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Romério Rômulo - poeta dos labirintos bucólicos da alma

Romério Rômulo - foto:  Pedro Vilela/Agência I7


sou, por meus inteiros, vários.
minhas frações se fazem de repente.
o olho, de inteiro e faces,
disseca os cacos da manhã (lavada).
múltipla mão, da luz, me regurgita
uma estranha verdade, um denso espanto.

                             (minha doce face fuzilada)
 - Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.


Romério Rômulo (poeta prosador) nasceu em Felixlândia, Minas Gerais, e mora em Ouro Preto, onde é professor de Economia Política da UFOP e um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar - Rio de Janeiro RJ.


Romério Rômulo por ele mesmo
Romério Rômulo - foto: Laia
Poeta e homem comum são faces de um mesmo homem. Transitam e transitaram pelos mesmos caminhos. As diferenças só acontecem na externalização dos assuntos. Eu me reconheci poeta aos 16 anos, embora tenha escrito o primeiro poema aos 9. Então, comecei a produzir em grande quantidade. Ficava a pergunta: "tem valor?". Aí dependemos do outro, dos outros, que vão contribuir nesta montagem de opinião. Várias rupturas ajudaram no descobrimento. De início, me sentia um poeta maldito, um Baudelaire, algo assim. Caminhei impregnado também pelo Augusto dos Anjos, que sempre esteve na contra-mão da vida e da linguagem. O primeiro livro, "pedras no caminho", 1979, tem essas marcas. A Laís Corrêa de Araújo e o Affonso Ávila, a quem conheci em 1982, se interessaram por mim. Ela, com uma coluna semanal no "Estado de Minas", comentou da força do trabalho.

Pra mim, um reconhecimento. O Drummond, o Armindo Trevisan e outros também já tinham se manifestado e reforçavam as minhas energias. Morei no Rio de Janeiro, de 1980 à parte de 1982, e o trabalho deu uma guinada. A cidade grande influenciou claramente. Saiu um livro, "anjo tardio", publicado em 1983, com outra embocadura. Elegíaco, nerudiano. Mulher, tempo, poeta e poesia como preocupações centrais. Mas algo da terra, do sertão de origem, já se mostrou ali. Sou encantado com os meus amigos e escrevo sempre sobre e para eles. Perguntado da utilidade da poesia, já respondi: "serve para falar sobre os amigos". Reuni um grupo de poemas sobre amigos, conhecidos ou não, que eles não se encontram obrigatoriamente no nosso cotidiano, ou nós os descobrimos amigos depois que morreram. Em 1986, saiu o "amigos & amigos". Pela ocasião, conheci o Tião Nunes e começamos a trabalhar algumas coisas juntos. Editamos "o elixir do pajé" do Bernardo Guimarães, edição que teve impacto, na medida em que poesia causa impacto. Esta edição, com prefácio meu, continua a ser comentada por aí. Agucei a embocadura, como deve ser, e saltei à terra. “Bené para flauta e Murilo", 1990, e a caixa com 4 livros em 2 volumes, "tempo quando", 1996, mostram isso. Na segunda metade dos anos 80 me tornei grande amigo do manuelzão, o que reforçou a postura da terra. A amizade com o Carlos Scliar também teve um peso definitivo: o homem político pisou mais no meu trabalho, dos anos 80 em diante. Fiquei 10 anos sem publicar um livro, mas escrevendo muito. Em 2006 saiu um dos resultados disso, o "matéria bruta", pela editora Altana / SP. Daí vem ainda a maior parte do "per augusto & machina", já em processo de planificação visual para publicação.
:: Fonte: FERNANDES, Hercília. Romério Rômulo: o cantador de mistérios em Vila Rica [entrevista]. in: novidades & velharias, 19 de abril de 2009. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016).


é texto de palavra atada e fugidia.
rasgo de alma, fosse chuva e sol.
antípoda gerado eixos: fome, alimento.
alma súcuba de traços: vento e chumbo.
tiro borracha e madeira, certeira testa.
O solto, o desastre, o aço preso do corpo,
em pétalas e mãos, estardalhaço.

                       (o poema)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.


OBRAS DE ROMÉRIO RÔMULO 
Poesia
Romério Rômulo em Ouro Preto MG
:: Só pedras no caminho pedras pedras só pedras nada mais. Belo Horizonte MG: Lemi, 1979. 
:: Anjo tardio. Ouro Preto: Edição do autor, 1983. 
:: Amigos e amigos. – (no prelo). Belo Horizonte MG: Editora Luis Daré, 1986.
:: Bené para flauta e Murilo. Sabará MG: Edições Dubolso, 1990.
:: Tempo quando. (4 livros em 2 volumes). Sabará MG: Edições Dubolso, 1996
:: Matéria bruta. [prefácio Dulce Maria Vianna Mindlin]. São Paulo: Editora Altana, 2006, 136p.
:: Per Augusto e Machina. São Paulo: Editora Altana, 2009, 128p.
:: Há, se eu fosse Maradona![versão em espanhol e glossário Nina Rizzi]. Edição bilíngue. Sabará MG: Edições Dubolsinho, 2015. 

