é possível a felicidade do Amor, compreende bem o ensinamento do coração, se acaso o da vida continua obscuro.
O dia de ontem passou sem um olhar para mim. Tal como o dia de ontem, minha Amada passou, de olhos ausentes, longe de mim...
Fala, ó Hafiz! No livro do mundo o que tu escreves triunfará do esquecimento.
*
O CONTO DO AMOR
Ela disse: – "Durante toda a vida, teu coração tem sido o escravo das minhas tranças. Porque abandonas os teus companheiros?
"Não troques o suave aroma da tua inteligência pelas tranças negras da Bem-Amada.
"No velho campo do amor, não esperes que a semente do afeto e da fidelidade germine e brote antes do tempo da colheita."
Escanção, traze-me vinho: e eu te contarei segredos, o enigma das velhas estrelas e as fantasias da lua a nova.
O disco da lua, que cada mês decresce, é a imagem do que foi o destino das coroas dos reis.
Ó Hafiz, é no umbral da taverna que deves ouvir e ler o conto do Amor.
*
CAI O VÉU
Aquele que fez de minha casa um paraíso, aquele que dos artelhos às tranças, é o mais puro dos anjos;
Essa lua de verão, minha alegria e meu encanto, bela, graciosa, espiritual;
Aquela de quem disse o meu coração: – "Irei viver onde ela viva” –, mas que não soube – ai de mim! – que o seu amado é um vagabundo;
Aquela que nasceu sob um mau signo, foi roubada ao meu abraço! Que farei? A lua, em seu curso, deu origem a este desastre.
Não caiu apenas o véu que revelou o segredo do meu coração, mas – ah! – todos os véus foram dilacerados. Desfez-se todo o encantamento.
Doce é a rosa, e doce também a verde relva das fontes; mas como são breves estes prazeres!
Doces foram as horas passadas junto de minha Querida! Para mim, agora, o futuro não é mais que um estéril deserto.
O rouxinol está a morrer de ciúme porque, ao romper do dia, a rosa acariciou o vento.
Desculpa-a, meu coração! És pobre, Hafiz, e sua fronte traz a coroa da beleza.
*
A PRIMAVERA
Ei-la que volta, a Primavera, com o encanto das rosas. Contempla-lhe as faces frescas, e a planta amarga da tristeza se desenraizará do teu coração.
Chegou o doce vento do Oeste. A rosa, que ao seu sopro desfalece, dilacerou as vestes gloriosas.
Ó coração, pede à água transparente a ciência da verdade.
A noiva da rosa, com suas joias e seus sorrisos, fez-me cativo o coração e arrebatou-lhe a fé.
O apaixonado rouxinol canta seu canto de amor, e alegra-se revendo a rosa enfim liberta do seu lar de tristeza.
Vê, Hafiz: a brisa com suas ágeis mãos emaranhou as tranças da rosa, e os anelados cabelos do jacinto caem molemente sobre o rosto do jasmim.
*
PARA QUE?
Sem o sol do teu rosto, o dia para mim não tem claridade e a vida é uma noite sem fim.
À hora do adeus, quando partiste para longe de mim, meus olhos repentinamente se esvaziaram de luz, e fiquei cego de tanto chorar.
Tua imagem desapareceu do meu olhar no instante em que gritei: – "Ai de mim! este mundo agora é um deserto!"
Só a tua presença afugentava de minha fronte o mau destino. Agora que te achas longe, já o sinto rondar em torno de mim.
Aproxima-se o momento em que o Velador dirá: – "Este homem arruinado, este homem esquecido de todos vai deixar o mundo.'
Como seria bom que viesses agora, ó Bem-Amada, agora que mal resta uma centelha de vida no meu pobre corpo!
Se meus olhos já não têm lágrimas, dize-lhes:
– "Vertei agora o sangue do seu coração!"
A paciência seria o meu remédio na separação; mas já não tenho forças para sofrer.
Hafis, a miséria e as lágrimas te afogaram o sorriso. Sob o manto da tristeza, não cuides mais em festas, na embriaguez, nas canções!
*
A ARMADILHA DO AMOR
Ontem de manhã tentei beber uma ou duas taças, e dos lábios da taça o vinho caiu em meu coração.
Na alegria da embriaguez, eu evocava ardentemente a Amada de minha juventude; mas tinha-se feito entre nós a separação.
Sonhei que ainda lhe podia beijar os olhos divinos. A força, a paciência, tudo perdi, vítima de suas sobrancelhas arqueadas.
Ó Saki, dá-me sempre a taça: na viagem pela vida fora, qual o amante que não foi hipócrita?
Ó intérprete dos sonhos, anuncia-me felizes presságios! Esta noite, na alegria do sono matinal, o sol pareceu ter-se feito meu aliado.
À hora em que Hafiz escrevia estes versos cheios de inquietação, o pássaro do meu coração era preso na armadilha do Amor.
*
A PLANTA SEM SOL
Tua beleza é tal o meu amor. Nada pode ultrapassá-los. Que alegria notar que essas duas flores sempre conservam o primitivo frescor!
Não pode o meu pensamento imaginar que, entre as visões dos poetas, nenhuma forma seja mais digna de amor do que a tua.
Um ano perto de ti parece-me apenas um dia; um instante sem ti, mais longo do que um ano.
Cada hora passada ao teu lado é um século de alegria; e se fosse de um dia a duração da vida, somente contigo eu quisera viver esse dia.
Apieda-te do meu desgraçado coração: o amor de tua beleza fez-me deperecer como planta sem sol.
*
A TAVERNA
Homem puro, não censures aquele que ama o vinho: os pecados alheios não serão levados à tua conta. Cada um colherá o que houver semeado.
Não me arrastes ao desespero por causa do meu passado: sabes quem, atrás do véu, será tido por bom ou mau?
Indulgente ou severo para consigo mesmo, cada um procura o Amor. Sinagoga ou mesquita – todo lugar pode ser o Altar do Amor.
Não sou eu o único expulso da casa santa. O próprio Adão, nosso pai, deixou fugir de suas mãos o Éden.
Deve ser doce o jardim do Paraíso; mas – cuidado! – não o confundas com a sombra macia do salgueiro ou a margem da estrada.
Confia pouco em tuas obras. Como podes ler de antemão o que a pena do Criador escreveu contra ti?
No último dia, ó Hafiz, mesmo se ainda tiveres a taça na mão, poderás, da taverna, ser levado ao Paraíso.
*
A FILHA DA VINHA
Vem! lancemos ao rio do vinho o nosso barco! Lancemos as nossas dores na alma do vinho velho ou moço!
Por engano voltei as costas à rua da taverna. Reconduze-me, por favor, ao reto caminho.
Traze-me uma taça desse vinho cor de rosa, com cheiro de almíscar; espicaça de ciúme o coração invejoso da rosa.
Se sou bêbado e mau, sê generosa para comigo; tem piedade deste coração transtornado e aflito.
Se à meia-noite queres o sol, levanta o véu à filha da vinha de semblante de rosa.
No dia de minha morte, não deixes que me confundam com a terra; manda-me levar à taverna e deita-me num tonel.
Amada, se o coração de Hafiz quiser separar-se de ti, toma-o nas tuas mãos e faze-o prisioneiro num dos anéis de tuas tranças.
*
O ÍDOLO
Ó Saki, o vinho é o teu único amor: não me dês outra bebida.
Vende na taverna o meu tapete de preces! Vende-o, sim, para me trazeres um cântaro de vinho!
Vem com a dor: ela me dará a cura. Para um devoto do Amor o Céu e Terra não valem nada.
O canto da flauta e a queixa do alaúde dizem os mistérios do coração no caminho do Amor. Neste caminho, mais vale um mendigo de alma sincera do que mil Hatim-Taí.
Um ídolo de rosto de fada caminha solitário, belo como uma sultana, e o povo sai da cidade para acompanhá-la.
Os homens contemplam esquecidamente esse maravilhoso semblante. Florescem-lhe nas faces as rosas do pudor.
Até quando farás sofrer ao pobre Hafiz? Até quando lhe farás sangrar o coração?
*
A BELA VIAGEM
Não foi a paixão do ouro ou de uma glória vã que me fez vir bater a esta porta. Eu queria tão semente uma proteção contra o mau destino.
Longas e penosas foram as etapas da viagem do Amor. Percorri uma estrada imensa que de um país brumoso me conduziu às luminosas regiões da vida.
Trago comigo os tesouros da felicidade, e eis-me, no entanto, como um mendigo à porta de um rei.
Ó doce urna de misericórdia, apiada-te de mim: o peso dos meus pecados arrasta-me para longe do oceano da clemência.
Ó chuva divina, apaga as minhas iniquidades: no livro em que se inscrevem as ações humanas as letras do meu nome estão traçadas em negro.
Hafiz, deita fora as vestes da hipocrisia e segue o caminho da caravana sem abafar os teus suspiros!
*
TUDO ACABARÁ
Chegou-me feliz notícia: meus dias de tristeza estão contados; não durarão para sempre.
Disseram-me que, embora vítima da indiferença e desprezo da Bem-Amada, terei, no entanto, a alegria de não ver o meu rival feliz para sempre.
O guarda do portão tocará com a espada, e no harém ninguém ficará para sempre.
Ó chama, considera como um benefício do Céu o amor da borboleta: antes que anoiteça, o seu desejo estará morto para sempre.
Um anjo descido do Céu trouxe-me esta palavra: "Sobre a terra ninguém permanecerá para sempre."
Ó rico, apressa-te em socorrer ao pobre, pois o teu ouro e a tua prata não te pertencerão para sempre.
Na abóbada celeste as estrelas escrevem, em letras de fogo: "Tirante o ato do Justo, nada durará para sempre."
Ó Hafiz, continua generoso: o mal e a injustiça não triunfarão para sempre.
*
O AMANTE ENVELHECIDO
Ó Zéfiro, traze-me o perfume da rua em que ela mora. Sinto-me doente, extenuado; esse odor me trará sossego ao coração.
Derrama na minha alma ressequida o misterioso bálsamo do desejo; traze-me um pouco da poeira do limiar de sua porta.
Estou em guerra com o meu próprio coração. Põe termo à luta dando-me o arco das suas brancelhas e a flecha do seu olhar.
Envelheci na indigência, na solidão e na dor. Que a mão de uma rapariga me ofereça agora uma taça de vinho.
Que ela ofereça, também, àqueles que pretendem renunciar a esta alegria da vida, duas ou três taças do mesmo vinho. Se eles as recusarem, eu as aceitarei.
Ó Saki, não deixes para amanhã o prazer de hoje, ou, então, dá-me a certeza de que amanhã tornarei a encontrá-lo.
*
A RAINHA
Pode-se fazer brilhar a alegria nos rostos sem se ter o domínio dos corações. Pode-se ler muitos livros e não ter a ciência de Alexandria.
Pode-se viver nas altas esferas e não possuir a realeza e os privilégios do soberano.
O Amor é um senhor infinitamente sutil. Pode-se deixar de cortar os cabelos e não ser um calândar.
A felicidade dos meus olhos é o teu rosto e o teu olhar: sou um joalheiro que conhece o valor desta joia.
Perdi o coração; esqueci-me de que um filho de Adão não deve conhecer o amor de uma Perí.
Minha Amada é rainha deste mundo pela sua beleza. Se ela soubesse também fazer justiça!
Ser bom é cumprir a promessa feita. Não manter o juramento é ser tirânico.
Se possuis uma alma que canta, conhecerás todo o encanto dos versos de Hafiz.
*
A AMIZADE
Entre louvores ofereçamos o incenso da amizade ao homem cujo olhar cintila!
Que a luz de um coração puro brilhe como o círio que ilumina a cela do devoto do Amor.
Já não vejo a meu lado aquele que foi meu companheiro. Parte-se-me de tristeza o coração. E o escanção, onde está?
Onde se vende o vinho que poderia vencer o hipócrita? Tenho a alma pesada de amargura.
Meus companheiros rasgaram o pacto da amizade – de tal modo, que chego a duvidar da existência desse pacto.
Se meu coração partido pudesse um dia alcançar o que deseja, não procuraria alívio nesses corações de pedra.
Queres obter a alquimia da felicidade? Afasta-te dos maus companheiros.
Não te queixes, ó Hafiz, das crueldades do tempo. Escravo, que sabes tu das ações do teu Senhor?
*
AS LÁGRIMAS
Ai de mim! partiste. Sofro, e queixo-me. Choro porque o vento não te leva o eco dos meus suspiros.
Dia e noite, bebo as minhas lágrimas. Como pudera sorrir se te achas longe de mim?
O desgraçado Hafiz está mergulhado nas ondas amargas de suas lembranças, e tu nem pensas em teu escravo de coração ferido.
*
O DERVIZ
Como manifestar a tua gratidão ao Céu que te é propício? Com que tributo? Com que oferenda?
Na rua em que mora o Amor, o esplendor dos reis é pura vaidade. Confessa tua escravidão e orgulha-te de ser escravo.
Aquele que ia tombando e que Deus segura pela mão, dize: – "Que o teu papel seja partilhar as tristezas dos que caíram."
E tu, Saki, transpõe o limiar de minha porta. Doce mensageiro, liberta-me o coração, por um instante, das tristezas de que o mundo o oprime.
Quantos perigos na estrada real das dignidades e das grandezas! É prudente evitá-la quanto possível.
O pensamento do Sultão só se ocupa de inimigos, conquistas e coroas. O Derviz só pensa na calma da tarde e no plácido refúgio do calender.
Deixa-me confiar-te um segredo: mais vale a paz do que o poder.
Hafiz, não laves o rosto para limpá-lo da poeira que a pobreza tranquila nele acumulou: esta poeira vale mais do que o ouro do alquimista.
*
A BOA PROVA
O amor que conheceste será tua alegria. Assim o decidiu o Destino.
Submetendo-te à prova, o Tempo quis gravar em teu coração a marca da abnegação e da coragem.
Lembra-te de que o livro sagrado só é mais exaltado que todos os livros porque ele próprio sofreu a prova do tempo.
O homem valente e sábio é aquele que examina cautelosamente o caminho que vai trilhar. Ele gozará os doces frutos da vida.
Se a hora é calma, ele toma da taça; se a luta se aproxima, lança mão da espada.
