Há um amor indizível à espera dos corpos
um amor quase oculto feito de sombras
e desejos que não cabem
nas palavras de um amor convencional.
Há um arco sem fim entre as margens
dessa espera, um dragão de fogo renascido
na esperança onde a solidão é coisa
de adolescentes e de amantes separados.
Há a voz indelével como as águas livres
da montanha o eco e a insónia no rubor
da tua face branca onde adormecem
as noites e o luar das mãos.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).
Beleza
Não sabia que existias…Só se ama o que se conhece!
Quem espera traz uma esperança antiga,
uma praça em festa de solidão oculta.
Às vezes, é preciso que as velas ardam até ao fim.
Depois, vem a madrugada e o chocalhar dos rebanhos,
os trilhos, o incenso, a voz e o horizonte iniciático.
A beleza nos sentidos é um rio de fogo,
atravessa-nos como a paixão imperativa,
véu intemporal de um amor para sempre.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Claustro
Quando ficava só
todas as palavras sucumbiam à mudez
as sombras, quase monásticas, atravessavam os claustros
as tuas mãos resgatavam as conversas inacabadas.
Por detrás das colunas ancestrais
o sol desenhava o teu rosto no rendilhado da pedra.
Era de filigrana a paciência
o tempo era um véu de linho.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Cuidar de ti
Cuidar de ti é trazer a Primavera cativa
os aromas do amor num aquário azul
peixes e beijos desenhados na boca.
Cuidar de ti é acordar corpo a corpo
eternidade dos instantes sem pressa
num mar de desejos em pleno fogo.
Cuidar de ti é ser tudo quanto somos
guardar o antes e o depois na melodia
de um verso que viva dentro de nós.
Cuidar de ti é dar-te sem que me peças
nunca é muito se nos damos ao outro
e ao sonho nesse mar a que regressas.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).
Demora
Desce a tarde onde a noite espera depois do sol.
Quem demora e não sabe a pressa do amor agora
chega depois, chega tarde, às dobras do lençol
como se chegasse cedo com pressa de ir embora.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Dor
Quando o nosso amor está doente
as estrelas parecem ainda mais distantes
há uma dor indizível sob a pele mesmo se não dizemos nada.
Sei do que falas quando falas dessa dor
que nos acorda ao nascer do dia
e se entranha quando as aves nocturnas saem para a caçada.
A dor mais funda é onde a liberdade atravessa o olhar
como um rio levada na corrente inadiável
de um amor inteiro sem lágrimas.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).
Dúvida
Tenho muitas dúvidas.
A vida é o que fazemos por ela.
Tenho poucas verdades absolutas.
Guardo sempre no silêncio os nomes
que revelaram outros sinónimos
da beleza que atravessa a paixão.
Se me disserem eu sei
se não disserem eu recordo.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
É tão nosso...
É tão nosso este amor, poético e puro, sorridente e alegre!
É tão nosso o cheiro a manhã, o pão quente partilhado,
com meio-beijo ou beijo inteiro, a gargalhada esvoaçante.
É tão nosso o olhar que derramamos sobre a varanda
em busca do sol ou, ainda, quando ficamos em silêncio
adivinhando as viagens nos corpos tatuados a sémen.
É tão nosso esse gesto de pedir colo sem dizer nada
com a ponta dos dedos e acrobacias sensuais.
É tão nosso o tempo sem pressa e as palavras da noite
segredadas na pele, iluminada de horizontes e sonhos.
É tão nosso não pedir nada, ser apenas de cada um
onde permanece o muito que nos quer.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).
Espera
Há-de chegar esse dia
em que um de nós não terá a mão do outro,
em que o sentido das coisas não terá sentido nenhum.
Aprendemos a vida vivendo-a
e partilhando a metade do outro que nos completa.
Quando olho as estrelas ao teu lado
vejo nos teus olhos o brilho da paixão
a menina de saia rodada saltitando na hora do recreio.
Aprendemos a esperar um pelo outro.
