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Fernando Pessoa - carta a Ronald de Carvalho

(Dedicado a Fernando Pessoa)
A única carta conhecida de Fernando Pessoa a um poeta brasileiro.

Um exemplar do livro "Luz Gloriosa", foi oferecido a Fernando Pessoa pelo autor e enviado através de Luís de Montalvor, no seu regresso a Lisboa após dois anos como secretário da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. O livro tem uma dedicatória escrita pelo punho de Ronald de Carvalho:
"Para as mãos de Fernando Pessoa, fraternalmente Ronaldo de Carvalho. Rio MCMXIV"
Em 29 de Fevereiro de 1915, Fernando Pessoa escreveu ao autor, agradecendo o livro que este lhe oferecera e fazendo uma crítica de "Luz Gloriosa", leia abaixo a carta na íntegra. A crítica de Fernando Pessoa parece ter influenciado Ronald de Carvalho, que iria aderir ao modernismo, destacando-se a sua intervenção na Semana de Arte Moderna de 1922, cinco anos mais novo do que Fernando Pessoa, Ronald de Carvalho viria a morrer, por coincidência, no mesmo ano do escritor português.


CARTA DE FERNANDO PESSOA AO POETA RONALD DE CARVALHO

Lisboa, 24 de Fevereiro de 1914?
Fernando Pessoa, por Almada Negreiros

Meu caro Poeta.

Escrevo-lhe a desoras da Delicadeza. Há meses que o Luís de Montalvor me fez chegar aos olhos o seu Livro. Embora o lesse sem tardança, tenho demorado o agradecimento para além dos limites que se usam. A licença poética não admite tanto. Eu tenho abusado do direito concedido aos camaradas de responder longe de propósito. Começo a minha carta por lhe pedir as desculpas a que este adiamento obriga.
Não sei que lhe diga do seu livro, que seja bem um ajuste entre a minha sensibilidade e a minha inteligência. Ele é deveras a obra de um Poeta, mas não ainda de um Poeta que se encontrasse, se é que um Poeta não é, fundamentalmente, alguém que nunca se encontra. Há imperfeições e inacabamentos nos seus versos. Vêem-se ainda entre as flores as marcas das suas passadas. Não se deveriam ver. Do poeta deve ser o ter passado sem outro vestígio que a presença das rosas. Para quê os ramos quebrados, ainda, e partido o caule das violetas?
Eu não lhe devia dizer isto, talvez, sem prefaciar que sou o mais severo dos críticos que tem havido. Exijo a todos mais do que eles podem dar. Para que lhes havia eu de exigir o que cabe na competência das suas forças? O poeta é o que sempre excede o que pode fazer.
O seu livro é dos mais belos que recentemente tenho lido. Digo-lhe isto para que, não me conhecendo, me não julgue posto sobre a severidade sem atenção às belezas do seu livro. Há em si o com que os grandes poetas se fazem. De vez em quando a mão do escultor faz falar as curvas nuas da sua Matéria. E então é o seu poema sobre o “Cais”, e o seu “Outono”, e este e aquele verso, caído dos deuses como o que é azul no céu nos intervalos da tormenta. Exija de si o que sabe que não poderá fazer. Não é outro o caminho da Beleza.
Eu detalho.
Tenho vivido tantas filosofias e tantas poéticas que me sinto já velho, e isto faz com que me dê o direito de o aconselhar, como Keats a Shelley, que esteja de vez em quando com as asas fechadas. Há um grande prazer estético às vezes em deixar passar sem exprimir uma emoção cuja passagem nos exige palavras. Dos nossos jardins interiores só devemos colher as rosas mais afastadas e as melhores horas e fixar só aquelas ocasiões do crepúsculo quando dói demasiado sentirmo-nos. Nenhum poeta tem o direito de fazer versos porque sinta a necessidade de os fazer. Há só a fazer aqueles versos cuja inspiração é perfumada de imortalidade.
Escrevo e paro. Pergunto a mim-próprio se poderá julgar tudo isto, porque não é transbordante de elogios, uma crítica adversa. Não o conheço e não sei. Mas repare que só a quem muito aprecio eu escrevo destas coisas. Decerto me faça justiça de crer que a quem não tem nenhum valor eu digo imediatamente que tem muito. Só vale a pena notar os erros dos que são na verdade Poetas, daqueles em quem os erros são erros. Para que notar os erros daqueles que não têm em si senão o jeito de errar?
Com tudo isto, que parece hesitante no elogio, repito-lhe que o seu livro é dos mais belos que ultimamente tenho lido. A sua imaginação, doentia e delicada, é uma princesa que olha das janelas o luxo longínquo dos tanques. Vejo que sente os repuxos. Eles são com efeito as melhores horas da água, e decerto que os mais belos são aqueles, em jardins ainda do século dezoito (e que nós nunca poderemos ver) .
A sua sensibilidade dói-me. Por certo que outrora nos encontramos e entre sombras de alamedas dissemos um ao outro em segredo o nosso comum horror à Realidade. Lembra-se? Tinham-nos tirado os brinquedos, porque nós teimávamos que os soldados de chumbo e os barcos de latão tinham uma realidade mais preciosa e esplêndida que os soldados-gente e os barcos reais. Nós andamos longas horas pela quinta. Como nos tinham tirado as coisas onde púnhamos os nossos sonhos, pusemo-nos a falar delas para as ficarmos tendo outra vez. E assim tornaram a nós, em sua plena e esplêndida realidade — que paga de seda para os nossos sacrifícios! — os soldados de chumbo e os barcos de latão; e através das nossas almas continuaram sendo, para que nós brincássemos com eles. A hora (não se recorda?) essa era demasiado certa e humana. As flores tinham a sua cor e o seu perfume de soslaio para a nossa atenção. O espaço todo estava levemente inclinado, como se Deus, por uma astúcia de brincadeira, o tivesse levantado do lado das almas; e nós sofríamos a instabilidade do jogo divino como crianças que apreciam as partidas que lhes fazem, porque são mostras de afeição. Foram belas essas horas que vivemos juntos. Nunca tornaremos a ter essas horas, nem esse jardim, nem os nossos soldados e os nossos barcos. Ficou tudo embrulhado no papel da seda da nossa recordação de tudo aquilo. Os soldados, pobres deles, furam quase o papel com as espingardas eternamente ao ombro. As proas dos barcos estão sempre para romper o invólucro. E sem dúvida que todo o sentido do nosso exílio é este — o terem-nos embrulhado os brinquedos de antes da Vida, terem-nos posto na prateleira que está exatamente fora do nosso gesto e do nosso jeito. Haverá uma justiça para as crianças que nós somos? Ser-nos-ão restituídos por mãos que cheguem aonde não chegamos os nossos companheiros de sonho, os soldados e os barcos? Sim, e mesmo nós próprios, porque nós não éramos isto que somos... Éramos duma artificialidade mais divina...
Escrevo e divago, e tudo isto parece-me que foi uma realidade. Tenho a sensibilidade tão à flor da imaginação que quase choro com isto, e sou outra vez a criança feliz que nunca fui, e as alamedas e os brinquedos, e apenas, no fim de tudo, a supérflua realidade da Vida...
Perdoe-me que lhe escreva assim... A Vida, afinal, vale a pena que se lhe diga isto. Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse...