Em plena angústia, não perde jamais a esperança: a medula mais delicada está no osso mais duro.
E depois da abstinência, depois da amargura, que o sabor do açúcar se manifesta em todo o seu dulçor.
*
VEM PARA A ALEGRIA
Mostra-me o rosto, e dize-me: – "Sacrifica a tua vida!" Dize-me: – "Acende com a tua alma o facho em que se queimará a borboleta, enamorada da chama.
"Toca harpa, sê feliz! Faltam-te perfumes? Eis o jogo do meu amor, meu coração mais embalsamado que a madeira do aloés, e meu corpo, este incensório!
"Vem para a alegria, e canta! Despe o hábito austero, e dança; se não, vai-te sentar a teu canto, oculto sob véus hipócritas."
Se tenho minha amiga perto de mim, que me importa a inimizade dos dois mundos? Pode a Fortuna trair-me, e a terra inteira fazer-me guerra.
Não deixes ir embora o monge mendigo com as mãos vazias. Olha: suas lágrimas são puras como a prata, e o Amor ilumina-lhe o rosto.
Não penses mais em partir, ó Bem-Amada: comigo fica ao menos uma hora; goza a delícia de estar aqui, sentada à beira da fonte, a taça entre as mãos.
Vê: extinguiu-se a chama do meu coração; a água dos meus olhos secou. Observa minha раlidez, meus lábios ressequidos, meu peito úmido.
Ó Hafiz, sê o ornamento do banquete, e derrama entre os convivas o vinho puro dos teus poemas.
*
SOFRE EM SILÊNCIO
Mil vezes grato! Mais uma vez, meus olhos puderam aplacar o seu desejo fitando-te o semblante. Leal e pura, voltas a ser a companheira de minha alma.
Os viajantes, não raro, trilham o caminho da desgraça. Mas o companheiro de jornada não se preocupa de saber se ele sobe ou se desce.
Antes sofrer em silêncio de uma paixão escondida que confiá-la a alguém. Há segredos tais, que não se devem depositar em corações cheios de malicia.
Regozija-te se a presença da Amada te ilumina! Se a noite vem mergulhar-te na tristeza, consome-te, ó facho, mas não deixes de brilhar!
Com a ilusão de um beijo compra a felicidade. Ela te salvará corpo e alma das astúcias do inimigo
Longas horas e dias me seriam precisos para dizer-te, ó Bem-Amada, a tristeza que me assombra o rosto. Porque me fazes sofrer tanto?
O canto do Amor fez conhecer em Iraque e Hijaz a doce melodia dos gazéis de Hafiz.
*
A VINDIMA
Eis que o vinho novamente me arrebata! Novamente o vinho me conquistou com as suas carícias.
Mil vezes bendito o vinho rubro, que empresta ao meu rosto as cores da alegria!
Bendita a mão que colheu a uva. Não tropece jamais o pé que a amassa!
A palavra "Amor" foi escrita em minha fronte pela mão do Destino em letras indeléveis.
Não pronuncies sentenças vãs sobre a sabedoria. No dia fixado, Aristóteles entregará a alma como qualquer mendigo.
Não desperdices tua vida neste mundo. Quando já não existires, os homens nada dirão de ti, senão, talvez: –"Ele morreu."
Aqueles que bebem vinho puro, como Hafiz, embriagam-se do Único na taça da Eternidade.
*
MAIS FORTE QUE A MORTE
Cada um dos teus olhares aviva o meu sofrimento. Cada um dos meus olhares faz crescer o meu amor.
Não cuidas em mim um só momento. Ignoro-te os pensamentos secretos. Que bálsamo me poderias oferecer, se nem sabes que eu sofro?
Cruel, que assim me deixaste prostrado e passas sem me ver! ah, volta e, por piedade, detém-te um breve instante junto a mim.
Minha mão não se desprenderá de ti nem mesmo no dia em que eu não for mais do que pó. Quando passares perto de minha sepultura, ela ainda sairá para tocar-te.
As mágoas do Amor me fizeram mudo. Por quanto tempo me privarás da respiração, que sem ti não posso recobrar?
Nas trevas da noite, quis desprender o coração das cadeias de tuas tranças; mas, tateando, senti as tuas faces e bebi em tua boca.
Abracei-te, e os teus cabelos me envolveram como uma chama. Apertei os lábios de encontro aos teus, e entreguei-te, como resgate, minha alma e meu coração.
Quando te vais, sem mim, por entre as flores, gozar das alegrias da Primavera, uma lágrima brota silenciosa dos meus olhos e desliza-me pelo rosto.
*
A ILUSÃO
Ao raiar do dia, após uma noite devassa, tomei o alaúde, a taça e o vinho. Disse adeus à prudência e arrastei-a pelo caminho que vai ter ao país encantado da embriaguez.
Aquele que vende o suco da vinha fitou-me uns olhos acariciantes, e esse olhar libertou-me das mentiras do tempo.
Falei a estas mentiras: – "Ide armar a outro pássaro as vossas armadilhas; a águia constrói seu ninho nas alturas!"
O companheiro, o músico, o escanção, todos eles são fantasmas, um pouco de argila e de água! Tudo é só ilusão.
Traze-me uma taça de vinho para que eu me possa orientar com segurança fora deste mar sem porto.
Hafiz, a vida é um enigma. O esforço para resolvê-lo – um ridículo e uma vaidade.
*
CANÇÃO DA AUSÊNCIA
Procuro em torno de mim o doce fantasma da Amizade. Que é feito dos meus companheiros?
O rio da vida, turvo. Corre sangue dos galhos da roseira. Que conta a brisa da Primavera?
Milhares de rosas florescem, e nem um canto de rouxinol! Que é feito do rouxinol?
Onde o calor do sol, e o trabalho das nuvens e da chuva?
O Amor já não tange o seu alaúde. Está quebrada, essa harpa? Ninguém conhece mais a embriaguez? Onde os que amam o vinho?
A graça divina voltou a cair no solo, como um projétil. Que é feito dos cavaleiros?
Ó Hafiz, ninguém sabe os segredos de Deus. Porque perguntas o que se passa no turbilhão do tempo?
*
EMBRIAGA-TE
Se o canto da rola e o do rouxinol já não te falam de embriaguez, e se não te abandonas às delícias do vinho, como poderei curar-te?
Agora que a rosa deixou cair o seu véu e o pássaro voltou a cantar, não desprezes a taça. Por que te lastimas?
Se tens à mão a água benfazeja da vida, não morras de sede.
Entre tantas riquezas que traz a Primavera, recolhe tesouros de cores e perfumes. O outono e o inverno se acham tão próximos!
Cedo ou tarde, a Destino retoma tudo o que dá. Nada peças à pobre humanidade: o que ela oferece não tem valor.
Qual a duração de toda a majestade e todo o poder real? Do trono de Djemschid e da coroa de Kaí só restam lendas.
Na porta da Casa do Céu está escrito: "Desgraçado daquele que compra os sorrisos do mundo."
A generosidade não habita mais a terra. Cerrarei os lábios. Onde a taça? quero fazer um brinde: "Que a alma de Hatim Taí viva em perpétua alegria!"
*
O VINHO DO AMOR
Escuta o meu conselho; não procures escusa. É um bom e grave conselheiro quem te fala.
Goza a delícia do Amor enquanto a mocidade te sorri. A vida é uma emboscada em que te surpreende a velhice.
Quero amor e música, a voz dos instrumentos para afugentar a minha dor.
Deem-me o que desejo, e não mais pecarei, não beberei mais vinho.
Quê! achava-me ausente quando fixaram meu destino para a eternidade. Se com isso infrinjo a lei, quem me poderá pedir contas do meu delito?
Muitas vezes afastei para longe a taça tentadora; mas o olhar do escanção quebrou-me a vontade.
Dá-me, então, vinho puro, e que o pensamento de minha Amada não me fuja da alma.
Vinho de dois anos, uma Bem-Amada de quatorze...
Não te dissera eu, ó coração! que te afastasses de suas tranças? Ora, se até o vento é prisioneiro delas!
Neste banquete, Hafiz, não renoves a jura de não mais pecar: o escanção de sobrancelhas arqueadas ferir-te-ia com suas flechas.
De que valem as palavras de Khaju e os poemas de Suleimão? Melhores do que os versos de Zair são os versos de Hafiz.
*
O PERFUME
Livre Deus da desgraça àquele que permanece fiel a seus amigos!
Minha cabeça e meu coração a minha alma – tudo ofereço em holocausto à Bem-Amada.
O coração, procura viver de tal arte que, se vais a resvalar, possa o anjo suster-te com suas abençoadas mãos!
Ela não guardou meu coração, ela que assim falara: – "Deus guarda o que vem da mão do escravo!" Brisa, se vires meu coração enleado nos seus cabelos, dize-lhe o que deve fazer para continuar nessa prisão.
Onde está, ó Bem-Amada, a poeira do teu umbral? Hafiz gostaria de conservá-la como lembrança do teu perfume.
*
O GUARDIÃO DO VÉU
Que há de tão belo no mundo como um jardim em que sorri a Primavera? Mas onde está o escanção? Dize-me, porque tarda ele a vir?
Ó Amor, cada momento de alegria concedido por tua mão abençoada vale mais que todos os tesouros. Não percamos nenhum dees. Talvez o próximo seja o último.
O liame de nossa vida é mais frágil que um cabelo. Serve-te da tua inteligência, sê para ti mesmo o teu melhor amigo. Assim, que é que te poderá ferir?
Um rio de vinho, os jardins do Irã – que é tudo isto senão a delícia das águas vivas e o prazer da embriaguez?
Que revelam os céus mudos sobre o segredo oculto atrás do véu? Porque lutar com o guardião do véu?
Se, para o escravo enredado no erro ou mergulhado na ignorância, não existe uma justiça celeste, que valem as palavras de perdão e piedade do Todo-Poderoso?
O devoto tem sede do vinho de Kausar, Hafiz tem sede do vinho da vida. Entre os dois, qual o eleito do Criador?
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HUMILDE ALEGRIA
Amigos, uma garrafa de vinho, repouso, um livro, um lugar entre as flores... Não trocarei essa alegria por um mundo –presente ou prometido.
Aquele que abandona o tesouro desses prazeres pela riqueza do mundo é igual aos que venderam a preço vil a graça e a santidade de José o Egípcio.
Vem: a cena do universo é extremamente vasta para um devoto como tu e um devasso como eu.
Senta-te, alegre, em teu canto obscuro. Escuta! Nenhum homem pode meditar em vão, por muito tempo, sobre a minha estranha dor.
Um ser indigno, vil, possui o meu ídolo. Submete-me o céu a esta dura prova: arma-te de paciência, ó coração! Deus não permitirá que permaneça indefinidamente no dedo do mau esse anel de valor inestimável.
O espírito do tempo é mórbido. Ó Hafiz, que vale, em tal miséria, a inteligência do médico, ou o conselho do sábio?
*
O SUFÍ
A moeda do Sufi não é de metal puro. Quantas coisas, nele, dignas do fogo!
Com que altivez reza ele a sua prece matinal! Mas vê como, à noite, ele se entrega às festas!
Convém que, para lhe fazer vergonha, levemos uma pedra de toque e ponhamos à prova o que ele nos quer dar.
São sempre caminhos fáceis, os seus. Ele não encontrará jamais o caminho que leva à Bem-Amada: o Amor é uma alegria reservada àqueles que amam a aventura.
Ficar desolado porque o mundo é vil? Nunca! Bebamos vinho, e não perturbemos mais o coração do sábio!
Que o homem da taverna leve o hábito religioso de Hafiz, se nele deitou vinho o escanção de rosto de lua!
*
O POETA POBRE
A inconstância reina soberana. São raras, hoje, as provas de amizade fiel.
Os homens sérios veem-se reduzidos a estender aos indignos a mão leal.
Na imensa dor do mundo, o homem de bem não conhece um instante de repouso ao seu sofrimento.
Que o poeta faça um canto claro como o vinho, um canto que derrame no coração uma onda de alegria.
O avarento e o guloso não lhe atirarão sequer uma espiga sem grãos, a ele que pode cantar as melodias dos anjos.
A Sabedoria, ontem, disse-me baixinho:
– "Vai! Embora fraco, tem paciência.
"Sim, seja a paciência a tua única arma.
Doente, ou triste – tem paciência!"
Ó Hafiz, guarda na alma este conselho, e, se de fatigado cambaleias, endireita-te, ergue a fronte, e caminha!
*
O ESCRAVO
Antes a união com a Bem-Amada do que a vida eterna. Senhor, concede-me esta graça, a primeira entre todas.
Ela como que me decapitou com uma espada, mas eu não disse nada a ninguém. É bom ocultar ao inimigo o segredo da Amada.
Ó coração, fixa-te na rua que ela habita. Diz o provérbio: "A riqueza estável é sempre a melhor."
Devoto, que me importa o teu Paraíso? Aos frutos do Eden prefiro o fruto dourado de sua face.
Mais vale expirar à porta da Amada, marcado com o sinal da escravidão, do que conquistar o império do mundo.
A todas as flores da Primavera prefiro a poeira da rosa machucada pelos seus pés.
Perguntai, por Deus, àquela que me pode curar, quando terá fim este abandono.
Certa noite, disse-me a Bem-Amada: –"Esta pérola que vês em minha orelha, nenhum olhar viu nunca uma joia tão resplandecente."
As palavras da Bem-Amada são preciosas, mas as que saem da boca de Hafiz são as melhores.
*
A VERDADEIRA SABEDORIA
Ó Saki, a taça da tulipa transborda de orvalho. E eu tenho sede do teu vinho. É o orvalho de minha alma. Porque tantas palavras incertas? Quanto tempo durarão estas loucuras?
E tu, companheiro de jornada, despreza todo orgulho e todo fausto. O tempo enche de buracos a túnica de púrpura dos Césares; o tempo viu desabar a coroa de Kaí.
Conheces enfim a verdadeira sabedoria. O pássaro, no jardim, embriaga-se com os campos e perfume das flores. Desperta! Está próximo o sono eterno.
E tu, ramo florido da jovem Primavera, balança-te docemente ao sopro da vida. Que nunca o Destino te exponha ao vergastar furioso do vento de inverno.