Prefácio
:: O elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães (poesia erótica).. [prefácio Romério Rômulo; organização Sebastião Nunes]. Sabará MG: Edições Dubolsinho, 1988.

Antologia (participação)
ROSA, Gisela Gracias Ramos (org.). Antologia Poética Clepsydra.  Lisboa (PT): Coisas de Ler Editora, 2014.

Entrevistas
BRANDÃO, Fabrício. Pequena sabatina ao artista. [entrevista]. in: Diversos afins, 30.9.2009. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016). 
FERNANDES, Hercília. Romério Rômulo: o cantador de mistérios em Vila Rica [entrevista]. in: novidades & velharias, 19 de abril de 2009. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016).
 SILVA, Wilmar. entrevista: romério rômulo. in: revista Germina Literatura. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016).

Ensaio
:: (O grito) por Romério Rômulo. in: revista Germanina Literatura, março 2010. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016). 



Romério Rômulo. em Ouro Preto, no ateliê do Carlos Scliar - acervo RR


POEMAS ESCOLHIDOS DE ROMÉRIO RÔMULO

ancestral perverso desta fuga,
arredondada paisagem do inferno,
este caminho é pleno de relatos.

saber-lhe os uivos, que mais for, saber
o elo da montanha que lhe brusca
um último estandarte desta voz.

que mais trazer o pulso, uma verdade
corrente noite, ilustre madrugada,
um passo de caminho, uma afoiteza.
tonitroamentos todos são solenes
uivos relatados, que outros uivos
só podem rastejar num corpo alado.

            (são uivos relatados)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

buscar os bois do meu campo, uivo, latido,
guardar os animais da memória,
latir uma cavalo potro ressequido,
levantar a água esguia do poço,
saber uns baldes de tanto cansaço.

tudo é ausência de cerrado.

avós de diamantes, tesouros monásticos,
assembléias de escravos, podem ser razão
de minha ausência.

uns valos de bois, umas manias de cavalo
chucro,
um atar de cachorro louco.

luzes e bois, fundidos, se rebatem.

                (levantar poço e água)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

meu corpo traz uma equação de nuvem.
pobres resgatados, desmorados, osso e braço
rezam no ar de penitência suas águas.
proprietários do sobrado, pouco lhes resta.
de tempo, arreganham dentes de uma fome sólida.
ralos de feijão, seus corpos sabem o horizonte da terra.
escaldados, cândidos, um sopro.


                    (Cândidos, um sopro)
- Romério Rômulo, em "Per Augusto e Machina". São Paulo: Editora Altana, 2009.

§

eu antevi meus olhos de cimento,
lúgubres. estado tosco, a alma se valia
da ampla podridão que me restava.
histérico e vão eu soluçava
em retirar dali, aos solavancos,
a pressa de enxergar algum tormento.

eu vi e vi meus olhos de cimento.

              (lúgubres, estado tosco)

- Romério Rômulo, em "Per Augusto e Machina". São Paulo: Editora Altana, 2009.

§

eu faço poesia
porque a vida não basta
e preciso dividir mistérios.
incertos, os marimbondos vazios
me arrastam pela tarde.
o mel da manhã, fel em mim
entope minhas veias.
quando os solavancos da palavra
vão redimir meu corpo?
quanto de mim é fogo
e terra?
sobram o hiato das pontes, os rios
degenerados. minha manhã dura
só faz o recomeço das coisas.

            (para renata)

- Romério Rômulo, em "Per Augusto e Machina". São Paulo: Editora Altana, 2009.

§

fragmento das bigornas
se pensas que me adornas
no corpo dentro de mim
vou martelar as bigornas
nos pelos do teu jardim

o resto são carnes mornas
já vindas de onde eu vim
eu quero ver se me entornas
nos pelos do teu jardim

vou martelar as bigornas
no corpo dentro de mim

bigornas contra bigornas
mas vindas de onde eu vim.

- Romério Rômulo, em "blogue do autor".

§

meu poema seco,
rastro de sol e cerrado,
carrega uma moldura de ferro.
montanha e água,
meu poema seco
traça uns caminhos de rio.

os cavalos do poema
são trevas da poeira vivida,
do esgarçado dos dentes
em iscas do outro lado.

a manhã que encobre tudo
lambe, azeda, meu corpo de tormenta.

                (pura pedra)

- Romério Rômulo, em "Per Augusto e Machina". São Paulo: Editora Altana, 2009.

§

Romério Rômulo - foto: (..)
minha poesia está solta na vila
sou o poeta canônico
das estrofes adversas, dos terrenos baldios
dos dezembros de osso e pedra.
elevo a inflexão nos sonetos
como um antônio das mortes.
os loucos e os bichos me ouvem.

já fiz orações a vieira, a antônio de pádua
aos apóstolos pedro e paulo
a vinicius e baden.
rezei com os tincoãs na freguesia
e os muros lavaram os meus horrores.

minha poesia está solta na vila.
- Romério Rômulo, em "GGN - jornal".