Os anos foram gastando os dias e, de tanto esperar,
as noites desaguaram nos sonhos
até o vento içar nos corpos o templo do fogo.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Esperar
Esperar por ti foi inventar a paciência
juntar as partes desavindas na procura
depois de tanta ira e tanta ausência
em regressos e idas de pouca dura.
Esperar por ti foi uma invenção
um capricho do corpo resgatado
onde o vício foi medo e paixão
depois de tudo ter acabado.
Esperar por ti foi sobreviver ao silêncio
no dia em que a noite deixou de o ser
e em que o mar abraçou o rio
como se o poeta nascesse para morrer.
Finalmente, há um horizonte sem fim
no teu rosto de menina quando a tarde
traz os ventos e os melros ficam assim:
olhando nos teus lábios o fogo que arde.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Espigas
As palavras são como as espigas
podem ser o excesso depois do olhar.
A planície inteira dentro de mim
sem palavras, com silêncio e emoções
é o Alentejo: horizonte e distância.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Íris
Procuro os silêncios permitidos
o perfume no olhar, o instante e a confidência.
Esse encontro transformou as pequenas
semelhanças na cordilheira das memórias.
Dos escassos relâmpagos verdes
as tuas íris permaneceram
bailarinas da esperança.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Lembrar
Lembrar-me de ti
era inventar as rotas das viagens que desenhámos
nos vidros embaciados quando o sonho se confundia
com o sono da manhã.
Lembrar-me de ti
era desejar-te o corpo de rosas na praia branca
onde a nudez tinha segredos e os seios aureolados,
sóis de luz, cerziam os meus olhos.
Lembrar-me de ti
é esconder-te, ainda, no silêncio das verdades inteiras
onde nada se esquece para ser lembrado nos dias
vindouros onde gastaremos a pele.
Lembrar-me de ti
será prometer-te paciência quando a paixão resiste
aos fins de tarde depois dos pássaros misturarem
os sons no ancoradouro da espera.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Memória
Gastámos a pele num areal sem gaivotas
incendiados na lava do desejo onde outrora
trocavam escravos de outras especiarias.
Nas bocas de Agosto a sede trouxe
a espuma do efémero depois do sol.
Somámos a solidão das rosas e os aromas
da viagem que acrescenta sonho ao horizonte.
Gastámos os sentidos sem sabermos um do outro
e os dias imaginados num poema escrito avulso
na face do vento.
Quando não estás a pele desoculta as cicatrizes
como se o nevoeiro desnudasse o passado
e a urgência do presente te trouxesse
desse tempo em que o teu olhar
fugidio se fundia na cumplicidade antiga
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Olhei-te nos olhos
estavam lá todas as paisagens que cresceram no silêncio,
onde apenas sobrevivem os que se entregam pelo coração.
Vi o que outros não viram antes e, talvez, os que hão-de vir.
Vi a púrpura nos lábios, tinta de muitos poemas,
subtraída ao luar nesse imenso espelho de água,
onde se afogam as mágoas e as tormentas.
Vi o Adamastor sulcando a porta das especiarias,
temor de naus e caravelas antes e depois de Calecute.
Vi o Minotauro lançando-se sobre o linho indefeso das Vestais.
Vi o que outros não viram antes e, talvez, os que hão-de vir.
Vi a beleza num castiçal luminoso, cercado de sombras e de medos
sob a mão indizível do mestre-de-cerimónias.
Onde se abriam rosas, havia paredes brancas e barra azul
para perpetuares as manhãs e o céu nos meus olhos.
Vi o que chega tarde e nunca vai embora: a arte inquieta dos instantes,
dividindo os dias e as noites numa cegueira cúmplice.
Vi o que outros não viram antes e, talvez, os que hão-de vir.
- António Vilhena, em "Só há uma vida e uma morte". 2015 (inédito).
Ousar
Não é fácil ocultar as cicatrizes
o tempo passa e alimentam a dúvida existencial.
Seremos capazes?
Somos, pelo menos, obrigados a tentar.
Há um dever de resistência pela própria vida.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Palavras
Se dizes o que quero ouvir, eu gosto.