Não te fies no amor daquilo que passa, nas carícias do mundo. Desgraçado daquele que se julga ao abrigo da astúcia!
Amanhã, beberás, talvez, um gole de prazer no rio do Paraíso, ou, talvez, estarás em companhia das fadas. Por hoje, basta que olhes o escanção e a tua taça, que ele quer encher.
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OS BENS OCULTOS
O coração é o guarda-fogo atrás do qual se oculta o seu amor. Seus olhos são o espelho que lhe reflete a face.
Eu, que não curvaria a fronte nem diante deste mundo nem do outro, inclino a cabeça ao jugo de sua misericórdia.
Tu gozas da árvore do Paraíso, eu da lembrança da Bem-Amada. Assim é que os pensamentos de cada homem se formam à medida dos seus desejos.
Que faria eu neste lugar sagrado, onde tudo é um véu que me oculta o santuário da santidade?
Se manchei as vestes, que hei-de fazer? Todo o universo é testemunha da minha pureza.
Há muito que Medjnum morreu. Agora chegou a nossa vez. A cada homem são concedidos alguns dias na terra.
Da mão da Providência é que recebemos a felicidade, a riqueza e a alegria.
Se demos em penhor os nossos corações, que poderemos temer? O fim que temos em vista é a glória de sua salvação.
Não cesses de contemplar a imagem dela como o ídolo dos teus olhos. O silêncio é boa célula para a intimidade do pensamento.
Cada rosa que ri sobre a relva, numa alegria de cores, é um sinal da beleza e do perfume da sua generosidade.
Que importa que eu seja pobre? O coração de Hafiz é um tesouro de afeto.
*
O PAPAGAIO
Ó papagaio, dizedor de enigmas, sê feliz!
Conserva sempre assim brilhantes as tuas belas penas cor de esmeralda, e alegre o teu coração. Revelaste-me tantas coisas!
Disseste-me palavras obscuras para meus rivais. Que lição repetias? Ninguém me explicará esse enigma?
Ó Fortuna, deita-nos água de rosa no rosto, pois nós temos um sono pesado, ó vigilante!
Que canção pôde cantar o músico, que fez o bêbedo e o homem em jejum dançarem juntos?
Que ópio derramaram em nosso vinho? Já não achamos nem o turbante nem a cabeça.
A prudência é a verdadeira riqueza, mas que vale a prudência diante do Amor?
Não reveleis ao abstêmio o segredo da embriaguez. Não peçais às imagens pintadas na parede que elas vos contem a história da vida!
O inimigo de nossa fé é um ídolo da China. Ó Deus! preserva a fé e o coração de Hafiz.
*
MÚSICA NO JARDIM
Escuta! A brisa da manhã traz-me o perfume e a recordação dos dias da infância. Seja-me este retorno de tão longe um bálsamo para a aflição da alma.
Não admires tanto o esplendor da rosa real. O vento, com seus leves pés, lhe espalhará em breve as pétalas.
Bebamos à augusta memória de Hatim Tai, e encerremos assim o livro negro das nossas misérias.
Foi o vinho quem deu à rosa a cor de púrpura. E' ele que deixa exalar-se sua alma e sua graça secreta no perfume que te embriaga.
Estende os coxins de seda sobre a erva do jardim. De pé como um escravo, o cipreste acaba de desdobrar-te o fresco tapete de sua sombra azul. O tocador de flauta espera..
Escuta! Como se harmonizam os músicos! Como se confundem as vozes da harpa e do alaúde, da lira e da flauta!
Ó Hafiz, o renome do teu gênio encantador chegou às fronteiras do Egito e da China, e até dos remotos países de Rai e de Rum.
*
PROMESSAS VAS
Ferido no coração, como estou, tenho o direito de ser amargo. E agora, parto. Deus te proteja!
No entanto, ainda te digo: és a joia inestimável que mesmo no Céu faria felizes os eleitos!
Podes submeter-me a uma prova, se acaso duvidas de minhas palavras.
Disseste-me: – "Estou embriagada, quero dar-te dois beijos." Fizeste-me promessas sem conto, mas não me deste nem dois beijos nem um sequer.
*
PALAVRAS DE AMOR
Sê o escravo de sua beleza perfeita.
A hurí e a perí são encantadoras, mas há uma, entre elas, mais formosa e mais rara.
Ó rosa do seu sorriso, aceita o orvalho das minhas lágrimas. É a esperança de contemplar-te que me enche os olhos de uma água tão doce.
O arco de tuas sobrancelhas é uma arma poderosa que triunfa de todas as armas.
Pois que me concedes a graça de escutar-me, minhas palavras te hão-de abrandar o coração: há um sortilégio na música das palavras de amor.
Ninguém jamais recebeu, no caminho do Amor, a iniciação perfeita nos seus mistérios. Cada um julga conforme entende.
Não te orgulhes da tua generosidade, entre os frequentadores da taverna; cada palavra tem seu momento próprio, cada sutileza o seu lugar.
Não apliques o teu espírito nem a tua sagacidade aos versos de Hafiz: seu cálamo tem segredos que não conheces.
*
O CORAÇÃO QUE SANGRA
Aquele que te enriquece as faces com o esplendor da rosa pode dar-me, a mim desgraçado, paciência e repouso.
E aquele que te deu essas tranças tão belas e perfumadas é capaz de, misericordioso, prodigalizar-me as suas graças.
Se tenho vazias as mãos, resta-me a alegria. Aquele que dá tesouros aos reis, concede aos mendigos a tranquilidade do coração.
O mundo é uma bela noiva, mas quem se liga a esta noiva deve oferecer o coração como dote.
Eis porque não terei outras alegrias senão as que sinto à sombra da tua beleza.
Nas mãos da dor sangra o coração de Hafiz.
*
O SEGREDO DAS ROSAS
Muitas vezes um coração pesado se alivia com um belo verso. Possas tu encontrar neste livro de cantos mais de um remédio à tua dor.
Tivesse eu em minha boca um beijo da tua – um só –, conservaria na alma o sinal desse beijo, e com este selo mágico, mais poderoso que o selo de Suleimão, teria em meu poder todos os reinos.
Porque choras assim? Observa sem espanto a flecha que o Destino te enterrou no coração. Olhando-a bem, talvez a julgues bela.
Não há quem não possua um dom da misericórdia divina: este, tem a taça; aquele, o amor.
Conheces o segredo das rosas e de sua essência: exibem-se as rosas no mercado, mas a essência está oculta.
*
O MENDIGO
Sou o amante do meu amor: que me importa seja ela fiel ou pérfida? Tenho sede de sofrimento: que me importa, a mim, nossa união ou nossa desunião?
Se nos teus lábios não encontro a vida, que me resta fazer desta vida sem ti?
Se o Amor me faz morrer, que medo poderei ter da espada do Sultão?
Nu e pobre, sempre na miséria, que valem para mim os tesouros dos reis?
Os olhos da Bem-Amada são a Meca dos meus pensamentos e dos meus desejos. Meu coração não conhece outro lugar de peregrinação.
Se te quero só a ti neste mundo, de que me serve o Paraíso e suas huris eternas?
Aquele que se perdeu no caminho do Amor, ó Hafiz, desdenha a amargura, despreza a aflição; não procura mais remédio para as suas mágoas.
*
O ESTRANGEIRO
Sou um estrangeiro. Sê para comigo acolhedora e cortês. Tem piedade deste viandante, deste peregrino.
Podes fazer de mim o que entenderes; mas não me prives da alegria do teu rosto.
Beijo em pensamento os umbrais da Casa da Esperança: minha voz suplicante não sabe fazer-se ouvir.
Ó coração, não temas a noite que vem chegando, pois a ela sucede a manhã.
Se me reduzes à condição de poeira, não deixes, ao menos, de projetar a tua sombra sobre este pó.
A história das tuas mágoas, ó Hafiz, é uma longa canção, uma canção antiga.
*
QUE IMPORTA?
Se em teu jardim colhi um punhado de flores, que importa? Se, ante o brilho de tua lâmpada, desço o olhar para a terra, que importa?
Senhor, se para fugir o áspero sol das solidões repousei um instante à sombra deste cipreste, que importa?
Se a prudência desertou a minha morada, se o vinho é a razão das calamidades na casa do crente, que importa?
O hipócrita procura o favor dos reis. Se eu cedo à fascinação das belas imagens, que importa?
Partilhei a vida, sem poder fixar-me, entre o vinho e a Bem-Amada... Que importa?
O Senhor sabia que eu era o amante e o bebedor, e guardou segredo. Hafiz também o sabe... Que importa?
*
O BOM CAMINHO
Porque deixaria eu de ir ao fim deste caminho? Ele conduz à minha verdadeira pátria. Meu desejo é ser como a terra da aldeia de minha Amada.
Ah! como é cruel a ausência, e dolorosa a separação! Vou regressar à minha cidade e tornar-me meu próprio rei.
Serei um daqueles que são admitidos por trás do véu; far-me-ei um dos escravos da Bem-Amada.
Já que os acontecimentos da nossa vida nos são ocultos, possa eu, no dia do Destino, achar-me em companhia da Amada.
Até hoje os meus prazeres foram sempre o Amor e as festas. Trabalharei, agora, e devotar-me-ei de todo à minha obra.
Até hoje a mão do Destino fez de mim um sonhador e um vagabundo. Dagora por diante procurarei ser o obreiro de minha própria obra.
Talvez então, ó Hafiz, seja a piedade divina o teu guia no bom caminho.
*
O ANJO DE CHIRAZ
Se este anjo de Chiraz quisesse guardar o meu coração, por essa felicidade eu daria Samarcanda e Bucara.
Ó Saki, serve-me desse vinho que tens reservado: no Paraíso não verás mais a ribeira de Roknabad nem os roseirais de nossa Mosela.
Ah! essas caprichosas, essas belas que inquietam a nossa cidade, arrebatam de meu coração a paciência como os turcomanos a sua presa.
E no entanto a beleza da Amada não necessita do nosso amor imperfeito. Para quê arrebiques, pó, ou tintas, num rosto encantador?
Conta-me a história do músico e do vinho. Não procures sondar os segredos do Tempo: nenhuma Sabedoria resolverá os mistérios da vida.
Falaste mal de mim, e eu estou feliz. Deus te perdoe. Uma palavra amarga é sempre benvinda quando sai de lábios tão doces.
Hafiz, compuseste um gazel em que dizes tua alegria e tua mágoa. Reuniste pérolas em colar. Vem, canta docemente os teus versos, e que sobre o teu canto se espalhe a glória das Plêiades.
*
O SENHOR AMOR
Como reprimir o coração atraído para a uva de cheiro almiscarado? Nenhum perfume da vida emana austeridade e hipocrisia.
A terra inteira repudiasse o Amor, e ainda assim eu obedeceria aos seus decretos, pois ele é meu Senhor.
Meu coração, imutável, não se cansa de sua prece humilde. Espera atingir um anel das tranças da Bem-Amada.
Ó tu, que os Céus ornaram de tantos encantos, porque te fazes adornar por teus escravos?
O prado está cheio de flores novas, a brisa me acaricia, e o vinho é puro. Que falta, agora, senão um coração contente?
Não é preciso interrogar uma alma para lhe conhecer os segredos: o espelho do rosto é muito límpido.
Eu disse à Amada: – "Porque não me darias, ó beleza, um pouco de bálsamo para aliviar a minha dor?"
Ela respondeu com um sorriso: – "O céu proíbe, ó Hafiz, que o teu beijo profane o meu rosto."
*
Ó GUIA DO MEU CORAÇÃO!
Todo aquele que deixa, desiludido, a tua rua, não alcançará bom êxito em nenhuma empresa, e terminará devorado de remorsos.
O viajante que procura o caminho para a Bem-Amada tome um guia seguro, pois, sem ele, se perderia na má estrada e não atingiria nunca o seu fim.
Faze para o resto de tua vida um pacto com o vinho e com a Bem-Amada. Ai! que tempo perdido na preguiça!
Ó guia do meu coração abandonado, deixa-me suplicar a Deus que me oriente.
A caravana que viaja sob a proteção da graça divina repousará no prazer e prosseguirá no esplendor.
Hafiz, toma uma taça enchida à fonte da ciência para apagar do teu coração qualquer imagem de ignorância.
*
O MEU CONSELHO
O meu conselho é que os amigos deixem de mão o trabalho e beijem as tranças da Amada.
Que eles acariciem, felizes, os cabelos do escanção, quando o Céu lhes conceder essa ventura.
Como são bravos os adolescentes! Como as flechas dos seus olhares fazem tantas vítimas!
E agradável dançar quando as doces canções se casam à voz da flauta, sobretudo quando, na dança, se tem presa a mão da Bem-Amada.
Não te vanglories, ante as amadas, da força do teu braço: no seu exército, basta um guerreiro para tomar uma fortaleza.
Ó Amor, os visionários fazem da poeira de teu caminho o kohl dos seus olhos. Eis porque, de há séculos, eles palmilham a estrada real que a ti conduz.
*
CONTOS DA BRISA
Eu sou aquele cujos olhos só se abriram para contemplar a Bem-Amada. Ó Soberana, dize a teu escravo que tributo ele te pode oferecer.
Dize a este pobre, tão perturbado só de te ver, que não limpe o rosto da poeira que o cobre: a poeira do teu caminho é mais embalsamada do que as rosas.
Olhos meus, em troca de tão poucas lágrimas vertidas quantos olhares podeis lançar sobre o rosto dela!
Disse o juiz do Amor: – "Se o amante não faz suas abluções com o sangue do próprio coração, sua prece não será ouvida."
Se é dura a rota, ó coração, nem por isso tentes evitá-la!
Nessa morada estranha, não toques em nada senão na taça; nessa Casa da Ilusão, só brinques com o brinquedo do Amor.
Que me importa esta brisa, e os contos que ela murmura? O jardim está sem confidente.
Bem que tua beleza seja indiferente ao meu amor, não deixo este brinquedo que me fascina.
Nenhum cantor se faz aclamar na assembleia em que Hafiz ergue a voz.
*
A TAÇA DE ARGILA
Se comparam teu rosto à Lua e às Plêiades, é por adivinhação, pois tu és invisível.