§

(o grito)
há um relato de voz naquela voz,
tão retorcida voz, toda ela espanto.
o corpo que é voz tem um esgar
que deixa de ser corpo e é só voz.

se munch se dissesse, rediria
a voz candente, noite de gravura,
que é gravura e voz que firma a tela.

intensos tão meandros destes traços
que num itálico do grito a fala sente
o homem ser só grito, sem mais homem.

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

o tumulto do corpo pode ausências.
calar tem por demais, arrefecido
instante da manhã chamado vento.
uns mistérios, dizer o mais que sono
sem a palavra livre revelada.

quando uma carne concebe, intimamente,
uma outra carne rasura seu instante
mais breve de pedra. e saber
aquilatar é tudo, face o tempo.

que outros mais dizer irão, somente,
sabedorias se nem cabe a rouca
lamúria que no lábio sempre espera
pelo espaço de só ser lamúria.

             (o corpo pode ausências)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§
 
o vento do sertão que ainda me sopra
me rasga em ventania o caldo e o corpo
qual um tijolo tange, em pedra nua,
cada parede sem cal, de cada boca.

o meu pavor é duplo, o meu horror,
quádruplo.
no triplo do meu topo é minha boca.
o pálido sertão que ainda me lambe
sabe o horror que cabe em cada corpo.

são muitos os vieses, quando
matizes cimitarram quadro
que sai do olho, encanto diferente.

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

poeta dos atrasos. sempre.
se falo pela morte, ela morreu
e nem uma rabeca lhe concerne ao corpo.
um rastro de sertão que ainda revelo
sobrou das sobras caiadas das paredes.
o cerrado, olho só, carvão e gusa.

                     (matéria bruta do tempo)
 

- Romério Rômulo, em "Per Augusto e Machina". São Paulo: Editora Altana, 2009.

§

poeta que de minas faz seu canto
vou revelar aquela face rubra
de mais um sol antecipado noite.

trazer crateras de montanha, mar
de minérios que faz hortelã
ter uma sabor tomado por ausência.
um verdejante arco de boi, traste
de, no cerrado, dente mudo, ver
na sua carne os rasgos desta gente.

que animal há de viver somente
no exercício fácil do resgate?
que montanha rasgar, tão inimiga,
se sobra o vácuo puro do mistério?

minas mais que sabor: traição, penúria,
é mais que o fácil boi dolente
remansado de pragas pelos pêlos.

é tão mais, mais que a barba bisavó
de inácios que me soam serem eu.

inesgotável minas, uns deuses
lhe ampliaram a face-toda-água.

                
(96, janeiro)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

quantos antros e destinos me ataram
pelo avesso da ilha.
mágicas só revertem a metade das noites
que as outras são concretos.

quantos avos e destinos me atormentaram
o rosto e o osso;
curvei-me a todos para estar perfeito.

a todos busquei ver como água e pedra:
com o olho, retalhei-lhes as faces
e o contíguo dos lábios.

pólvoras deixaram meu corpo em frangalhos.
mas atei-lhe os nós e os pedaços
como quem range à utopia.
fiz ver que vales e montanhas são nacos da vida.
no fôlego quente da espécie.

quando surgi de mim, fiquei varrido
e meu estado de coisa correu solto.

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

rio acima duas canções se fazem.
alargado meu peito desfalece.
que arcos hão de vir, sombriamente,
falar, cerrado puro, do meu lastro?

e se os risonhos da manhã me deceparem?
acaso sou poesia ou sou manhã?
acaso uma nascente é tão nascente
que só se faça romper pela clausura?

vou de saberes, que saberes estes
são uivos que caminho pelas águas
e águas são de um sólido mais brusco
que desfalecem os ranços já chegados.
cauda selvagem, se me sobra toda
a vida por parir mais que selvagem.

           (raso de delírio: o meu cão morto)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

Ouro Preto, de Alberto Veiga Guignard
se alma de montanhas, decrescer.
a avidez de ser noite fica pura
como puros ouvidos soam doces
se extirpado seu revés do tempo.

que almas velarão a tua voz?
que riscos cederão estes teus olhos?

de outro, se montanha, pura pedra,
chão, rasgo, lua, estado, capim podre,
armar-se de nuances agridoces
mais que ficar, dirá: arrefecer.

o nu do rosto, dente permanente
traz a vontade de manhã mais nua
que reverbera os caldos de uma boca.
a boca só, em si, atropelada,
carrega uma cidade como fosse
viver cada rua, cada nesga
de rua, cada poça d'alma.

                    (lhes atropelo a alma)
 

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

sou belo, rumoroso, azul e noite.
tão belo como o choque do cavalo
de pura sede bebido, água de fonte,
inesgotável luz, amor tremido.
— a pedra e o pó me fazem madrugada

                               (rumoroso azul)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

uma poesia deserta, texto de pedra e secura.
poesia de ferreiro: metal e martelo.
uma poesia brasa candente. cozer tudo,
ato do verso, dure tanto ou nada.

                            (abertura)

- Romério Rômulo, em "Matéria bruta". São Paulo: Altana, 2006.

§

ver também pode estar nesta ternura.
vestais e corpos chegam, apropriados 
do musgo, do azul, daquela noite. 
é verde ser silêncio. o quarto morto 
de paisagem insone 
refulge sobre nós o que nos sobra. 
que ver aqui se o arco, este objeto 
fremente de recantos e verdades 
pode atar a noite sobre nós? 
 