Abraça-o

Fernando Pessoa

Fonte: PESSOA, Fernando. In “Correspondência (1905-1922)”, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p.150. / in "Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa". Lisboa: Ática, 1966.  p. 135. /TRIBUNA da Imprensa, Rio de Janeiro, 12-13 de Fevereiro de 1955, com o título “Carta inédita de Fernando Pessoa a Ronald de Carvalho”. [mantida a grafia original]
___
Baixe o livro Luz Gloriosa, de Ronald de Carvalho - exemplar que o autor ofereceu a Fernando Pessoa em 1915, existente na Biblioteca da Casa Fernando Pessoa em Lisboa - Link. 



... E o veleiro partiu... para os longes, no Poente,
e o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio...
— A Saudade da luz e a Saudade da gente,
a invernia do olhar, e os nervos sem estio —

E eu me deixei ficar, contemplativamente,
olhos cheios de Sol, de ouro flavo e sadio...
— Na fluida limpidez da tarde transparente
setembro havia posto um colorido frio...

... E o veleiro partiu, de velas soltas, no alto,
para a glória do Mar, na paisagem violeta
do Outono, entre calhaus e cimos de basalto...

E, com ele, foi, também, panda, num desvario
de asas brancas, para o ar, uma última goleta...
— E o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio...
- Ronald de Carvalho, in "Os Sonetos Íntimos", do livro 'Luz Gloriosa', 1913.


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Página atualizada em 26.4.2016.




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Natália Correia - poemas

Natália Correia - foto: (...)

Auto-retrato
Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.


BREVE ANTOLOGIA POÉTICA DE NATÁLIA CORREIA

A defesa do poeta
Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
dou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs em ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

A exaltação da pele
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§


Natália Correia - foto: (...)
Como dizer o silêncio?
Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.