As narrações dos amores de Farhad e Shirin são iguais às que fazem acerca do nosso amor, esse amor tão ruidoso.
Na rua onde moram aquelas que têm presos os corações, a poeira possui um cheiro vivificante. Foi lá que os amantes encontraram o perfume da sabedoria.
Como terra ressequida, espero em vão a gota d'água que cairá para mim da tua taça generosa. Como sofrem os pobres namorados!
Não olhes com desprezo a minha taça de argila: ela é que me revela muitos segredos.
Todos os sortilégios, todo o poder da magia não conseguiram fazer o que fizeram os teus olhos e os anéis dos teus cabelos.
Eu tinha direito a um beijo, e não mo deste. Deveis-me fazer justiça, ó doces lábios!
No fogo das faces da Bem-Amada fundem-se a minha razão e os meus juramentos. Os poemas de Hafiz nada mais são do que o louvor sem fim da tua beleza, e todos aqueles que os ouvem juntam as suas vozes à minha voz.
*
A MESSE
Eu contemplava o Céu que se ostentava em sua glória como um campo infinito, e a lua, igual a uma foice, e pensava em minhas colheitas e no tempo da messe.
E exclamei: – "O Fortuna, vai alto o sol, e dormes ainda." E a Fortuna respondeu-me: – "Apesar de tudo, não desesperes!
"Talvez retornes ao Céu, nu como no dia em que nasceste, mas nem por isso brilharás menos.
"Não te fies nas estrelas, essas ladras noturmas: elas arrebataram a coroa de Kaus e o cinto de Kai-Khosrú."
Ó Céu, cobras demasiado caro pela tua glória.
Sim, pesados anéis de ouro e rubis pendem-te das orelhas, mas a beleza passa mais depressa do que os ornamentos.
*
RESIGNAÇÃO
Se tuas tranças em que há o cheiro do almíscar recusam os meus afagos, se as tuas belas faces se furtam ao meu beijo – que hei-de fazer? Cumpra-se o destino.
Se a tormenta do Amor destruiu a messe do pobre daroez vestido de lã; se a tirania de um rei poderoso caiu sobre um mendigo – que hei-de fazer? Cumpra-se o destino.
Se existe um coração opresso pela lembrança das tuas injúrias, dos teus olhos cheios de desprezo, ó Bem-Amada, que hei-de fazer? Cumpra-se o destino.
No grande caminho do Amor como poderia deixar de haver corações assassinados? Traze-me vinho!... Cumpra-se o destino.
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A CHAMA OCULTA
Fiz um pacto com a Bem-Amada. Enquanto a alma habitar o meu corpo, amarei como a mim próprio todos aqueles que vivem à sua sombra.
Se tenho comigo aquilo que por tanto tempo foi o meu desejo, que me importam os rumores e as mentiras da multidão?
Ó Velador, praza aos Céus que esta noite feches por um instante os olhos, para que eu posso murmurar baixinho minha queixa de amor sobre os seus lábios mudos.
Que me importam as tulipas e as rosas, se, pela graça do Céu, eu tenho, para mim só, todo o jardim!
O vinho que bebo é tão doce e tão forte! E a Amada é tão bela, mais bela que todas as imagens do mundo!
O rubí dos seus lábios é tão poderoso como o sinete de Suleimão.
Chegou ao termo o longo jejum. Hafiz, não chores mais.
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A DESDENHOSA
No caminho que seus pés transitam, lá me prosternei, humilde, e ela não se aproximou de mim. Suspirei e gemi, e ela não me deitou se quer um olhar.
Poupa, Senhor, essa beleza sem coração às aflições daqueles que a amam.
A torrente das minhas lágrimas não a abrandou. Não há chuva que possa amolecer esse rochedo.
Se, como um facho, eu fosse morrendo diante dela, ela não me apressaria a extinção com um sopro dos seus lábios.
Minhas queixas e soluços perturbaram o sono aos pássaros e às flores; e ela, desdenhosa, nem sequer abriu os olhos.
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ONDE ESTÃO ELES?
Procuro em vão. Que é feito daqueles que foram meus amigos?
Turva, a fonte da vida. A rosa perdeu a cor. Onde a brisa da Primavera?
Milhares de rosas floresceram; mas nenhum pássaro cantou. Para onde foram os rouxinóis?
Zuhra já não toca suas doces melodias. Teria quebrado a cítara? Ninguém se abandona ao prazer da bebida. Que é feito dos devotos do vinho?
Este país outrora se chamava "A Cidade dos Amigos". Esses Amigos, onde estão?
Ninguém conhece os mistérios divinos. Silêncio, Hafiz!
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OS OLHOS DE NARCISO
Onde se encontra o espírito feliz, cintilante de alegria, a quem o amante de coração partido pode confiar o seu desejo?
Embora o caminho do Amor seja cheio de ciladas em que nos espreitam flechas cruéis, aquele que ao atravessá-lo usa da astúcia pode triunfar de todos os perigos.
A taça cura a aflição. Não a deixes – ou serás vencido pela tristeza.
Ó jardineiro, quanto sofres com o outono! Gemo ao recordar, contigo, aquele dia em que o vento murchou tantas rosas.
O tempo, esse vagabundo, não dorme nunca. Não te fies nele, não penses que ele esquece. Se hoje ele não te levou, amanhã, sem dúvida, serás presa dele.
Temo que os olhos de narciso da minha Amada venham a reduzir ao nada a ciência e a sabedoria que meu coração acumulou depois de tantos anos.
Hafiz! se a Bem-Amada quer a tua alma, deixa partir a tua alma em suas mãos.
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OS PÁSSAROS CANTAM
No galho mais alto do cipreste o rouxinol cantou, uma destas noites, para aqueles que o compreendiam, este canto, na divina linguagem pélevi:
– "Vem! A roseira está em chamas como a sarça ardente de Moiséz. Aprende com ela o mistério da Unidade Divina.
"Os pássaros do jardim cantam e brincam para que o Amo possa beber seu vinho ouvindo canções na língua do passado.
"Feliz do mendigo que dorme sobre seu tapete usado: é uma alegria, esta, desconhecida dos que trazem coroa.
"De quantas riquezas possuía, Djemschid, ao deixar este mundo, apenas levou consigo a sua taça. Não te prendas a outros bens senão àqueles que podes levar contigo."
Bela palavra a de certo velho camponês a seu filho: – "Possas tu, ó luz dos meus olhos, sempre semear apenas o que desejares colher!"
Talvez o escanção tenha enchido de mais a taça de Hafiz: seu turbante não está bem preso à cabeça.
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AS PALAVRAS IMPOTENTES
Logo às primeiras luzes da alvorada, confiei à brisa a história de minhas mágoas, e a brisa me respondeu: – "Crê na compaixão do Senhor."
As palavras são impotentes; elas não poderiam dar os segredos do Amor, e o desejo as ultrapassa.
Prende o teu coração escravo às tranças de Leïlá, e enche-te de coragem como Medjnum. O amante considera loucas as palavras do Sábio.
Um só dos olhares que me lanças, ó Bem-Amada, fere-me e cura-me, a um tempo. Deixa que minhas mãos te rocem esses cabelos balsamisantes, e acalmarás meu coração enchendo-o de embriaguez.
O mundo, tão velho e tão amável, desconhece a compaixão. Que esperar da ternura da Bem-Amada? Porque pedir-lhe remédio ao sofrimento?
Não consumas assim teu coração, Hafiz! Vê como são cruéis para com os seus amados todas essas belezas.
Dançai, dançai aos cantos de Hafiz de Chiraz, raparigas de Cachemira de olhos de diamante negro, belas raparigas de Samarcanda.
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O ALAÚDE E A TAÇA
Às primeiras luzes da manhã, quando, das salas secretas da Casa das Maravilhas, o facho do Nascente enche o mundo com os seus raios;
Quando o Céu ostenta o seu espelho acima do horizonte e mostra sob mil aspectos a fisionomia do Mundo;
Quando, fechados os quartos do Palácio da Alegria, onde mora o Djemschid do Céu, Zuhra une os seus cantos à música das esferas:
Então, inspirado, o alaúde canta: – "Quem pretende, aqui, duvidar do amor?" E a taça responde: – "Onde se acha aquele que foge à embriaguez?"
Olha como, no céu, as esferas giram às cegas; e retém na mão bem fechada a taça do prazer.
Canta louvores ao Amor, imagem da graça eterna, brilhante como o olhar da esperança, súmula de toda a ciência, alma do mundo.
Ó Hafiz, prende-te, como um escravo, aos umbrais da casa do Amor.
- Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim. Coleção Rubáiyát. José Olympio, 1944
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OS CALENDARES
Ouvi, certa manhã, aquela voz, que vinha da taverna. Chamava-me, e docemente me dizia:
– "Volta, Hafiz; já esperaste muito, a essa porta.
"Como Djemschid, bebe uma taça de vinho: dela pode sair um raio, que te fará contemplar o reino dos espíritos."
Nos umbrais do albergue onde se vende esse maravilhoso filtro dormem calândares bêbedos que preparam e distribuem coroas reais.
Descansam a cabeça num tijolo, mas os pés repousam sobre o Setestrelo. Olha-os: compreenderás a vaidade do poder e da glória.
Reclinarei a cabeça na poeira da taverna: são humildes as suas paredes, mas o teto alcança as estrelas.
Viandante! sê compassivo para com o mendigo agachado à porta, se desejas compreender os mistérios divinos.
Se receberes a coroa de Sultão do Reino dos Pobres, teus domínios se estenderão, pelo menos, da Lua até o signo de Pisces.
Mas não te ponhas a caminho sem ter a prudência por companheira: a estrada é escura, e grande o perigo de te desgarrares.
Ó Hafiz! presa da cobiça, envergonha-te dos teus atos. Que representam eles para mereceres como pedes, a recompensa dos dois mundos?
Tu não sabes como se bate à porta da miséria. Não deixes, pois, escapar de tuas mãos os coxins da volúpia.
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O ROUXINOL E A ROSA
Ao amanhecer, disse o Rouxinol à Rosa:
– "Não sejas tão desdenhosa; tantas outras aqui florescem iguais a ti, belas e perfumadas!"
E a Rosa sorridente respondeu: – "A verdade não me faz chorar; mas aquele que ama não fala assam, tão rudemente."
Quem nunca limpou a fronte da poeira de teu umbral, ó taverna, ignorará sempre o perfume do Amor.
Ontem, enquanto, no jardim de Iã, a brisa matutina agitava com o seu doce hálito a cabeleira do jacinto, eu gritei: – "Ó Djemschid, onde está, então, a taça mágica, que fazia adivinhar tantos mistérios?" E tive como resposta: – "Ai! o Destino ocultou-a para sempre."
A língua do Amor não é a língua das palavras. Ó Hafiz, tantas perguntas e respostas vãs!
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O ESPELHO DA TAÇA
Observa, ó Sufi, no espelho da taça, o esplendor do vinho rubro.
Entre os que bebem é que descobrirás talvez o mistério oculto sob o véu.
O dragão que guarda os tesouros logra escapar a todos os homens. Larga as tuas armadilhas: com elas só poderias pegar o vento, nada mais que o vento.
Vive esta hora luminosa em que respiras. A Fortuna é vária. Não foi Adão expulso do Paraíso?
No festim da vida, bebe uma taça, ou duas, e parte. Que loucura sonhar um prazer duradouro!
Ó minha alma! ó minha alma! foi-se a mocidade, e não colheste as tuas rosas. É chegada à hora grave.
Hafiz tem sede. Ide, ó doce Zéfiro, levar ao Amor os desejos de seu escravo!
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O SEGREDO
Ela partiu sem uma palavra, ela que me roubou o coração, sem uma palavra para aquele que a ama, sem uma lembrança para o companheiro de jornada.
Será que o destino me fez errar e seguir um mau caminho? Será que a Bem-Amada não trilhou a estrada real?
Enquanto, na minha solidão, eu oferecia, como um facho, a minha vida por ela, ela não me veio consolar, como a brisa da manhã.
Eu disse: – "Talvez lhe enterneça o coração com as minhas lágrimas." Mas nenhum orvalho ou chuva deixaria vestígio sobre esse mármore.
Em meu desespero, rouxinol do Amor, arranco as penas e quebro as asas para lançá-las ao vento; mas não posso libertar-me desta indomável paixão.
Todos aqueles que contemplaram teu rosto desejariam beijar-me os olhos, que ainda conservam dele a imagem imortal.
No entanto, nem os lábios de Hafiz, nem o seu cálamo revelarão jamais à multidão o teu segredo
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TUA LEMBRANÇA
Se tua lembrança, ó Bem-Amada, se tuas sobrancelhas arqueadas me passam ante os olhos em meio à minha prece, o templo, o próprio templo, me ouve gemer.
Nada mais esperes de minha paciência nem de minha coragem: minha paciência, agora, é menos estável que o sopro do vento.
O vinho é claro, e os pássaros estão bêbedos de sol. É o tempo do Amor – e a vida é bela.
A rosa desvelou o seu encanto; a brisa é uma alegria alada; chegam-me de toda parte perfumes reanimadores.
São tantas as flores que, para meu deslumbramento, ostentam as suas riquezas!
As árvores vergam ao peso dos frutos. Cipreste feliz, ó Amada, tu não te curvas ao peso da dor.
Músico! canta uma doce canção tomada entre as canções de Hafiz.
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AS ROSAS DENTRO DA NOITE
A tarde morria quando eu desci ao jardim, onde me atraía o perfume das rosas, a procurar – desolado rouxinol – um bálsamo para a minha febre.
Brilhava uma rosa na sombra, uma rosa vermelha, como lâmpada velada.
Contemplei o seu rosto. Quanta altivez nessa beleza adolescente! À sua vista, fugira a tranquilidade ao coração do melodioso rouxinol. O olhar do narciso encheu-se de lágrimas de piedade, e a tulipa, queixosa, mostrou o sangue das feridas que lhe fez o Amor.
O próprio lírio deixou sair suas finas agulhas de ouro, e a frágil anêmona se abriu como boca gemente.
Toma da taça e bebe: o escanção te oferece o vinho puro!
O prazer, a mocidade, as canções entre as rosas – eis, ó Hafiz, o teu quinhão na vida.