- Romério Rômulo, em "Tempo quando". Sabará MG: Edições Dubolso, 1996, vol. 2, p. 46.

§

volto mais tarde como se mar eu fosse
vou te entregar meus ossos de andarilho
vou te romper no ronco dos novelos
vou te saber em todos os enredos
vou te encontrar no tronco das estradas

como fossem bigornas em que bato
como fossem canhões de onde atiro
como fossem delírios por que miro
como fossem os mundos que me comem

quando as águas me chegam e eu derramo
quando as velas apagam e eu escureço
quando a vida me engole e eu te chamo

porque fazes de mim um duro lastro
porque bebes de mim a mão quebrada
porque és o caminho onde me arrasto.

- Romério Rômulo, em "GGN - jornal". 

Ouro Preto, de Carlos Scliar  (1985)

FORTUNA CRÍTICA DE ROMÉRIO RÔMULO
ARATICUM, revista. Poema - Romério Rômulo. in: Revista Araticum, Unimontes, Montes Claros, vol. 1, 2006. Disponível no link. (acessado em 31.1.2016). 
ASSIS, Júlio. A “Matéria Bruta” de Romério Rômulo. in: O tempo, 3.3.2007. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016). 
CAVALCANTI, Camillo. Verbo: a matéria bruta de Romério Rômulo. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2015 - Cadernos do CNLF, Vol. XIX, nº 8 – História da Literatura e Crítica Literária.. Disponível no link. (acessado em 16.2.2016).
CLARÍN. Poesía brasileña para Maradona. in: Clarin, 19.11.2015. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016). 
GOMES, Artur. romério rômulo. in: entre/vista, 20 de julho de 2011. Disponível no link. (acessado em 31.1.2016).
GONÇALVES, Régis. A palavra rude de Romério Rômulo. in: O tempo, junho 2008/reproduzido in: blog romerioromulo. Disponível no link. (acessado em 31.1.2016). 
GUIMARÃES, Rodrigo. A poesia transversa de Romério Rômulo. in: Itinerários - revista de literatura, nº 28, p.159-165, jan./jun, 2009. Disponível no link. (acessado em 31.1.2016).
LEITE, Silas Correa. Romério Rômulo, Poeta de Per Augusto & Machina, um Clássico de Poesia (resenha crítica). in: Click Grátis, 14.3.2011. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016). 
MINDLIN, Dulce Maria Viana. Cantata mineira em cromatismo e dissonância: a poesia de Romério Rômulo. in: Matraga nº 11, 1º semestre de 1999. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016).
NUNES, Sebastião. Uma senhora poeta e dois senhores poetas. in: O tempo, 11.4.2010. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016).
NUNES, Sebastião. Romério Rômulo e a sagração do sertanejo urbano. in: O tempo, 25.4.2010. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016).
OLE. Maradona - ¡O mais grande!. in: Ole, 18-11-2015. Disponível no link. (acessado em 29.1.2016). 
PARANHOS, Maria da Conceição. Romério Rômulo: uma poética implacável. in: Cronópios, 11/8/2010. Disponível no link. (acessado em 6.2.2016).


AMIZADES SERTANEJAS E POÉTICAS

Carlos Scliar e Romério Rômulo, em Ouro Preto (1993)

Manuelzão e Romério Rômulo - Germano Neto


Romério Rômulo e Líria Porto - foto: Fernando Campanella


ENSAIO SOBRE A OBRA CONCRETA DO POETA ROMÉRIO RÔMULO 

(r)omério (e) rô(m)ul(o)
por Marconi Alvim Moreira*

         Devo a uma conjunção de seres, lugares e coisas, o conhecimento de parte da obra, pouco divulgada, do poeta Romério Rômulo, afeita ao que se convencionou chamar de concretismo. Os seres são o Prof. Guilherme Paoliello e o Procurador aposentado Augusto de Campos, amigos de longa data; os lugares são Ouro Preto e São Paulo, os livros nas estantes e as finas camadas de pó entre os caminhos; as coisas são - dentre tantas e paradoxais ambigüidades da trama universal – o tecido da poesia concreta, da música e da experimentação.

         Poucos sabem que - consagrado poeta, compositor, músico diletante, tradutor e ensaísta - Augusto de Campos teve uma longa carreira, até a aposentadoria, como advogado público. Igualmente o advogado público, autor destas linhas, emulado por “equivocábulos” como o pomposo nome de Romério Rômulo Cordeiro de Moura, tratou logo de conhecer a produção poética daquele servidor público (então na burocracia estatal federal) com inestimável intervenção do Prof. Guilherme Paoliello - compositor erudito e poeta concretista bissexto. No que foi gentilmente atendido pelo próprio poeta. Romério Rômulo cedeu não só volumes de sua poesia “convencional”, como cópias de seus poemas experimentais concretos. De posse do material, entreguei pessoalmente ao poeta Augusto de Campos uma mostra, numa tarde atípica de calor do ano de 2001. Ao fim, um sorriso mútuo e nenhuma palavra. A oportunidade surge agora, por obra e graça das Dras. Dulce Mindlin e Ilca Vieira Oliveira.