O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.

Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?

Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.

Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.

E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.

Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

Com a essência das flores mais coniventes...
Com a essência das flores mais coniventes
Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Os anos murcham e só no corpo sentes
Quente e fagueira a passagem da vida.

Não digas, cética, que a carne é vã e passa
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Perséfone raptou rendido à graça.
Talvez no além precises do teu corpo.

Estima-o; e à beleza mais demora
Darão os fados na vida passageira.
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
De Paros seja o mármore da banheira.

Nua e rosada imerge na carícia
Emoliente da água perfumada,
E as folhas lassas dos membros espreguiça
Como uma humanizada flor aquática.

Não te esqueças porém de no amavio
Da água verter um brando óleo de malvas
Que te aveluda as coxas e mais brilho
Te dá ao polimento das espáduas.

E saindo do banho como a deusa
Sai, das macias ondas, nacarada,
Ergue-te para o amor, estátua de seda
Toda coberta com pérolas de água.

Por fim veste a camisa mais picante;
Com pó de ouro empoa o teu cabelo.
E vai para a alcova onde o teu amante
Te espera radioso e fiel como um espelho.
- Natália Correia, em "O armistício". 1985.

§

Cosmocópula    
I
        
Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras
      
II

O corpo é praia
a boca é a
nascente
e é na vulva que
a areia é mais sedenta
poro a poro vou
sendo o curso de 
água
da tua língua 
demasiada e 
lenta
dentes e unhas 
rebentam como 
pinhas
de carnívoras plantas 
te é meu ventre
abro-te as coxas e 
deixo-te crescer
duro e cheiroso como o 
aloendro
- Natália Correia, em "Eros de passagem - Poesia erótica contemporânea". [selecção e prefácio de Eugénio de Andrade]. Porto: Editora Campo das Letras, 1997.

§

De alma aberta
Tomai-me as ancas fartas dão para égua
e as açucenas que ainda são mamudas.
Dos olhos tomai pranto, é boa rega,
já que a chorar por vós vos dei fartura.

Dos ouvidos, silvos que os ocuparam
tomai que até farelo pus em música.
Calo a farinha. Anjos a trituraram.
De agro celeste, o grão não mói a Musa.

De árduos sentidos que chamais pecados
tomai só os mortais. Dão uma récua.
Dos imortais nem um que são velados
por vapores de alvorada paraclética.

Tomai riso também se quereis folia:
mete rabeca e balho o Sprito Santo.
Nos fúlgidos milagres da pombinha
embuça-se o divino no profano.

Tomai polme a ferver de ilhoa irada,
mesmo o coice que dá depois de morta.
Eu deito fogo para não ser queimada.
Mas serva e cerva sou por trás da porta.

Tomai gestos que são dos sete palmos
e para vermes eu não ponho a rubrica.
De publicar-me em pó estais perdoados.
Devo-me eterna vendida em hasta pública.

Traficantes de peles, à puridade
vos digo: só mentira arrecadais.
Porque tal como o lótus, a verdade
vos dou na comunhão que não tomais.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

De perfil
Poesia com dor já comprei
ou algo que de poesia
tinha a cordial dissipação
dos poemas que eu não escrevia.

Agora pela romântica
retórica de não ter dinheiro
a vendo avulso mas roubo
no peso como o merceeiro.

Esse pequeno furto é o meu quarto
(de alva) indicador insone
que disca o número de deus
num sub-reptício telefone

deus movediço que é uma rede
de linhas interrompidas
onde caio morta de sede
de jogar comigo às escondidas.

Escondendo o que de frente vejo
de perfil me vedes como os egípcios
não por vício de esconder um deus
mas o deus de esconder um vício.

Se um grama de mim sonego
a que chamo deus por ínvio rito
perdoai-me porque só vos roubo
aquilo em que não acredito.
- Natália Correia, em "A mosca iluminada". 1972.

§

Do sentimento trágico da vida
Não há revolta no homem 
que se revolta calçado. 
O que nele se revolta 
é apenas um bocado 
que dentro fica agarrado 
à tábua da teoria.
Aquilo que nele mente 
e parte em filosofia 
é porventura a semente 
do fruto que nele nasce 
e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido 
sem descobrir o sentido 
do que nos há-de matar.
Rebeldia é o que põe 
na nossa mão um punhal 
para vibrar naquela morte 
que nos mata devagar.
E só depois de informado 
só depois de esclarecido 
rebelde nu e deitado 
ironia de saber 
o que só então se sabe 
e não se pode contar.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

Falavam-me de amor
Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas, 
menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.
- Natália Correia, em "O dilúvio e a pomba". 1979.