Outra missão não tem o mensageiro senão a de transmitir a mensagem.
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O TAPETE DE PRECES
Ó Saki, serve a todos aqui o vinho puro. O Amor, que nos parecia tão doce, como agora é amargo!
Beijando-lhe, de passagem, a fronte e as tranças, a brisa trazia-me o perfume da Amada, e nesse bálsamo eu depositara minha esperança.
Escanção, não receies manchar de vinho o meu tapete de preces. A hora soa: é preciso partir e retomar o fardo às costas. Onde acharei tempo de me esquecer nas delícias do Amor?
Que podem saber das nossas angústias aqueles que estão livres de todo sofrimento, enquanto trememos de terror nas trevas, entre vagas furiosas!
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EIS A PRIMAVERA
Eis a Primavera sempre jovem. Ela ainda tornará a ver as rosas, rosas inumeráveis, anos e anos depois que estiveres deitado sob a terra. Mas conserva tua alegria.
Por trás do véu, uma harpa soluça. Seus cantos podem instruir, mas deves saber escutá-los.
Cada ramo de erva é um livro, mas cumpre saber decifrar-lhe o sentido.
Embora seja cheia de perigos a estrada que conduz ao Amor, a viagem te será fácil se. te conheces de antemão as etapas.
Ó Hafiz! ainda que a fortuna viesse em teu auxílio, não deixarias de ser a presa daquela que te faz sofrer.
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A ROSA CRUEL
Indo ao jardim colher a rosa aberta aos primeiros clarões do dia, ouvi de súbito vibrar aos meus ouvidos o canto do rouxinol.
Desgraçado como eu, torturado pelo Amor, ele enchia o jardim com a música de suas queixas.
Estive longamente a errar pelas aleias, pensando no pobre pássaro cantor e na rosa cruel, na rosa que se tornara amiga da sarça traidora enquanto o rouxinol lhe permanecia fiel... e a voz dorida pungia-me o coração.
Ai! quantas rosas têm florescido sobre estas relvas, e jamais ninguém pôde colher uma delas sem ferir-se nos espinhos!
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A JOVEM ROSA
Ninguém viu ainda o teu rosto, e já tens milhares de admiradores. Ó Rosa em botão, tua cor e teu perfume enlevam, já, milhares de rouxinóis.
Quando me pus a caminho para tua morada, não me surpreendi de encontrar na estrada tantos peregrinos.
Bem longe estou de tua presença, e outros já se extasiam com ela. Mas espero ventura igual.
No país do Amor, o claustro é vizinho da taverna. Onde quer que viva o Amor, sua glória faz tudo resplandecer.
Onde está, pois, o Amante que não encontrou irmão no doce martírio?
Não é sem razão a queixa de Hafiz. A história do seu coração é estranha e de um tom maravilhoso.
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O AMIGO PERDIDO
Ó crentes fiéis, tive outrora um amigo a quem podia confiar todas as minhas mágoas, um coração que as partilhava e me trazia socorro.
Quando eu gemia, em meio à tempestade, só ele sabia falar-me da enseada tranquila.
Quando, porém, me desgarrei nos caminhos do Amor, perdi o meu amigo. Em vão, aflito, o tenho procurado. Em vão.
Na embriaguez do meu desespero, tende piedade de mim, de mim que fui outrora um homem atilado e sutil, e hoje nada mais sou do que um pobre cuja razão vacila.
Ao tempo em que o Amor inspirava o meu canto, meu canto recebia a homenagem de todos.
Não louveis mais a prudência de Hafiz, agora que sois testemunhas da sua loucura.
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PACTO
Que a tua imagem nunca se desvaneça do livro do meu coração; que nunca me saia da memória a tua forma flexível, ó gracioso cipreste!
Jamais a lembrança de tuas faces floridas me abandone o espírito perturbado pelas crueldades da vida e pelo implacável destino.
Desde sempre, meu coração fez um pacto com a tua beleza, que é o seu amor. Para sempre, ó Bem-Amada, serei fiel a esse pacto.
De quanto encerra este miserável coração, tudo se perderá, menos a minha dor.
E é tão grande o amor que me domina, que o seu perfume ficará para sempre em meu coração, quando deste se ausentar a vida.
Se não queres conhecer a loucura de Hafiz, não trilhes jamais o caminho onde a beleza deixou a marca de seus passos.
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SOB O PÁLIO DO CÉU
Uma brisa paradisíaca sopra no jardim – e eis-me com a minha Bem-Amada e uma taça de vinho.
Como poderia, hoje, o mendigo deixar de julgar-se um rei, sob o dossel do céu bordado de nuvens, no livre palácio da erva?
O prado conta-lhe contos do Paraíso. Insensato aquele que dissipa em prazeres vindouros a moeda do presente.
Que o vinho te reconforte o coração, pois o mundo é um deserto e, ao fim de tudo, o teu pó se misturará com a argila do oleiro.
Não escrevais o meu nome acompanhado de uma injúria. Não me chameis de bêbedo. Quem sabe o que o destino gravou em minha fronte?
Viandante, não te desvies da sepultura de Hafiz. Embora sujo de pecados, talvez seja ele o bem-vindo, entre todos, nos Céus.
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SE AS ROSAS SE VÃO...
Ó Saki, traze-nos a alegria da mocidade. Enche-nos uma taça, e mais uma taça, de vinho rubro.
Traze o remédio ao mal de amor; traze o vinho, bálsamo para o velho e o adolescente.
Não te inquietes com a fuga do tempo. Sem um gemido, deixa rodar a roda do destino. Toca sossegado o teu alaúde para ti somente.
A sabedoria fatiga-nos: atira-lhe ao pescoço o laço da embriaguez.
À rosa que morre, dize-lhe um alegre adeus, e bebe do vinho rubro, rubro como as rosas.
Se o arrulho da rola emudece, que importa! Escuta a música suave que sobe da ânfora de vinho.
O sol é quente como o vinho, e a lua é fresca como uma taça. Derrama o sol na lua.
Só em sonho se pode ver o semblante do Amor: verte-me o remédio que faz dormir.
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A CARAVANA DOS DESEJOS
Ó bela poupa, mando-te para o Oriente, para o país de Sabá. Lá, nessa região longínqua, pensa na terra onde nasceste e, sobretudo, naquele que te mandou para tão longe.
Seria cruel deixar-te nesta prisão cheia de tédio. Envio-te para o ninho dos amores fiéis.
No caminho do Amor, nunca se está longe ou perto do fim. Tenho-te sempre diante dos meus olhos, e para ti vão as minhas preces.
Manhã e noite, partem para ti os meus desejos, em caravana, nas asas do vento, quer o vento sopre do Norte ou do Leste.
Companheira do meu coração, os olhos do meu corpo já não te veem, mas eu te envio minha bênção e minha prece. Para que os músicos te possam falar do meu desejo, aqui vão as minhas palavras e os meus gazéis com a música e os instrumentos.
Vem cá, ó escanção. Escuta as notícias que acaba de me trazer um mensageiro do Céu: "Sofre com paciência: eu te darei o remédio.
"Hafiz, nossa terra ressoa ao glorioso rumor dos teus méritos! Volta, detém-te... Envio-te um cavalo e um manto de honra."
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E O BASTANTE.
Ó meu coração, pede à boa fortuna que te acompanhe nesta viagem. Para mim, que uma doce brisa me chegue dos jardins de Chiraz – e é o bastante.
Derviz, não te vás a errar longe do lugar de repouso das almas; uma célula em teu mosteiro – é o bastante.
A doce calma dos recantos familiares, os teus deveres para com os velhos amigos, tudo te servirá de desculpa junto do viajante apaixonado – e é o bastante!
Senta-te no banco, no lugar de honra, e bebe uma taça de vinho; para o que vale o mundo e sua glória – é o bastante!
Só desejes aquilo de que precisas, carrega sem esforço o teu fardo; uma taça de vinho, uma rapariga bela como a lua – é o bastante!
E se escondes um cuidado em alguma dobra do coração, refugia-te no santuário da taverna – é o bastante.
O Céu entrega ao louco as rédeas da paixão; tu te julgas um homem sábio e virtuoso – e é o bastante.
Aqui não te obrigam a outra tarefa senão as preces da meia-noite e da manhã – e é o bastante.
Não te habitues, ó Hafiz, a contar com os benefícios de outrem; a graça de Deus nos dois mundos – é o bastante.
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SE EU ME AFASTASSE
Ó tu que ultrapassas as belezas de todos os tempos, teu corpo é grande e esbelto como o cipreste que se levanta à beira da água.
Juro que tua boca parece uma coisa imaginária, cheia ao mesmo tempo de mistérios e de certezas.
Entreguei o coração ao culto dos teus olhos, dos teus lábios e da tua cabeleira. Vê quanto sofrem os corações que se entregam a tais tiranos.
Posso estar cercado de mil inimigos: não os temo, se tenho por mim a minha amiga. Não receio a luta.
Teu amor se enraizou no mais íntimo do meu coração. Por isto, sei que, se me afastasse de tua porta, logo me sentiria compelido a voltar.
Quando Hafiz se viu certo de que o amavas, deu-te em penhor o coração, e não pode mais retomá-lo.
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O FIM DO JEJUM
Terminou o jejum. A festa principia; transbordam de alegria os corações, e o vinho corre em ondas nas tavernas, o belo vinho purpúreo de que tínhamos sede. Foi-se a hora da abstinência; é a hora do prazer, tão esperada pelos que bebem.
Porque condenar aqueles que, como eu, gostam do vinho? Beber não é delito maior do que amar.
Antes um bebedor cujo coração sem astúcia desconhece a mentira do que um mentiroso austero que não bebe.
Não somos hipócritas, nem devassos, nem pertencemos ao grupo dos que enganam aos próprios irmãos. Aquele para quem não existe segredo sabe ver claro em nossos corações.
Não é um pecado o que lança por toda parte a confusão; e ainda quando seja um pecado, onde o homem que dele esteja isento?
Hafiz, não cuides mais dos "comos" e dos "porquês": a Suprema Sabedoria revelou-nos o sentido deles.
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JARDIM DA BELEZA
Chegaram as boas novas: a Primavera está de volta com os seus esplendores. Se te oferecem ouro, compra com ele rosas e vinho.
De novo se faz ouvir o canto do pássaro: mas onde está a botelha de vinho? O Rouxinol fala entre lamentos: – "Quem fará cair o véu da Rosa?"
Deitarei meus andrajos ao fogo, meus andrajos que as manchas de vinho avermelharam: o vendedor do vinho não me daria, por eles, nem mesmo um pouco da borra de seus cântaros.
Nas faces do escanção, brilhantes como a lua colhe uma rosa. Sobre as sebes do jardim já flutua o véu violáceo do crepúsculo.
Não te aventures sem guia ao país do Amor: perder-te-ias para sempre.
Quem não te beijou as faces não conhece os frutos do Paraíso.
Os sorrisos do escanção deixaram-me o coração preso. Nada mais quero ouvir; nada e ninguém.
Quantas maravilhas, amigo, no caminho do Amor! Em tal deserto, o leão tem medo das gazelas.
Ó meu guia celeste, ajuda-me nesta viagem sagrada: no deserto do Amor, nenhuma estrada é visível.
Hafiz não colheu rosas no jardim da beleza. A brisa, que as faz desabrochar, certo não soprou em seu jardim estéril.
E a Primavera passou, e o tempo voa – e ainda pela metade a taça de Hafiz.
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COMPARAÇÕES
Brisa balsâmica, porque me trazes o perfume da Amiga? Sem dúvida o roubaste passando de leve por ela.
Porquê? Que valem para ti suas tranças perfumadas?
Rosa, que és tu diante do rosto dela? Ela é suave como o almíscar e não tem os teus espinhos.
Doce brasílico, que és tu ante a penugem de suas faces? Ela é toda frescor, e tuas folhas são cinzentas de pó.
E tu, narciso, que és tu diante de seus olhos sorridentes? Os dela são alegres, os teus são bêbedos.
E tu, cipreste, que és tu em face de sua esbeltez? Renuncia ao orgulho de reinar sobre o jardim.
Ó Sabedoria, como escolher entre ti e a sinceridade do seu amor?
Um dia, Hafiz, atingirás a alegria, se não esmoreceres de cansaço na solidão da espera.
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MOSTRA-ME O ROSTO
Deixa-me ver-te o rosto, para esquecer a minha vida. Dize ao vento que leve quanto colhi.
Quem pode aspirar o perfume dos teus cabelos? Ai de mim! ó coração doente, esquece!
Promete que me verás um instante no dia de minha morte, e irei para a sepultura tranquilo e contente.
Que tudo me abandone e me esqueça!
Meu pálido rosto se oculta na poeira de tua porta.
Hafiz, pensa na doçura dela, e cala-te.
*
O ROUXINOL MUDO
O desejo de respirar a brisa da Primavera conduziu-me ao deserto. A brisa me trouxe o seu perfume, mas levou-me a tranquilidade.
Onde quer que esteja meu coração, teus olhos o desviam do caminho. E não é somente ele sofre, não é ele o único dilacerado.
– "Eu sou a vida!" – dizia a taça, uma dessas noites, tocando-te os lábios. Mas eras tu quem lhe emprestavas, a ela, a vida.
Uma destas noites, as algemas do teu amor prenderam as mãos do meu desejo. A hoste da tristeza venceu a hoste de minha sabedoria.
O feitiço dos teus olhos, o arco de tuas sobrancelhas, deixaram-me despojado, no caminho. O toque de beleza do teu rosto roubou-me o coração.
Não faleis diante de Hafiz sobre a doce voz do rouxinol. Não se fala do rouxinol em presença daquele que não sabe mais cantar.
*
O BELO ADEUS
O sopro da brisa está balsamizado pelo cheiro do almíscar. A velha Terra volveu à mocidade.
A tulipa oferece ao jasmim a sua taça. O olhar terno do narciso acaricia a anêmona.
A dor da partida, que o rouxinol canta, enche de tristeza o coração da rosa.
Não me censures o haver trocado a mesquita pela taberna: o sermão era longo, e o tempo fugia.
Se deixas para manhã os prazeres de hoje, ó coração, quem te preservará o tesouro da vida que ainda te resta?