         Primeiro é preciso esclarecer que a parte da obra em apreço não é “concretista”, naquele sentido de vanguarda, historicamente datado, que um grupo de poetas brasileiros empreendeu na segunda metade do Século XX. Naquela ocasião - como exaustivamente declarado por mais de um dos expoentes do movimento concreto, especialmente do ramo paulistano - os poetas abriram mão de um estilo individual em prol de uma mostra com inegável unidade de procedimentos formais. Por outro lado, o fato de Romério Rômulo utilizar, ao menos em duas ou mais oportunidades, referências aos poetas Ezra Pound e E.E. Cummings, não é exatamente o que foi taxado de “metalinguagem” a partir da popularização das teorias de comunicação nos 1980: quando Drummond, na primeira metade do Século XX, fazia poesia sobre o “fazer poesia”, não se valia de “citação” (como no cinema dos cineastas cults norte-americanos), mas era irônico e auto-referente, na “luta com as palavras” ou no “abandono dos temas da infância” em suas “receitas poéticas”. Este, bem como o não menos distante sentido da Mensagem à Poesia de Vinícius de Moraes, é o termo de circunscrição da “metalinguagem” tradicional, em ensaios literários.

         Como o presente não tem o condão do rigor acadêmico, não iremos datar, identificar e analisar o contexto em que foram produzidos e divulgados os poemas “concretos” de Romério Rômulo. Pontualmente, agruparemos alguns e faremos oportuna observação sobre o valor experimental, criativo e completamente acabado, a partir dos ditames do inicial concretismo e suas raízes como poesia de invenção.



         O poema tem a compleição típica das “cartas” (como nos baralhos do Tarô ou configurações do I-Ching) presentes nos “Cantos” de Ezra Pound, magistralmente traduzidos na íntegra para o português pelo poeta carioca José Lino Grünewald. A linha inicial traz a frase “one pound of words”. O sobrenome substantivado de Ezra Pound na linha e a escolha de “one” (um, algarismo, medida, contagem, matemática) ao contrário de “a” (como na expressão “ten dollars a pound”, dez dólares por  - a [cada] libra), bem como a separação do coloquial “one of” (como “one of these days”, um dia destes) demonstra bem mais que sutileza: é construção pensada e revela incrível domínio do inglês.

         “Uma libra de palavras”, em tradução pobre e literal. E a “libra” não como unidade monetária: vocábulo bem mais propenso ao “peso”, ao “punhado”, o concreto peso das palavras. Poesia em uma linha. Segue a dispersão típica na utilização do espaço: o prenome Ezr(a)tomic(rophone)of(f)hel(l)p: a biografia de Ezra Pound é aqui evocada pela controvertida atuação pseudo-fascista do poeta ao microfone de rádio em determinado período particularmente bélico das duas Grandes Guerras européias. O “microfone atômico”. E aqui mais ambigüidade poética: “of”, de e “off”, desligado, ambos ao “hell”, inferno, danação, praguejo, com a sutileza do socorro, ajuda de “help”; o mesmo “hell” surge no próximo (seqüencial e exemplificativo) poema sobre/com e.e. cummings.

         No meio, à guisa das leituras verticais dos hexagramas do I-Ching, há não apenas lacunas, mas a sugestão da sigla AFP. A sigla é a mais conhecida referência à Associação Francesa de Imprensa, uma longeva agência de notícias; uma foto de Pound, desta época, ao microfone - talvez única conhecida e divulgada em suas biografias - é uma “rádio-foto”, sistema de transmissão de dados (no caso imagens) por ondas de rádio. O fechamento, na base do “cartão”, dialoga com a frase inicial, também com o uso do one em uma rima interna rica com tone, em referência direta à expressão tone poem, ou “poema sinfônico”. Pound foi músico e estudioso diletante, tendo conduzido, também por rádio, programas dedicados à música erudita de vanguarda. Todo o grau de acabamento experimental completa-se no seguinte poema:


         Eis, senão um complemento, uma variação do estilo anterior. O referencial é também um poeta da tradição dos concretistas nacionais históricos. E.E. Cummings, evocado pelo som na frase inicial, convidando a uma “entrada” entre o Céu e o Inferno (“também”, pelo too). O poema exige leitura das linhas em intercalações acima e abaixo, com o incrível ícone do olhar a partir e “com” a assinatura de Cummings, with thee, “convosco”. Impressiona como o “g´s” evoca o português de “gás” e ressoa pelo guys/eye, outra rima “interna”, uma vez que a leitura dos concretos prima pelo sistema do ideograma.



           Rolling Street é quase um “re-clame”: impossível não lembrar que os Rolling Stones produziram um álbum com o título de Exile on Main Street e que, não bastasse, a canção mais cultuada da banda tenha como refrão: “There's just no place for Street Fighting Man!”. A contagem – aqui novamente, agora no tempo de entrada – com o conhecido (e por vezes deixado nos registros fonográficos do pop rock) one, two, three é referência musical não só no contexto da cultura popular, mas também na quadratura básica do ritmo classificado na mídia como “rythm and blues”.