§

Ode à paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza, 
Pelas aves que voam no olhar de uma criança, 
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza, 
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, 
Pela branda melodia do rumor dos regatos, 

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, 
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos, 
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria, 
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, 
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, 
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, 
Pelos aromas maduros de suaves outonos, 
Pela futura manhã dos grandes transparentes, 
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra, 
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas 
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra, 
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna, 
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz. 
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, 
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, 
Abre as portas da História, 
                               deixa passar a Vida!
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§


Natália Correia - foto: (...)
I - O livro dos amantes
Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à  exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

II - O livro dos amantes
Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

VI - O livro dos amantes
Aumentámos a vida com palavras 
água a correr num fundo tão vazio. 
As vidas são histórias aumentadas. 
Há que ser rio. 

Passámos tanta vez naquela estrada 
talvez a curva onde se ilude o mundo. 
O amor é ser-se dono e não ter nada. 
Mas pede tudo
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

VII - O livro dos amantes
Tu pedes-me a noção de ser concreta 
num sorriso num gesto no que abstrai 
a minha exactidão em estar repleta 
do que mais fica quando de mim vai. 

Tu pedes-me uma parcela de certeza 
um desmentido do meu ser virtual 
livre no resultado de pureza 
da soma do meu bem e do meu mal. 

Deixa-me assim ficar. E tu comigo 
sem tempo na viagem de entender 
o que persigo quando te persigo. 

Deixa-me assim ficar no que consente 
a minha alma no gosto de reter-te 
essencial. Onde quer que te invente. 
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.


§

O poema
O poema não é o canto 
que do grilo para a rosa cresce. 
O poema é o grilo 
é a rosa 
e é aquilo que cresce. 

É o pensamento que exclui 
uma determinação 
na fonte donde ele flui 
e naquilo que descreve. 
O poema é o que no homem 
para lá do homem se atreve. 

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las 
na já longínqua noção 
de descrevê-las.

E essa própria noção é só 
uma saudade que se desvanece 
na poesia. Pura intenção 
de cantar o que não conhece. 
- Natália Correia, em "Poemas". 1955. 

§

O sol nas noites e o luar nos dias
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

Poema limo
De não ser deus nem bicho 
nem sossego de pedra 
de refletido lixo 
faz-se o homem poeta 

se de algo se de alga 
a origem lhe é incerta 
se bruscamente breve 
qual círculo na água 
o homem para que serve?
- Natália Correia, em "O vinho e a lira". 1966.

§


Natália Correia - foto: (...)
Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

Rocochete
Que margens têm os rios?
para além das suas margens?
Que viagens são navios?
Que navios são viagens?

Que contrário é uma estrela?
Que estrela é este contrário
de imaginarmos por vê-la
tudo à volta imaginário?

Que paralelas partidas
nos articulam os braços
em formas interrompidas
para encarnar um espaço?

Que rua vai dar ao tempo?
Que tempo vai dar à rua
onde o relógio do vento
pára na hora da lua?

Que palavra é o silêncio?
Que silêncio é esta voz
que num soluço suspenso
chora cá dentro por nós?
- Natália Correia, em "Passaporte". 1958.

§

Soneto de abril
Evoé! de pâmpano os soldados  
rompem do tempo em que Evoé! a terra 
salvé rainha descruzando os braços 
com seu pé de papiro pisa a fera.
Na écloga dos rostos despontados  
onde dos corvos se retira a treva, 
de beijo em beijo as ruas são bailados  
mudam-se as casas para a primavera.
Evoé! o povo abre o touril 
e sai o Sol perfeitamente Abril  
maravilha da Pátria ressurrecta.
Evoé! evoé! Tágides minhas 
outras vez prateadas campainhas 
sois na cabeça em fogo do poeta.
- Natália Correia, em "PoemAbril- antologia de autores. [organização Carlos Loures e Manuel Simões]. Coimbra: Fora do Texto - Cooperativa Editorial de Coimbra, 1994.

§


XII    
     Pássaro breve 
Rompendo a chuva caída 
Na minha melancolia. 

     Ave voando 
Na chuva que vai caindo 
Em mim sem cair no dia. 

     Pássaro leve 
Cantando o sol que amanhece 
Na noite que me entristece.
- Natália Correia, em "Rio de Nuvens". 1947.