Durante todo o mês de Carnaval, conserva à mão a taça, pois o sol vai-se extinguir até o momento em que haja terminado o Ramadão.
A rosa é um tesouro inestimável. Tira dele proveito, como de um bem efêmero.
Ó músico, isto aqui é uma assembleia de amigos. Lê o teu poema e entoa a tua canção.
Foi à tua revelia, Hafiz, que entraste na casa da Vida. Breve te partirás. Quando a deixares, canta-lhe um belo adeus.
*
CORAÇÃO SEPARADO
Ao amanhecer, o vento de Leste me trouxe perfumes colhidos nos cabelos da Bem-Amada, e meu insensato coração pôs-se a bater com violência.
Julgava eu haver desarraigado essa flor do jardim de minha alma, pois o sofrimento que dela emana só frutos amargos produz.
Para defender-me contra o seu amor, cortei liames que me prendiam o coração; mas o coração entrou a sangrar, a sangrar, e as gotas do seu sangue assinalaram cada um dos meus passos.
Ela estava sentada em sua açoteia; vendo-a, eu vi a glória da lua obscurecer-se diante do sol resplandecente do seu rosto.
Cada presente que me vem de minha Amada é para mim uma alegria. Que o Céu proteja os seus olhos e lhes conserve o brilho. Muitas e muitas vezes eles me têm desesperado, mas às vezes, também, com um gracioso olhar me consolam o coração doente.
Abençoado seja o dia e a hora em que pude escapar à armadilha dos seus anelados cabelos castanhos; dos seus cabelos anelados a que a brisa ciumenta tirou todo o almíscar que neles havia guardado, trazido da Tartária.
Surpreendi-me ao encontrar, uma destas noites, uma taça e uma garrafa diante de Hafiz; não disse nada, porém, pois só usa disto um coração separado, como um Sufi.
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NA TAVERNA
Constante em seu amor, o rouxinol canta, ainda uma vez, do alto do cipreste: – "Ó Rosa, que o destino te poupe a beleza!
"Ó Rosa, eu te agradeço o haveres florescido como o sonho do meu coração. Não desprezes o rouxinol doente de amor."
O devoto espera possuir um dia as hurís e os palácios do outro mundo. Para mim, meu palácio é a taverna e minha huri a Bem-Amada.
Não me lastimo da tua ausência. Ela é que faz da tua presença uma alegria tão pura.
Bebe vinho ao som da harpa e afugenta para longe a tristeza. Se acaso te dizem: – “Não bebas" – responde: – "Deus é misericordioso."
"Ó Hafiz, porque sofrer com a separação? A união virá depois, como às trevas sucede a luz.
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O MENDIGO-REI
Aquele que possui um coração tranquilo e um amável companheiro a boa fortuna sorri, assim como a riqueza.
A corte do Amor é muito mais vasta que a da Sabedoria. Aquele que é senhor do seu coração beija-lhe a soleira da porta.
Ó rico, não olhes com desprezo o enfermo e o pobre: o mendigo à margem da estrada tem o mais belo lugar de honra.
Tua suave pequenina boca é talvez o anel de Suleimão, pois, para mim, todo o encanto deste mundo está sob o império do beijo dela.
A bênção do pobre pacifica a alma e o corpo. Quem pode gozar da colheita se não tem pena dos respigadores?
Ó Zéfiro, conta o segredo do meu amor a essa rainha das Amadas, a essa rainha que tem como escravos cem Djemschid e cem Kaikhosrú.
Sinto-me orgulhoso da sua beleza, mas se ela diz: – "Não quero amante pobre como Hafiz" – responde-lhe que, no Amor, o mendigo da beira da estrada é tão poderoso como um rei.
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VAIDADE
O resultado de todo o nosso labor é apenas vaidade. Dá-me vinho: todos os divertimentos deste mundo são apenas vaidade.
O desejo de ter junto a mim a Bem-Amada enche-me a alma. Mas o coração – quem sabe! – o coração e a alma são apenas vaidade.
O que nos enche o coração sem o tornar pesado é a alegria verdadeira; e se é preciso tanto esforço e angústia para atingi-la, então – quem sabe! – os jardins do Paraíso são apenas vaidade.
Vive em paz durante os poucos dias em que te permitem repousar no caravansarai da vida: o próprio tempo é apenas vaidade.
Ó Saki, estamos à espera, na praia, ante o oceano da morte; segura a taça, pois de suas bordas à nossa bôca tudo é apenas vaidade.
Nem por um instante voltes o pensamento para o dia em que a rosa fenecerá; sê alegre como a rosa, porque a glória deste mundo efêmero é apenas vaidade.
Ó devoto, não te suponhas livre dos pecados do orgulho: a diferença entre a mesquita e o templo do infiel é apenas vaidade.
Vergado ao peso da dor, fui vítima do mau destino; mas confessá-lo e lastimar-se é apenas vaidade.
O nome de Hafiz tornou-se famoso; mas para os fiéis da taverna a glória, boa ou má, é apenas vaidade.
- Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim. Coleção Rubáiyát. José Olympio, 1944
*
AO SOM DO ALAÚDE
O vinho e o prazer – que são eles? Alegrias fugazes.
Não te assombres com as mudanças da Fortuna: sua roda tem causado milhares e milhares de transtornos iguais.
Toma com respeito essa taça, que ela foi feita dos crânios de Djemschid, de Kai-Kobad e de Bahram.
Quem nos pode falar de Kai e de Kaus? Para onde partiram eles? Quem, com segura ciência, poderá dizer aonde o vento levou o trono de Djemschid?
Agora eu compreendo como, só pelo desejo dos lábios de Shirin, a tulipa floresceu das lágrimas de sangue de Farhad.
Vem, oh vem: neste momento eu procuro no vinho a minha ruína. Quem sabe se nessa ruina não se encontrará um tesouro?
A tulipa certamente previu a inconstância do Tempo: desde que nasceu, e amou, tem sempre erguida a sua taça cheia de vinho.
A brisa da terra de Mosela e as águas de Rocknabad impediram-me sempre de partir para uma vida errante.
Tal como Hafiz, não tomes a taça senão ao som do alaúde: a alegria desabrocha sob os dedos leves do músico.
*
A CORTESÃ
O castelo de nossa esperança assenta em bases frágeis. Uma lufada de vento abate em uma hora a casa da vida.
Quero dar-te um conselho. Guarda-o na memória, e que ele te oriente as ações. Recebi-o, outrora, de um velho guia no caminho da vida:
"Não esperes nada do que te prometeu o mundo falaz. A terra é uma cortesã que teve milhares de amantes."
Contenta-te do teu quinhão, e apaguem-se as rugas de tua fronte inquieta: a porta dos eleitos não está aberta a mim nem a ti.
O sorriso da Rosa nada promete, nem sequer fidelidade. Chora, Rouxinol, esse lamentável destino.
Porque então, ó maus rimadores, tendes ciúmes de Hafiz, se Deus lhe permitiu abrir a fonte das palavras suaves e capturar todos os corações?
*
A DOR CANTA
Velho, alquebrado, exausto, rejuvenesço quando penso em ti.
Na eterna estrada do Destino, subi ao trono da Fortuna, como o queriam meus amigos, empunhando uma taça de vinho.
Ó jovem roseira, saboreia comigo, enquanto podes, o fruto do prazer: à tua sombra, tornei-me o rouxinol do Jardim do Mundo.
Outrora, nenhuma voz, nenhum escrito dissera ao mundo uma única palavra a meu respeito. Foi na escola da dor que me tornei sutil.
Desde o dia em que sobre mim caiu o feitiço do teu olhar, fiquei ao abrigo de todos os feitiços.
E a porta da realidade abriu-se ao meu coração quando me fiz um dos hóspedes da tua corte.
Não foram os anos, nem os meses, que me envelheceram: foste tu, ó Bem-Amada. Foste tu, como a vida que passa, que fizeste de mim um velho.
Esta noite, o Mestre fez-me chegar às mãos uma mensagem de glória: "Volta, ó Hafiz! eu mesma serei a garantia do teu perdão."
*
LEMBRA-TE!
Guarda, ó minha memória, a lembrança daquela graça que ela me concedeu em segredo. Querida, o teu amor está escrito em meu rosto
Ó minha memória, lembra-te: no momento em que o olhar de seus olhos me feria, o sorriso te enflorava a boca.
Lembra-te de que em seu rosto se acendeu a chama do prazer e meu coração voou para a flama como borboleta.
Lembra-te: quando, igual à taça ridente, ela sorriu, nós bebemos beijos, eu e ela, na taça de nossos lábios.
Lembra-te que, na Casa da Felicidade, nossa alegria nasceu do aroma do vinho rubro.
Lembra-te: os que beberam desse vinho fomos eu e tu, ó Bem-Amada, e o Amor foi nosso conviva.
Lembra-te do nosso longo repouso e da nossa longa embriaguez na taverna; e que essa delícia, hoje tão rara, nos era familiar.
Lembra-te de que então, graças a ti, meus poemas, as pérolas de Hafiz, foram postos em colares.
*
O VINHO DO ESQUECIMENTO
Quem há-de contar a história dos corações que sangram? Quem vingará a morte de Djemschid?
Afora o sábio sentado perto do barril de vinho, quem nos poderá dizer o segredo da sabedoria?
Se o narciso embriagado ainda cresce, possa ele cobrir-se de vergonha em face dos adoradores do vinho.
A harpa cantou muitas canções tristes: cortai-lhe as cordas, para que delas não rebentem lágrimas.
*
NÃO TE AFLIJAS!..
Não te aflijas: a beleza voltará a deliciar-te com o seu encanto; a cela de tristeza se transformará um dia em jardim de rosas.
Não te aflijas, coração sofredor: o teu mal se transmudará em bem; não te detenhas a pensar no que te inquieta: esse espírito agitado conhecerá de novo a paz.
Não te aflijas: mais uma vez vai reinar a vida no jardim em que suspiras, e breve, ó cantor da noite, verás sobre a tua fronte uma cortina de rosas.
Não te aflijas por não compreenderes o mistério da vida: por trás do véu se esconde tanta alegria!
Não te aflijas se, por instantes, as esferas estreladas não giram à feição dos teus desejos: a roda do tempo não anda sempre na mesma direção.
Não te aflijas se, por amor do santuário, avanças no deserto e os espinhos te ferem.
Não te aflijas, minha alma, se a torrente dos dias faz em ruínas a tua morada mortal: tens o Amor para te salvar desse dilúvio.
Não te aflijas se a viagem é rude e a meta invisível: não há caminho sem termo.
Não te aflijas, ó Hafiz, no humilde recanto em que te julgas pobre e na desolação das noites escuras: ainda tens o teu canto e o teu amor.
DO LIVRO
- Hafiz, no livro "Os gazéis de Hafiz". [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim]. Coleção Rubáiyát. José Olympio, 1944.
Os gazéis de Hafiz. [tradução de Aurélio Buarque de Holanda a partir da tradução francesa
de Charles Devilliers; ilustrações de Luis Jardim. Coleção Rubáiyát. José Olympio, 1944
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OS GAZÉIS DE HAFIZ PUBILCADOS NA REVISTA 'O CRUZEIRO' 1943
Quatro Gazéis de Hafiz {'Vaidade', 'A desdenhosa', 'Não te Afluas!...', 'A cidade do amor'}.. [tradução Aurelio Buarque de Holanda; ilustrações de Luis Jardim]. In: Revista O Cruzeiro, edição nº 0034, 1943, p. 20-21, 19 de junho 1943 / Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível no link. (acessado em 10.3.2024)
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Fonte da imagem: Luis Jardim
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- A ceramic tile – probably painted many years after his death – shows a likeness of the poet Hafiz (credit photo de Agostini - Getty Images)
DO LIVRO 'VINHO, VIDA E AMOR DE HAFIZ E SAADI'
HAFIZ e SAADI já figuram nesta coleção – o primeiro com Os Gazéis e o segundo com O Jardim das Rosas. Nesses livros se encontram notícias acerca dos dois grandes poetas persas, que aqui aparecem juntos, vertidos pelo mesmo tradutor e prefaciador dos volumes anteriores.
Vinho, Vida e Amor compõe-se de rubáiyát[1] de Hafiz, traduzidos da versão de J. Carpentier, e alguns contos e sentenças de Saadi, vertidos da tradução de O Jardim das Rosas feita por Franz Toussaint (1.ª edição).
Embora menos famosos que os de Omar Kháyyám, sobretudo entre nós, os rubáiyát de Hafiz são, por vezes, de grande força poética, realizando-se no estreito limite de uma quadra verdadeiros prodígios de condensação lírica. A maneira como é definido o coração – "uma gota de sangue que aprisiona mil tormentos" – é, sem dúvida, de alta e grave beleza.
Amando, bebendo ou debruçado sobre a vida, a meditar, a interrogá-la, o poeta de Chiraz vai deixando pelo seu caminho vestígios de dor ou de êxtase, de fina melancolia ou de pungente reflexão, ora sob a forma de gazeta, ora com a feição mais breve e trabalhada de quartetos:
"Quando os botões de rosa entreabrem o cálice, * Narciso ergue sua taça em honra do vinho. * Ahl feliz o que sabe a canção báquica * E liberta a alma pelo culto ao grande deus!"
A flor ergue a taça, brindando o vinho. Pelo culto a Baco a alma se liberta – ela que sofreu tanto seguindo o caminho "semeado de aflições e penas" que leva à Bem-Amada. Por esse caminho "a alma segue tateante em meio à escuridão".
Não são, porém, apenas vindas do amor as amarguras que pesam sobre o coração do poeta. Também o ferem vivamente as dores anônimas; também o punge o espetáculo do poderio e da riqueza a esmagarem os humildes. Se o vemos desejar "um sorriso de mulher, um alaúde para saudar a manhã,* Um recanto escondido, um coração livre, uma taça repleta", não pensemos que para ele tudo o mais é inexistente. Não. Cruas angústias o desassossegam: "Quando reina o tirano, pode o ouro salvar a Terra?"; e Hafiz supira e pragueja: "Ahl quanto durará essa tirania do ouro,* Esse esmagar do coração e da altives de um povo? * Há uma espada tinta de sangue nos corações partidos. * Caia a desgraça sobre aquele cuja lança se avermelha!"