Mas se dizes o que devo ouvir, eu penso.
Prefiro sempre aprender a gostar,
mesmo que seja estranho o que dizes.
Nem sempre as palavras trazem
nenúfares para receber os sentidos.
Gosto das palavras que deixam
uma pétala onde repousas o olhar.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Planície
Nos seus rostos não há lugar para ironias
a planície inteira está na pele
queimada como tatuagem da terra.
Quando a noite chega
os círios sinalizam
os percursos da intimidade
e a solidão ganha vida nas trevas
dos que ficam sem companhia.
Nunca um alentejano cantou sozinho,
a sua voz ecoa solidária, o silêncio atravessa
um tambor de paixões
orquestrando o amor de Orpheu e Eurídice.
- António Vilhena, em "Canto imperecível das aves". Coimbra: Caracol Edições, 2012.
Sabedoria
Somos feitos de paciência e nervos.
Temos tantas vidas na vida que sabemos e ocultamos.
Se o que somos é muito mais do que parecemos
parecer o que ocultamos é sabedoria.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Saudade
Olho-te na fotografia. Está lá um horizonte,
uma página à tua espera para escreveres, depois
de tanta ausência. Estão lá as linhas convergentes
como uma nódoa de esperança na pele branca
do poema. Não sou capaz de dizer os instantes à
beira do cais, onde aceno aos navios que outrora
visitaram os meus sonhos, como se estivesses nas
rotas de todos os encontros e as tuas mãos fossem
velas puídas pelo tempo. Olho-me na fotografia.
Acrescento-lhe os anos, mas não posso inventar
o que não vivemos.
- António Vilhena, em "Canto imperecível das aves". Coimbra: Caracol Edições, 2012.
Silêncio
Quando digo que vivíamos em silêncio um no outro,
não ignoro que tanta ausência significou outros encontros
mas o teu perfume permanece como o amor nas cartas.
Embriagados na punção licorosa dos beijos
tropeçamos, ainda, na efémera luz da manhã
onde a seda magoa os dedos.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Sonho
Quando o tempo era jovem
era velho o sonho que trazia dentro de mim.
Agora, o tempo velho deu lugar a um sonho novo.
Já não sei se sinto a sombra desse lugar
onde os teus olhos me traziam cativo.
Hoje sou refém do tempo
em que a liberdade de pensar
o futuro esculpe no jovem
o tempo velho de um sonho novo.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Tempo
A idade fez-te esquecer algumas palavras:
o tempo gasta a novidade.
Mas há verdades que atravessam o tempo
como se nunca envelhecessem.
É dessas palavras que falo. Tu sabes...
Quando um dia te lembrares das emoções
e das palavras sob as tardes,
talvez a noite ilumine a memória
e eu não esteja à tua beira
para partilhar as galáxias
espelho de viagens no rosto gasto.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Terra
Na noite silenciosa oiço o chocalhar do gado na planície
profunda. Os únicos sons chegam com a natureza:
as aves, os rebanhos de vacas e de ovelhas. Para
se chegar a este lugar é preciso amargar muito pó de
terra batida. Sinto que regressei à minha matriz ancestral,
ao “humus”, onde Anteu recriou a moira, o
destino, para os gregos antigos.
Há neste aconchego da terra o conforto do despojamento
e a indiferença pela intriga e a inveja. Aqui, lê-se
Homero. Tenho a companhia da lua crescente, os olhos
imaginários e a respiração da esperança.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Tudo
Nos poemas onde as metáforas
e as tranças se desnudam
as cumplicidades e os abraços
enlaçam as árvores
entre o perto e o longe
nesse mar de sargaços
onde tudo parece pouco
quando estamos a dois
e o tempo antes de o ser
era mais que o teu nome
num vale de pétalas.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.
Vida
A vida não é um desejo agrilhoado
cobiça do fogo entre dias, noites
e nomes que trazemos do passado.
- António Vilhena, em "Templo do fogo insaciável". Coimbra: Caracol Edições, 2013.