Natália Correia - foto: folha da poesia

BREVE BIOGRAFIA DE NATÁLIA CORREIA
Natália de Oliveira Correia foi activa interventora da vida política e sócio-cultural do seu tempo. Poeta, dramaturga, ficcionista, ensaísta, tradutora, autora de libretos de ópera, foi também colaboradora de vários títulos da imprensa periódica como, por exemplo, o Diário de Notícias e A Capital e assumiu cargos directivos em O Século Hoje e na Vida Mundial. Foi directora literária na Editorial Estúdios Côr (1971) e na Editora Arcádia (1973), argumentista do telefilme Santo Antero e de programas culturais transmitidos pela RTP e emprestou a sua voz para a gravação de textos literários produzidos pela Editora Discográfica Sassetti. Integrou a equipa da Secretaria de Estado da Cultura, em 1977, como consultora cultural, a convite de David Mourão-Ferreira e, em 1980, é eleita deputada à Assembleia da República. 
:: Fonte: Espólio Natália Correia | Biblioteca Nacional de Portugal. (acessado 24.4.2016).



Natália Correia - foto: (...)
OBRA DE NATÁLIA CORREIA

Poesia
:: Rio de nuvens1947.
:: Poemas. 1955.
:: Dimensão encontrada. 1957.
:: Passaporte. 1958.
:: Comunicação. 1959.
:: Cântico do país imersoLisboa: Contraponto, 1961.
:: O vinho e a lira. 1966.
:: Mátria. 1968.
:: As maçãs de Orestes. 1970.
:: Mosca iluminada. 1972.
:: O anjo do ocidente à entrada do ferro. 1973.
:: Poemas a rebate. 1975.
:: Epístola aos Iamitas. 1976.
:: O dilúvio e a pomba1979.
:: Sonetos românticos. 1990.
:: O armistício. 1985.
:: Sonetos românticos. 1990; 1991.
:: Poesia completa: O sol nas noites e o luar nos dias. 2 Vol's., Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993 ; 2000.
:: Memória da sombra.  [versos para esculturas de António Matos]. 1994. 
:: Poesia completa - Natália Correia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

Romance
:: Anoiteceu no bairro. 1946. 
:: A madona. 1968; 2000.
:: A ilha de circe. 1983; 2001.
:: As núpcias. 1990. 

Conto
:: Onde está o menino Jesus. 1987.

Infanto-juvenil 
:: Grandes aventuras de um pequeno herói. 1945.

Natália Correia - foto: (...)
Teatro
:: Sucubina ou a teoria do chapéu. [em colaboração com Manuel de Lima]. 1952
:: O progresso de Édipo. (poema dramático). 1957.
:: O homúnculo, tragédia jocosa. 1965.
:: O encoberto. 1969; 1977.
:: Erros meus, má fortuna, amor ardente. 1981; 1991.
:: A pécora (1967). 1983; 1990.
:: D. João e Julieta (1959). 1999.

Ensaio
:: Descobri que era europeia - impressões de uma viagem à américa. 1951.
:: Poesia de arte e realismo poético. 1958.
:: A questão académica de 1907. 1962.
:: Uma estátua para Herodes. 1974. 
:: Não percas a rosa - diário e algo mais: 25 de Abril de 1974 - 20 de Dezembro de 1975. (Diário). 1978; 2003.
:: Notas para uma introdução às cantigas de escárnio e de mal-dizer galego-portuguesas. 1982.
:: Somos todos hispanos. 1988; 2003. 
:: A ibericidade na dramaturgia portuguesa. 2000.

Antologias (organização)
:: Antologia da poesia erótica e satírica: dos cancioneiros medievais à actualidade[selecção, prefácio e notas de Natália Correia]. Editora Afrodite, 1966; 2000.
:: Cantares dos trovadores galego-portugueses. 1970; 1998.  
:: Trovas de D. Dinis (Trobas d'el Rey D. Denis). 1970.
:: A mulher, antologia poética. 1973.
:: O surrealismo na poesia portuguesa. 1973. 
:: Antologia da poesia portuguesa no período barroco. 1982.
:: A ilha de são nunca: atlantismo e insularidade na poesia de António de Sousa. 1982.
:: Breve história da mulher e outros escritos. Antologia. (textos de imprensa). 2003.
:: A estrela de cada umAntologia. (textos de imprensa). 2004.

Natália Correia (Furnas, ilha de São Miguel, Açores, 1975)

© Direitos reservados aos herdeiros

© Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske


Como citar:
FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção, edição e organização). Natália Correia - poemas. Templo Cultural Delfos, fevereiro/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).
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:: Página atualizada em 24.4.2016.



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