Tendo-se baseado na 2.ª edição da versão francesa de Toussaint, a minha tradução do Jardim das Rosas não inclui as produções de Saadi que figuram no presente volume. Talvez o tradutor francês as tenha suprimido naquela edição por considerá-las de menor valor que as demais. Mas este julgamento não é justo. Alguns dos contos – sobretudo A Viagem, obra-prima – e muitas das sentenças, podem-se equiparar aos melhores dos que foram conservados na 2.ª tiragem; e nesta haverá páginas inferiores às que só se leem na 1.ª.
No conto A Viagem, o trecho final, relativo ao caso do archeiro, aparece como história à parte na versão que me serviu de base para a tradução do Jardim.
Toussaint realiza mais um trabalho de adaptador que de tradutor. Não somente faz, no que traduz, cortes assim tão largos, como se permite muitíssimas outras liberdades. Um cotejo entre as duas edições mostrará ao leitor sensíveis diferenças de forma – tão profundas que importam, não raro, alteração da substância.
Dos contos deste volume, O Corvo e o Papagaio não é mais que a parte final de uma história que aparece mutilada na 2.ª edição. Numerosos trechos desprezados nesta, aproveitei-os, como sentenças, no presente livro.
Para quem já leu O Jardim das Rosas decerto não será sem importância o contacto, agora, com outras páginas dessa obra tão variada e viva.
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Como a de seu colega Omar Khayyám, apresenta a poesia de Saadi e Hafiz três fontes bem características de inspiração: ou as vaidades e dores da vida, o destino do ser humano, o agitado passar do homem sobre a Terra – ou as duas soluções que se lhe mostram como fuga às dolorosas meditações acerca desse tema: o amor e o vinho. A vida é rude; dói. No vinho o poeta se refugia dela – ou passa a vê-la sob uma face desconhecida: "Dá-me desse velho vinho, lembrança de algum sultão extinto,* Para que eu possa com uma nova paleta pintar a vida." O amor é outro refúgio; e quando através dele o poeta ainda sente o amargor da vida, "Somente o Vinho, ele só, vos poderia livrar do desespero."
*
Assim, o tradutor recorreu a essa trilogia de para fontes inspiradoras –Vinho, Vida e Amor batizar estas breves páginas em que ressoam duas das mais altas vozes da lírica oriental.
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[1] Quartetos, quadras.
AURELIO BUARQUE DE HOLANDA
Os Rubáiyát de Hafiz
1
Quando os botões de rosa entreabrem os cálices, * Narciso ergue sua taça em honra do vinho. * Ah! feliz o que sabe a canção báquica * E liberta a alma pelo culto ao grande deus.
2
Dá-me desse velho vinho, lembrança de algum sultão extinto, * Para que eu possa com uma nova paleta pintar a vida. * Oh! torna-me indiferente a este mundo insensível, * Para que eu possa cantar-te o desejo do mundo.
3
Vem, amemos e bebamos à margem do rio. * Afogaremos em nossas taças o nosso leve desassossego. * A vida tem a duração da rosa: dez dias preciosos. * Que o dourado laço do riso prenda, então, esses dez dias.
4
Ó namorados felizes, de mãos entrelaçadas, * Esquecidos da roda do Tempo que voa através dos espaços, * Quando soar minha hora, saudai o ciclo infinito. * Que outros Abris evoquem meu semblante.
5
Vem, oh vem, traze-me o vinho, fonte de toda a alegria; * Despreza os artifícios próprios de inimigos vis. * Bem doces são as palavras que te querem reter, * E doces as que se escoam de lábios ainda mais doces.
6
Se, como nós, caísseis na armadilha preparada pelo Amor, * Somente o Vinho, ele só, vos poderia livrar do desespero. * Discípulos de Baco, abrasamos a vida. * Não vos aproximeis de nós, para não ouvirdes palavras impuras.
7
A mocidade é o filtro mocidade é o filtro que dá o vinho mais doce. * Namorado infeliz, bebe para afogar essa amargura! * A Criação caminha, afinal, para o seu próprio aniquilamento, * E a ruína dos grandes completa a de suas moradas.
8
Não afastes a Taça de teus lábios * De medo que a Fortuna e a Glória te fujam. * A taça humana contém doçura e amargor: * Doçura do lábio amoroso, amargor da taça.
9
Um sorriso de mulher, um alaúde para saudar a manhã, * Um recanto escondido, um coração livre, uma taça repleta: * E quando me dança nas veias o vinho rubro, * – Por Hatim! – nada tenho que fazer de um grão de aveia.
10
Minha estrela, cuja grave beleza eclipsa a beleza do dia, * Cresceu, fez-se um astro mais belo que o de Kausar. * Aprisionou todos os corações na covinha de suas faces, * E ordena-lhes, agora, vencer ou morrer.
11
Caíram-lhe, um por um, todos os véus, * E apareceu um astro sem igual. * Ó carne tão frágil que o vermelho de seu coração transparece, * Como um rubro rubi ensanguenta a onda radiosa!
12
Minha mão, indiscreta, viaja em redor de seu torso. * Alcancei muito – e desejo tudo. * Meu braço conseguiu cercar a cidadela, * E ela, indômita, ainda me desafia.
13
Eu lhe dizia: – "Ah! lindo grão de beleza, fonte do meu êxtase!" * E ela me respondeu: – "Criatura amorosa e louca, * O espelho dos meus encantos não revela nenhum grão de beleza: * É o teu negro olhar que cintila sobre a minha carne."
14
– "Teu lábio?" – perguntei. – "A Fonte da Vida!" – respondeu ela. * – "Tua boca?" – "Açúcar, tingido de coral." * – "Tuas palavras?"... – "Ah! – cantou docemente Hafiz – * A língua está presa ante uma palavra de ternura."
15
Esses olhos, em que Babil aprendeu seus sortilégios, * Perderão, um dia, todo o encantamento? * E essas finas orelhas... – ah! seus brincos serão trabalhados * Com as pérolas imortais da canção de Hafiz.
16
Ó tu, que viste curvar-se ante a poeira do teu umbral * A fronte orgulhosa do Sol e da Lua, * Não me deixes morrer abrasado na chama da espera, * Nem sentar-me à sombra da nuvem!
17
Não ouses censurar a violência de um suspiro, * Pois o que ateia a chama pode imprudentemente chamuscar-se. * Oh! não sejas indiferente às lágrimas noturnas, * Nem aos tristes suspiros da aurora que vêm morrer à tua janela.
18
A dor fez morada em minha alma – meu tormento vem de ti. * Este querido tormento curará minhas feridas. * Quanto mais depositares tua vingança em meu coação, * Quanto mais torturado ele for, mais fiel se há de mostrar-te.
19
Passei a noite a chorar meu martírio em lágrimas de sangue. * Para mim não existe mais repouso. * Ó doce amiga, e duvidais de mim! Enviai-me, pois, o espírito dos sonhos, * Para velar a noite sobre o meu tormento desfalecido.
20
Ela disse-me: – "Sou tua, agora e para sempre. * Coragem! que a paciência te suavize a inquietude." * Ah! que é o coração? Responde um velho: * - "Uma gota de sangue que aprisiona mil tormentos."
21
Primeiro ela estendeu-me a taça de ternura; * Depois ofereceu-me a taça envenenada; * E de alma e corpo a arder, caí-lhe aos pés, na poeira, * E ela, calma, serena, abandonou-me ao vento.
22
Privado de seu amor, eu era um mendigo; * O sal, retirado de uma chaga, ainda a inflama. * Meu coração pesado pressagiou-me um dia o fim, * E então desceu a espada que cortou nossa única vida.
23
Ó doce amiga, foste o meu inimigo mais cruel. * Eu que era irmão da Primavera, caminho agora para o Outono. * Em tua aljava eu repousava direito e tranquilo, * E um dia veio a paixão, que me fez curvo como um arco.
24
Volta! minha alma busca a tua beleza nômade. * Volta! meu coração exala a sua angústia! * Brilhe o raio de sol e de ouro do teu rosto * E em minhas faces queime as lágrimas de sangue!
25
Em meio às multidões, só vejo a tua imagem. * Meus passos me conduzem sempre à tua rua. * E embora reines e o mundo inteiro adormeça, * Minhas pálpebras ignoram o beijo do sono.
26
Na solidão, as lágrimas correram-me dos olhos como a cera, * Lágrimas rubras como as encerra a botelha faiscante. * São de sangue as minhas lágrimas quando soluça a harpa lúgubre: * Meu coração está cheio qual uma taça de vinho.
27
Eu morro, amor, de beijos recusados; Morro de suspirar por teus lábios ausentes. * Pena cruel escreve em minha história: "Fim." * Volta! pois esperar-te é morrer outra vez.
28
Quem se recorda do botão de rosa de Chegil? * E quem pode evocar a aventura de um coração abrasado de amor? * Ó meu pobre coração desolado, sem amigos * A quem contar a história de suas mágoas!
29
Teus olhos, onde brincam, à porfia, a mentira e o sortilégio, * E cujo negro enganador lança relâmpagos, * Bem cedo se cansarão da minha presença fiel! * As lágrimas de teu coração ferem-me agora como pedras.
30
O amigo que outrora falou de lealdade tornou-se um inimigo. * Cada aparência encantadora, uma chama suja. * – "A noite deu à luz secretamente." – dizem. Pois se ninguém a viu, quem partilhou sua vergonha?
31
Ó tempo das juras irreparavelmente vio- ladas! * O inimigo implacável foi outrora amigo fiel. * Por isso me refugio nos longes da solidão, * Receando que a amizade me arraste a um indigno fim.
32
As belezas deste mundo estão a venda por um pouco de ouro. * Ostentam os seus encantos sobre a esteira dos mercadores. * Até este Sultão da Primavera Universal, * O orgulhoso Narciso, curva a cabeça dourada.
33
Ah! quanto durará essa tirania do ouro, * Esse esmagar do coração e da altivez de um povo? * Há uma espada tinta de sangue nos corações partidos. * Caia a desgraça sobre aquele cuja lança se avermelha!
34
Quando reina o tirano, pode o ouro salvar a Terra? * Quando a desgraça visita os lares, pode a alegria neles florescer? * Estes sete dias lúgubres de tédio mortal * Não valem todos os Paraísos prometidos.
35
Ó filho, afasta o coração deste século ímpio. * Seja sua esposa, a Fé, tua amiga sublime. * Acalma-te: não busques, inutilmente como eu, * Agrilhoar num ritmo a beleza insolente.
36
Ah! se me for concedido que, em meio do caminho, * O Tempo fugitivo modere a sua marcha, * E quando as rédeas caírem das mãos da mocidade, * Que a idade madura me seja o repouso!
37
Fugiram-me em vãs procuras os anos aventurosos. * E que fruto colhi dos passados estios? * Os amigos de outrora hoje são inimigos; * Murcham os lírios, as rosas se desfolham...
38
Cada dia viu crescer-me a angústia do coração; * O espinho da separação feriu-me os olhos. * E o Destino responde a todas as minhas queixas: * – "Nova pena espera cada nova manhã."
39
Todavia, por que espumar de cólera como o vinho? * Não podemos lutar peito a peito com a desgraça. * Esses lábios jovens e frescos não se afastarão da Taça: * A Mocidade diviniza tudo em que toca.
40
Não procures vingar-te do mal que te fizeram. * Que o vinho rútilo te dê alegria e canção. * Guarda para a solidão o espírito e a prudência. * Os loucos pertencem à sociedade dos loucos.
41
Antes arrasar o Universo com um morteiro, * Submergi-lo no sangue que se es coa, * Ou arrastar, por um século, pesadas cadeias, * Do que se demorar um momento com um louco.
42
Não te queixes assim dos pecados do mundo; * Abandona-o com tudo o que ele encerra. * Parte! Acompanha o amor à região onde o vinho apaga a tristeza, * Onde a vinha rubra intumesce os seus grãos de ouro.
43
Uma virgem de porte mais flexível que o cipreste * Refletia num espelho a sua deslumbrante beleza. * Depus um véu a seus pés. * Ela sorriu: – "Que doce pensamento de união acariciais?"
44
Cuido ouvir a alegria bater asas. * Prende-se a mim o perfume das rosas amorosas. * O vento recolheu uma história caída dos seus lábios. * Oh! o raro, o maravilhoso romance que ele nos traz!
45
Volta, volta, brisa de cem vozes! * Aquecido em minha chama, seu coração em flor se debate. * Volta! E a fim de não lhe despertares a cólera, canta para ela só, * E narra entre as virgens a minha história.
46
Donde vem o desalinho da tua cabeleira? * E os sonhos que visitam as sombras desses olhos? * Se ninguém semeou pétalas em teu caminho, * Por que razão te cercam assim?
47
Floresce o jasmim nas ondas de teus cabelos! * Lábios inestimáveis, em que repousam pérolas preciosas, * Como vós, a alma está inspirada pelo vinho; * A alma resplandecente do vinho cintila através de uma forma tão bela.
48
Rubras, minhas lágrimas são duas rosas gêmeas. * O sangue purpúreo do meu coração foge-me através dos olhos magoados. * Ela perguntou-me, ávida de resposta lisonjeira: * – "Por que razão teus olhos brilham como lagos ao crepúsculo?"
49
Ó grandeza de alma! Com que alegria * Eu me daria a ti, que és a razão de minha vida! * Se conhecesses a angústia deste inferno: * Buscar encher com a água da amizade o tonel das Danaides!
50
Os doces lábios cedo violam seus juramentos: * Os fiéis de Deus nunca se afastam da chama. * Se a Bem-Amada cede aos teus desejos, * Assim firma a lembrança de tua glória.
51
Chorando, eu me prendia às tranças da Bem-Amada, * E dizia: – "Cura-me dos meus temores!" * E ela: – "Toma-me, e larga as minhas tranças; * Prende-te ao prazer, e não à duração dos anos."
52
Foi loucura quereres ser melhor, * Ou pensares longamente na Criação. * Que a pupila do olho que fixa todos os homens * Mas não se vê, te ensine a prudência.
53
Àquele que arrancou a porta do Kharbar, * Pede a força; e a teu escravo, o talento de dar. * Se a graça do Senhor pretendes alcançar, * Pede à fonte, ó Hafiz, o vinho de Kausar.