Há ao menos oito ruas com este nome nos EUA, outras tantas no Canadá e pelo menos uma em Londres. Ou seja: “shit”, não no sentido escatológico, mas como expressão coloquial, uma exclamação usual quando algo imprevisível e desagradável ocorre. E o surpreendente hi – uma saudação. A resposta interposta pelo “where?”, também pela fragmentação de three (três) e tree (árvore), traz a chave para o soft e o hard com a letra “h” a separar o latino “et” e propondo um possível “here”; isto justamente no “quarto tempo”, onde se daria a entrada pesada do pulso tão característico do hard rock.

Lembremo-nos do peso em libra no Pound, da visão do Paraíso e do Inferno no Cummings e já vislumbramos outra referência, desta vez nacional: o poema mais caro aos concretistas, de Sousândrade, não por acaso chamado “O Inferno de Wall Street”, onde o poeta compara o capitalismo a uma doença. Trata-se de um fragmento d´O Guesa, que mereceu da Profa. Ana Carolina Cernichiaro, da UFSC, um ensaio intitulado O POEMA COMO EXÍLIO — SOUSÂNDRADE - GUESA EM “O INFERNO DE WALL STREET”[1]. Nas palavras da ensaísta, trata-se de uma “espécie de poema-exílio. Um deserto onde o poeta é um eterno errante, um estrangeiro em sua própria língua, onde a representação não é mais possível e o que resta é a fragmentação multidiomática, os urros, balbucios, cacofonias, choros, gritos e inversões. Um périplo de dissonâncias, de ruptura, de desvio, enfim, de combate com a língua dentro da própria língua”.

Tudo que foi dito acima sobre Sousândrade poderia, em tese, ser aplicado aqui sobre esta apreciação inicial dos elementos da poética concretista de Romério Rômulo. Mas com alguma reserva: estes três primeiros poemas dialogam com a fase intermediária do concretismo nacional. Se tomarmos o histórico da poesia concreta no Brasil, veremos que o Manifesto e a produção hegemônica dos anos 1950 até meados de 1970 coincide com uma certa “fórmula”: o ovo tem um tratamento gráfico-espacial oval, a cidade tem uma textura algo caótica e invariavelmente os temas flertam com um certo engajamento político. Nos 1980, com o poema de Augusto de Campos, “Pós-Tudo”, uma longa discussão crítica se deu nas páginas do extinto caderno “Folhetim” do Jornal “A Folha de São Paulo”. Nesta altura dos acontecimentos, a produção individual, em especial do grupo paulista, encontrava-se em tal grau de aprimoramento e amadurecimento, que poucos entenderam a capacidade de síntese e inovação que a experiência concreta havia proporcionado. E não havia mais, no sentido estrito e histórico do termo, “a” poesia concreta ou mesmo “o” concretismo. É neste contexto que se inserem os três poemas iniciais até agora abordados.

Um terceiro momento pelo qual a poesia concreta teria passado – ou ainda estaria percorrendo – é o da invenção. Coincide este momento com a produção atual de Augusto de Campos, as últimas obras de Haroldo de Campos, bem como as inovações trazidas por Arnaldo Antunes. A partir do registro “fono-gráfico” (em sentido amplo) no CD “Poesia é Risco”, de Augusto e Cid Campos, as edições do que antes era o concretismo impresso começaram a se valer da tecnologia. Enquanto a “Caixa Preta” de Augusto de Campos e Julio Plaza inaugurava a escultura e o poema-objeto nos 1970 (com a inclusão de um compacto em vinil no qual Caetano Veloso participava) os livros “Não”, de Augusto de Campos, “Crisântempo” de Haroldo de Campos e ao menos uma edição de Arnaldo Antunes – todos dos 1990/2000 - vieram acompanhados de registro eletrônico em CD ou DVD, para som, imagem e movimento a serem apreciados no computador.

Romério Rômulo, não exatamente um avesso à tecnologia - mas bem antes um amante da música - intenta o seu:


         Este seu “cântico de duas/três vozes e desconclusões”, obviamente datilografado, não é um retrocesso, mas antes uma partitura, um registro, uma pauta inusitada de um “poema sinfônico”. A música aqui é o fonema à guisa de alturas e durações, poesia pura como uma obra de Bach sem indicação instrumental. Pode ser lido com duas ou três vozes “mentais”, ou mesmo entoadas simultaneamente, com liberdade de variações muito amplas.

A chave é também a “metalinguagem” contida nas partículas INVERTEUVENTRE / QUASIMODÁLICO: quase nos esquecemos que o “serpentuário” inicial não é um viveiro de cobras, mas um santuário de uróboros (monstruosidades que mordem a própria cauda): inverter o ventre seguido de um neologismo que registra quasímodo (do latim. quasi modo, 'do mesmo modo', palavras que introduzem a missa no primeiro domingo depois da Páscoa; e numa segunda acepção, Quasímodo, personagem monstruosa da obra Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo), surpreende ao evocar o “modo musical” - naquele sentido em que revela o padrão rítmico constante numa composição ou mesmo uma escala – uma escala modal, por exemplo.

E há mais: PURNOTREDAME deixa claro não só as referências intertextuais como nos leva à “La Messe de Nostre Dame”, de Guillaume de Machaut (c. 1.300 – 1377), composição cara aos concretistas históricos brasileiros. Para se ter uma idéia, na Missa de Notre Dame, Machaut inaugura uma nova era: a primeira missa composta para quatro vozes (tenor, contra-tenor, motetus e triplum) em estilo polifônico; utiliza a polifonia para o “ordinário”, enquanto o “próprio” era cantado em uníssono e em estilo gregoriano. A polifonia se vale de duas técnicas. A primeira é a técnica do “cantus firmus”, onde o tenor canta longas notas enquanto as outras vozes trabalham os melismas, nos novos ritmos desenvolvidos na ars nova acima e abaixo da tessitura do tenor. A segunda, em estilo silábico (isto é, uma nota para cada sílaba), todas as vozes cantam juntas o texto. Machaut utiliza em toda a peça os chamados “ritmos modais”. Para tanto, era necessário “ouvir” a música “mentalmente” para conseguir entendê-la e reconstruí-la. A missa é considerada a primeira grande obra racional cíclica composta contrapontisticamente, isto é: foi a primeira missa completa composta com a re-exposição temática. Se ainda resta alguma dúvida, veja-se a “quadra” final: QUADRINÚVIL / TERCINÉBLIL / DUOVÊNTIL / UNONÁDIL. Ora: as seis partes da Missa de Machaut têm a duração média, seqüencial, de 8, 4, 7, 5, 4 e menos de 2 minutos ao final. Guarda incrível correlação temporal com o poema, se considerarmos a “quadra final” transcrita acima como uma “coda” – mesmo porque separada e destacada, sendo a única com “rimas” paralelas em “il”. Unicidade e “desconclusão” em UNONÁDIL: o “um” que é nada, como no latim “nihil”. As correspondências internas do poema são tantas que não poderiam ser aqui destacadas e desvendadas.

Claro que estes exemplos, até aqui, são poemas muito elaborados, com um repertório temático que demanda uma cultura e uma erudição não muito comuns ao leitor médio. Nem por isso perdem em qualidade e não podem sofrer a pecha de hermetismo gratuito: somente uma árdua construção é capaz de “achados” como PANEMSALAME ou JUSTACONTENDA. Bem como a quadratura entre o segundo e sexto grupo de palavras, por cruzamento.

Como exemplo final, este poema “quase acróstico” sobre o artista plástico Carlos Scliar:
 A frase final, “eu pinto o cheiro das flores”, acreditamos, é o título. Não faz parte da estrutura do poema. Aproveitando as quatro primeiras letras do sobrenome do pintor, a “tela” do poema expõe os quatro elementos da natureza, em uma “leitura” sinuosa; o elemento terra, encerrando o primeiro “grupo”, liga-se a um sentido – no caso o olfato – já que ar, fogo e água não têm cheiro. A partir da “tela”, a sinuosidade já prenunciada pelo “s” inicial enquadra o poema e todo o “inefável” se concretiza na fruição da obra acabada, “a tela visitada”. Belíssima homenagem a um dos maiores artistas plásticos brasileiros. Aqui, por fim, cabe lembrar, que pela disposição dos quatro elementos, somente a água se liga a terra, numa leitura vertical descendente iniciada no “A” do “AR” da primeira linha: terra molhada, aquela cujo cheiro característico gera o perfume das flores.

Sobre a poesia “tradicional” de Romério Rômulo, tudo está dito – e por estudiosos, acadêmicos, amigos e outros poetas. Mas nada é perfeito: eis o imprevisto; sua obra concreta é muito pouco difundida e, acredito, igualmente considerada de modo parco, muitas vezes por citações de passagem. Mereceria um trabalho analítico de fôlego, por obra de alguém mais competente que o ora autor destas linhas, mero apreciador de inovações em música e literatura.

Para concluir devemos explicar o título deste texto. Rômulo e Remo são os lendários gêmeos que fundaram Roma. Como diz o ditado, “quem tem boca vai a Roma”. E para os adeptos dos palíndromos, a inversão é o Amor. Lembremos: segundo a lenda, Rômulo e Remo, irmãos gêmeos que, depois de algumas peripécias como o abandono, a Loba que os amamentou e o acolhimento por um casal de pastores, receberam o direito de fundar uma cidade junto ao rio Tibre. Consultando presságios, Remo dirigiu-se ao Aventino e viu seis abutres sobrevoando o monte. Rômulo indo ao Palatino avistou doze aves; fez então um sulco por volta da colina, demarcando o Pomerium, recinto sagrado da nova cidade. Remo, enciumado por não ser o escolhido, escarneceu do irmão e, num salto, atravessou o sulco sendo morto por Rômulo, que o enterrou no Aventino.