54
Então, enquanto perdurar o decreto celeste, * O vento falará de ti à mais bela rosa: * Bebe a taça que ilumina a mão de Taktamum, * E conhecerás a imortalidade do amor.
55
Em derredor do torreão da Vida rugem as águas devoradoras. * A medida de vossos anos está a transbordar. * Amigos, não tardará que o enviado do Tempo * Atire porta fora os bens da vida.
56
Tudo esperamos da carícia dos Céus. * No entanto, trememos como a folha quando os dias minguam. * Dizeis que não existe cor além do negro: * Então, por que as neves sobre a plumagem do corvo?
57
Vem, senta-te ao lado de teu amor, e enquanto flui * O vinho da taça, estreita-lhe o talhe de cipreste, o coração de rosa! * Ó amante ferido, que desejas a cura, * Pede-a ao bisturi do cirurgião.
58
Esta noite, cumpriu-se uma vez mais o milagre do amor: * Duas almas fizeram-se uma, num rápido aniquilamento. * Agora, a morte se acha exausta dos ímpetos da mocidade, * Cujas águas cantantes em vão aprisionara.
59
Ó amigo do Sultão, cuja fama chega até ao mais ínfimo, * Rico de palavras douradas que todos aclamam, * Pode ele ir de Chiraz a Samarcanda * Sem estremecer ao nome de Hadji Hafiz?
60
Ó grande Protetor da humana angústia, * Que tudo resolves, distribuindo castigos e recompensas, * Por desnudarias a teus olhos o meu coração, * Se para ti não existem segredos?
61
Humilhado, o botão de rosa se esconde quando te vê! * O Narciso adormecido não ousa contemplar-te. * Como poderia a rosa proclamar-se soberana? * Ela pede à Lua o seu brilho, à Lua que o recebe de ti.
62
Não reproves minhas lágrimas pelo segredo que elas revelam: * Trata com doçura um coração que perdeu a paz! * Ó Sufi, que conheces o seu desejo, * Não zombes do vagabundo por uma busca assim tão longa, longa como a vida.
63
Aquele que cai um instante na miséria * Perde até a memória da antiga altivez; * Mas o pobre estrangeiro em país longínquo * Suspira, e não se esquece de sua terra natal.
64
O caminho que a ti conduz é semeado de aflições e penas: * A alma segue tateante, em meio à escuridão. * E só elevamos o olhar para tua face pura * Quando a lâmpada agonizante mostra que a viagem foi vã.
65
Até que se realize o desejo de amor, * Até que o reino do corpo haja perdido seu rei, * Minha eterna esperança é a Cidade de Deus. * Que todas as portas da alegria estejam abertas de par em par.
DO LIVRO
- Hafiz, do livro "Vinho, vida e amor de Hafiz e Saadi". [tradução Aurélio Buarque de Holanda]. Coleção Rubáiyát. Livraria José Olympio, 1946.
Hafiz, do livro "Vinho, vida e amor de Hafiz e Saadi". [tradução Aurélio Buarque de Holanda].
Coleção Rubáiyát. Livraria José Olympio, 1946.
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HOMENAGENS DOS POETAS - MANUEL BANDEIRA - SOPHIA DE MELLO BRYNER ANDRESEN
Gazal em Louvor de Hafiz
Escuta o gazal que fiz,
Darling, em louvor de Hafiz:
— Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas mágoas e as minhas diz.
Pois no mistério do mundo
Também me sinto infeliz.
Falaste: “Amarei constante
Aquela que não me quis.”
E as filhas de Samarcanda,
Cameleiros e sufis
Ainda repetem os cantos
Em que choras e sorris.
As bem-amadas ingratas,
São pó; tu, vives, Hafiz!
Petrópolis, 1943
Manuel Bandeira, no livro 'Lira dos cinquent'anos'. Global Editora, 2013.
*
É esta a hora perfeita em que se cala
O confuso murmurar das gentes
E dentro de nós finalmente fala
A voz grave dos sonhos indolentes.
É esta a hora em que as rosas são as rosas
Que floriram nos jardins persas
Onde Saadi e Hafiz as viram e as amaram.
É esta a hora das vozes misteriosas
Que os meus desejos preferiram e chamaram.
É esta a hora das longas conversas
Das folhas com as folhas unicamente.
É esta a hora em que o tempo é abolido
E nem sequer conheço a minha face.
- Sophia de Mello Breyner Andresen "Dia do Mar". Lisboa: Assírio & Alvim, 2014.
*
- Hafez (left) in a conversation with Abu Ishaq Indjou (right). Painting on Paper in Mughal style, 18th century | © The British Museum
FORTUNA CRÍTICA DE HAFIZ (HAFEZ)
ACORDO FOTOGRÁFICO. A conspiração de Hafez. In: Acordo Fotográfico, 23 de maio de 2017. Disponível no link. (acessado em 12.2.2024).
ARCE, Juan Pablo Espinosa. Hafiz de Persia y la mística como embriaguez. In: Religión Digital, 17.6.2021 / Lupa Protestante, 12.7.2021. Disponível no link e link. (acessado em 12.2.2024)
BARRENTO, João. Poesia - A glorificação do sensível. In: Revista da USP - Estudos Avançados, v. 33, n. 96, p. 317-337. 2019. Disponível no link. (acessado em 12.2.2024).
BOTTMANN, Denise. A Coleção Rubáiyát. In: Cadernos de Tradução, v. 43, n. 1, 2023. Disponível no link. (acessado em 12.2.2024).
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FOLIOS OF HAFEZ / MANUSCRITOS DIVAN DE HAFIZ
Fragmentos de manuscritos, link para mais informações na legenda de cada imagem.
- Manuscript - Divan-i Hafiz دیوان حافظ (The collected works of Hafiz) c. 1600 | ©Royal Collection Trust
An illuminated manuscript of the collected works of Hafiz copied by the calligrapher Shah Qasim for Husayn Khan Shamlu, Governor of Herat, c. 1600.
- Manuscript - Hafiz (1315-1390) - Divan-i Hafiz دیوان حافظ (The collected works of Hafiz). c. 1600 | ©Royal Collection Trust
An illuminated manuscript of the collected works of Hafiz copied by the calligrapher Shah Qasim for Husayn Khan Shamlu, Governor of Herat, c. 1600.
- 1958.23.116: Ghazals (recto), Poet Conversing with Drinkers in a Tavern (painting, verso), illustrated folio 116 from a Divan of Hafiz / Manuscripts | Photo © President and Fellows of Harvard College | Harvardart Museums
- Verses from the Divan by Hafiz, folio from a manuscript, right-hand side of a bifolio Manuscripts / photo © President and Fellows of Harvard College / Harvard Museusms
- Illustrated Manuscript of the Divan (Collected Works) of Hafiz / photo © President and Fellows of Harvard College / Harvard Museusms
- Illustrated Manuscript of the Divan (Collected Works) of Hafiz / photo © President and Fellows of Harvard College / Harvard Museusms
- Illustrated Manuscript of the Divan (Collected Works) of Hafiz / photo © President and Fellows of Harvard College / Harvard Museusms
- Manuscript; Divan by Hafiz; Persian in black nasta'liq script - folio | National Museum of Asian Art
- Plate IV. Celebrants at a tavern, Paris, Mss. or Suppl. Persan 1477, Hafiz, Divan, fol. 40, after Richard, p. 196 | Encyclopaedia Iranica Online
Folio from a Divan (collected poems) by Hafiz (d. 1390); recto: text; verso: Chained lion | National Museum of Asian Art
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Fontes / Manuscritos do Divan de Hafiz
ANTIGO EXEMPLAR DO DIVÃ DO POETA PERSA HAFEZ É RECUPERADO
* A “magnificent” stolen manuscript by the revered 14th-century Persian poet Hafez, which was dramatically discovered earlier this year by a Dutch art sleuth, is set to be sold at auction next month. The gold-illuminated Divan of Hafez is dated to 1462 and is one of the earliest copies of the work of the Persian poet, who died in 1390. Illustrated by the calligrapher Shaykh Mahmud Pir Budaqi, the manuscript was part of the collection of the Islamic art collector Jafar Ghazi, who died in Germany in 2007. After his death, his heirs discovered that many of his manuscripts had been stolen. fonte: The Guardian (acessado em 17.2.2024)
* Hallar el “Diván”, toda una historia de película. Antiquísimo ejemplar del poeta persa Hafez lo encontró el llamado “Indiana Jones del mundo del arte”, en una carrera contra el reloj y los iraníes que también lo buscaban | fonte: El Nuevo Siglo
- Gold star the Divan of Hafez copied by Shaykh Mahmud Pir Budaqi, dated 1462 | Photograph Sotheby's
- Hafiz (d.1390 AD), Diwan, Dedicated to the Library of Pir Budaq, Copied by Shaykh Mahmud Pir Budaqi, Iraq, Baghdad, Dated 867 AH/1462 AD | commons wikimedia
- Gold star the Divan of Hafez copied by Shaykh Mahmud Pir Budaqi, dated 1462 | Photograph Sotheby's
- Gold star the Divan of Hafez copied by Shaykh Mahmud Pir Budaqi, dated 1462 | Photograph Sotheby's
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- Iranian glazed ceramic tile work, from the ceiling of the Tomb of Hafez in Shiraz, Iran. Province of Fars - author Pentocelo, april 2008
MEMORIAL DE HAFIZ (HAFEZ) / TOMB OF HAFEZ
O túmulo de Hafez (ou tumba de Hafez) e seu mausoléu memorial associado, o Hāfezieh (em árabe: ﺣﺎﻓﻈﯿﻪ), são duas estruturas comemorativas erguidas na ponta norte de Xiraz, no Irã, em memória do célebre poeta persa Hafez de Xiraz. As estruturas de dossel abertas estão localizadas nos jardins de Musalla, na margem norte de um rio sazonal e abrigam o túmulo de mármore de Hafez. Os edifícios atuais, construídos em 1935 e projetados pelo arquiteto e arqueólogo francês André Godard, estão no lugar que ocupa outros prédios anteriores, cujo mais conhecido foi construído em 1773. O túmulo, seus jardins e os monumentos circundantes outros grandes dedicados a outros grandes personagens, são um foco de turismo em Xiraz.
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fonte: wikipedia
- Hafez Mausoleum (Tomb of Hafez) / Architect André Godard (1935) | photo © Kuno Modelhart / Flickr | fonte: caio.ir
- Hafiz’s tomb, Shiraz, Iran , early 20th century | photo © Nimâ Flickr
- Tomb of Poet Hafez (1840), by Pascal Coste | Monuments modernes de la Perse mesurés, dessinés et décrits, éd. Morel, 1867
- Tomb of the poet Hafez, Shiraz (1840), by Eugène Flandin | Voyage en Perse, avec Flandin, éd. Gide et Baudry, 1851
- The Tomb of Hafez, by Fatemeh Farahbakhsh (Aquarela, 2023)
Não permitas que teu ser interior seja ferido por aquilo
que tens ou não. Alegra-te porque cada coisa
Perfeita está a caminho da própria inexistência.
- Hafiz [tradução Pedro Gonzaga]. In: Pedro Gonzaga/facebook, 22 setembro 2022.
- CD 'Rumi Hafiz Cora' • Luciana Aires Mesquita • Selo Mitoludens • 2003
CD 'Rumi Hafiz Cora' • Luciana Aires Mesquita • Selo Mitoludens • 2003
CD Rumi Hafiz Cora. produção, Seleção de poemas, tradução e interpretação: Luciana Aires Mesquita / Música original: Guilherme Vaz, contém encarte, 10 págs. Mitoludens, 2003
• Oito poemas são do Jelaluddin Rumi, sec. XIII, 1207-1273 / traduções a partir do inglês de Colemann Barks e Kabir Helminski / Dois poemas já estavam traduzidos por José Jorge Carvalho.
• Seis poemas são de Shams-ud-din Muhammed Hafiz, sec. XIV, 1320-1389 / traduzido a partir das traduções e interpretação em inglês de Daniel Ladinsky
• Cora Coralina, 1889-1985
- Música original: Guilherme Vaz -
Canções
1. A Lua de Tabriz [The Moon of Tabriz] – Rumi
2. A Espuma e o Mar [The Froth And The Sea]- Rumi
3. Oração do Milho [The Corn Prayer] – Cora Coralina
4. Aprendi Tanto [ I Have Learned So Much] – Hafiz
5. É o Tempo Agora [Now Is The Time] – Hafiz
6. Quando as Uvas se Tornam Vinho [ When The Grapes Turn Into Wine] – Rumi
7. A Casa de Hospedes [The Guest House] – Rumi
8. O Grande Segredo [The Great Secret] – Hafiz
9. Este Corpo é Uma Rosa [This Body Is A Rose] – Rumi
10. Assim [ Like This] – Rumi
11. Devemos Conversar Sobre Isso [We Should Talk About This] – Hafiz
12. Desvela Teu Próprio Mito [Unfold Your Own Myth] – Rumi
13. Uma Única Regra [Only One Rule] – Hafiz
14. Qual a Raiz? [What is the Root?] – Hafiz
15. Onde Tudo É Música [ Where Everything is Music] – Rumi
** Informações / e disponível no link. (acessado em 12.2.2024)
Hafez by Abolhassan Sadigh
- The reconstructed face of Hafez Shirazi with the help of Midjourney | fonte:
KOHAN, Hamed. Uncovering the Hidden Faces of Iranian Poets: How AI is Bringing their Images to Life. In: Medium, 27 de abril 2023. Disponível no link. (acessado em 11.3.2024).
© Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske
© Seleção e organização dos poemas: José Alexandre da Silva
© Direitos reservados ao autor/e ou seus herdeiros
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COMO CITAR:
FENSKE, Elfi Kürten; SILVA, José Alexandre da. (pesquisa, seleção, edição e organização). Saadi - poeta persa. In: Templo Cultural Delfos, março/2024. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
FENSKE, Elfi Kürten; SILVA, José Alexandre da. (pesquisa, seleção, edição e organização). Saadi - poeta persa. In: Templo Cultural Delfos, março/2024. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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:: Página atualizada em 10.3.2024.