Suprimindo a lenda, sabe-se que “cidade” e “urbe” não eram palavras sinônimas na antiguidade. “Cidade” designava a associação religiosa e política das famílias e das tribos, ao passo que a “urbe” era o domicílio, o local do altar, o santuário desta cidade. Esta “urbe” era fundada de uma só vez, inteiramente, em um único dia. Na construção de Roma, por Rômulo, este chamou a si toda a sorte de ladrões, vagabundos e aventureiros, edificou um abrigo para o fruto de seus crimes; no momento de estabelecer a urbe, o fez longe, com população oriunda de cúrias, ou seja: “gentes” vindas de Alba, já organizados em sociedades de culto definido. Reuniam-se as “gentes”, acendiam o fogo sagrado, saltavam por cima dele, cavavam um fosso, depositavam um punhado de terra trazido dos lares de onde vinham, com o pó de seus antepassados, a terra patrum, a pátria. Este fosso chamava-se “mundus”, palavra que vinha da religião dos “manes”, ou seja, aqueles que traziam ao alcance da mão a terra que guardava a alma dos antepassados.

Pois bem: não por acaso, quando o Prof. Donaldo Schüler, estava traduzindo o Finnegans joyceano (outro parâmetro dos concretistas), esclareceu-nos, em um texto hoje não mais disponível na Rede Mundial de Computadores, um procedimento:

         "A frase ["The urb it orbs." - James Joyce, Finnegans Wake, linha 28, pág. 598] evoca a expressão latina urbi et orbi, que orbita em muitas línguas do Ocidente sem excluir a nossa. Em todas? A frase foi criada quando Roma já era centro do mundo. Urbe era Roma. Só Roma. O mundo orbitava em torno de Roma. O que valia para Roma valia para o mundo.“
         “Roma caiu. (...) Onde está o centro dos acontecimentos mundiais hoje? Qual é o centro dos centros culturais? (...)  O que hoje é fato já estava em andamento no início do século. E Joyce o sentiu. The urb orbs (a urbe orbita) seria uma frase normal. Mas Joyce, como é de seu costume em Finnegans Wake, despedaça a frase inglesa, a língua do dominador. Podia admitir o imperialismo de uma língua que por séculos tinha condenado o seu povo ao silêncio? Joyce sobrepõe ao verbo orb o substantivo orbit e o dilacera, antepondo it ao verbo. Resultado: The urb it orbs. Pelo texto de Joyce viajam fragmentos de cinqüenta línguas aproximadamente. Em lugar do centro, instalou-se o it (isto, isso). Isto (ou isso) orbita. O it, como o Es (id) freudiano, é o reservatório de todos os núcleos, de todas as órbitas imagináveis em giros inumeráveis e imprevisíveis. Não se procure a urbe no mapa, ela é reservatório, possibilidade de ser”.

         “Proposta de tradução: A urb ist orbita. Urb é mais do que urbe. Urb tem a ver com Ur (prefixo alemão para origem), ventre obscuro e misterioso de tudo o que é. Em ist (o) ouve-se a forma verbal ist e o demonstrativo Es da língua em que Freud formulou a teoria psicanalítica”.        
 Pergunta-se o que há de relação entre a lenda, a história e a órbita de James Joyce, frente à produção concreta de Romério Rômulo? O poeta, tendo no nome tanto Rômulo quanto Remo, não “matou” o Remo “concreto”, sequer pela “língua do dominador”. Sua pátria é sua língua e sua urbe sua origem. Seu “desvio formal” para o concretismo não é experimentação, ensaio ou presságio irracional. Sua obra, como um todo, é órbita da invenção, do rigor, da fidelidade poética e do amadurecimento de seus compromissos originais. Não é diferente nos exemplos aqui reproduzidos. Romério é um poeta “urbano”, universal. Não um poeta da metalinguagem auto-referente de um Paraíso perdido de uma infância recriada. Como não o foi Guimarães Rosa, freqüentemente descrito como um “contador de causos” e, não por poucas vezes, por ignorância, tratado como um embuste, uma fraude.

O obreiro faz a obra e a obra faz o obreiro. Nas mãos do poeta Romério Rômulo estão o fogo sagrado, as lacunas do “isso”, a ousadia no saltar os sulcos da terra e o compromisso intelectual com a tradição. Água, terra, fogo e ar: no meio de tudo, uma alma de poeta.

[1]  Periódico UFSC ou Anuário de Literatura, ISSN 1414-5235, Florianópolis p. 71- 78, 2007.

(*) Marconi Alvim Moreira, é graduado em filosofia e direito e procurador federal aposentado. como poeta sempre andou com o concretismo, tendo se tornado um estudioso desta vertente da poesia.

Intervenção sobre a gravura do artista Bolão*, extraída do livro 'Matéria Bruta', de Romério Rômulo - publicado em 'O Tempo'.
(*) Bolão, artista popular de Tiradentes que tem como marca a xilogravura.


travessia, 1
se ela quiser eu vou
faço logo a travessia.
manuelzão já me chamou.

inda que seja na cheia
atravesso o vau de rio
com um cavalo na veia.

o sertão é gado limpo
música semi colcheia.

com que roupa eu chego lá?
que pente que me penteia?

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COMO CITAR:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Romério Rômulo: poeta dos labirintos bucólicos da alma. Templo Cultural Delfos, janeiro/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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** Página atualizada em 16.2.2016.



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